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Sob a direcdo de J.-D. NASIO Introdugao as Obras de FREUD e FERENCZI e GRODDECK KLEIN ¢ WINNICOTT DOLTO ¢ LACAN com as contribuigdes de A.-M. Arcangioli, M.-H. Ledoux, L. Le Vaguerése, J.-D. Nasio, G. Taillandier, B. This e M.-C. Thomas Tradugao: Vera Ribeiro psicanatista Revisio: Marcos Comaru mestre em teoria psicanalitica, UFRJ Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro A aceitacao de processos psiquicos inconscientes, 0 reconhecimento da doutrina da resisténcia e do recalcamento a consideracao da sexualidade e do complexo de Edipo séo os conteiidos principais da psicandlise e os fundamentos de Sua teoria, e quem ndo estiver em condicdes de subscrever todos eles nao deve figurar entre os psicanalistas. S. Freud Um século — e€ que século! — nos separa de Freud, desde o dia em que ele decidiu abrir seu consult6rio em Viena ¢ redigir a primeira obra fundadora da psicandlise, A interpretagao dos sonhos. Um século € muito extenso; extenso para a hist6ria, para a ciéncia e para as técnicas. Muito extenso paraa vida. E, no entanto, € muito pouco para nossa jovem ciéncia, a psicandlise. A psicandlise, admito, nao progride maneira dos avangos cientificos € sociais. Ocupa-se de coisas simples, sumamente simples, que sao também imensamente complexas. Ocupa-se do amor e do 6dio, do desejo € da lei, dos sofrimentos e do prazer, de nossos atos de fala, nossos sonhos e nossas fantasias. A psicandlise ocupa-se das coisas simples e complexas, mas eternamente atuais. Ocupa-se delas nao apenas por meio de um pensamento abstrato, de uma teoria que registrarei neste capitulo, mas através da experiéncia humana de uma relacao concreta entre dois parceiros, analista ¢ analisando, mutuamente expostos a incidéncia de um no outro'. Porém um século, mais uma vez, € muita coisa. E, no decurso desses cem anos, os problemas abordados pela psicandlise foram amitide designa- dos e conceituados de diferentes formas. De fato, a experiéncia sempre singular de cada tratamento analitico obriga o psicanalista que nele se engaja a repensar, em cada situa¢do, a teoria que justifica sua pratica. Entretanto, 0 fio inalter4vel dos principios fundamentais da psicandlise atravessa 0 século, ordena as singularidades do pensamento analitico € assegura 0 mgor que legitima o trabalho do psicanalista. Ora, qual € esse fio que garante tal continuidade, quais so os fundamentos da obra freudiana? Esses fundamen- 14 intados, resumidos ¢ reafirmados inimeras vezes. Como, come! aa 1a’? Como falar de Freud 9, transmiti-los aos leitores de uma nova mane! e nos dias atuais? - Optei por Ihes submeter minha leitura da obra freudiana a partir de uma questo que habitou em mim durante estes ultimos dias, enquanto eu escrevia ntemente O que Mais me impressionava em este texto. Perguntei-me ince: Freud, 0 que dele vivia em mim, no trabalho com meus analisandos, na reflexdo teérica que orienta minha escuta, e no desejo que me anima, de transmitir e fazer a psicanalise existir, tal como ela existe neste instante em gue vocés léem estas linhas. O que mais me impressiona em Freud, aquilo em sua obra que me remete a mim mesmo e que, portanto, assim transmite a obra sua atualidade viva, nao é a teoria dele, embora eu lhes v4 falar sobre i8S0, nem tampouco seu método, que aplico em minha pratica. No. O que me encanta quando leio Freud, quando penso nele e Ihe dou vida, é sua forga, sua loucura, sua forga louca e genial de querer captar no outro as causas de seus atos, de querer descobrir a fonte que anima um ser. Sem divida, Freud é, antes de mais nada, uma vontade, um desejo ferrenho de saber; mas sua genialidade est4 em outro lugar. A genialidade é uma coisa diferente do querer ou do desejo. A genialidade de Freud estd em ele haver compreendido que, para apreender as causas secretas que movem um ser, que Movem esse outro que sofre e a quem escutamos, é preciso, primeiro e acima de tudo, descobrir essas causas em si mesmo, refazer em si — enquanto se mantém o contato com 0 outro que esta diante de nés — o caminho que vai de nossos Proprios atos a suas causas. A genialidade nAo reside, pois, no, desejo de desvendar um enigma, mas em emprestar o proprio eu a esse desejo; em fazer de nosso eu o instrumento capaz de se aproximar da origem velada do sofrimento daquele que fala. A vontade de descobrir, tio tenaz em Freud, conjugada com essa modéstia excepcional de comprometer seu eu para consegui-lo, isso € 0 que mais admuro, e do que jamais lhes poderei prestar contas plenamente através de palavras e conceitos. A genialidade freudiana no se explica nem se transmute e, no entanto, nao pode persistir como uma graca inaudita do fundador. Nao, a genialidade freudiana é 0 salto que todo analista € conclamado a realizar em si mesmo, todas as vezes que escuta verdadeiramente seu analisando. FREUD 1s Esquema da légica do pensamento freudiano Freud nos deixou uma obra imensa— ele foi, como sabemos, um trabalhador infatigdvel — e toda a sua doutrina € marcada por seu desejo de identficar a origem do sofrimento do outro, servindo-se de seu proprio eu. Assim, tentarei apresentar-lhes a esséncia dessa doutrina, os fundamentos da teoria freudiana, sem esquecer que ela continua a ser uma tentativa incessantemen- te renovada de dizer 0 que nos move, de dizer o indizivel. Toda a obra freudiana é, nesse aspecto, uma imensa resposta, uma resposta inacabada a pergunta: qual é a causa de nossos atos? Como funciona nossa vida psiquica? Eu gostaria, justamente, de fazé-los compreender 0 essencial do fun- cionamento mental, tal como € visto pela psicandlise e tal como se confirma quando o psicanalista esté com seu paciente. A concep¢ao freudiana da vida mental, com efeito, pode formalizar-se num esquema légico elementar, que se nos evidenciou durante nossa releitura dos escritos de Freud. A medida que fomos procurando aproximar-nos mais do cerne da teoria, em vez de apreendé-la de fora, vimos que ela se transfigurava. Primeiro, a complexida- de reduziu-se. Depois, as diferentes partes imbricaram-se umas nas outras, para enfim se ordenarem numa é€pura simples de sua relacao. Se eu lograr transmitir-Ihes esse esquema, terei realizado plenamente meu propésito de introduzi-los na obra de Freud, porque esse esquema retoma de maneira surpreendente a légica implicita e interna do conjunto dos textos freudianos. Desde 0 Projeto para uma psicologia cientifica, redigido em 1895, até sua ultima obra, o Esbogo de psicandlise, escrito em 1938, Freud nao parou de reproduzir espontaneamente, muitas vezes de modo inadvertido, num quase- automatismo do pensamento, um mesmo esquema basico, expresso se: gundo diversas variantes. E precisamente essa ldgica essencial que agora tentarei expor-lhes. ‘ . Procederemos da seguinte maneira: comegarei por construir com vo- CEs este esquema elementar € 0 irei modificando progressivamente, a medida que desenvolvermos os temas fundamentais que sao 0 inconsciente, o recal- camento, a sexualidade, o complexo de Edipo e a transferéncia no tratamen- to analitico. * Passemos a nosso esquema basico. Em que consiste ele? Para responder, Preciso lembrar, inicialmente, que ele é uma versdo corrigida de um modelo conceitual j4 classico, utilizado pela neurofisiologia do século XIX para explicar a circulagdo do influxo nervoso, ¢ batizado de esquema do arco reflexo. Esclarego desde logo que 0 modelo do arco reflexo continua a ser um paradigma ainda fundamental da neurologia moderna. O esquema neurolégico do arco reflexo é muito simples e bastante conhecido (Figura 1). Ele comporta duas extremidades: a da esquerda, extremidade sensivel em que 0 sujeito percebe a excitacao, isto é, a injecao de uma quantidade “x” de energia — quando ele recebe, por exemplo, uma leve martelada médica no joelho. A da direita, extremidade motora, transfor- ma a energia recebida numa resposta imediata do corpo — em nosso exem- Plo, a perna reage prontamente com um movimento reflexo de extensio. Entre os dois extremos, instala-se, pois, uma tensdo que aparece com a excitagdio e desaparece com a descarga escoada pela resposta motora. O Principio que rege esse trajeto em forma de arco é muito claro, portanto: receber a energia, transformé-la em agdo e, conseqtientemente, reduzir a tensdo do circuito. co Teajetonia oO —_ 4 | Qo oD Excitagéo Agio real externa descarga externa Pélo sensivel Pélo motor Figura 1. Esquema do arco reflexo FREUD 7 Cremos que [0 principio de prazer] € cada vez provocado por uma tensdo desprazerosa, ¢ assume uma direcao tal que seu resultado final coincide com um rebaixamento dessa tensdo, isto é, com uma evitacao de desprazer ou uma produgdo de prazer. S. Freud Apliquemos agora esse mesmo esquema reflexo ao funcionamento do psi quismo. Pois bem, o psiquismo € igualmente regido pelo principio que visa a reabsorver a excitacdo e reduzir a tensdo, exceto pelo fato de que justamen- te, como veremos, 0 psiquismo escapa a esse princfpio. Na vida psiquica, com efeito, a tensio nunca se esgota. Estamos, enquanto vivemos, em constante tenso psiquica. Esse principio de redugdo da tensdo, que devemos antes considerar como uma tendéncia, € nunta como uma realizagao efetiva, leva, em psicandlise, 0 nome de Principio de desprazer-prazer. Por que chamé-lo dessa maneira, “desprazer-prazer"? E por que afirmar que 0 psi quismo esté sempre sob tensdo? Para responder, retomemos as duas extremi- dades do arco reflexo, mas imaginando, desta vez, que se trata dos dois polos do préprio aparelho psiquico, imerso como esté no meio composto pela realidade externa. A fronteira do aparelho, portanto, separa um interior de um exterior que o circunda (Figura 2). No polo esquerdo, a extremidade sensivel, discernimos duas caracteristicas Proprias do psiquismo: a) A excitagdo € sempre de origem interna, € nunca externa. Quer se ate de uma excitagdo proveniente de uma fonte externa, como, por exem- Plo, © choque provocado pela visio de um violento acidente de automovel, quer se trate de uma excitagdo proveniente de uma fonte corporal, de uma no necessidade como a fome, a excitagdo continua a ser sempre intert psiquismo, j4 que tanto o choque externo quanto as necessidades internas criam uma marca psiquica, A maneira de um selo impresso na cera. Numa palavra, a fonte da excitagio endégena é uma marca, uma idéia, uma ima- gem, ou, para empregar 0 termo apropriado, um representante ideativo carregado de energia, também chamado representante das pulsdes. Termo este — pulsdo — que reencontraremos muitas vezes neste capitulo. b) Segunda caracteristica: esse representante, depois de carregado uma primeira vez, tem a particularidade de continuar tao duradouramente excita- do, como se fosse uma pilha, que qualquer tentativa do aparelho psiquico de teabsorver a excita¢ao ¢ eliminar a tensdo revela-se uma tentativa fadada ao fracasso. Pois bem, essa estimulagdo ininterrupta mantém no aparelho um nivel elevado de tenso, dolorosamente vivenciado pelo sujeito como um apelo Permanente & descarga. E a essa tensao penosa, que 0 aparelho psiquico tenta em vao abolir, sem nunca chegar verdadeiramente a fazé-lo, que Freud chama desprazer. Temos, assim, um estado de desprazer efetivo e incontor- navel e, inversamente, um estado hipotético de Prazer absoluto, que seria obtido se 0 aparelho conseguisse escoar imediatamente toda a energia e eliminar a tensdo. Esclaregamos bem o sentido de cada uma dessas duas Palavras: desprazer significa manutengdo ou aumento da tensdo, € prazer, Supressdo da tenso. Todavia, ndo nos esquegamos de que o estado de tensao desprazeroso e penoso nao € outra coisa sendo a chama vital de nossa atividade mental, desprazer, tensio e vida sao eternamente insepardveis. No psiquismo, portanto, a tensio nunca desaparece totalmente, afirmagio esta que pode ser traduzida por: no psiquismo, o prazer absoluto nunca é obtido. Mas, por que a tensdo € sempre premente € 0 Prazer absoluto nunca € atingido? Por trés razdes. A primeira, voces ji a Conhecem: a fonte psiquica da excitagdo € tdo inesgotavel que a tensi eternamente reativada. A segunda razdo concerne ao pélo direito de noss esquema. O psiquismo nado pode funcionar como o sistema nervoso e resolver a excitagdo através de uma aco motora imediata, capaz de evacuar a tensio. Nao, o psiquismo sé pode reagir A excitagdo através de uma metifora da agio, uma imagem, um pensamento ou uma fala que Fepresente a ago, € no a agio concreta, que permitiria a descarga completa da energia, No psiquismo, toda resposta € inevitavelmente mediatizada por uma representagio, que s6 pode efetuar uma descarga sarcial. Do mesmo modo que pusemos no pélo esquerdo o representante siquico da pulsdo (excitagdo pulsional continua), colocamos no polo, FREUD 19 direito 0 representante psiquico de uma agio. Por isso, 0 aparelho psiquico permanece submetido a uma tensdo irredutivel: na porta de entrada, 0 afluxo das excitacdes € constante e excessivo; na saida, hé apenas um simulacro de resposta, uma resposta virtual, que efetua somen- te uma descarga parcial. Mas hd ainda uma terceira razdo, a mais importante e mais interessante para nds, que explica por que o psiquismo esta sempre sob tensdo. Ela consiste na intervencdo de um fator decisivo, que Freud denomina de recalcamento. Antes de explicar o que é 0 recalcamento, convém eu esclarecer que entre 0 representante-excitagao e o representante-acdo estende-se uma rede de muitos outros representantes, que tecem a trama de nosso aparelho. A energia que aflui e circula da esquerda para a direita, da excitagao para a descarga, atravessa necessariamente essa rede intermedidria. Entretanto, a energia nao circula da mesma maneira entre todos os representantes (Figura 2). Se imaginarmos 0 recalcamento como uma barra que separa nosso esque- ‘ma em duas partes, a rede intermedidria ficard assim dividida: alguns repre- sentantes, que reunimos como um grupo majoritario, situado a esquerda da barra, séo muito carregados de energia e se ligam de tal modo que formam o caminho mais curto e mais répido para tentar chegar a descarga. As vezes, organizam-se 4 maneira de um cacho e fazem toda a energia confluir para um Unico representante (condensagao); noutras vezes, ligam-se um atrds do outro, em fila indiana, para deixar a energia fluir com mais facilidade (deslocamento).” Alguns outros representantes da rede — que reuniremos como um grupo mais restrito, situado a direita da barra — sao igualmente carregados de energia e também procuram livrar-se dela, mas numa descarga lenta e controlada. Estes se opGem A descarga rapida, pretendida pelo primeiro grupo majoritério de representantes. Instaura-se, pois, um conflito entre esses dois grupos: um que quer de imediato o prazer de uma descarga total — 0 prazer é soberano, nesse caso —, € outro que se opde a essa loucura, * Essa visio econémica do movimento e da distribuigdo da energia pode traduzir-se numa visio “semidtica”, segundo a qual a energia investida numa representag’o corresponde & Significacdo da representagio, Dizer que uma representacao € carregada de energia equivale a dizer que uma representagiio € significante, portadora de significaydo. Assim, 0 mecanismo de condensagao de energia corresponde & figura da metontmia, segundo qual uma nica representagdo concentra todas as significagdes, € 0 mecanismo do deslocamento corresponde & figura da metifora, na qual as representaydes se vem auribuir suc ‘uma por uma, todas as significagdes. Observe-se, por outro lado, que essa relagdio se inverte para Lacan: a condensagio € da algada da metéfura, € 0 deslocamento, da alyada da metoninua vuod Jaasssodua a % osnjosqn sazoig & oppsapout sa201g oaummsqns 2 jmoand soznsg R owstnbisd op ojuaueuofouny ov opeorde oxayai 018 op ewianbsq “7 ean y opse ep aurwuasaiday Tenasojaiun apepiany < FREUD 21 lembra as exigéncias da realidade e incita a moderacao — nele, a realidade € soberana. O principio que rege esse segundo grupo de representantes chama-se Principio de realidade. O primeiro grupo constitui o sistema inconsciente, que tem por missdo, portanto, escoar a tens4o 0 mais depressa possivel e tentar atingir 0 prazer absoluto. Esse sistema tem as seguintes caracteristicas: compGe-se exclusi- vamente de representantes pulsionais, como se 0 representante do polo esquerdo se multiplicasse em muitos outros. Freud os denomina de “repre- sentagdes inconscientes”. Essas representacdes, ele também as chama “re- presentacdes de coisa”, por elas consistirem em imagens (acusticas, visuais, ou tacteis) de coisas ou de pedacos de coisa impressas no inconsciente. As representacdes de coisa sdo de natureza principalmente visual e fornecem a matéria com que se moldam os sonhos e, em especial, as fantasias. Acrescen- temos que essas imagens ou tragos mnémicos s6 sio denominados de “representaces” sob a condicao de estarem investidos de energia. Por isso, um representante psiquico é a conjungao de um traco imajado (um trago deixado pela inscri¢do de fragmentos de coisas ou acontecimentos reais) com a energia que reaviva esse trago. As representagdes inconscientes de coisa nao respeitam os limites da razo, da realidade ou do tempo — 0 inconsciente nao tem idade. Elas atendem a uma tnica exigéncia: buscar instantaneamen- te 0 prazer absoluto. Para esse fim, o sistema inconsciente funciona segundo os mecanismos de condensaco e deslocamento, destinados a favorecer uma circulagao fluente da energia. A energia € chamada livre, uma vez que circule com toda a mobilidade € com poucos entraves na rede inconsciente. O segundo grupo de representantes também constitui um sistema, 0 sistema pré-consciente/consciente. Esse grupo busca igualmente o prazer, mas, diferindo do inconsciente, tem por missao redistribuir a energia — energia ligada — e escod-la lentamente, seguindo as indicagdes do Principio de realidade. Os representantes dessa rede sao chamados “repre- sentacdes pré-conscientes e representages conscientes”. As primeiras sao representagoes de palavra; elas abarcam diferentes aspectos da palavra, como sua imagem acistica ao ser pronunciada, sua imagem grafica ou sua imagem gestual de escrita. Quanto as TepresentagGes conscientes, cada uma € composta de uma representacdo de coisa, agregada a representagao da palavra que designa essa coisa. A imagem acistica de uma palavra, por exemplo, associa-se a uma imagem mnémica visual da coisa para Ihe conferir um nome, marcar sua qualidade especifica e, assim, tornd-la consciente. Sublinhemos: os dois sistemas buscam a descarga, ou seja, 0 prazer; mas, enquanto 0 primeiro tende ao prazer absoluto € obtém apenas, como veremos, um prazer parcial, 0 segundo, por sua vez, visa a obter ¢ obtém um prazer moderado. Isto posto, podemos agora perguntar-nos: que €é 0 recalcamento? Dente as definigdes possiveis, proporei a seguinte: 0 recalcamento € um espessamento de energia, uma capa de energia que impede a passagem dos conteiidos inconscientes para 0 pré-consciente. Ora, essa censura nao é infalivel: alguns elementos recalcados vao adiante, irrompem abruptamente na consciéncia, sob forma disfarcada, e surpreendem o sujeito, incapaz de identificar sua origem inconsciente. Eles aparecem na consciéncia, portanto, mas permane- cem incompreensiveis e enigmaticos para o sujeito. Essas exteriorizagdes deturpadas do inconsciente conseguem assim descarregar uma parte da energia pulsional, descarga esta que proporciona apenas um prazer parcial e substitutivo, comparado ao ideal perseguido de uma satisfagdo completa e imediata, que seria obuda por uma hipotética descarga total. A outra parte da energia pulsional, a que nao transpoe 0 recalcamento, continua confinada no inconsciente € realimenta sem cessar a tensiio penosa. Tinhamos dito que o aparelho psiquico tem por fungdo reduzir a tensao e provocar a descarga de energia. Sabendo, agora, que a estimulagdo endé- gena é ininterrupta, que a resposta é sempre incompleta, € que o recalcamen- to aumenta a tensdo e a obriga a buscar expresses deturpadas, podemos concluir, portanto, que existem diferentes tipos de descarga proporcionado- res de prazer: © Uma descarga hipotética, imediata e total, que provocaria um prazer absoluto. Essa descarga plena aparenta-se com 0 caso do desaparecimento da tensdo quando de uma resposta motora do corpo. Ora, para o psiquismo, como sabemos, essa solugio ideal € impossivel. Todavia, quando abordar- mos 0 tema da sexualidade, veremos como esse ideal de um prazer absoluto mantém-se como referéncia incontorndvel das pulsées sexuais. © Uma descarga mediata e controlada pela atividade intelectual (pensa- mento, memoria, julgamento, atengao etc.), que proporciona um prazei moderado. « E, por fim, uma descarga mediata e parcial, obtida quando a energiae os FREUD 23 contetdos do inconsciente transpdem a barreira do recalcamento. Essa descarga gera um prazer parcial € substitutivo, inerente as formagdes do inconsciente. Esses trés tipos de prazer esto representados na Figura 2, na p4gina 20. Antes de retomarmos e resumirmos nosso esquema do funcionamento psiqui- co, convém fazer alguns esclarecimentos importantes no que concerne a signi- ficagdo da palavra “prazer” e A funcdo do recalcamento. A propésito do prazer, assinalemos que a satisfacao parcial e substitutiva ligada as formacdes do inconsciente nao € necessariamente sentida pelo sujeito como uma sensagao agraddvel de prazer. Muitas vezes, sucede até essa satisfagao ser vivida, parado- xalmente, como um desprazer, ou até como um sofrimento suportado por um Sujeito que esteja as voltas com sintomas neuréticos ou conflitos afetivos. Mas, sendo assim, por que empregar 0 termo prazer para qualificar 0 carater doloroso da manifestagao de uma pulsio? E que, a rigor, a nogdo freudiana de prazer deve ser entendida no sentido econdmico de “baixa da tensdo”. E 0 sistema incons- ciente que, através de uma descarga parcial, encontra prazer em aliviar sua tensao. Por isso, diante de um sintoma que causa sofrimento, devemos discernir claramente 0 sofrimento experimentado pelo paciente € 0 prazer nao sentido, conquistado pelo inconsciente. Passemos agora ao papel do recalcamento e levantemos 0 seguinte problema: por que tem que haver recalcamento? Por que é preciso que 0 eu se oponha 4s solicitagdes de uma pulsdo que apenas pede para se satisfazer €, desse modo, liberar a tensdo desprazerosa que reina no inconsciente? Por que barrar a descarga liberadora da pressdo inconscien- te? Qual é a finalidade do recalcamento? O objetivo do recalcamento nao € tanto evitar o desprazer que reina no inconsciente, mas evitar 0 risco extremo que 0 eu correria por satisfazer a exigéncia pulsional de maneira integral e direta. Com efeito, a satisfagao imediata e total da pressio pulsional destruiria, por seu descomedimento, 0 equilibrio do aparelho psiquico. Existem, pois, duas espécies de satisfagdes pulsionais. Uma, total, que o eu idealiza como um prazer absoluto, mas evita — gragas a0 recalcamento — como um excesso destrutivo’. A outra satisfagao € uma satisfagao parcial, moderada e isenta de perigos, que o eu tolera. Podemos agora resumir, numa palavra, 0 esquema légico que perpassa nas entrelinhas a obra de Freud e, assim fazendo, definir o inconsciente, Reportemo-nos a Figura 3 e formulemos a pergunta: como funciona o psiquismo? O essencial da légica do funcionamento psiquico, considerado do ponto de vista da circulagao da energia, resume-se, pois, em quatro tempos: Primeiro tempo: excitagaéo continua da fonte e movimentacao da energia a procura de uma descarga completa, nunca atingida > Segun- do tempo: a barreira do recalcamento opde-se A movimentacao da energia — Terceiro tempo: a parcela de energia que nao transpde a barreira resta confinada no inconsciente e retroage para a fonte de excitagao — Quarto tempo: aparcela de energia que transpoe a barreira do recalcamento exterioriza-se sob a forma do prazer parcial inerente as formagGes do inconsciente. Quatro tempos, portanto: a pressdo constante do inconsciente, o obsta- culo que se opoe a ele, a energia que resta e a energia que passa. E esse 0 esquema que eu gostaria de Ihes propor, pedindo-Ihes que o ponham a prova em sua leitura dos textos freudianos. Talvez vocés constatem 0 quanto Freud raciocina de acordo com essa légica essencial dos quatro tempos. Definicées do inconsciente Abordemos agora 0 inconsciente conforme os diferentes pontos de vista estabelecidos por Freud, levando em conta os vocdbulos particulares que designam os dois extremos do esquema: a fonte de excitagdo (tempo /) ¢ as formagées exteriores do inconsciente (tempo 4). Cada uma dessas extremi- dades assume um nome diferente, conforme a perspectiva ¢ a terminologia com que Freud define o inconsciente. Definigdo do inconsciente do ponto de vista descritivo Se considerarmos o inconsciente de fora, isto é, do ponto de vista descritivo ‘aquatosuOoU] Op sagSBULIOJ SE a}UaIaUT Tefsued 1azeid op Buli0} 8 qos &Z110119}X9 as 2 OJUDUIBI[BIII OP B.Ala1Ieq & 2odsueI) anb eidsauy ‘p *ORSBIIXI BAOU BUIN B OLDTU] BP 3 O}WaUIED]BdaI Op Bsfa1Ieq & aQdsues) OEU anb eZIaUg “¢ “B1Z19U9 Bp OBSeUIUTAOU B 3edo as anb OJUaUTED]eIaI OP BIIAIIEG ‘7 “oynjosqe JazZe1d 08 OBSaIIp Wa BIZIIUa EP ONUUOD OJUaUILAOY “T oombisd oyuaureuolsuny op soduia) ¢ sop ewanbsy “¢ suns 25 FREUD Vuod oinjosqe J27elg e pisypuvoisd 0 pind sopuafsuit « oy owsaut 0815u09 I 50510) wo ey possad pun wo> 6 seanaye sooseoy « seotZojoied sagseisayiuey] © SOLIBJUN[OAUT SOY ¢ rored yazeig <«— ¥ ALNSIDSNOONI OG SaQD¥WaOS de um observador, como eu mesmo, por exemplo, diante de minhas préprias manifestagdes inconscientes ou das manifestagdes provenientes do incons- ciente do outro, perceberemos apenas produtos. 0 inconsciente em Si conti- hua suposto como um processo obscuro e incognoscivel, que se acha na origem dessas manifestacdes. Um sujeito comete um lapso, por exemplo, e logo concluimos: “Seu inconscicnte estd falando.” Mas has explicamos sobre 0 processo subjacente a esse ato; 0 inconsciente nos € inacessivel. E, muito embora desconhegamos a natureza do inconsciente, resta-nos saber como identificar os produtos do inconsciente. Dentre a infinita varie- dade das expressées e comportamentos humanos, qual identificar como um ato surgido do inconsciente? Quando podemos afirmar: ha inconsciente aqui? As formagées do inconsciente apresentam-se diante de nds como atos inesperados, que surgem abruptamente em nossa consciéncia e ultrapassam nossas intengdes e nosso saber consciente. Esses atos podem ser condutas corriqueiras, como, por exemplo, os atos falhos, os esquecimentos, os so- nhos, ou mesmo o aparecimento repentino desta ou daquela idéia, ou a invengdo imprevista de um poema ou de um conceito abstrato, ou ainda certas manifestagGes patolégicas que fazem sofrer, como os sintomas neuré- ticos ou psicdticos. Mas, sejam eles normais ou patoldgicos, os produtos do inconsciente sao sempre atos surpreendentes e enigmaticos Para a conscién- cia do sujeito e para a do psicanalista. A partir dessas producdes psiquicas finais e observaveis, supomos a existéncia de um Processo inconsciente, obscuro € ativo, que atua em nds sem que o saibamos naquele momento. Estamos, no que tange ao inconsciente, diante de um fendmeno que se consuma independentemente de nés e que, no entanto, determina aquilo que somos. Na presenga de um ato nao intencional, postulamos a existéncia do inconsciente, nao apenas como causa desse ato, mas também como a quali dade essencial, a esséncia mesma do Psiquismo, © psiquismo em si. O consciente, portanto, seria apenas um epifendmeno, um efeito secundirio do Processo psiquico inconsciente. “Convém ver no inconsciente”, diz-nos Freud, “a base de toda a vida Psiquica. O inconsciente assemelha-se a um grande circulo que encerrasse 0 consciente como um circulo menor (.).0 inconsciente é 0 psiquico em si e sua realidade essencial’*. Definigdo do inconsciente do ponto de vista sistemdtico JA definimos 0 inconsciente como um sistema, ao abordarmos a estrutura da FREUD 7 rede das representagGes. Nessa perspectiva, a fonte de excitago chama-se representacao de coisa, & Os produtos finais sio manifestagoes deturpadas do inconsciente. O sonho é 0 melhor exewplo dess. Definigao do inconsciente do ponto de vista dindmico. O conceito de recalcamento A teoria do recalcamento éopilar sobre o qual repousa 0 edificio da psicardlise S. Freud Se agora definirmos o inconsciente do ponto de vista dindmico, isto é, do ponto de vista da luta entre a mocao que impulsiona e 0 recalcamento que impede, a fonte de excitajao receberd 0 nome de representantes recalca- dos, € as produgées finais corresponderao a escapadas irreconheciveis do inconsciente subtrafdas a acao do recalcamento®. Esses derivados do recalcado chamam-se retornos do recalcado, produtos do recalcado, ou ainda, produtos do inconsciente. Produtos, no sentido de jovens brotos do inconsciente, que, a despeito da capa do recalcamento, eclodem disfarga- dos na superficie da consciéncia. Os exemplos mais freqiientes desses produtos deturpados do recalcado s4o os sintomas neuréticos. Lembro-me de um analisando que, ao volante de seu carro, foi subitamente assaltado pela imagem obsedante de uma cena em que se via deliberadamente atropelando uma mulher idosa que atravessava a rua. Essa idéia fixa que se impunha a ele, que o fazia sofrer e que, muitas vezes, impedia-o de uulizar seu veiculo, revelou, no correr da andlise, ser 0 produto consciente € dissimulado do representante recalcado do amor incestuoso que ele nutria por sua mae. Assim, a representacdo inconsciente “amor incestuo- So” transpés a barreira do recalcamento para aparecer na consciéncia, transformada €m seu contrério, ou seja, numa imagem obsedante de um “impulso assassino”. Note-se que essas aparigGes conscientes do recalcado, esses retornos do recalcado podem ser igualmente concebidos como solugdes de compromisso no conflito que opde 0 movimento do recalcado em diregao a consciéncia ao recalcamento que 0 repele. “Solugao de compromisso” significa que o retorno do recalcado é uma mistura que se compoe, em parte, do recalcado e, em parte, de um elemento consciente que 0 mascara. Em outras palavras, 0 retorno do recalcado é um disfarce consciente do recalcado, porém incapaz, apesar disso, de mascara-lo por completo. Assim, em nosso exemplo, a figura da vitima, encarnada pela velha, deixava transparecer, sob os tragos de uma mulher idosa, a figura recalcada da mae. Outra ilustragao dos tracos visiveis do recalcado no retomno do recalcado foi-nos proposta por Freud, quando ele comentou uma célebre gravura de Félicien Rops. Nela, o artista figurou a situagao de um asceta que, para rechagar a tentacao da carne (0 recalcado), refugiou-se aos pés da Cruz (recalcamento) e viu surgir, estupefato, a imagem de uma mulher nua, crucifi- cada (retorno do recalcado como solu¢ao de compromisso) no lugar de Cristo. O retorno do recalcado, nesse caso, foi um compromisso entre a mulher nua (parte visivel do recalcado) e a cruz que a sustentava (recalcamento) Por outro lado, acrescentemos que os produtos do inconsciente, uma vez chegados a consciéncia, podem sofrer uma nova aco do recalcamento, que os manda de volta para o inconsciente (0 chamado recalcamento secun- dario ou recalcamento a posteriori). Resta dizermos uma palavra para justificar a definico de recalcamen- to que propusemos anteriormente como sendo uma capa de energia que impede a passagem dos contetidos inconscientes para o pré-consciente.” Com efeito, Freud nunca renunciou a considerar 0 recalcamento como um jogo complexo de movimentos de energia. Um jogo destinado, de um lado, a conter e fixar nos rec6nditos do inconsciente as representacdes recalcadas, e de outro, a reconduzir ao inconsciente as representagdes fugitivas que che- gam ao pré-consciente ou a consciéncia, depois de haverem burlado a vigilancia do recalcamento. Por isso, Freud distinguiu dois tipos de recalca- * Os “elementos recalcados” que atravessam a barreira do recalcamento podem ser a repre- sentacdo, munida de sua carga energética, ou ento (0 que Freud privilegiou) apenas a carga, desligada de sua representagdo. Mais adiante, examinaremos a primeira eventualidade, a da passagem para o consciente da representagdo investida de sua carga. Quanto a segunda eventualidade, a da passagem apenas da carga, Freud vislumbrou quatro destinos possiveis: permanecer inteiramente recalcads, atravessar a barreira e se tansmudar em angisuia fobica, atravessar a barreira ¢ se converter em distirbios sométicos, na histeria, ou, ainda, atravessar a barra se transformar em angiistia moral, na obsessdo. FREUD 29 mento: um recalcamento primdrio, que contém e fixa as representagdes recalcadas no solo'do inconsciente, e um recalcamento secunddrio, que recalca — no sentido literal de fazer retroceder — no sistema inconsciente os produtos pré-conscientes do recalcado. O recalcamento primério, 0 mais primitivo, € nao apenas uma fixagao das representagdes recalcadas no solo do inconsciente, como também um tapume energético que 0 pré-consciente e 0 consciente erguem contra a pressao de energia livre oriunda do inconsciente. Esse tapume € chamado “contra-investimento”, ou seja, um investimento contrério que © sistema Pré-consciente/Consciente opée as tentativas de investimento da pressdo inconsciente. O segundo tipo de recalcamento, cujo objetivo € restituir 0 produto a seu lugar de origem, € também um movimento de energia, porém mais complexo. Em esséncia, ele se resume nas seguintes operacées, centradas no produto consciente ou pré-consciente do recalcado: © Primeiro, retirada da carga pré-consciente/consciente de energia ligada que © produto havia adquirido durante sua estada no pré-consciente ou no consciente. © Uma vez desprendido de sua carga pré-consciente/consciente e vendo reativada sua antiga carga inconsciente, 0 produto € atraido, € como que + imantado pelas outras representagdes inconscientes, perenemente fixadas no sistema inconsciente pelo recalcamento primario. O produto fugitivo retorna entao ao 4mago do inconsciente. Definigao do inconsciente do ponto de vista econdmico Se, desta vez, definirmos 0 inconsciente do ponto de vista econdmico, aquele que adotamos para desenvolver nosso esquema, a fonte de excitagao se chamaré representante das pulsées, € as producoes finais’do inconsciente serao fantasias, ou, mais exatamente, comportamentos atetivos e escolhas amorosas inexplicados, escorados em fantasias. Explicarei dentro em pouco a natureza dessas fantasias, mas sua localizacdo t6pica em nosso esquema levanta o seguinte problema. As fantasias podem nao apenas aparecer na consciéncia — como acabamos de dizer —, a titulo-de produgdes finais do inconsciente, tais como lacos afetivos despropositados, ou, mals particular- mente, como devaneios diurnos e formagées delirantes; como também po- dem permanecer enfurnadas e recalcadas no inconsciente, tendo entao 0 0 estatuto de representagoes inconscientes de coisa. Mas as tantasias podem ainda desempenhar o papel de detesas do eu contra a pressao inconsciente, Ou seya, uma fantasia tanto pode assumur o papel de um produto pré-cons- ciente do recalcado quanto de um conteddo inconsciente recalcado, ou ainda de uma defesa recalcante. 14 nosso esquema, localizamos a fantasia tanto aquém da barra do recalcamento (tempo /) quanto no nivel dela (tempo 2), ‘ou ainda além da barra (tempo 4) Definigdo do inconsciente do ponto de vista ético Se, por fim, definirmos o inconsciente do ponto de vista ético, iremos chamé-lo de deseyo. O deseyo & 0 movimento de uma intengdo inconsciente fio absoluta. As produgées finais do que aspira a um objetivo, 0 da satista inconsciente devem ser consider aqui, como realizagdes parciais do desejo, ou, se preferirmos, satisfagdes parciais e substitutvas do desejo diante da satisfagao ideal, jamais atingida. Qualificamos como ética essa definigdo do inconsciente, na medida em que assemelhamos 0 movimento energia — descarga a tendéncia do inconsciente para se fazer ouvir e se fazer reconhecer como um Outro, Ela é ica, também, na medida em que conferi- mos um valor ao tivo ideal do desejo: o valor inultrapassdvel de um bem superior, de um Bem Supremo, a que a psicandlise chama incesto. Intrinse- camente, 0 desejo € sempre deseyo do incesto. Voltaremos a isso. Depois de mostrar o funcionamento do aparelho psiquico segundo a Jépica de um erquema espacial, cu Ihes propus uma visdo descritiva, e¢ ética do inconsciente, mas tudo isso entaria incompleto se no inscrevéssemos nosso aparelho no fio do tempo € nde © inclufssemos no universo dos outros. Dois fatores emolduram a vida psiquica: © tempo € os outros (Figura 4). O tempo, primeiramente, pors o funcionamento psfquico nao para de se renovar ao longo de toda a hist6ria de um suycito, a ponto de escapar & mensuragao do tempo. O inconsciente € extratemporal, ou seja, € perpétuo no tempo histdrico. Silencio aqui, ele reaparece ali e no definha nunca. E s6 tentar fazé-lo calar-se para que cle reviva prontamente, voltando a desabrochar em anifestagoes. Por isso, seja qual for a idade, o inconsciente sistemética, dindmica, econdmi nova FREUD u continua a ser um processo irreprimivelmente ativo e inesgotdvel em suas produgoes. Quer vocés tenham dois dias de vida ou 83 anos, ele Persevera em seu impcto © sempre consegue fazer-se ouvir. Mas devemos ainda compreender que a vida Psiquica est4 imersa no mundo,dos outros, no mundo daqueles a quem estamos ligados pela lingua- gem, por nossas fantasias e nossos afetos. Nosso Psiquismo prolonga, neces- sariamente, 0 psiquismo do outro com quem nos relacionamos. As fontes de Nossas excitagGes s40 os vestigios deixados em nés pelo impacto do desejo do outro, daqucle ou daqueles que nos tém por objeto de seu desejo. B como se a seta do tempo 4 do esquema do aparelho psiquico do outro se unisse, para estimulé-la, a fonte de excitacZo de nosso proprio aparetho. E, invers mente, € como se nossas proprias produgdes reavivassem, por sua vez, 0 desejo do outro. Examinemos a Figura 4. O sentido sexual de nossos atos Estamos agora em condigdes de formular a premissa fundadora da psican4- lise. Nossos atos, aqueles que nos escapam, nao somente so determinados Por um processo inconsciente, mas sobretudo tém um sentido. Eles veiculam uma mensagem e querem dizer algo diferente daquilo que mostram a primei- ra vista. Antes de Freud, os atos mais inesperados passavam por atos anédi- fos. Hoje em dia, com Freud, supor um sentido nas condutas € nas palavras que nos escapam tornou-se um gesto costumeiro. Basta alguém cometer um lapso para logo sorrir ou, quem sabe, enrubescer, considerando-se traido pela revelacado de um desejo, de um sentido até entao velado. Mas, que € um sentido? Que vem a ser o sentido de um ato? A Significagdo de um ato involuntério reside no fato de ele ser o substituto de um ato ideal, de uma aco impossivel que, em termos absolutos, deveria ter-se produzido, mas ndo ocorreu. Quando 0 psicanalista interpreta e des- Venda a significagdo de um sonho, por exemplo, que faz ele senao mo que 0 sonho, como ato, € 0 substituto de um outro ato que nao velo a (ona, Mostrar que aquilo que é € 0 substituto daquilo que ndo foi? Nossos tos 'nvoluntérios tem um sentido, portanto. Mas, como qualificar esse sentido Qual € 0 teor do sentido oculto de nossos atos? A resposta a essa pergunta snificagdo ©nuncia a grande descoberta da psicandlise. Que diz ela? Que a sient : de nossos atos € uma significagdo sexual. Mas, por que sexual? Reporte nos & prigem da + : A na ¢ Figura 5 © vejamos de que natureza € a fonte que esta na +04)N0 op ajuarysuosu! op sayuoy SB We|NUNNSa sxoSnpold setadosd seyuiw | saquadsuOdU! Nau ap $3jUOJ SB WE|NWNYSI O1jNO Op aj}Ua!DsUOIUI Op S20dnpold sy “peandiy ‘onno o wno FREUD 33 tendéncia pulsional, e de que natureza € 0 alvo ideal a que essa tendéncia aspira, isto 6, a ago ideal e impossivel que nao se deu, ¢ da qual nossos atos sao 0s substitutos. O sentido de nossos atos € um sentido sexual porque a fonte e 0 alvo dessas tendéncias sao sexuais. A fonte € um representante pulsional cujo conteudo representativo corresponde a uma regiao do corpo que é muito sensivel e excitdvel, chamada zona erdgena. Quanto ao alvo, sempre ideal, ele € 0 prazer perfeito de uma ago perfeita, de uma perfeita unido entre dois sexos, cuja imagem mitica e universal seria encarnada pelo incesto. O conceito psicanalitico de sexualidade Essas tendéncias, que aspiram ao ideal impossivel de uma satisfaco sexual absoluta, que nascem na representagdo de uma zona erégena do corpo, esbarram no recalcamento e, finalmente, exteriorizam-se por atos substituti- vos do impossfvel® ato incestuoso — essas tendéncias chamam-se pulses sexuais. As pulses sexuais sdo multiplas, povoam 0 territ6no do inconscien- te, e sua existéncia remonta a um ponto longinquo de nossa historia, desde 0 estado embriondrio, s6 vindo a cessar com a morte. Suas manifestagdes mais marcantes aparecem durante os primeiros cinco anos de nossa infancia. Freud decompée a pulsao sexual em quatro elementos. Deixando de lado a fonte de onde ela brota (zona erdgena), a forga que a move e 0 objetivo que a atrai, a pulsdo serve-se de um objeto por meio do qual tenta chegar a seu objetivo ideal. Esse objeto pode ser uma coisa ou uma pessoa, ora a propria pessoa, ora uma outra, mas é sempre um objeto fantasiado, € nao teal. Isso é importante para compreender que os atos substitutivos através dos quais as pulsdes sexuais se exprimem (uma palavra inesperada, um gesto involuntdrio, ou lagos afetivos que nao escolhemos) sao atos moldados em fantasias e organizados em torno de um objeto fantasiado. Mas devo ainda acrescentar um elemento essencial que caracter'za essas pulses, a saber, o prazer particular que elas proporcionam. Nao 0 Prazer absoluto a que visam, mas 0 prazer limitado que obtém: um prazer Parcial, qualificado de Sexual. Ora, que € 0 prazer sexual? E, em termos mais fom, Que € a sexualidade? Do ponto de vista da psicanalise, a sexualidade ‘a ndo se reduz ao contato dos Orgdos genitais de dois individuos, nem 34 A estimulagao de sensacées genitais. No, 0 conceito de “sexual” Teveste-se, em psicandlise, de uma acep¢4o muito mais ampla que a de “genital”, Foram as criangas € Os perversos que mostraram a Freud a vasta extensio da idéia de sexualidade. Chamamos sexual a toda conduta que, partindo de uma tegido erégena do corpo (boca, Anus, olhos, voz, pele etc.), € apoiando-se numa fantasia, proporciona um certo tipo de prazer. Que prazer? Um prazer que comporta dois aspectos. Primeiro, sua diferenga radical daquele outro prazer que € proporcionado pela satisfa¢ao de uma necessidade fisiolégica (comer, eliminar, dormir etc.). O prazer de mamar do bebé, por exemplo, seu prazer da sucgdo, corresponde, do ponto de vista psicanalitico, a um prazer sexual que nao se confunde com o alfvio de saciar a fome. Alivio e prazer por Certo est4o associados, mas o prazer sexual de suc¢iio logo se transforma numa satisfagao buscada por si mesma, fora da necessidade natural. O sujeito Passa a ter prazer em sugar, independentemente de qualquer sensagdo de fome. Segundo aspecto: o prazer sexual — bem distinto, portanto, do prazer funcional —, polarizado em torno de uma zona erégena, obtido gracas a mediagao de um objeto fantasiado (e nao de um objeto real), € encontrado entre os diferentes prazeres das caricias preliminares ao coito em si. Para conservar nosso exemplo, o prazer de suc¢ao iré prolongar-se como o prazer de abracar 0 corpo do ser amado. Necessidade, desejo e amor Para melhor situar a distancia entre prazer funcional e prazer sexual, dete- nhamo-nos por um instante ¢ definamos com clareza as nogoes de neces dade, desejo e amor. A necessidade é a exigéncia de um 6rgao cuja satisfagao se dd, realmente, com um objeto concreto (0 alimento, por exemplo), e nao com uma fantasia. O prazer de bem-estar proveniente dai nada tem de sexual. O desejo, em contrapartida, € uma expressao da pulsao sexual, ou melhor, € a propria pulsdo sexual, quando Ihe atribuimos uma intencionalidade orien- tada para o absoluto do incesto € a vemos contentar-se com um objeto fantasiado, encarnado pela pessoa de um outro desejante. Diferentemente da necessidade, 0 desejo nasce de uma zona erdgena do corpo ¢ se satisfaz parcialmente com uma fantasia cujo objeto € um outro desejante. Assim, ° apego ao outro equivale ao apego a um objeto fantasiado, polarizado em torno de um érgio erégeno particular. O amor, por ultimo, também um apego ao outro, mas de maneira global e sem o suporte de uma zona erégena FREUD 35 definida. Esses trés estados, bem entendido, imbricam-se e se confundem em toda relagao amorosa. Mas, por que essas pulsdes sexuais s6 obtém um prazer limitado? E mais, por que se contentam com objetos fantasiados, ¢ nao com obyetos concretos e reais? Para responder, reportemo-nos a Figura 5. Pois bem, as pulsdes sexuais s6 obtém um prazer parcial € substitutivo porque esse foio tinico prazer que elas conseguiram conquistar, com muita garra, depois de se livrarem das defesas do eu. Que defesas? Em primeiro lugar, 0 recalcamento. Ora, 0 recalcamento também é, a sua maneira, uma forga, ou melhor, uma pulsdo. Acaso isso significa que haveria dois grupos de pulsdes opostas: 0 grupo das pulsdes que tendem A descarga e o grupo das pulsdes que se opdem a elas? Sim, foi justamente essa a primeira teoria das pulsdes, proposta por Freud no inicio de sua obra e até 1915, quando ele introduziu o conceito de narcisismo. Logo veremos qual foi a segunda teoria, formulada depois dessa data, mas, por enquanto, vamos distinguir duas tendéncias pulsionais anta- gonicas: as pulsdes sexuais recalcadas e as pulsdes do eu recalcantes.” As primeiras buscam 0 prazer sexual absoluto, enquanto as ultimas se opGem a ele. O resultado desse conflito consiste, precisamente, no prazer derivado € parcial que denominamos de prazer sexual. Os trés principais destinos das pulsées sexuais: recalcamento, sublimacao e fantasia. O conceito de narcisismo Se vocés se houverem assenhoreado da l6gica em quatro tempos do funcio- namento psiquico, facilmente admitirao que o destino das pulsdes sexuais € sempre 0 mesmo: elas estéo condenadas a deparar sempre, no caminho de seu alvo ideal, com a oposicao das pulsdes do eu, isto é, com 0 obstaculo do recalcamento. Mas, além do recalcamento, 0 eu opde duas outras obstrugdes as pulsGes sexuais: a sublimagao e a fantasia. om essa expresso, “pulses do eu reealcantes ", reduzimos o vasto campo das pulsdes do ua seu axpecto exvenc 7 2 seu axpecto essencial, Estudar exaustivamente 0 campo das pulsdes do eu ultrapassana os limites deste trabalho.

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