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Sopa de Letras

Berlim Alexanderplatz

A.M. Santos Nabo

A obra maior de Alfred Döblin, ‘Berlim Alexanderplatz’, que


este mês destacamos, não é um livro comum. Assim, é
exactamente nessa diferença para as situações normais que
o livro merece destaque. A obra conta a história de Frank
Biberkopf no ano de 1928 em Berlim, um ex-presidiário que
tenta voltar a ter uma vida decente. Mas este objectivo que
em tudo parece normal, é impossível de cumprir, mais
tarde ou mais cedo Frank Biberkopf vai voltar a andar por
maus caminhos.

Para da além da história do protagonista, o livro relata de


forma magnífica o ambiente existente na cidade de Berlim
entre as duas guerras, durante a República de Weimar. Este
período da história recente da Alemanha foi farto em
problemas de ordem política e social que minaram a
tentativa de estabelecer uma certa ordem, num país que
Capa da primeira edição do
tinha sido derrotado na I Guerra Mundial. Esta situação de
livro (1929)
instabilidade social que é visível ao longo de toda a obra,
acabada por ser a base de partida para a chegada dos nazis ao poder, cerca de quatro anos
depois, mas já aqui referidos

A leitura do livro tem ainda uma outra característica que nos deixa curiosos e que marca a
diferença para os grandes escritores: não se consegue adivinhar o que se passa nos capítulos
seguintes, isto é, não é possível penetrar na cabeça do autor. As cenas que se vão se
desenrolando não são fáceis de prever e acabam por constituir muitas vezes uma completa
surpresa, e aí está uma das principais características dos bons livros, a capacidade de nos
surpreender ao longo de toda a narrativa. Mesmo ao aproximar do final do livro, nunca
sabemos se Frank Biberkopf sobrevive ou se morre.

Num comentário sobre ‘Berlim Alexanderplatz’, Alfred Döblin, refere que “não tinha nenhum
assunto em especial, mas a grande Berlim envolvia-me, e conhecia bem o berlinense, e assim,
atirei-me à escrita como sempre, sem plano, sem directrizes, não constituí qualquer fábula; a
orientação era o destino, o trajecto de um homem até agora fracassado. Podia confiar na
linguagem: o falar berlinense; a partir dele foi-me dado criar, e os destinos que tinha
presenciado e convivido, aos quais se juntava o meu, garantiram-me uma navegação segura”.

O conhecimento das pessoas de Berlim, que é notório ao longo de todo o livro, é revelador do
espírito do autor, um médico que contactava diariamente com um vasto conjunto de pessoas e
que foi capaz de colocar em livro essas personagens representativas dos berlinenses. Alfred
Döblin reconhece esse facto, sublinhando que “a profissão de médico pôs-me amiúde em

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contacto com o meio criminal. Há anos dirigi também um centro de observação para
criminosos. Daí adveio muita coisa interessante e digna de ser dita”. Döblin sublinha também
que “ao encontrar lá fora essa gente e outra semelhante, ia fazendo um relato bem curioso da
nossa sociedade: não há fronteiras rígidas, formuláveis, entre o criminoso e o não criminoso,
em todas as zonas possíveis e imagináveis a sociedade – ou melhor aquilo que eu via – estava
minada de criminalidade”.

Neste contexto, Frank Biberkpf não tinha alternativa.


Embora, quando saiu da prisão depois de cumprir
quatro anos de reclusão, ele quisesse ser decente, ao
entrar no mundo real isso não seria possível, não iria
resultar. Tudo lhe vai correr mal, golpe atrás de golpe
acaba por destruir o objectivo de Frank que acaba por
se resignar e entrar de novo no mundo do crime. O
assassínio da sua amada Mieze, às mãos do seu
companheiro e amigo Reinhold, é o principal ponto de
viragem na vida da Frank, tornando impossível o
regresso a uma vida normal.

Rainer Werner Fassbinder confessa, num ensaio sobre


o livro, que “Frank Biberkopf é uma das mais ricas
personagens da literatura, tão memorável como
Woyzeck, Oblomov ou Madame Bovary. Vamo-lo
conhecendo não apenas pelo seu aspecto exterior,
como gordo, musculado, um trabalhador berlinense,
Capa da última edição
um amante de copos, cervejas e mulheres, um homem
portuguesa (2010)
‘apolítico’ característico dos bares, tabernas e casas de
dança existentes à volta de Alexenderplatz; mas também pelo interior, numa linha contínua de
monólogos preenchidos com os seus sonhos, ansiedades, confusões, esperanças e ilusões”.
Fassbinder dirigiu uma mini série de televisão baseada no romance em 1980 com cerca de 15
horas de duração.

O livro foi publicado em 1929, quando os nazis não eram mais do que um pequeno partido no
leque político de uma Alemanha ainda a curar as feridas da I Guerra Mundial, mas é
interessante verificar que, mesmo assim, Döblin não excluiu os nazis do livro, nem lhe deu uma
conotação negativa. Mal sabia ele o que estava para vir…

Alfred Döblin foi um escritor, dramaturgo, ensaísta e cientista alemão nascido em Stettin em
1878. Tendo concluído a licenciatura em medicina, trabalha como neurologista entre 1905 e
1930 em várias cidades da Alemanha, incluindo Berlim. Durante o nazismo foi obrigado a
emigrar, primeiro para França e depois para os Estados Unidos, mas é dos primeiros
intelectuais a regressar à Alemanha depois da II Guerra Mundial. Inicialmente influenciado
pelo expressionismo a sua obra evoluiu para preocupações morais e religiosas, mas é em
Berlim Alexanderplatz que combina vários planos da realidade e da escrita. Morre no ano de
1957, em Emmendingen, com a doença de Parkinson.

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