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Luzia Miranda Álvares

Professora A d j u n t o - 4 d o D e p t o d e Ciência
Política - C F C H / U F P A . Pesquisadora da
t e m á t i c a M u l h e r e Relações d e G ê n e r o e
Coordenadora do GEPEM/DCP/CFCH/UFPA.
Crítica de c i n e m a d e " O L i b e r a l " - B e l é m , PA

Belém 1960

O espaço e o tempo
feminino num
dia qualquer
E
mbora até hoje incipiente, não sobre os projetos a serem desenvol- Maria de Belém:
se pode dizer que o cinema vidos por ele. Um outro dado muito
paraense inexista. Alguns fil- significativo é dado pelo pesquisa- A Imagem da Cidade
mes realizados têm apresenta- dor Alfredo Wagner sobre a existên- e da Mulher
do esparsas demonstrações, por cia, na Região do Arari, de um
vezes corajosas, de cineastas caboclo que teria sido ator de filmes Pesquisando os jornais paraenses
conterrâneos esforçados em usar a de Luxardo. da década de 60, verifica-se que, na
linguagem das imagens para captar
cidade de Belém, a orientação soci-
a s p e c t o s d o c u m e n t a i s e / ou A cinebiografia mais recente do
al favorecia a presença de classes
ficcionais da sociedade, em épocas cineasta aponta os seguintes filmes:
sociais distintas. O corte desenvol-
variadas. Libero Luxardo, paulista Um Dia Qualquer (1962), Marajó,
vido por Luxardo em Um Dia Qual-
de Sorocaba, radicado em Belém Barreira do Mar (1964), Um Dia-
quer vai promover esta diferencia-
desde a década de 40, insere-se mante e Cinco Balas (1966) e Brutos
ção nos limites que impõem a
entre os que já tentaram fazer cine- Inocentes (1974). Da fase partidária
representação da base material da
ma no Pará. Com uma obra premia- e política, ressalta-se o documentário
riqueza, como: os trajes, as edifi-
da e clássica (Alma do Brasil - A O Enterro de Magalhães Barata
cações, os espaços de circulação
Retirada da Laguna/ Mato Grosso/ (1959), entre os inúmeros que reali-
urbana, as condições vivenciadas
1931), pode ser visto competindo zou ao registrar as obras oficiais do
pelas pessoas.
com alguns cineastas da sua época. governo baratista.
Introduziu-se no meio paraense atra- O corifeu imaginado para repre-
O resgate histórico da passagem
vés da profissão que abraçara no sentar esta diferenciação e as carac-
de Libero Luxardo pelo Pará está
sul, realizando documentários. Os terísticas em que se situa Belém,
merecendo a atenção do pesquisa-
filmes de ficção vieram depois, mas enquanto cidade Amazônica, é o
dor de cinema. Por ora, meu interes-
os dois gêneros usaram como protagonista do filme, Carlos (Hélio
se em contextualizar sua obra deve-
background, a místico-exótica Ama- Castro), de classe média, um tipo
se a um tópico instigativo a ser
zônia. Uma de suas primeiras inici- que perdera a esposa e, desespera-
desenvolvido: qual o olhar de Libero
ativas cinematográficas para fixar- do, percorre a cidade em busca de
sobre as mulheres paraenses da
se no Pará foi Amanhã Nos Encon- alento após o enterro da amada. Em
década de 60 no filme Um Dia
traremos, filme inacabado realizado meio ao flash-back que resgata o
Qualquer ?
na década de 40. Na segunda primeiro encontro e o amor que
O tema pretende recobrir uma nasceu entre ambos, surge uma li-
Interventoria de Magalhães Barata, fase do cinema paraense, momento
o cineasta procurou registrar as nha divisória entre as imagens pas-
em que as mudanças culturais e sadas (encontro do par num cemité-
benfeitorias governamentais dessa sociais estão fazendo-se no mundo.
fase populista da política paraense. rio, reencontro em outros locais da
Objetiva pensar também, nestes cem cidade, intimidade no casamento) e
Entre os dados recolhidos da im- anos de cinema, as contribuições a
prensa deste período, há notícias o percurso desenvolvido no pre¬
ele dadas pela cultura paraense.
sente. Desta trajetória sem rumo, intimidade), as ruas centrais (onde indecifrado entre um casal; depois,
após o enterro da esposa, emerge o estão situadas as igrejas e um tipo a câmera aproxima-se e toma-os em
cotidiano da cidade, num dia qual- de comércio mais sofisticado com médio plano e depois em close. O
quer. Lugares e formas culturais da ênfase aos magazines). O lugar da carro segue uma estrada deserta. O
região, além de tipos exóticos, sur- moradia, após o casamento, estabe- casal está bebendo e depois acari¬
gem vinculados ao drama do viúvo. lece um reforço à classe a qual cia-se (não passa dos beijos e to-
Nos bares da moda, nos tipos de pertence o casal e ao cotidiano da ques). Um novo corte e ouve-se
transporte urbano, nas imagens de mulher casada dessa classe: uma uma música estridente com as ima-
parques e igarapés, na feira do Ver- edificação expondo sofisticada ar¬ gens do par fora do carro.
O-Peso e nas danças do Boi Bumbá, quitetura, com arranjos ornamen- Pixinguinha dá o ritmo para a jovem
surgem figuras femininas que tais sobre os móveis e uma decora- fazer strip-tease, jogando no rosto
norteiam a estória, dando vida às ção impecável. As atitudes formais do namorado as peças íntimas de
lembranças tristes e momentos ale- na relação entre o casal revelam os roupa. Um outro corte e eles sur-
gres do protagonista. limites do espaço e da cultura gem deitados na relva. Em seguida
Maria de Belém (Lenira Guima- determinantes de comportamentos atiram-se para um banho no igarapé.
rães) é a esposa amada, relembrada diferenciados. O homem trabalha Esse tipo de mulher é excluído
através do flash-back, falecida ao fora, a mulher fica à sua espera, dos espaços por onde transita Maria
nascer do primogênito. Seu tipo assumindo papéis que a lógica do de Belém. O peso do tempo fílmico
revela uma morena alta, esbelta e cotidiano naturalizou enquanto expõe um outro tipo feminino, tra-
elegante. Demonstra ser letrada, reveladores da submissão e do do- tando-o no mesmo nível dos dois
expressando-se com facilidade e mínio entre os dois gêneros. outros. E o de uma jovem estupra-
tendo clareza sobre os fatos da atu- E os demais femininos, como da. O espaço é um bar situado numa
alidade. Supõe-se que o par tem as estão situados no filme ? praça. O tempo é a madrugada. O
mesmas raízes de classe. O romance Enquanto Maria de Belém reve¬ tipo circula nos inferninhos daque-
entre eles inicia-se num cemitério. la-se um tipo feminino nos moldes la época. Embora acompanhada de
Os encontros posteriores - ocasio- de um comportamento instituído, um rapaz, este tipo tende a ser visto
nais primeiro, estabelecidos depois as demais mulheres circulam em infringindo as normas do comporta-
pela relação de namoro até o casa- espaços e tempos diferentes. Há um mento de seu gênero. A hora de
mento - dão-se na área urbana da corte sugestivo ao espaço e ao lugar chegada no bar, a dança sensual e
cidade, nos lugares de circulação da mulher livre. A cena evoca uma provocativa, a bebida que ingere,
dos jovens de sua classe, perfeita- viagem de ônibus entre o par prota- estimula dois elementos da juven-
mente demarcados: a praça (onde gonista. A câmera distancia-se deste tude transviada belenense a
também as crianças brincam), o e segue um carro particular. Inicial- exigir direitos aos excessos. E o
ônibus (onde aglomerado limita a m e n t e , ouve-se um diálogo estupro é o caminho.
Um Tempo de Normas
e de Revolução

A década de 60 marcou as mudanças


mundiais sobre a condição feminina. Os
ecos da leitura de O Segundo Sexo, de
Simone Beauvoir, detinham os clamores
das mulheres de duas gerações passa-
das. A norte-americana Betty Friedan
esboçava seu grito de alerta às formas de
repressões sofridas, milenarmente, pelas
mulheres condicionadas por comporta-
mentos impostos e assumidos, enquanto
o movimento feminista liderava novas
conquistas. Criara-se um modelo de mu-
lher e estabeleciam-se as bases para ser
seguido. O discurso da moral sexual
apontava o casamento como a aspiração
da mulher virgem, interpondo-se como
o grande propulsor dos anseios femini-
nos. E a norma ética procurava valorizar
a submissão a essas imagens das mais
certinhas, assépticas, para as quais o
pudor seguia o caminho da valorização
porque as coisas do sexo deixavam de ser
ditas.
Um Dia Qualquer reproduz imagens
femininas do modelo instituído numa
Belém que, apesar de ter sido sacudida
anos antes (década de 1910-1920) por
tipos irreverentes, facilita pensar na ex-
clusão dessas insubmissas. E quando
estes tipos aparecem ( a jovem striper)
são punidos com violência (o estupro
praticado contra a jovem que extravasa-
va sua sensualidade num espaço públi-
co, na madrugada).
Maria de Belém, a personagem, mor-
re por conta de um sonho acalentado
pelo seu tipo (a maternidade esperada).
A Maria de Belém do Grão-Pará gravita e
engravida sob as ruas marcadas de tipos
irreverentes (as prostitutas), de tipos so-
fridos (a mulher que fala da fome dos
filhos numa parada de ônibus), de tipos
condicionados pelo exótico (as mulhe-
res seminuas das sessões de umbanda).
A busca do corifeu por um tipo igual ao
da morta, ao circular em todos os cantos
da cidade, onde esta teria sido feliz, não
foi positiva. É preciso chamar a morte
para salvar o sonho desfeito. Morte que
é sinônimo de exclusão num tempo sem
tempo e sem espaço para os seus tipos.
É a morte da morte que o próprio tempo
já vaticinara. Das normas à Revolução
resta o corpo inanimado de um corifeu
amante da morte. I

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