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ANÁLISE LIVRE DAS RELAÇÕES DE

TEATRALIDADE NAS
MANIFESTAÇÕES 2013.1 EM
SALVADOR
D O C E N T E : L U I Z M A R F U Z | D I SC E N T E : ( I S A D O R A ) D I M I TR I A HE R R E R A ( N U N E S )

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – INTERPRETAÇÃO TEATRAL MÓDULO I

Um dos primeiros acontecimentos interessantes no aspecto da teatralidade na


manifestação do dia 20 de Junho, no estádio Fonte Nova, foi, para mim, a formação e o
método operante da cavalaria da polícia. Em primeiro lugar, a simples existência da
cavalaria já denuncia um dos aspectos teatrais da coerção violenta empregada pela polícia:
o porte do cavalo é usado, aparentemente, com o objetivo único de intimidar. Seus
“cavaleiros” policiais operaram num sistema que me lembrou imediatamente os da
cavalaria da idade média (embora eu não o conheça tão bem). Empunhavam os cassetes
apontado para o alto, como espadas, e o aparente capitão do grupo espetou o cassetete a
frente antes de anunciar a ordem de ataque num grito que fez partir todo o grupo da em
cima dos manifestantes. Fizeram isso e apenas isso: correram com os cavalos na direção
do grupo de manifestantes obrigando-o a se dispersar tanto pelo susto quanto pela
ameaça do atropelamento. Isso pareceu claramente teatral para mim. Qual seria a
necessidade dos cassetetes, que não fosse uma espécie de encenação enraizada nos
métodos policiais? Recordando as origens de uma cavalaria, impõe a ela respeito a partir
de uma encenação que me parece obviamente teatral.

A própria formação que as diversas categorias de polícia assumiram para proteger o


estádio também tinha uma conotação teatral. Estavam dispersos, é claro, de forma a tentar
evitar a aproximação dos manifestantes. Cobriram todos os acessos visíveis ao estádio,
com a tropa de choque na avenida, onde havia maior acesso aos participantes, a cavalaria
na rua ao lado, em sua particular espécie de formação triangular, e as áreas anexas com
policiais militares, os mais na frente segurando cães pela coleira. A formação evidenciava a
tropa de choque e a cavalaria, que eram de fato as duas atuantes no processo. Mais a
choque do que a cavalaria, que também atuava menos no processo dispersivo. Claro que
num palco não existe a necessidade de se posicionar mais afrente ou mais para trás, mas
eu vi uma espécie de teatralidade na posição porque parecia endossar um equilíbrio: quem
está mais atuante, se coloca mais a frente, e os que estão apenas de retaguarda, ficam mais
para trás. O ponto de interesse era a tropa de choque.

Tropa essa, aliás, que se movia protegida atrás do escudo o tempo inteiro como se contra
eles estivessem sendo atiradas balas de fuzil em vez de pedras que sequer os alcançava
pela distância. Nas circunstâncias da manifestação parecia um pouco ridículo, e puxava
mais para o lado de uma representação: a representação de que os manifestantes
ofereciam um honesto perigo que pedia, não só a tática de proteção do escudo, mas
também a abusivamente violenta repressão que era imposta a eles. Acredito que esses
“artifícios teatrais” acabavam, de uma forma mais subjetiva do que objetiva, reforçando o
empoderamento natural da polícia e servindo para justificar de alguma forma a agressão
que se cometia contra pessoas armadas, no máximo, de pedra e cartazes.

Da parte dos manifestantes, alguns aspectos considerei teatrais/espetaculares. O primeiro,


talvez óbvio, que se ergueu aos meus olhos foi o dos gritos de guerra, que em cem por
cento das vezes possuem ou almejam com proximidade uma musicalidade rítmica. Não sei
se isso pode ser considerado um aspecto da teatralidade, mas certamente é um aspecto da
espetacularidade, posto que a música e a rima concedem mais força às palavras, talvez por
dar a elas uma espécie diferente da beleza que teriam se somente discurso, e por essa
força as transforma num “pequeno espetáculo.” Além dos brados, ora ou outra eles pediam
uma certa atuação dos participantes, fosse pular, fosse sentar, fosse bater palmas. Isso,
novamente, na minha concepção, tinha um toque de teatralidade.

Com relação a natureza política dos manifestos acredito poder traçar um


“desenvolvimento” desde seu começo até o que está se tornando hoje. Inicialmente uma
simples manifestação que, por seu caráter absusivamente pacífico, seria inútil e poderia
ser (como já tinha sido anteriormente) completa e absolutamente ignorada, ocorrida em
São Paulo, virou assunto principal quando a polícia não só reagiu como exibiu toda a sua
violência. Foi mais a violência da polícia, do que a revolta sincera sobre os preços das
passagens, que motivou a dispersão daquele sentimento em outras cidades do Brasil. As
manifestações na capital paulista foram angariando mais pessoas e recebendo mais e mais
gestos de repulsa e violência pesada; violência essa que, pela primeira vez em muito
tempo, estava atingindo cidadãos da classe média, e por isso se tornava tão popular. Afinal
de contas, não podemos ignorar que é amplamente sabido que a polícia é sempre violenta,
abusiva e grotesca. A diferença foi quem foi o alvo: deixando de ser a classe pobre
brasileira, em suas favelas onde nada era filmado, passou para as principais avenidas das
capitais do Brasil contra pessoas de classes médias e classes superiores.

O crescimento do movimento brasileiro frente a atuação policial levou a diversas reações


interessantes. A famigerada e pacifista classe-média começou a ingressar em peso nas
manifestações, trazendo mais visibilidade ao movimento em mesma medida que o
transformava em um discurso vazio de “não é por vinte centavos, é por direitos!” – ora
essa, claro que não era, para eles, por vinte centavos. Os discursos de “sem violência”,
“chega de corrupção”, “o gigante acordou” só tornaram a manifestação esvaziada de seu
sentido, não porque não falassem do preço das passagens, mas porque começavam a
realçar um pacifismo idiota, manipulável, racista e que reforçava o poder do estado e de
sua polícia violenta; porque atacavam não os problemas em si, mas suas consequências
(como, por exemplo, a corrupção); e, finalmente, porque eram gritos de uma maioria que,
na verdade, não queria mudar nada. Logo passou a ser praxe estar vestido de verde e
amarelo, pintado, e cantar o hino na manifestação – esquecendo-se de que estavam sendo
nacionalistas por um país racista, machista, capitalista, sanguinário e que os atacava a todo
momento, além de se esquecerem também de que o nacionalismo, como ferramenta
política, não é menos do que a ponte para um governo autoritarista, intolerante e
antidemocrático. Nacionalismo é o jeito de separar seres humanos de seres humanos em
guerras que nunca precisaram existir, por motivos que esses seres humanos combatentes
nunca entederam.
As manifestações só não foram uma catástrofe porque, felizmente, tanto algumas pessoas
ficavam revoltadas com os ataques da polícia e logo tratavam de atacar de volta,
quebrando e destruindo, como outras, especialmente as de classe baixa que já lidavam
com a violência estatal desde cedo, ingressaram na luta difusa e impuseram uma
verdadeira briga. Foi, sim, a revolta dos que estavam sendo atacados e a divulgação da
violência estatal que fizeram com que os pequenos direitos ganhos até agora fossem,
efetivamente, ganhos. As manifestações mostraram não só que existe gente insatisfeita
como a necessidade de se trabalhar as táticas e mesmo a mentalidade de seus
manifestantes.

Não que o pacifismo não possa ser utilizado. As vitórias históricas dependeram de uma
pluraridade de táticas. O que tornou os manifestantes classe-médias como joguetes num
momento de instabilidade política foi o pacifismo inarticulado, e, principalmente, a
vontade desses mesmos pacifistas de impedir que se disseminasse a pluraridade de táticas
na medida que tentavam conter o radicalismo. Acredito que as manifestações em Salvador
ainda não tenham terminado de todo, mas não tenho muita certeza se continuarão com
toda a visibilidade que já tiveram.

Não enxergo uma via política liderando a manifestação, que, aliás, gostava de se proclamar
“apolítica” – sem dúvida seria uma política capitalista reformista, ao meu ver. Capitalista
porque o reformismo, é claro, se propunha a manter a estrutura oficial do estado, com
suas normas, sua polícia violenta, seus oligopólios nas companhias de ônibus, suas classes
miseráveis e suas classes milionárias...

As manifestações, por sua destruição e massa participativa, têm sua visibilidade e poder
para mudar mais profundamente a estutura social que nos mantém. Entretanto, acho que
tão logo as demandas mais rasas tenham sido atendidas, o movimento será sufocado e
terminará. Serviu, não só para as mudanças, mas também para dar em vista como é a
sociedade brasileira, como o Estado pode manipular uma população e transformar um
protesto em uma passeata pela paz, como se faz carente de participação política no Brasil,
como um movimento articulado pode ter força enquanto um inarticulado pode se limitar a
deixar um estado de instabilidade política manipulável.

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