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Lernss Q'@ rousoress 1 2 3, A ordem do diseurso Michel Foucault Sete ligdes sobre 0 ser Jacques Maritain Aristoteles no século XX Enrico Berti ‘As razies de Aristételes Enrico Berti MICHEL FOUCAULT A ORDEM DO DISCURSO AULA INAUGURAL No COLLEGE DE FRANCE, PRONUNCIADA EM 2 DE DEZEMBRO DE 1970 ‘Tradugio: Laura Fraga de Almeida Sampaio ‘Tuolo orignal andre du dacours, Legon inaugural a College de France pronance le 2 décembre 1970 (© Francine Fruchaud e Denys Foucault, Pais ‘Publicado na rang por Editions Gallia, Pars, 1971 aicto de texto: Marcos Jose Marconlo Indicago editorial Prot Dr Salma Tanmas Mucail Edges Loyola Rua 1622 n 347 Ipiranga 4216-000 Sao Paulo, SP. Caixa Postal 42.335 (04200.070 Sao Paulo, SP Bone (O++11) 6914-1822, Fax (O11) 6163-4275 Home page ¢ vendas: ww-loyola.com.br email: loyola@ibm.net ‘dos ot direitos reserodos, Nenhursa parte desta obra pore sor eprodusida ou tranamitida por qualquer forma lou quaiequer mos (eletrnico ou macnico, ncluindo fotocspiae gravegdo) ou arquivade em qualguer sistema fou banco de dador sem permissdo eseria da Rditore. ISBN: 85.15-01359-2 58 edigao: setembro de 1999 (© EDIGOES LOYOLA, Sto Paulo, Br il, 1996 Gxt me insmua sub epic mente no discurso que devo pro- nunciar hoje, € nos que deverei pronunciar aqui, talvez durante anos. Ao invés de to- mar a palavra, gostaria de ser envolvido por ela e levado bem além de todo comeco possivel. Gostaria de perceber que no mo- mento de falar uma voz sem nome me pre- cedia ha muito tempo: bastaria, entao, que eu encadeasse, prosseguisse a frase, me alo- jasse, sem ser percebido, em seus intersti- ios, como se ela me houvesse dado um sinal, mantendo-se, por um instante, sus- pensa. Nao haveria, portanto, comeco; ¢ em ‘Nota do Editor: Por motivo de horri, certas pas sagens foram encurtadas © modifcadae a leis, Ess psssgens foram aqul reproduzidas na integra, vez de ser aquele de quem parte 0 discurso, eu seria, antes, ao acaso de seu desenrolar, ‘uma estreita lacuna, 0 ponto de seu desapa- recimento possive. Gostaria de ter atrés de mim (tendo tomado a palavra ha muito tempo, dupli- cando de antemio tudo o que vou dizer) uma voz que dissesse: “E preciso continuar, eu nao posso continuar, ¢ preciso continuar, € preciso pronunciar palavras enquanto as ha, € preciso dizé-las até que elas me en- contrem, até que me digam — estranho castigo, estranha falta, € preciso continuar, talvez ja tenha acontecido, talvez ja me te- nnham dito, talvez me tenham levado ao li- miar de minha historia, diante da porta que se abre Sobre minha historia, ew me surpre- enderia se ela se abrisse”. Existe em muita gente, penso eu, um desejo semelhante de nao ter de comecar, tum desejo de se encontrar, logo de entrada, do outro lado do discurso, sem ter de con- siderar do exterior o que ele poderia ter de singular, de terrivel, talvez de maléfico. essa aspiragdo tio comum, a instituicao res- ponde de modo ironico; pois que torna os comeces solenes, cerca-os de um circulo de atengao ¢ de silencio, e lhes impoe formas ritualizadas, como para sinalizé-los a dis tancia O deseo diz: “Eu nao queria ter de entrar nesta ordem arriscada do discurso; no queria ter de me haver com o que tem de categorico e decisivo; gostaria que fosse a0 meu redor como uma transparéncia cal- ‘ma, profunda, indefinidamente aberta, em que 05 outros respondessem a minha ex- pectativa, e de onde as verdades se elevas- sem, uma a uma; eu no teria senao de me deixar levar, nela e por ela, como um des- tro¢o feliz”. E.a instituicao responde: “Voce nao tem por que temer comecar; estamos todos ai para The mostrar que 0 discurso estd na ordem das leis; que ha muito tempo se cuida de sua aparicao; que the foi prepa- rado um lugar que o honra mas o desarma; € que, se The ocorre ter algum poder, € de nos, $6 de nés, que ele the advem” Mas pode ser que essa instituicdo € esse desejo nao sejam outta coisa sendo duas ré- plicas opostas a uma mesma inquietacao inquietacéo diante do que é 0 discurso em sua realidade material de coisa pronunciada ou escrita; inquietagao diante dessa existén- cia transitoria destinada a se apagar sem dii- vida, mas segundo uma duragto que nao nos pertence; inquietagao de sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, po- deres e perigos que mal se imagina; inquie- tacio de supor lutas, vitérias, ferimentos, dominacoes, servidoes, através de tantas pa- lavras cujo uso ha tanto tempo reduzi as asperidades. Mas, 0 que ha, enfim, de tao perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus dis- cursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, estd 0 perigo? Eis a hipotese que gostaria de apresen- tar esta noite, para fixar 6 lugar — ou tal- vez 0 teatro muito provisério — do traba- Tho que faco: suponho que em toda socie- dade a produgao do discurso ¢ ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada € redistribuida por certo ntimero de proce- dimentos que tem por fun¢ao conjurar seus poderes ¢ perigos, dominar seu aconteci- mento aleatorio, esquivar sua pesada e te- rivel materialidade Em uma sociedade como a nossa, co- hecemos, € certo, procedimentos de exclu- sao. O mais evidente, 0 mais familiar tam- bem, ¢ a interdicao, Sabe-se bem que nao se temo direito de dizer tudo, que nao se pode falar de tudo em qualquer circunstancia, que qualquer um, enfim, nao pode falar de qual- quer coisa. Tabu do objeto, ritual da cir cunstancia, direito privilegiado ou exclusi- vo do sujeito que fala: temas at o jogo de tés tipos de interdigdes que se cruzam, se reforcam ou se compensam, formando uma grade complexa que nao cessa de se modi- ficar. Notaria apenas que, em nossos dias, as regides onde a grade € mais cerrada, onde 95 buracos negros se multiplicam, sto as regides da sexualidade e as da politica: como se o discurso, longe de ser esse elemento transparente ou neutro no qual a sexualida- de se desarma e a politica se pacifica, fosse tum dos lugares onde elas exercem, de modo privilegiado, alguns de seus mais temiveis poderes. Por mais que o discurso seja apa- rentemente bem pouca coisa, as interdicoes que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligagio com o desejo e com o poder. Nisto nao ha nada de espantoso, visto que 0 discurso — como a psicandlise nos mos- trou — nao € simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta) 0 desejo; ¢, também, aquilo que € 0 objeto do desejo; e visto que — isto a historia nao cessa de nos ensinar — 0 discurso nao ¢ simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de domi- naga, mas aquilo por que, pelo que se luta, © poder do qual nos queremos apoderar. Existe em nossa sociedad outro prin- cipio de exclusio: ndo mais a interdicao, mas uma separacao € uma tejeicio. Penso nna oposigao razao ¢ loucura. Desde a alta Idade Média, 0 louco ¢ aquele cujo discurso io pode circular como dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula € nfo seja acolhida, nao tendo verdade 10 nem importancia, nao podendo testemunhar na justiga, nao podendo autenticar um ato ou um contrate, nao podendo nem mesmo, no sacrificio da missa, permitir a transubs- tanciacio e fazer do pao um corpo; pode ocorrer também, em contrapartida, que se Ihe atribua, por oposicao @ todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, 0 de pronunciar 0 futuro, 0 de cenxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros nao pode perceber. E curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco nao era ouvida, ‘ou entdo, se era ouvida, era escutada como ‘uma palavra de verdade. Ou cata no nada = rejeitada tao logo proferida; ow entao nela se decifrava uma razao ingémua ou astuciosa, uuma razo mais razodvel do que a das pes- soas razoaveis. De qualquer modo, excluida cou secretamente investda pela razdo, no sen- tido restrito, ela nao existia, Era através de stas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas eram o lugar onde se exercia a separacio; mas nao etam nunca recolhidas nem escutadas. Jamais, antes do fim do sécu- lo XVIII, um medico teve a idéia de saber 0 u que era dito (como era dito, por que era dito) nessa palavra que, contudo, fazia a diferenca. Todo este imenso discurso do louco retornava 40 ruido; a palavra s6 the era dada simbolica- mente, no teatro onde ele se apresentava, desarmado e reconciliado, visto que represen- tava ai o papel de verdade mascarada, Dir-se-d que, hoje, tudo isso acabou ou esté em vias de desaparecer; que a palavra do louco nao esté mais do outro lado da separacao; que ela nao é mais nula € nao- -aceita; que, a0 contrario, ela nos leva a es preita; que nds ai buscamos um sentido, ou 0 esbogo ou as ruinas de uma obra; ¢ que chegamos a surpreendé-la, essa palavra do louco, naquilo que nés mesmos articula- ‘mos, no distirbio minsculo por onde aqui- lo que dizemos nos escapa. Mas tanta aten- 0 nao prova que a velha separagio nao ‘yoga mais; basta pensar em todo o aparato de saber mediante o qual deciframos essa palavra; basta pensar em toda a rede de instituigdes que permite a alguém — médi- o, psicanalista — escutar essa palavra e que permite ao mesmo tempo ao paciente vir R trazer, ou desesperadamente reter, suas po- bres palavras; basta pensar em tudo isto para supor que a separacao, longe de estar apa- gada, se exerce de outro modo, segundo linhas distintas, por meio de novas institui- es € com efeitos que nao sto de modo algum os mesmos. E mesmo que 0 papel do medico no fosse senao prestar ouvido a uma palavra enfim livre, é sempre na ma- nutengio da cesura que a escuta se exerce. Escuta de um discurso que € investido pelo desejo, € que se cré — para sua maior exaltagao ou maior anguistia — carregado de terriveis poderes. Se € necessario o silen- cio da razao para. curar os monstros, basta que 0 silencio esteja alerta, € eis que a se- paragao permanece. Talvez seja arriscado considerar a opo- sigdo do verdadeiro € do falso como um terceiro sistema de exclusio, ao lado daque- les de que acabo de falar. Como se poderia razoavelmente comparar a forga da verdade com separagées como aquelas, separagdes que, de saida, sto arbitrarias, ou que, a0 menos, se organizam em torno de contingéncias his- B

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