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Calvino

1509-1564.

Teólogo,
reformador e
humanista

Leonildo Silveira Campos


A Reforma 500 anos depois de Calvino.
E mais:

>> Maria Celina D’Araújo:


Yves Krumenacker As Forças Armadas no Brasil e
Calvino. Um revolucionário ou um conservador? na América Latina

316Ano IX
Ricardo Rieth
>>Antoine Artous:
O mundo do trabalho
23.11.2009
Uma teologia a caminho e o marxismo
ISSN 1981-8469

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Calvino - 1509-1564

Celebram-se, neste ano, os 500 anos de nascimento do reforma-


dor francês João Calvino (1509-1564).

O Instituto Humanitas Unisinos – IHU, dedicou um amplo espaço


nas Notícias do Dia, publicadas e atualizadas diariamente na sua
página eletrônica, a este importante evento. Esta edição da IHU
On-Line quer aprofundar a análise e o debate sobre o legado deste
grande teólogo, reformador e humanista.

Contribuem nesta edição o filósofo e o teólogo presbiteriano


Leonildo Silveira Campos, da Umesp; Bernard Cottret, biógrafo
francês de Calvino, da Universidade de Versailles – Saint-Quentin;
Carlos Eduardo Oliveira, professor da Universidade Federal de São
Carlos – UFSCar, um dos tradutores de A instituição da religião cris-
tã, obra em dois volumes de João Calvino, para o português; Yves
Krumenacker, da Universidade Lyon 3, historiador, autor do livro
Calvin. Au-delà des legendes (Paris, Bayard, 2009); Volker Leppin,
decano da Faculdade de Teologia da Universidade de Jena; Hermis-
ten da Costa, pastor e professor do Seminário Presbiteriano Reverendo José Manoel da Conceição;
Ricardo Rieth, professor da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, e da Escola Superior de Teo-
logia – EST; e Risto Saarinen, pastor da Igreja Evangélica Luterana e professor da Universidade de
Helsinki.

Completam esta edição as entrevistas com Maria Celina D’Araújo, cientista política e professo-
ra da PUC-Rio e com Ana Luísa Janeira, professora da Universidade de Lisboa.

Agradecemos ao professor Henrique Amorim, pesquisador do Departamento de Sociologia da Uni-


camp, a entrevista que fez com Antoine Artous, autor de Marx et le travail (Editions Syllepse, avril
2003) e membro do comitê de redação da revista ContreTemps, e que publicamos nesta edição.

A todos e a todas, uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
Expediente

Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
nos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão: Vanessa
Alves (vanessaam@unisinos.br). Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Traba-
lhadores – CEPAT, de Curitiba-PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling,
Greyce Vargas (greyceellen@unisinos.br) e Juliana Spitaliere. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.
br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Concei-
ção. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br).
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do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.

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Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 07 | Bernard Cottret: A purificação calvinista do cristianismo
PÁGINA 09 | Ricardo Rieth: Uma teologia a caminho
PÁGINA 12 | Leonildo Silveira Campos: A Reforma 500 anos depois de Calvino
PÁGINA 19 | Carlos Eduardo de Oliveira: Para Calvino, a eleição divina independe até mesmo da fé
PÁGINA 24 | Yves Krumenacker: Calvino. Um revolucionário ou um conservador?
PÁGINA 26 | Volker Leppin: A teologia política de Calvino
PÁGINA 27 | Hermisten Maia Pereira da Costa: A fé reformada e os compromissos existenciais inevitáveis
PÁGINA 31 | Risto Saarinen: “A Reforma, sem dúvida, foi um movimento com forte tonalidade hermenêutica”

B. Destaques da semana
» Brasil em Foco
PÁGINA 33 | Maria Celina Soares D’Araújo: O papel das Forças Armadas no Brasil e na América Latina
» Entrevista da Semana
PÁGINA 36 | Antoine Artous: O mundo do trabalho e o marxismo
» Teologia Pública
PÁGINA 41 | Ana Luísa Janeira: “A energia máxima será sempre o amor”
» Coluna Cepos
PÁGINA 44 | Rodrigo Jacobus: A cultura do excesso e alguns mitos da interatividade
» Destaques On-Line
PÁGINA 46 | Destaques On-Line

769.
nisi- C. IHU em Revista
essa
aba-
ing, » Eventos »
nos. » IHU Repórter
cei-
br). PÁGINA 50| Gelson Fiorentin
mail
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Livro digital do Simpósio
Narrar Deus é lançado

Livro digital do X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus


numa Sociedade Pós-Metafísica. Possibilidades e impos-
sibilidades com os textos das oficinas, minicursos e comu-
nicações do evento está disponível no sítio do IHU.

Acesse www.ihu.unisinos.br e faça o download do livro


digital do Simpósio Narrar Deus.

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João Calvino
Nascimento 10/07/1509, em Noyon, França
Falecimento 27/05/1564, em Genebra, Suíça

chegando a distinguir- Três anos mais tarde, convidado a en-


se como humanista. sinar teologia, Calvino passou a viver
Encaminhado para a em Genebra, unindo-se ao reformador
teologia por seu pai, Guillaume Farel. Uma tentativa mal-
Calvino foi enviado sucedida de implantar os costumes re-
para uma capela da formados acabou causando celeuma e
Catedral de Noyon, levando Calvino ao exílio, em 1538.
depois para a paróquia
de Marteville. Mudou-se para Estrasburgo, onde, em

“O
agosto de 1540, casou-se com a viú-
Senhor teve pie-
Com a mudança dos planos paternos, va Idelette de Bure, com quem viveria
dade de mim, Calvino direcionou-se para o direito. por nove anos. Com a morte da esposa,
sua pobre cria- Entre 1528 e 1533, frequentou as uni- Calvino seguiu cuidando dos filhos dela.
tura; (...) Ele versidades de Orleans e de Bourges.
me estendeu a Em 1532, publicou sua primeira obra, Em 1541, retornou a Genebra, onde
Sua misericórdia para anunciar a ver- Dois livros sobre a Clemência ao Impe- criou um modelo institucional para a
dade do Evangelho”. Com estas pa- rador Nero, em que comentou o pen- Igreja reformada. Publicou as suas Or-
lavras, autodefiniu-se o reformador samento de Sêneca sobre a clemência. denanças Eclesiásticas naquele ano. A
humanista João Calvino, fundador da Aos poucos, foi-se aproximando das partir de então, ocupou-se do aprimo-
Igreja protestante na França. questões morais e religiosas e do pen- ramento e da difusão da nova doutri-
samento de Lutero, o reformador da na, expandindo-a para outros centros
De origem humilde, Calvino era filho Igreja católica na Alemanha. europeus.
de um tabelião, secretário do bispo de
Noyon. Ingressou no Colégio dos Cape- Em 1533, sua distância em relação Em seus últimos anos, estava com a
to e depois foi admitido entre os filhos ao catolicismo tornou-se pública, saúde debilitada. João Calvino morreu
do Senhor de Monmor, compartilhando com a redação de um discurso con- no dia 27 de maio de 1564, após um
com eles sua educação. tendo matéria religiosa considerada acesso de hemoptise.
herética. Dois anos depois, concluiu
Em agosto de 1523, iniciou seus es- sua obra mais famosa, a Instituição Fonte: http://educacao.uol.com.
tudos na Universidade de Paris, onde da Religião Cristã, que lhe rendeu br/biografias/ult1789u191.jhtm
aprendeu latim, filosofia e dialética, grande prestígio.

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A purificação calvinista do cristianismo
Para Bernard Cottret, Lutero e Calvino têm teologias próximas por “sua afirmação
da justificação pela fé ou sua recusa do sacrifício da missa”. Há diferenças, contu-
do. Não existe atualidade em si de Calvino, mas constante exigência de renovação
interior

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

O
calvinismo não pode se reduzir apenas à predestinação, diz o biógrafo francês de Calvino,
Bernard Cottret. Em entrevista especial à IHU On-Line, por e-mail, ele explica também
em que medida essa religião pode ser considerada uma reação ao protestantismo e ao ca-
tolicismo. “A purificação calvinista do cristianismo consiste em extirpar impiedosamente
a idolatria, incluindo a liturgia. Praticamente não há arte sacra calvinista – quando há
evidentemente uma arte sacra luterana, anglicana, para não falar da arte sacra católica, e do estilo
jesuíta”. Em sua opinião, um bom calvinista não deveria dizer-se “calvinista”, já que “em sua ori-
gem, o calvinismo é uma invenção de luteranos da segunda ou terceira geração, hostis à teologia de
Calvino, em particular sobre as questões eucarísticas”.
Cottret é professor da Universidade de Versailles – Saint-Quentin e membro do Instituto Univer-
sitário da França. É autor de, entre outros, Calvin. Biographie (2ª. Ed. Paris: Payot, 1999). Confira a
entrevista.

IHU On-Line - Em que medida Calvi- sa obra. Porém e, sobretudo, o protes- bem o significante do significado. Toda
no teria sido para a língua francesa o tantismo sempre foi minoria na França, sua doutrina eucarística pretende ver,
que Lutero foi para a língua alemã enquanto é percebido como majoritário nas espécies, simples significantes, re-
– uma figura quase paternal? no espaço germânico, ou, mais em geral, cusando que lhe seja votado um culto
Bernard Cottret - Calvino e Lutero ocu- em toda a Europa. julgado idolátrico. É o que implica o
pam situações inversas: Lutero é perce- recurso às figuras da retórica e, em
bido pelos alemães de todas as confis- IHU On-Line - Por que Calvino é um particular, a definição do sacramento
sões como o fundador de seu idioma. Sua “filósofo pré-cartesiano”? Poderia como “metonímia”, e não como me-
tradução da Bíblia é uma grande data na comentar essa afirmação? táfora. A recusa da transubstanciação
história da língua alemã e é o estabele- Bernard Cottret - Meus próprios tra- tomista é, sob este título, ligada a
cimento do Hoch Deutsch [alemão clás- balhos, após meu artigo publicado nos uma concepção gramatical. Tive oca-
sico]. Calvino, por sua vez, não traduziu Annales ESC até minha recente edição sião de falar há uns trinta anos sobre
a Bíblia, deixando este cuidado a seu pri- do Tratado das relíquias (Traité des re- essas coisas com Michel de Certeau,
mo Olivétan e fazendo o prefácio des- liquess. Paris: Éditions de Paris, 2008)¸ estruturalismo. Além disso, o pensamento de
Saussure estimulou muitos dos questionamen-
 Martinho Lutero (1483-1546): teólogo ale-
passando por minha biografia do refor- tos que comparecem na linguística do século
mão, considerado o pai espiritual da Reforma mador (reeditada na França em 2009) XX. (Nota da IHU On-Line)
Protestante. Foi o autor de uma das primeiras tiveram por objetivo dar a Calvino seu  Michel de Certeau (1925-1986): intelectual
traduções da Bíblia para o alemão, sua tradu- jesuíta francês. Foi ordenado na Companhia
ção suplantou as anteriores. Além da quali-
merecido lugar na tradição intelec- de Jesus em 1956. Em 1954 tornou-se um dos
dade da tradução, foi amplamente divulgada tual francesa. Por sua reflexão sobre fundadores da revista Christus, na qual este-
em decorrência da sua difusão por meio da a língua, por sua semiótica exigente, ve envolvido durante boa parte de sua vida.
imprensa, desenvolvida por Gutemberg em Lecionou em várias universidades, entre as
1453. Sobre Lutero, confira a edição 280 da
Calvino iniciou os trabalhos de um quais Genebra, San Diego e Paris. Escreveu
IHU On-Line, de 03-11-2008, intitulada Re- Saussure, por exemplo, distinguindo diversas obras, dentre as quais La Fable mys-
formador da Teologia, da igreja e criador da ro tradutor da Bíblia para o francês. (Nota da tique: XVIème et XVIIème siècle (Paris: Galli-
língua alemã. O material está disponível para IHU On-Line) mard, 1982); Histoire et psychanalyse entre
download em http://www.ihuonline.unisinos.  Ferdinand de Saussure (1857-1913): linguis- science et fiction (Paris: Gallimard, 1987); La
br/uploads/edicoes/1225737560.4112pdf.pdf. ta suíço, cujas elaborações teóricas propricia- prise de parole. Et autres écrits politiques
(Nota da IHU On-Line) ram o desenvolvimento da linguística enquan- (Paris: Seuil, 1994). Em português, citamos
 Pierre Robert Olivétan (1506-1538): primei- to ciência e desencadearam o surgimento do A escrita da história (Rio de Janeiro: Forense

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que me encorajara a prosseguir.
Ora, isso me levou a tomar distância
“Não existe da missa, mas também dessemelhan-
ças. É, pois, falso reduzir, como se faz
em relação ao maravilhoso livro de Michel
Foucault sobre As palavras e as coisas
atualidade em si de com frequência, o calvinismo somente
à predestinação.
— uma arqueologia das ciências humanas
(3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1985),
Calvino, de Marx ou de IHU On-Line - Quais são as influên-
cias do “Calvino jurista” no “Calvi-
que atribui a Descartes uma dissociação
Universitária, 1982) e A invenção do cotidiano
Jesus, mas continua a no teólogo”? A austeridade de seu
(3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1998). Sobre Certe-
pensamento seria explicada por esta
au, confira as entrevistas Michel de Certeau permanente exigência de diferença?
ou a erotização da história, concedida por
Elisabeth Roudinesco, e As heterologias de Bernard Cottret - Calvino é jurista
Michel de Certeau, concedida por Dain Bor- uma renovação interior” onde Lutero e os outros receberam
ges, ambas à edição 186 da IHU On-Line, de
26-06-2006, disponíveis para download em uma formação clássica de teólogos
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ católicos. Isso induz diversas caracte-
edicoes/1158344480.87pdf.pdf. As mesmas
entre a realidade e as aparências “enga-
entrevistas podem ser conferidas na edição 14 nadoras” que, a meu ver, encontra-se em rísticas notáveis que eu destaquei em
dos Cadernos IHU em Formação, intitulado Calvino. Eis como eu o situaria agora no minha biografia:
Jesuítas. Sua identidade e sua contribuição 1) Calvino permanece profundamente
para o mundo moderno, disponível para do-
nominalismo medieval.
wnload em http://www.ihu.unisinos.br/uplo- laico;
ads/publicacoes/edicoes/1184009586.45pdf. IHU On-Line - O que faz a diferença 2) Ele jamais recebeu consagração
pdf. (Nota da IHU On-Line) pastoral, enquanto Lutero e os outros
 Michel Foucault (1926-1984): filósofo fran-
do empreendimento de Calvino e de
cês. Suas obras, desde a História da Loucu- Lutero de “purificar” o cristianis- são antigos padres;
ra até a História da sexualidade (a qual não mo? 3) De maneira igualmente essencial,
pôde completar devido a sua morte) situam- ele recusa dissociar a Lei e a Graça, a
se dentro de uma filosofia do conhecimento.
Bernard Cottret - Lutero, em sua con-
Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito cepção do sacramento, permanece Torah e o Evangelho. De onde provém,
romperam com as concepções modernas des- ligado à substância. Nele, fala-se de sem dúvida, o filo-semitismo notável de
tes termos, motivo pelo qual é considerado diversos reformadores, no qual Lutero se
por certos autores, contrariando a sua pró-
consubstanciação a propósito da San-
pria opinião de si mesmo, um pós-moderno. ta Ceia, e o pão e o vinho coexistem mostra funcionalmente antijudaico.
Seus primeiros trabalhos (História da Loucu- com o corpo e o sangue do Salvador.
ra, O Nascimento da Clínica, As Palavras e as
Para Calvino, isso não tem sentido; IHU On-Line - Em que medida o calvi-
Coisas, A Arqueologia do Saber) seguem uma
linha estruturalista, o que não impede que ele muda radicalmente de perspectiva nismo é uma reação ao protestantis-
seja considerado geralmente como um pós-es- por sua teoria do signo. A purificação mo e ao catolicismo?
truturalista devido a obras posteriores como
calvinista do cristianismo consiste em Bernard Cottret - O calvinismo é uma
Vigiar e Punir e A História da Sexualidade.
Foucault trata principalmente do tema do po- extirpar impiedosamente a idolatria, construção dogmática que eu distin-
der, rompendo com as concepções clássicas incluindo a liturgia. Praticamente não guiria da fé viva de Calvino. Muitos
deste termo. Para ele, o poder não pode ser protestantes calvinistas preferem di-
localizado em uma instituição ou no Estado, o
há arte sacra calvinista – quando há
que tornaria impossível a “tomada de poder” evidentemente uma arte sacra lutera- zerem-se reformados para não incor-
proposta pelos marxistas. O poder não é con- na, anglicana, para não dizer da arte rer na censura de idolatria. Um bom
siderado como algo que o indivíduo cede a um calvinista não deveria dizer-se “calvi-
soberano (concepção contratual jurídico-polí-
sacra católica, e do estilo jesuíta.
tica), mas sim como uma relação de forças. Ao nista”, e, em sua origem, o calvinismo
ser relação, o poder está em todas as partes, IHU On-Line - Quais são os pontos de é uma invenção de luteranos da segun-
uma pessoa está atravessada por relações de da ou terceira geração, hostis à teolo-
poder, não pode ser considerada independen-
proximidade e de ruptura que o se-
te delas. Para Foucault, o poder não somente nhor destacaria entre estes dois re- gia de Calvino, em particular sobre as
reprime, mas também produz efeitos de ver- formadores? questões eucarísticas. Calvino em todo
dade e saber, constituindo verdades, práti- o caso não queria ser calvinista, como,
cas e subjetividades. Em duas edições a IHU
Bernard Cottret - Lutero e Calvino
On-Line dedicou matéria de capa a Foucault: têm, ao mesmo tempo, teologias pró- de resto, Marx não queria ser marxis-
edição 119, de 18-10-2004, disponível para ximas por sua afirmação da justifica-  Torá: nome dado aos cinco primeiros livros
download em http://www.ihuonline.unisinos. do Tanakh e que constituem o texto central
br/uploads/edicoes/1158265374.73pdf.pdf e
ção pela fé ou sua recusa do sacrifício do judaísmo. Contém os relatos sobre a cria-
a edição 203, de 06-11-2006, disponível em do pelo seu trabalho revolucionário da Filoso- ção do mundo, da origem da humanidade, do
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ fia, tendo também sido famoso por ser o in- pacto de Deus com Abraão e seus filhos, e a
edicoes/1162842466.39pdf.pdf. Além disso, o ventor do sistema de coordenadas cartesiano, libertação dos filhos de Israel do Egito e sua
IHU organizou, durante o ano de 2004, o even- que influenciou o desenvolvimento do cálculo peregrinação de quarenta anos até a terra pro-
to Ciclo de Estudos sobre Michel Foucault, que moderno. Descartes, por vezes chamado o fun- metida. Inclui também os mandamentos e leis
também foi tema da edição número 13 dos Ca- dador da filosofia e matemática modernas, ins- que teriam sido dadas a Moisés para que en-
dernos IHU em Formação, disponível para do- pirou os seus contemporâneos e gerações de tregasse e ensinasse ao povo de Israel. (Nota
wnload em http://www.ihu.unisinos.br/uplo- filósofos. Na opinião de alguns comentadores, da IHU On-Line)
ads/publicacoes/edicoes/1184009500.55pdf. ele iniciou a formação daquilo a que hoje se  Karl Heinrich Marx (1818-1883): filósofo,
pdf sob o título Michel Foucault. Sua contri- chama de racionalismo continental (suposta- cientista social, economista, historiador e re-
buição para a educação, a política e a ética. mente em oposição à escola que predomina- volucionário alemão, um dos pensadores que
(Nota da IHU On-Line) va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição exerceram maior influência sobre o pensamen-
 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. to social e sobre os destinos da humanidade
e matemático francês. Notabilizou-se sobretu- (Nota da IHU On-Line) no século XX. Marx foi estudado no Ciclo de

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ta... Eu, aliás, trabalho atualmente
sobre Marx, e constato que sua teoria
do fetichismo é de inspiração tão am- Uma teologia a caminho
plamente bíblica quanto hegeliana.
De acordo com Ricardo Rieth, Calvino compreendia sua contri-
IHU On-Line - O calvinismo foi uma
segunda fase do protestantismo?
buição intelectual como uma “teologia a caminho”. Identifica-
Bernard Cottret - Embora ele tenha va-se com Santo Agostinho e destacou-se pela capacidade de
aparecido historicamente após Lutero, sistematizar a tradição eclesiástica oriental e ocidental
Calvino promoveu uma teologia pro-
fundamente original, e é difícil falar
de uma segunda fase ou de um apro- Por Márcia Junges
fundamento. É fundamentalmente ou-

A
tra tradição cultural, ligada ao huma-
nismo francês – pista que eu explorei originalidade não é propriamente um traço de Calvino, mas muito
em minha biografia. antes a sua capacidade sistemática, unificando num “todo orgâni-
co a tradição eclesiástica oriental e ocidental, o ensino do huma-
IHU On-Line - Qual é a atualidade nismo cristão renascentista e as propostas da primeira geração de
de Calvino 500 anos após seu nas- reformadores protestantes”. A afirmação é do teólogo e sociólo-
cimento? go Ricardo Willy Rieth na entrevista que concedeu, com exclusividade, por
Bernard Cottret - Há dez anos escre- e-mail, à IHU On-Line. “Calvino compreendia sua contribuição intelectual
vi um pequeno livro sobre o Renasci- como uma ‘teologia a caminho’. Identificou-se com Santo Agostinho, que
mento, chamado La Renaissance 1492-
certa vez descreveu a si mesmo como alguém que escreve a partir da pro-
1598. Civilisation Et Barbarie (Paris:
gressão dos pensamentos e progride no escrever. A teologia de Calvino tem
Éditions de Paris, 2000 - O Renascimen-
to 1492-1598. Civilização e barbárie). um caráter fortemente determinado pela própria experiência”, completa
Ali eu falava de Calvino, de Lutero, Rieth. Ponderando os aspectos de proximidade e divergência entre Calvino e
mas também de Inácio de Loyola e de Lutero, menciona que ambos são referências fundamentais para a teologia e
alguns outros. Para mim, existe uma também para o protestantismo.
atualidade da história, da história en- Rieth é teólogo e sociólogo. Cursou a graduação em Teologia no Seminá-
quanto tal, da história em geral. Mas, rio Concórdia da Igreja Evangélica Luterana do Brasil, e em Ciências Sociais
a tarefa do historiador parece-me ser pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. É doutor em teologia
a de sempre descartar o anacronismo, pela Universidade de Leipzig, na Alemanha, onde também obteve o título de
e eu desconfio de expressões como “a pós-doutor. Sua tese intitulou-se “Habsucht” bei Martin Luther: ökonomisches
atualidade de Calvino”. No fundo, e und theologisches Denken, Tradition und soziale Wirklichkeit im Zeitalter der
para retomar Calvino sobre este pon-
Reformation (Weimar: Hermann Böhlaus Nachfolger, 1996). Atualmente, é
to, sua atualidade se dá no aspecto do
professor da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra, e da Escola Superior de
olhar ou da fé. Não existe atualidade
em si de Calvino, de Marx ou de Jesus, Teologia – EST. É autor do livro Martim Lutero: discípulo, testemunha, refor-
mas continua a permanente exigência mador (São Leopoldo: Editora Sinodal, 2007). Confira a entrevista.
de uma renovação interior. Ou, para
empregar outra palavra, de uma refor- IHU On-Line - Qual é a atualidade e homem de ação de grande desta-
ma sempre ativa. Ecclesia reformata de Calvino 500 anos após seu nas- que em um período fundamental da
semper reformanda. cimento? história ocidental, quando marcos
Estudos Repensando os Clássicos da Economia. Ricardo Rieth - João Calvino conti- importantes do que hoje configura
A edição número 41 dos Cadernos IHU Ideias, nua sendo uma referência para os nosso contexto de vida foram esta-
de autoria de Leda Maria Paulani tem como
título A (anti)filosofia de Karl Marx, disponí-
fiéis que são membros de igrejas sur- belecidos. Evocar sua memória e re-
vel em http://www.unisinos.br/ihu/uploads/ gidas a partir do movimento por ele fletir sobre as grandes questões de
publicacoes/edicoes/1158330314.12pdf.pdf. conduzido. Nesse caso, seus escritos nossos dias, tomando por referência
Também sobre o autor, confira a edição núme-
ro 278 da IHU On-Line, de 20-10-2008, intitu-
servem de orientação para posicio- aspectos de sua herança literária e
lada A financeirização do mundo e sua crise. namentos doutrinários, reflexões prática, pode ser muito significativo,
Uma leitura a partir de Marx, disponível para teológicas e formulações de juízos mesmo para pessoas sem interesse
download em http://www.unisinos.br/ihuon-
line/uploads/edicoes/1224527244.6963pdf.
éticos acerca de temas desafiadores específico quanto à fé cristã ou mes-
pdf. (Nota da IHU On-Line) suscitados pela realidade atual nos mo à religião de um modo geral.
 Santo Inácio de Loyola (1491-1556): funda- diversos contextos em que estão e
dor da Companhia de Jesus, conhecida como
os Jesuítas, cuja missão é o serviço da fé, a
agem essas igrejas e pessoas. Por ou- IHU On-Line - Como pode ser defini-
promoção da justiça, o diálogo inter-religioso tro lado, Calvino foi um intelectual do o calvinismo?
e cultural. (Nota da IHU On-Line)

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Ricardo Rieth - Calvino é conheci-
do como “fundador” do protestantis-
“Lutero e Calvino são nônico. Criticava em vários autores da
escolástica a falta de uma ênfase cris-
mo reformado. “Reformado”, em sen-
tido estrito, diferencia-se de outras
referências fundamentais tocêntrica, seu caráter especulativo e
filosófico, suas múltiplas distinções no
correntes intraprotestantes e designa
o movimento originado na Suíça a par-
para a teologia e o ensino acerca da fé, a doutrina da gra-
ça e a compreensão sacramental. Não
tir de Zuinglio, Bullinger e Calvino,
entre outros. O próprio reformador
protestantismo” há dúvida alguma quanto ao decisivo
significado de Lutero para a teologia
genebrino rejeitou que o movimento, de Calvino. Nos pontos centrais de sua
a partir dele referenciado, assumisse ficado para seu ensino sobre os sacra- confissão pelo ensino reformatório,
a denominação “calvinismo”, prin- mentos foi São Cirilo de Alexandria. Calvino se mostrou um aluno de Lute-
cipalmente quando este foi acolhido Como exegeta, valorizava especial- ro: na doutrina da justificação (somen-
em territórios germânicos, algo que se mente São João Crisóstomo, de quem te Cristo, somente a fé, somente a
deu com muita intensidade a partir da queria editar pregações em francês. A graça, somente a Escritura) e na com-
segunda metade do século XVI. É por fonte mais decisiva, no entanto, era a preensão acerca da Igreja. Em relação
isso que igrejas identificadas com sua Bíblia, a partir da qual repetidamente a Ulrico Zuinglio, apesar do inegável
obra e pensamento adotam o adjeti- criticava os Padres, quando concluía parentesco, Calvino tinha certas res-
vo “reformadas”, e não “calvinistas”, que sua opinião dela destoava. trições. Por Martin Bucer, reformador
quando se apresentam. Essa autode- Calvino partia da premissa – como em Basiléia, Calvino foi influenciado,
signação lembra que uma igreja que Lutero – de que nos primeiros cinco sé- acima de tudo, por interpretações dos
tem por referência a Reforma protes- culos da Igreja teria inicialmente ha- evangelhos, além do ensino sobre a
tante do século XVI necessita de reno- vido um consenso doutrinário. Poste- Igreja, ministério, liturgia e disciplina
vação permanente, pautada pelo ouvir riormente, teria iniciado um processo eclesiástica.
da Palavra de Deus, exatamente como de decadência. Calvino também tinha
diz o moto: “Ecclesia reformata sem- profundo conhecimento da escolástica IHU On-Line - Quais são as principais
per reformanda”. medieval, como mostram citações li- proposições defendidas por Calvino?
terais do Livro das Sentenças de Pedro Ricardo Rieth - Calvino compreendia
IHU On-Line - Quais são as mudanças Lombardo e do Código do Direito Ca- sua contribuição intelectual como uma
que o calvinismo propõe no protes-  São Cirilo de Alexandria (c. 375- 444): pa- “teologia a caminho”. Identificou-se
triarca de Alexandria quando a cidade estava
tantismo? no topo de sua influência e poder dentro do com Santo Agostinho, que, certa vez,
Ricardo Rieth - Calvino não se carac- Império Romano. Cirilo escreveu extensiva- descreveu a si mesmo como alguém
teriza propriamente pela originalida- mente e foi o protagonista liderante nas con- que escreve a partir da progressão dos
trovérsias cristológicas do final do século IV e
de, mas muito mais pela capacidade do século V. Foi uma figura central no Primeiro pensamentos e progride no escrever.
de sistematizar em um todo orgânico Concílio de Éfeso, em 431, que levou à depo- A teologia de Calvino tem um caráter
a tradição eclesiástica oriental e oci- sição de Nestório da posição de Patriarca de fortemente determinado pela própria
Constantinopla. É listado entre os Pais e os
dental, o ensino do humanismo cris- Doutores da Igreja. (Nota da IHU On-Line) experiência. Sua obra magna, Institu-
tão renascentista e as propostas da  São João Crisóstomo (347 - 407 d. C.): teólo- tas ou Tratado da Religião Cristã, saiu
primeira geração de reformadores go e escritor cristão, Patriarca de Constantino- em primeira edição em 1536, mas foi
pla no fim do século IV e início do século V. Por
protestantes. Tinha profundo conhe- sua retórica inflamada, ficou conhecido como sistematicamente revisada e ampliada
cimento da Antiguidade e da filosofia Crisóstomo (que em grego significa “boca de por ele nos anos subsequentes, o que
clássica. Usava as publicações de Eras- ouro”. É considerado santo pelas Igrejas Or- deixa evidente esta perspectiva. Nela,
todoxa e Católica. É um dos quatro grandes
mo de Rotterdam para seu trabalho Padres da Igreja Oriental, e doutor da Igreja temos uma síntese do pensamento de
exegético. Suas obras trazem incon- Católica. (Nota da IHU On-Line) Calvino. Sua estrutura compreende
táveis citações de Padres da Igreja,  Escolástica: linha dentro da filosofia medie- 80 capítulos, distribuídos em quatro
val, de acentos notadamente cristãos, surgida
principalmente de Santo Agostinho, da necessidade de responder às exigências da livros, e alterou-se completamente
em especial quando aborda a doutrina fé, ensinada pela Igreja, considerada então até 1559, ano da última edição por
sobre a graça, a livre vontade, a elei- como a guardiã dos valores espirituais e mo- ele preparada. O primeiro livro traz a
rais de toda a Cristandade, por assim dizer,
ção e os sacramentos. De grande signi- responsável pela unidade de toda a Europa, descrição das fontes do conhecimento
 Heinrich Bullinger (1504-1575): reformador que comungava da mesma fé. Esta linha vai de Deus, aborda a revelação, o conhe-
prostestante suíço, o sucessor de Ulrico Zuín- do começo do século IX até ao fim do século cimento natural e bíblico acerca de
glio como chefe da igreja e pastor em Zurique. XVI, ou seja, até ao fim da Idade Média. Este
Por ser uma figura muito menos controversa pensamento cristão deve o seu nome às artes Deus, o dogma da Trindade e o ensino
do que João Calvino ou Martinho Lutero, a sua ensinadas na altura pelos escolásticos nas es- sobre a providência divina. O segundo
importância tem sido desde muito subestima- colas medievais. Estas artes podiam ser divi- livro centra o interesse na cristologia:
da. Uma pesquisa recente mostrou, porém, didas em Trivium (gramática, retórica e dia-
que ele foi um dos mais influentes teólogos da léctica) e Quadrivium (aritmética, geometria, encarnação, ensino sobre as duas na-
Reforma Protestante no século XVI. (Nota da astronomia e música). A escolástica resulta Notre Dame em Paris. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line) essencialmente do aprofundar da dialética.  Martin Bucer (1491-1551): reformador pro-
 Erasmo de Rotterdam (1466-1536): teólgo e (Nota da IHU On-Line) testante que influenciou Lutero, Calvino e as
humanista neerlandês. Seu principal livro foi  Pedro Lombardo (1100-1164): filósofo esco- doutrinas e práticas anglicanas. Era membro
Elogio da loucura. (Nota da IHU On-Line) lástico do século XII, professor na escola de da ordem dominicana. (Nota da IHU On-Line)

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turezas de Cristo, seu tríplice ministé- dagens desenvolvidas em distintas da carta de Calvino, não se atreveu a
rio de Cristo como profeta, sacerdote escolas de pesquisa sobre a teologia entregá-la a Lutero. Calvino escreveu:
e rei, e a unidade entre antiga e nova da Reforma ousaram empreender es- “Ao mui excelente pastor da Igreja
aliança. O terceiro tematiza a obra do tudos comparativos, dando ênfase ao cristã, Dr. M. Lutero, meu mui vene-
Espírito Santo e a vida cristã com suas lado da divergência. Assim, trabalhos rado pai”. Concluiu com as palavras:
facetas, que são o levar a cruz, a au- comparando modelos de constituição “Ah, pudesse eu escapar até vossa
tonegação, a meditação sobre a vida eclesiástica, concepções a respeito da presença, mesmo que fosse para usu-
futura, a liberdade cristã e a oração. Santa Ceia e noções acerca dos dois fruir somente algumas horas de teu
Aqui também aborda a justificação por reinos e do senhorio de Cristo merece- convívio. Pois desejaria muito conver-
graça e fé em perspectiva forense e ram lugar destacado. Com frequência, sar contigo não só sobre essa questão,
desenvolve suas compreensões sobre deixou-se de lado o grande número mas falar pessoalmente sobre todos os
predestinação e ressurreição. O quar- de aspectos convergentes entre Cal- outros assuntos. O que, porém, não é
to livro, por sua vez, é o mais detalha- vino e Lutero, dando a entender que possível na Terra, logo será possível,
do. Nele, Calvino trata da obra exter- discrepâncias e divergências seriam o eu espero, no reino de Deus. Viva
na do Espírito, o ensino sobre Igreja, decisivo e primordial. Isso muitas ve- bem, tu, homem mais que famoso, tu,
ministérios, disciplina na vida cristã zes contribuiu para que se promovesse o mais excelente servo de Cristo, para
e sacramentos. A passagem em que mim um pai constantemente conside-
discute os meios pelos quais a pessoa “Seria mais apropriado, rado. Que o Senhor continue a condu-
permanece em comunhão com Cristo zir-te com seu Espírito até o fim, para
é concluída com um parágrafo sobre portanto, falar em uma o bem comum de sua Igreja. Teu João
a autoridade, à qual é dada a tarefa Calvino.” Pena que por tanto tempo
de promover o culto exterior e prote- teocracia do conselho as atitudes de luteranos e calvinistas,
ger a doutrina correta e a posição da uns em relação aos outros, pautaram-
Igreja, que proporciona a comunhão municipal de Genebra do se pelo completo descompasso em re-
entre as pessoas. No prefácio de “Ins- lação a este espírito.
titutas”, Calvino revela a intenção de que em uma teocracia de
preparar estudantes de teologia para IHU On-Line - Que possibilidades de
a leitura da palavra de Deus. Afirma Calvino. Para entender diálogo inter-religioso se abrem a
querer ser, em primeira linha, teólogo partir do calvinismo hoje?
da Escritura. O que ensinou do púlpito o pensamento político- Ricardo Rieth - No campo das doutrinas
e da cátedra em suas aulas de exegese e ideias teológicas, Calvino se esforçou
bíblica estaria sistematizado na obra religioso de Calvino, é ao máximo pela unidade de pensamento
para auxiliar teólogos e professores e na pregação. Os religiosos de Genebra
de religião. A exegese bíblica deveria preciso ter por e cercanias tinham a obrigação, junta-
acontecer exclusivamente para o bem mente com outros membros da comu-
das pessoas na Igreja, ou seja, o tex- referência o contexto nidade, de participar toda sexta-feira,
to deveria ser interpretado em função a partir das 7 horas da manhã, de uma
da práxis eclesial. As maiores virtudes político em que ele reunião de estudos. Pela ordem, cada
de quem interpreta a Bíblia seriam a participante tinha que interpretar um
clareza e a brevidade. Como autênti- viveu” texto bíblico, sendo avaliado por todo o
co representante do humanismo bíbli- grupo. No caso de Calvino, não se tratava
co francês, trabalhava com extremo de disciplinar obsessivamente a teologia
cuidado do ponto de vista histórico e uma abordagem carente de equilíbrio e o pensamento. Considerando sua pos-
filológico. e bom senso. Mais ou menos um ano tura de um modo geral, é possível verifi-
antes da morte de Lutero, Calvino lhe car uma tensão dialética entre o esforço
IHU On-Line - Quais seriam os princi- escreveu uma carta. Pediu-lhe para por uma unidade fechada na doutrina e
pais pontos de convergência e diver- escrever “em poucas palavras” qual a abertura ecumênica. Esse segundo as-
gência entre Calvino e Lutero? sua opinião sobre os “nicodemitas” na pecto se manifestou nos diálogos religio-
Ricardo Rieth - Lutero e Calvino são França, bem como sua opinião acerca sos, dos quais Calvino participou, e na
referências fundamentais para a te- do escrito em que ele, Calvino, rejei- relação com outros reformadores, como,
ologia e o protestantismo. É natural, tava sua prática de, mesmo assumin- por exemplo, Filipe Melanchthon. Há inú-
portanto, que se busque comparar do uma consciência evangélica, seguir meros impulsos advindos do pensamento
seus legados intelectuais, buscando participando de cerimônias conforme e da prática de Calvino que encorajaram
neles elementos que justifiquem a o rito romano. Melanchthon, portador e seguem encorajando pessoas cristãs e
aproximação ou o afastamento entre  Philipp Melanchthon (1497-1560): reforma- pessoas religiosas em geral ao diálogo e
denominações surgidas por iniciati- dor alemão. Colaborador de Lutero, redigiu a a práticas ecumênicas e inter-religiosas.
Confissão de Augsburgo (1530) e converteu-se
va de seus herdeiros. Inúmeras abor- no principal líder do luteranismo após a morte
do próprio Lutero. (Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line - Calvino queria instau-
rar uma teocracia? Por quê?
Ricardo Rieth - Em geral, a atuação de
Calvino em Genebra é caracterizada
A Reforma 500 anos
pelo termo “teocracia”. No entanto,
os conflitos com o conselho municipal, depois de Calvino
especialmente na questão da prática
da disciplina na Igreja, demonstram
o quanto as autoridades municipais
Leonildo Silveira Campos matiza a percepção da Reforma e
conseguiram impor seu poder sobre a aponta a teoria da complexidade como importante para com-
Igreja e o quanto Calvino, como mem- preender seu estudo nas diferentes tradições que teve. Calvi-
bro do clero local, acabou submetido a
isso. Seria mais apropriado, portanto,
nismo e neopentecostalismo possuem várias incompatibilida-
falar em uma teocracia do conselho des, assinala
municipal de Genebra do que em uma
teocracia de Calvino. Para entender o
Por Márcia Junges
pensamento político-religioso de Cal-
vino, é preciso ter por referência o

D
contexto político em que ele viveu. O
e acordo com o ponto de vista do filósofo e teólogo Leonildo Silveira
que observamos em Genebra em rela-
ção às determinações rigorosas quanto Campos, “a Reforma não pode ser vista somente como uma guerra
à disciplina na Igreja e na moral cristã, entre católicos e protestantes. Os vários movimentos reformadores
ou então, com relação à união entre também tiveram o ‘irmão reformado’ como inimigo”. Além disso,
Igreja e Estado, não era incomum ou continua, é preciso aplicar a teoria da complexidade ao estudo das
excepcional na Europa do século XVI. reformas, o que nos auxilia a compreender e localizar cada uma das tradições
Representava, isso sim, uma tendência reformadas (luterana, zwingliana, calvinista, anglicana ou radical-anabatista)
crescente no início da era moderna. O de tensões, conflitos e diferentes propostas de reforma. Analisando possíveis
que talvez possa ser considerado inco- pontos de proximidade entre o calvinismo e o neopentecostalismo, em especí-
mum era a personalidade de Calvino, fico a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), Campos conclui que “a questão
que defendia incondicionalmente as da prosperidade não justifica uma aproximação do calvinismo com a IURD.
determinações do alto do púlpito e
Esta é uma Igreja que conseguiu assimilar elementos da religiosidade popular
perante o conselho municipal. Desen-
católica, indígena e africana, mesclando com elementos da pós-modernidade
volveu, assim, uma teologia que pri-
mava pela santificação da comunidade e de sua vertente religiosa – a Nova Era”. As declarações fazem parte da en-
de fé. Uma rápida análise da pesquisa trevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line.
especializada deixa evidente a dificul- Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
dade de rotular o conjunto de ideias Mogi das Cruzes, cursou Teologia pela Igreja Presbiteriana Independente do
político-religiosas desse reformador. Brasil. Seu mestrado e doutorado foram realizados na Universidade Metodista
Além de teocracia, fala-se em governo de São Paulo - Umesp, com a tese Teatro, templo e mercado: uma análise da
realizado a partir da Bíblia (“bibliocra- organização, rituais, marketing e eficácia comunicativa de um empreendi-
cia”), por inspiração do Espírito Santo mento neopentecostal - a Igreja Universal do Reino de Deus (Petrópolis: Vo-
(“pneumatocracia”) e pelo clero (“cle- zes, 1997). Atualmente, é professor da Umesp e da Faculdade de Teologia da
rocracia”). Em síntese, teocracia tem Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Confira a entrevista.
o sentido de governo realizado pelo
clero, e isso foi algo terminantemente
rejeitado por Calvino.
IHU On-Line - Que diferenças há en- cenário em que se deram as reformas
tre a reforma luterana e calvinista? como um objeto plural, multifaceta-
Leonildo Silveira Campos - Prefiro do e complexo. Essa visão levou Car-
não buscar inicialmente as diferenças ter Lindberg (As reformas na Europa.
Leia mais... entre o sistema luterano e o calvinis- São Leopoldo, Sinodal: 2001) a insis-
Ricardo Willy Rieth já concedeu outra en- ta no nível da teologia ou da filosofia. tir que não estamos diante de uma,
trevista à IHU On-Line. Ela está disponível na
página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br)
Tomo como ponto de partida a visão mas de várias reformas religiosas na
das ciências sociais, que privilegiam Europa recém saída da Idade Média.
* Entre a cidadania teológica e a esquizofrenia o contexto histórico e social em que A visão multifacetada do movimento
acadêmica. Notícias do Dia 24-04-2008, disponí-
vel para download em http://www.ihu.unisinos.
surgiu a Reforma (ou as reformas reformado fica ainda mais desafiadora
br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&t protestantes) no século XVI. Essa para o analista quando ele nota o surgi-
ask=detalhe&id=13419 perspectiva nos permite perceber o mento, em diversas regiões da Europa,

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de versões locais do que alguém porta- “Para ele, o acirramento pelo contrário, elas emigraram para os
dor de paradigmas simplistas pense ser movimentos revolucionários laicos.
um só movimento de reforma. Portanto, da modernidade levou Por força do ofício, estou habituado,
a teoria da complexidade, se aplicada ao nos últimos 30 anos, a olhar os fenôme-
estudo das reformas, nos ajuda na com- o protestantismo a se nos religiosos a partir de uma perspectiva
preensão e localização em cada uma das das ciências sociais aplicadas ao estudo
tradições reformadas (zwingliana, calvi- tornar uma instituição da religião. Nesse esforço, tenho privile-
nista, anglicana ou radical-anabatista) giado dois autores, entre outros, Pierre
de tensões, conflitos e diferentes pro- esvaziada do ‘princípio’ Bourdieu e Karl Mannheim. De Pierre
postas de reforma. Bourdieu (Economia das trocas simbóli-
Há também a questão da análise profético, pois, a cas. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 92)
dos movimentos reformados na linha tenho usado a teoria do campo religioso.
do tempo. Em que datas as reformas energia desencadeada Para Bourdieu, o campo é um espaço so-
começaram? Na tarefa de responder a cial marcado por conflitos e lutas entre
essa questão, paira sempre o risco do não se fixou nas agentes e instituições. Entre os diversos
que Marc Bloch (Apologia da história agentes em luta estão sacerdotes e pro-
ou ofício do historiador. Rio de Ja- instituições reformadas, fetas. Os primeiros tentam reproduzir e
neiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.56) dar continuidade à instituição tal como
chamou de “ídolo das origens”. Quan- muito pelo contrário, ela se encontra. Já os profetas estão
do por ele influenciados, pensamos comprometidos com as mudanças. Nos
poder demarcar o tempo, a data exata elas emigraram para os tempos da reforma protestante, quem
em que tais coisas tiveram o seu início. eram profetas e sacerdotes? Por que sa-
Isto quer dizer ser quase impossível movimentos cerdotes surgem mais tarde e se tornam
afirmar que os movimentos de reforma hegemônicos em movimentos marcados
protestante começaram com Lutero, revolucionários laicos” pelo dinamismo da tradição profética?
Zwinglio ou Calvino, e nem que este Para Bourdieu, um profeta na sua
ou aquele movimento terminou com luta contra os sacerdotes se baseia “na
a morte do líder que mais visibilidade Cristalização x dinamismo força do grupo que mobiliza por meio
lhe deu. Além dos líderes há os suces- e continuidade
 Pierre Bourdieu (1930 - 2002) sociólogo
sores. Todos eles contribuíram, acen- francês. De origem campesina, filósofo de for-
tuaram tendências e ajudaram a dar Nessa mesma linha de indagação, po- mação, chegou a docente na École de Socio-
rumos a um empreendimento muito demos perguntar pela tensão que sempre logie du Collège de France, instituição que o
consagrou como um dos maiores intelectuais
mais coletivo e nada pessoal. surge entre a tendência das instituições de seu tempo. Desenvolveu, ao longo de sua
pela cristalização e dos movimentos pelo vida, mais de trezentos trabalhos abordando
dinamismo e continuidade. O que acon- a questão da dominação, e é, sem dúvida,
 Zwinglianismo: movimento criado pelo pas- um dos autores mais lidos, em todo mundo,
tor reformador Huldrych Zwingli, pretendeu tece quando um movimento reformador nos campos da Antropologia e Sociologia, cuja
fazer a Igreja retornar à simplicidade original. se torna uma instituição reformada? Al- contribuição alcança as mais variadas áreas do
Caracteriza-se por um humanismo, um radica- guns reformados procuraram manter o conhecimento humano, discutindo em sua obra
lismo e também um racionalismo estranhos ao temas como educação, cultura, literatura,
luteranismo. (Nota da IHU On-Line) dinamismo colocando como meta a ex- arte, mídia, lingüística e política. Seu primei-
 Anglicanismo: também denominado como pressão ecclesia reformata semper re- ro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute
Igreja da Inglaterra, é uma igreja cristã esta- formanda. Por sua vez, Paul Tillich (A a organização social da sociedade cabila, e em
belecida oficialmente na Inglaterra e o tronco particular, como o sistema colonial interferiu
principal da Comunhão Anglicana Mundial. Fora era protestante. São Paulo: Ciências da na sociedade cabila, em suas estruturas e des-
da Inglaterra, a Igreja Anglicana é denomina- Religião, 1992) captou bem as tensões e culturação. Dirigiu, por muitos anos, a revista
da Igreja Episcopal, pricipalmente nos Estados crises da “era protestante” ao falar no Actes de la recherche en sciences sociales e
Unidos e na Austrália. (Nota da IHU On-Line) presidiu o CISIA (Comitê Internacional de Apoio
 Anabatismo: cristãos da chamada “ala radi- conflito entre “princípio protestante” aos Intelectuais Argelinos), sempre se posicio-
cal” da Reforma Protestante. São assim cha- e “instituição protestante”. Para ele, nado clara e lucidamente contra o liberalismo
mados porque os convertidos eram batizados o acirramento da modernidade levou o e a globalização. (Nota da IHU On-Line)
em idade adulta, desconsiderando o até então  Karl Mannheim (1893-1947): sociólogo ju-
batismo obrigatório da igreja romana. Assim, protestantismo a se tornar uma institui- deu nascido na Hungria. Iniciou seus estudos
re-batizavam todos os que já tivessem sido ção esvaziada do “princípio” profético, de filosofia e sociologia em Budapeste parti-
batizados em criança, crendo que o verdadei- pois, a energia desencadeada não se fi- cipando de um grupo de estudos coordenado
ro batismo só tem valor quando as pessoas se por Georg Lukács. Estudou também em Berlim,
convertem conscientemente a Cristo. (Nota da xou nas instituições reformadas, muito onde ouviu as preleções de Georg Simmel, e
IHU On-Line)  Paul Tillich (1886-1965): teólogo alemão, Paris. Em Heidelberg, onde Mannheim foi alu-
 Marc Léopold Benjamim Bloch (1886-1944): que viveu quase toda a sua vida nos EUA. Foi no do sociólogo Alfred Weber, irmão de Max
historiador francês notório por ser um dos um dos maiores teólogos protestantes do sécu- Weber, tornou-se privatdozent a partir de
fundadores da Escola dos Annales e morto pe- lo XX e autor de uma importante obra. Entre 1926. Foi professor extraordinário de sociolo-
los nazis durante a Segunda Guerra Mundial. os livros traduzidos em português, pode ser gia em Frankfurt a partir de 1930. Em 1933,
Considerado um dos maiores medievalistas de consultado Coragem de Ser (6ª ed. Editora Paz com a ascensão do nazismo Mannheim deixou a
todos os tempos. Os seus trabalhos e pesquisas e Terra, 2001) e Amor, Poder e Justiça (Edi- Alemanha para tornar-se professor da London
abriram novos horizontes nos estudos sobre o tora Cristã Novo Século, 2004). (Nota da IHU School of Economics, na Inglaterra. (Nota da
feudalismo. (Nota da IHU On-Line) On-Line) IHU On-Line)

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de sua aptidão para simbolizar em uma e uma coerência particulares, disposi- enfocar o humanismo social de Calvino,
conduta exemplar ou em um discurso ções éticas ou políticas, já presentes, (O pensamento econômico de Calvino.
os interesses propriamente religiosos de modo implícito, em todos os mem- São Paulo: Casa Editora Presbiteriana,
de leigos que ocupam uma determina- bros da classe ou do grupo de seus des- 1990) como “uma reforma integral da
da posição na estrutura social”. Apli- tinatários”. sociedade”. Para ele, o calvinismo te-
cando-se o seu pensamento à Reforma Consequentemente, Lutero e Calvi- ria se tornado uma “força permanente
protestante, Lutero, Calvino ou Zwin- no, e até certo ponto Zwinglio, diferen- de transformação política e social” ao
glio, e seus seguidores, somente deram tes de João Huss, Wycliff ou Savonaro- propor novas estruturas para a socie-
continuidade ao projeto de reforma la10, conseguiram um rápido e duradouro dade, as quais deveriam inibir e elimi-
porque as “aspirações que já existiam sucesso em seus respectivos projetos de nar as “forças destrutivas da Igreja e
antes dele(s)”, ainda que de um “modo reforma da Igreja cristã. Isto porque o da Sociedade”, entre elas o “naciona-
explícito, semiconsciente ou incons- sucesso de cada um deles se alimentou lismo religioso, a mística revolucioná-
ciente”, estavam sintonizadas com um de condições peculiares, e, com isso, ria, o militarismo e a teocracia”.
momento social adequado. produziram formas diferenciadas de pro- Para Biéler, a vida econômica e as
Nesse sentido, um profeta ou re- testantismos. Lutero atuou na Alema- reformas sociais propostas por Calvino
formador é um “indivíduo isolado, sem nha; era fiel aos príncipes que o apoia- desafiavam a atuação da Igreja em uma
passado, destituído de qualquer caução ram politicamente; refletia concepções reforma integral da sociedade no senti-
a não ser ele mesmo”, agindo sobre a teológicas mais adaptadas a um mundo do político, social, econômico e espiri-
realidade com uma “força organizadora marcadamente camponês. Enquanto tual. Essa atuação implicava no estabe-
e mobilizadora”. É dessa forma que um isso, Calvino mantinha suas ligações lecimento de regras para a produção da
movimento profético dá origem a uma com o mundo capitalista que estava se riqueza, no atendimento dos pobres, na
nova forma de composição no cenário iniciando; tinha como cenário a cidade- distribuição equitativa dos bens entre
religioso ou político. Também é por tais estado Genebra, com um governo repre- ricos e pobres. Insistia também Calvino
motivos que cada um desses reforma- sentativo, no qual ele era a “eminência que a propriedade deveria ser defendida
dores, ao questionar a organização reli- parda” e que se tornaria um sistema do furto, cabendo ao Estado uma função
giosa a qual pertence, dela recebe des- político ideal para a democracia ociden- reguladora da economia, da ordem ju-
prezo e oposição. Isto porque, segundo tal. Calvino se preocupou com questões rídica, do comércio, da propriedade e
Bourdieu (p.93), “a empresa burocrática econômicas, sugerindo normas sobre a da escravidão. Por isso mesmo, a ativi-
de salvação é incondicionalmente hostil riqueza, posses, comércio, organização dade dos banqueiros, dos mercadores,
ao carisma ‘pessoal’, isto é, profético, política da cidade, baseado em uma dos que emprestavam dinheiro a juros,
místico ou extático”. No caso dos refor- preocupação humanista com as pessoas e as relações entre devedores e credo-
madores, o carisma pessoal pode ser vis- destituídas de recursos econômicos. Ao res recebiam uma atenção especial nas
to como um fator capaz de perturbar a contrário de Lutero, e dos teólogos ca- ordenanças e na reflexão teológica de
ordem eclesiástica, mas a sua continui- tólicos medievais, Calvino via o lucro de Calvino.
dade dependeu essencialmente do apoio uma forma positiva. Talvez algumas das diferenças en-
recebido dos leigos. A proposta de reforma de Calvino tre a proposta reformadora de Lutero
foi considerada por André Biéler,11 um e a de Calvino tenham sido bem cap-
Lendo os sinais dos tempos dos maiores especialistas na França a tadas por R. H. Tawney12 (A religião
 Jan Hus (1369-1415): pensador e reformador e o surgimento do capitalismo. São
Mas, um reformador incomoda religioso. Iniciou um movimento religioso ba- Paulo: Perspectiva, 1971, p.109): “o
quando “pretende indicar um cami- seado nas ideias de John Wycliffe. Os seu se- Calvinismo foi uma força ativa e ra-
guidores ficaram conhecidos como os Hussitas.
nho original em direção a Deus” dife- A igreja católica não perdoou tais rebeliões dical. Era um credo que buscava não
rente do que tem sido proposto pela e ele foi excomungado em 1410. Condenado somente purificar o indivíduo, mas
instituição religiosa. Mas, por que uns pelo Concílio de Constança, foi queimado vivo. ainda reconstruir a Igreja e o Estado,
(Nota da IHU On-Line)
tem sucesso onde outros fracassaram?  John Wycliffe (1320-1384); teólogo e refor- e renovar a sociedade, permeando to-
Ora, Lutero e Calvino tiveram suces- mador religioso inglês, considerado precursor dos os setores da vida, tanto públicos
so nessa empreitada justamente onde das reformas religiosas que sacudiram a Euro- como privados, com a influência da re-
pa nos séculos XV e XVI. Trabalhou na primeira
outros anteriormente nada consegui- tradução da Bíblia para o idioma inglês, que ligião”. Lutero teria sido mais místico,
ram. O segredo do sucesso foi porque ficou conhecida como a Bíblia de Wycliffe. submisso aos poderes políticos, ligado
eles conseguiram conciliar a demanda (Nota da IHU On-Line) às questões microeconômicas do mun-
10 Girolamo Savonarola (1452-1498): também
popular nas regiões em que atuaram conhecido como Jerônimo Savonarola ou Hie- do rural e da pequena cidade. Enquan-
com uma proposta de reformulação da ronymous Savonarola, foi um padre dominica- to Calvino e seus seguidores, segundo
visão religiosa de mundo por parte dos no e, por curto período, governou Florença. Tawney (p.110) abordaram a realidade
Reformador dominicano, era um intelectual
leigos. Para Bourdieu (p.94), é esta muito talentoso e devotado a seus estudos, como “homens de negócios”, enraiza-
capacidade de ler os sinais dos tem- em especial à filosofia e à medicina. (Nota da dos numa realidade urbana. Daí o sur-
pos que tornam “um determinado in- IHU On-Line) gimento de teologias diferentes, pois,
11 André Biéler (1914-2006): teólogo suíço,
divíduo (...) socialmente predisposto professor nas Universidades de Genebra e Lau- 12 Richard Henry Tawney (1880-1962): histo-
a sentir e a exprimir, com uma força sanne. (Nota da IHU On-Line). riador inglês. (Nota da IHU On-Line)

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refletiam relações e molduras sócio- tantismo e repressão. São Paulo: Áti-
econômicas diferenciadas.
“Ser um ‘abençoado ca, 1979) usou Ernst Troeltsch15 para
apontar para a continuidade de certa
IHU On-Line - Que comemorações mar-
filho de Deus’ é ser um tradição inquisitorial que nasceu entre
caram o quinto centenário de Calvino calvinistas e se aninhou no interior de
e qual foi o significado dessa “redesco-
consumidor de todos os brasileiros que ele classificou como
berta” de Calvino por parte deles? defensores do “protestantismo da reta
Leonildo Silveira Campos - Neste ano
bens materiais que doutrina”. Essa tentação inquisitorial
de 2009, presbiterianos e reformados levou Alves a duvidar que Calvino te-
do mundo todo, sob a liderança da
foram, segundo a IURD, nha deixado um legado inteiramente
Aliança Reformada Mundial, com sede democrático e liberal. Nos meios pro-
em Genebra, comemoraram o quinto
colocados à disposição testantes brasileiros, explodiu uma
centenário do nascimento de João Cal- “inquisição sem fogueiras”, especial-
vino (1509-1564). Os reformados, 75
dos autênticos filhos de mente nos anos da Ditadura Militar
milhões no mundo, relembraram que (1964-1985).
Calvino, para fugir das perseguições
Deus”
movidas na França aos huguenotes,13 IHU On-Line - Como se deu o diálogo
se estabeleceu em Genebra (1536), nas palavras “Renascimento” e “Hu- entre os próprios protestantes e até
onde iniciou uma reforma religiosa e manismo”. onde ele foi possível?
social que iria atingir outras partes A cristandade, especialmente a Leonildo Silveira Campos - O protes-
da Europa, especialmente a Inglater- que se originou na reforma protes- tantismo nasceu do rompimento do
ra, Escócia, os Países Baixos, a Fran- tante, deve ser vista como um campo diálogo com o catolicismo romano.
ça e, mais tarde, os Estados Unidos. de batalha. Este é um outro conceito Seria natural, portanto, pensarmos
No ano anterior, em Basiléia, Calvino que temos tomado de Pierre Bourdieu, que a tendência seria surgir entre os
com apenas 26 anos de idade, escre- para quem o espaço religioso é marca- reformados o sentimento de serem
veu o mais completo texto de teologia do por lutas. Nele, os agentes sempre eles membros de um só corpo e por-
protestante do século XVI, A institui- se encontram divididos e em situação tadores de uma só doutrina. Porém,
ção da religião cristã, mais conhecida de conflito. Os reformados nunca esti- nada mais distante da realidade. O
como Institutas. Ao longo de sua vida, veram fora dessa regra. Eles lutavam movimento reformado optou por um
não muito longa, Calvino conseguiu contra o catolicismo, mas também modelo oposto ao de centrifugação.
plasmar Genebra de uma forma tal contra as diversas versões de protes- Em suas respectivas trajetórias de ex-
que fez com ela se tornasse a cidade tantismos que foram surgindo nas dé- pansão quanto mais distante do centro
cosmopolita, internacional e de maio- cadas e séculos posteriores a Lutero. irradiador, mais mudanças e transfor-
ria católica que é nos dias de hoje. As guerras religiosas custaram a vida mações. Somente no final do século
Ainda hoje a Catedral de São Pedro é o de Zwinglio, que morreu em um campo XIX e primeira metade do século XX é
lugar em que as autoridades da cidade de batalha, e de milhares de católicos que certas parcelas do protestantismo
tomam posse de seus respectivos man- e protestantes no decorrer do século optariam pelo diálogo interno e com a
datos políticos. da Reforma e da Contra Reforma Cató- Igreja Católica.
No Brasil, as igrejas presbiteria- lica. Mas a Reforma não pode ser vista Não se podia, portanto, imaginar
nas realizaram celebrações em várias somente como uma guerra entre cató- que as teologias pudessem ajudar no
datas e lugares. Em Genebra, houve licos e protestantes. Os vários movi- diálogo dos protestantes entre si. Os
uma grande concentração, para onde mentos reformadores também tiveram dogmáticos e inquisidores, tal como
líderes de centenas de igrejas presbi- o “irmão reformado” como inimigo. A aponta Rubem Alves, não conseguem
terianas e reformadas se dirigiram. A revolta dos camponeses (1525) deixou imaginar uma situação em que o diálo-
reforma de Genebra, que iniciou antes isso bem claro e foi esmagada com o go seja uma forma de aprendizagem.
de Calvino e foi reforçada com a sua apoio de Lutero, amigo dos príncipes. Os que se sentem donos da verdade
chegada à cidade em 1536, não deve Calvino, por sua vez, agiu com mão não se interessam por qualquer tipo
ser vista como um fato independente de ferro contra os hereges, entre eles de diálogo. O objetivo de qualquer
ou isolado de outras reformas e movi- Miguel Serveto.14 Rubem Alves (Protes- encontro fundamentado na polêmica
mentos que estavam acontecendo na 14 Miguel Serveto (1511-1553): teólogo, médi- é levar o adversário ao chão, e não a
co e filósofo aragonês, humanista, interessan-
Europa. Desde 1517, na Alemanha com do-se por assuntos como astronomia, meteoro- Calvino. (Nota da IHU On-Line)
Lutero, e na Suíça com Zwinglio, a par- logia, geografia, jurisprudência, matemática, 15 Ernst Troeltsch (1865-1923): teólogo ale-
tir de 1525, havia um pipocar de refor- anatomia, estudos bíblicos e medicina. Servet mão protestante, escritor de tratados de filo-
foi o primeiro a descrever a circulação pul- sofia da religião e filosofia da história, além de
mas, estimuladas por uma mudança de monar. Participou da Reforma Protestante e, influente figura no pensamento do seu país de-
mentalidade e de cultura, sintetizadas posteriormente, desenvolveu uma cristologia pois de 1914. Seu trabalho era uma síntese de
13 Huguenote: denominação dada aos pro- não-trinitariana. Condenado por católicos e um número de ideias desenhadas por Albrecht
testantes franceses (quase sempre calvinis- protestantes, ele foi preso em Genebra e quei- Ritschl, concepções de Max Weber sobre socio-
tas) pelos seus inimigos nos séculos XVI e XVII. mado na fogueira como um herege por ordem logia e dos neokantianos da Escola de Baden.
(Nota da IHU On-Line) do Conselho de Genebra, presidido por João (Nota da IHU On-Line)

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aprender algo com ele. Por exemplo, examinar trajetórias e histórias de No caso do calvinismo, os sonhos, an-
Lutero, Zwinglio e seus seguidores vida de alguns personagens escolhidos seios, desejos e sofrimento das pesso-
debateram longamente a respeito da como os mais representativos de um as de sua época podem ser acessados
Eucaristia ou da Santa Ceia. A discus- determinado movimento. É claro que por meio da análise de seus textos.
são era se Cristo estava presente na essa tarefa corre o risco de não atin- Nos livros de Calvino, há sistematiza-
celebração ou se tudo aquilo não pas- gir o seu objetivo. Especialmente se o ção teológica, ordenanças civis e ecle-
sava de um símbolo conforme queria pesquisador se entregar a uma histo- siásticas, comentários bíblicos e litur-
Zwinglio. Lutero acusava Zwinglio de riografia que valorize apenas os “he- gias. Mas, antes de serem escritos de
defender uma heresia já condenada róis”, esquecendo-se das forças histó- Calvino, tais documentos devem ser
no passado – a posição nestoriana a ricas ou sociais que plasmaram essas vistos como fragmentos da vida coti-
respeito da natureza humana e divina biografias e lideranças. Ora, são tais diana de perseguidos político-religio-
de Jesus. Somavam-se a isso diferen- forças que os levaram a uma sintonia sos da França, que se refugiaram em
ças entre os reformadores quanto à com as aspirações, desejos e necessi- Genebra. Eles podem nos revelar mais
presença da arte, especialmente da dades de um conjunto de indivíduos do que o simples exame das formula-
música no culto reformado. situados em uma determinada época ções doutrinárias da própria Confissão
Já calvinistas e luteranos se opuse- e lugar. Parece-me ser esse um dos ris- de Fé de Westminster (preparada por
ram aos anabatistas em relação ao ba- cos que correm muitos dos “filhos de uma assembleia entre 1643-46) para
tismo infantil, admitindo como válido Calvino” neste ano de comemoração subsidiar a unificação entre o protes-
somente o batismo por imersão. Por do quinto centenário de seu nascimen- tantismo escocês e o inglês.
sua vez, Zwinglio considerava os ana- to. Nas publicações empenhadas nessa Calvino pode ser visto como a pon-
batistas adversários do governo suíço comemoração várias releituras foram ta de um iceberg capaz de demarcar as
instituído por causa da recusa deles feitas de Calvino. Há uma expressão fronteiras do pensamento teológico em
em fazer juramento, de pagar impos- muito conhecida dos historiadores, um momento histórico de turbilhão re-
tos e em participar do serviço militar, não me lembro se de Croce ou de Marc ligioso. Consequentemente, quando da
elementos básicos da cidadania. Aliás, Bloch: “o homem é muito mais filho de origem e expansão de seus respectivos
as opiniões de calvinistas e luteranos seu tempo do que de seus pais”. Como movimentos, um biografado age como se
se dividiam quanto às formas de se re- chegar ao tempo da reforma protes- fosse uma “boia viva” que flutua em um
lacionar com a sociedade politicamen- tante do século XVI através de um mar agitado. Calvino, no entanto, pode
te organizada. Harro Höpfl (Sobre a estudo de um de seus filhos? Que es- ser visto assim nesse contexto em que
autoridade secular. São Paulo: Martins tudo pode ser feito das contribuições um líder é adotado por milhares de pes-
Fontes, 2005) reuniu e comentou dois dos filhos (de Calvino, por exemplo) à soas em processo coletivo de recomposi-
dos textos mais famosos de Calvino e obra e pensamento de seus pais? Não ção de crenças e práticas quase sempre
de Lutero: “Sobre o governo civil”, do teria Max Weber16 relacionado muito opostas às principais receitas monopo-
primeiro, e “Sobre a autoridade se- mais “a ética protestante” dos calvi- lizadas pelas igrejas e movimentos de
cular” do segundo. O grande desafio nistas do século XVII com o “espírito onde saíram, foram expulsos ou para
para os reformadores protestantes era do capitalismo” do que o pensamento elas nunca mais voltariam. Assim ocor-
conciliar o que era entendido como a do próprio Calvino? reu com o surgimento de denominações
“vontade de Deus exposta nas Escri- O método biográfico aplicado a cristãs na Inglaterra e nas colônias ingle-
turas” com os desafios da ordenação João Calvino tem muita utilidade na sas da América do Norte, no século XVII.
política da sociedade europeia. reconstrução de uma determinada Em suma, Calvino, Lutero, John Knox17 e
sociedade ou grupo social a partir do outros são mais do que líderes historica-
IHU On-Line - Que metodologia pode- testemunho dele e de seus seguidores. mente datáveis, são personalidades cor-
se usar para o estudo das reformas porativas, isto é, pessoas que encarna-
16 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão,
protestantes do século XVI? considerado um dos fundadores da Sociologia.
ram determinados anseios e demandas
Leonildo Silveira Campos - A historio- Ética protestante e o espírito do capitalismo culturais e históricas.
grafia atual tem desconfiado do em- (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004)
é uma das suas mais conhecidas e importantes
prego do método biográfico no estudo obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedi-
IHU On-Line - Que outras contribui-
da história e da teologia da reforma. cou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004, inti- ções as ciências sociais podem ofe-
No contexto desse marco teórico, não tulada Max Weber. A ética protestante e o espí- recer para o estudo da teologia de
rito do capitalismo 100 anos depois, disponível
se deve valorizar muito cada um dos para download em http://www.unisinos.br/
Calvino e para o seu diálogo com a
reformadores. Essa tendência meto- ihuonline/uploads/edicoes/1158261116pdf. modernidade?
dológica evoluiu para uma historiogra- pdf. De Max Weber o IHU publicou o Cader- Leonildo Silveira Campos - Além da
nos IHU em Formação nº 3, 2005, chamado
fia totalmente avessa ao estudo dos Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10-
contribuição de Bourdieu, tenho, à
“grandes heróis”. Porém, para mim, 11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci semelhança de meu mestre e orienta-
esse é um recurso que ao ser usado ministrou a conferência de encerramento do
I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da 17 John Knox (1514-1572): religioso reforma-
com cuidado pode oferecer ganhos Economia, promovido pelo IHU, intitulada Re- dor escocês que liderou uma reforma religiosa
para os historiadores interessados em lações e implicações da ética protestante para na Escócia segundo a linha calvinista. (Nota da
o capitalismo. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line)

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dor Antonio Gouvêa Mendonça (1922- na América do Norte e de lá trazidos por testantismo que experimenta um longo
2007), me reportado aos escritos de missionários norte-americanos ao Brasil processo de aclimatação tende, em es-
Karl Mannheim (Ideologia e utopia. no século XIX. pecial na América Latina, para a pen-
Porto Alegre: Editora Globo, 1954) a tecostalização e assimilação de valores
respeito das conexões entre o pensa- Crise do protestantismo histórico da cultura religiosa católica, indígena e
mento e o contexto social onde ele é africana.
produzido. Dele deduzo que não con- As ideias, sistemas de pensamento O culto racional calvinista, a ênfase
seguimos compreender bem determi- e formas de se entender as relações na doutrina da predestinação, o sistema
nados modos de pensamento, inclusive entre Deus e a sociedade humana não representativo de governo, tem se tor-
o teológico, enquanto permanecerem são impunemente transferidas de um nado muito mais uma realidade virtual
“obscuras as suas origens sociais”. Para contexto cultural para outro sem mo- no presbiterianismo brasileiro e latino-
Mannheim “o pensamento humano nas- dificações. Não há esse elemento imu- americano. O culto presbiteriano recebe
ce e opera, não num vácuo social, mas tável que os fundamentalistas chamam uma enorme pressão da improvisação
num meio social definido” (p.74). Por- de “uma fé que uma vez foi dada aos e do espontâneo jeito pentecostal de
tanto, o pensamento não está divor- santos” como num depósito incorrup- cultuar a divindade. Há uma absorção
ciado do contexto social. Muito pelo tível. Esse tesouro “puro” é uma mera do racional pelo lúdico e, em especial,
contrário, ele deve ser compreendido abstração intelectual que não condiz pelo “louvorzão” (uma forma de cânti-
“dentro da moldura concreta de uma com a realidade sócio-cultural vivida cos liderados por jovens devidamente
situação histórico-social” (p.3). Logo, pelo ser humano. equipados de tecnologias novas em que
mudanças e transformações na base Finalmente, as ciências sociais podem a congregação toda participa durante 30
social em que o pensamento se aninha ou 40 minutos, com palmas e gingar de
acarretam um esgarçamento da lógica corpos, a som de guitarras e baterias).
ou das relações coerentes entre pen- “A teologia de Calvino O governo representativo, menina dos
samento e sociedade. olhos de Calvino, distancia-se do desejo
Ora, todo período de crise social, está muito longe disso. da congregação, cujos membros afirmam
econômica e cultural é momento de que “não pensam como os presbíteros
desgaste para sistemas religiosos, as- O homem é corrupto, a membros do Conselho administrativo lo-
sim como oportunidade para o surgi- cal”. Pastores calvinistas imitam bispos
mento de profetas, reformadores ou maldade tomou conta pentecostais e católicos, no exercício do
líderes messiânicos. Eles são pessoas poder eclesiástico, assimilando poderes
que conseguem transcender o momen- dele desde que nasceu. próprios de uma liderança episcopal ou
to histórico, e buscam apoio nas massas carismática.
que poderão segui-los nesse processo Daí a necessidade de Tenho trabalhado com o pressuposto
de contestação da ordem estabeleci- que as ciências sociais nos ajudam a en-
da. Assim ocorreu com os reformado- buscar a graça e a fé para tender as precariedades do protestantis-
res ao tentarem superar a situação de mo brasileiro, em especial, o de tradição
crise, produzindo “experiências, ações corrigir essa tendência calvinista. Se o critério for crescimento,
e modos de pensamento” que somente sucesso no mercado, o presbiterianismo,
se tornaram um sucesso “em certos lu- crônica para o mal” portador de uma “herança calvinista”
gares e épocas” (p. 126). que participava em 34% do grupo de
É curioso, todavia, pensar na força evangélicos em 1930, passou para 7,2%
de sistemas teológicos e religiosos em nos ajudar na compreensão da chamada em 1964. Os pentecostais, que eram
outros lugares distantes de onde surgi- “crise do protestantismo histórico”, tam- 9,5% do total de evangélicos em 1930,
ram. Sobre isso há necessidade de maio- bém encarada por lentes diferenciadas tornaram-se 77,9% no Censo Demográfi-
res considerações. Porém, basta-nos em função do cenário religioso em que co do ano 2000. A síndrome do decrésci-
lembrar que a propagação missionária tal crise é percebida. Na Europa, Jean- mo está minando o que foi chamado, em
de um sistema religioso e de pensamen- Paul Willaime (La précarité protestante certa época, como a “forma de ser pres-
to se dá por meio de um processo de hi- – Sociologie du protestantisme contem- biteriano” no Brasil e América Latina.
bridização cultural que nunca pode ser porain. Geneve: Labor & Fides, 1992) Acredito que, nesse cenário, o presbite-
descartado. Em outras palavras, nunca tem analisado essa crise à luz do fenô- rianismo que irá crescer em nosso país
recebemos e inserimos em um novo con- meno da secularização, da falta de uma não será o herdeiro de Calvino. Haverá
texto certas ideias e formas de religiosi- vitalidade que provoque o renascimento um salto de qualidade e restarão apenas
dade sem o aparecimento de fenômenos e a superação de uma nítida tendência pequenos grupos calvinistas conservado-
como sincretismo ou do hibridismo. Sen- para a decadência e esvaziamento. O res e radicais de um lado e pseudos-cal-
do assim, um é o calvinismo de Genebra, fundamentalismo e o ecumenismo apa- vinistas pentecostalizados de outro.
outro de John Knox na Escócia, outro recem como pólos opostos de tentativas
que resultou da fixação dos peregrinos de revitalização. Já na América, o pro- IHU On-Line - Quais seriam os pos-

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síveis pontos comuns entre o calvi- curioso que, apesar de defendida ardo- da fé que está dentro do próprio indi-
nismo e o neopentecostalismo, em rosamente por poucos, combatida por víduo, o que faz dele um portador de
especial da Igreja Universal do Reino muitos, o público de um modo geral se um fragmento de Deus.
de Deus? esqueceu de Sombart20 ou das questões A teologia de Calvino está muito lon-
Leonildo Silveira Campos - A Igreja Uni- levantadas por R.H. Twney, e a tese de ge disso. O homem é corrupto, a malda-
versal do Reino de Deus (IURD),18 que te- Max Weber continua sendo discutida. de tomou conta dele desde que nasceu.
nho estudado e acompanhado há quase A IURD, diferente do calvinismo, pre- Daí a necessidade de buscar a graça e
três décadas, somente no que se rela- ga o livre arbítrio, condena a predestina- a fé para corrigir essa tendência crônica
ciona à “teologia da prosperidade” pode ção como uma heresia criada por Santo para o mal. Para Calvino, é de um Deus
parecer ter alguma relação com o calvi- Agostinho e não atrai fiéis com o espírito totalmente soberano que provém o cha-
nismo. Max Weber (A ética protestante de disciplina próprio dos puritanos ingle- mado ou a vocação para um indivíduo se
e o “espírito” do capitalismo, Edição ses de origem calvinista. O carro-chefe integrar no time dos salvos. A salvação
de Antonio Flávio Pierucci,19 São Paulo. da pregação iurdiana é uma filosofia vem da aceitação do chamado irresistí-
Companhia Das Letras: 2004) chamou a também presente em outros movimentos vel. Não depende, portanto, de algo que
atenção para o espírito de disciplina tra- religiosos não-cristãos, como, por exem- já esteja dentro do ser humano à espe-
zido pelo calvinismo, que gerou pessoas plo, em religiões orientais do tipo da ra de um despertamento. Não há nada
interessadas em multiplicar o seu capital Seicho-no-ie, ou nos que pregam a força mais herético para Macedo do que esse
por meio de um trabalho no mundo se- da mente sobre a organização da vida fi- “monstruoso ensinamento”.
cular, semelhante ao trabalho do monge nanceira das pessoas. Lair Ribeiro21 seria No que se relaciona à administração
em um convento. A riqueza acumulada um bom exemplo laico de praticante e da Igreja, a IURD é praticante do sistema
passou a ser um sinal da eficiência da pregador da filosofia da prosperidade. episcopal de governo. Tudo está atrelado
vocação e de que a predestinação esta- Na IURD, a busca da prosperidade é a uma centralização e uma verticaliza-
va evidenciada. Essa tese despertou um para garantir que alguém é filho de um ção do exercício do poder eclesiástico.
enorme debate nestes últimos 105 anos “Deus rico” e que não admite ter filhos Em entrevista a nós, em 1994, o então
da publicação da primeira versão daque- pobres. O dinheiro (segundo Macedo,22 porta-voz da teologia da IURD, o faleci-
le ensaio de Weber. é o “sangue da Igreja”) a ser conquis- do pastor J.Cabral, nos afirmou que Edir
Não vem ao caso agora explorar em tado, mesmo à custa da fidelidade a Macedo é mais obedecido na sua Igreja
profundidade a tese weberiana. Mas é um Deus presumivelmente rico, é a do que o Papa na Igreja Católica. Os bis-
chave para a entrada numa sociedade pos exercem um papel subalterno em
18 Igreja Universal do Reino de Deus (IURD):
igreja cristã protestante, de tendêcia pente- afluente onde somente o TER bens é o relação a Macedo e os pastores àqueles.
costal, fundada no Brasil. Sobre o tema, confira que vale. Estar fora da sociedade de Aos fiéis reunidos (uma massa apenas)
a edição 36 do Cadernos IHU Ideias, intitulada consumo, dirigida pelas leis do merca- não se permite nenhuma organização
Igreja Universal do Reino de Deus no contexto
do emergente mercado religioso brasileiro: do, é estar fora de uma relação com ou escolha de seus representantes em
uma análise antropológica, disponível para do- Deus. Portanto, a conversão envolve algum tipo de governo. Da eclesiologia
wnload em http://www.ihu.unisinos.br/uplo- o redirecionamento da vida financei- calvinista nada há que se assemelhe à
ads/publicacoes/edicoes/1158330917.43pdf.
pdf. Confira, ainda, a entrevista Neopenten- ra. Porém, insistimos, o dinheiro não é eclesiologia da IURD.
costais e religiões afro-brasileiras. Uma guer- para ficar parado ou para ser reinves- No calvinismo, há uma possibilida-
ra instituída?, com Vagner Gonçalves da Silva, tido no sistema que irá produzir mais de de se mudarem as coisas no interior
publicada em 14-04-2009, nas Notícias do Dia
do IHU, disponível para download em http:// dinheiro para o fiel. Ser um “abençoa- de uma Igreja presbiteriana qualquer.
www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_ do filho de Deus” é ser um consumidor Isso através dos “meios competentes”,
noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21274. de todos os bens materiais que foram, isto é, por meio da Assembleia e do
Leia, também, a entrevista com Toni André
Scharlau Vieira, A compra da Guaíba e do Cor- segundo a IURD, colocados à disposi- Conselho local, dos Concílios regionais
reio do Povo pela IURD, publicada em 16-03- ção dos autênticos filhos de Deus. Daí (presbitérios) ou dos Sínodos ou As-
2007, disponível em http://www.ihu.unisinos. a pregação da autoestima, da crença sembleia Geral (de caráter nacional,
br/index.php?option=com_noticias&Itemid=
18&task=detalhe&id=5696. (Nota da IHU On-
��������� em suas potencialidades, do despertar às vezes, chamado pomposamente de
Line) 20 Werner Sombart (1863-1941): sociólogo e Supremo Concílio). Qual é a possibili-
19 Antônio Flávio de Oliveira Pierucci: soci- economista alemão, que influenciou nas ideias dade que alguém ou algum grupo tem
ólogo brasileiro. É professor titular do Depar- de Weber. (Nota da IHU On-Line)
tamento de Sociologia da Universidade de São 21 Lair Ribeiro: escritor, conferencista e pa- de propor mudanças na IURD?
Paulo (USP). Concedeu a entrevista intitulada lestrante motivacional brasileiro que durante A minha conclusão é que a ques-
Em defesa da pluralidade e da multicausalida- muitos anos atuou como médico cardiologista. tão da prosperidade não justifica uma
de, sobre Max Weber, ao IHU On-Line n.º 101, Tem diversos livros, artigos, vídeos e audios na
de 17-04-2004, disponível para download em área da Programação Neurolinguística (PNL). aproximação do calvinismo com a
http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/ (Nota da IHU On-Line) IURD. Esta é uma Igreja que conseguiu
edicoes/1158261116pdf.pdf. Dele, também 22 Edir Macedo Bezerra (1945): empresário assimilar elementos da religiosidade
publicamos o artigo O retrovisor polonês na e religioso brasileiro, fundador da Igreja Uni-
IHU On-Line n.º 136, de 11-04- 2005. Em 2005 versal do Reino de Deus (IURD), e proprietário popular católica, indígena e africana,
proferiu a conferência de encerramento do I da Rede Record de Televisão. Promotora e de- mesclando com elementos da pós-mo-
Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da fensora da Teologia da Prosperidade, a IURD dernidade e de sua vertente religiosa
Economia, intitulada Relações e implicações cresceu e tornou-se a quarta maior corrente
da ética protestante para o capitalismo. (Nota religiosa do país, segundo o Censo de 2000. – a Nova Era.
da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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Para Calvino, a eleição divina independe até mesmo da fé
Traduzida para o português em dois tomos, A instituição da religião cristã possuía
estilo próprio, diferente daquele marcante nas obras de Teologia da Idade Média,
acentua Carlos Eduardo de Oliveira

Por Márcia Junges

“A
Instituição da religião cristã é uma obra apologética composta por um estilo pró-
prio, profundamente diverso daquele que marcou as principais obras teológicas
da Idade Média. Como pano de fundo de seu trabalho, Calvino apoia-se, sobre-
tudo, na sucessão de citações de várias passagens das Escrituras retoricamente
apoiadas, principalmente, pela explanação de textos patrísticos”. A afirmação é
do filósofo Carlos Eduardo Oliveira, na entrevista que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Um dos
tradutores de A instituição da religião cristã (São Paulo: Editora UNESP, 2008, Tomo I, Livros I e II),
junto dos pesquisadores José Carlos Estêvão, Ilunga Kabebgele, Elaine Cristine Sartorelli e Omayr
José de Moraes Júnior, ele diz que, quanto ao conteúdo dessa obra, “o adversário é facilmente iden-
tificado: os abusos da Igreja de sua época, apontados por Calvino como uma decorrência do mau uso
e compreensão da tradição cristã nos quais amplamente teria incorrido a ‘escolástica’”. O pesquisa-
dor fala, ainda, sobre a força conferida à teologia de Calvino através da obra de Max Weber, A ética
protestante e o espírito do capitalismo. “Muito mal resumidamente, poderíamos dizer que Weber
defende que os calvinistas acabaram em algum momento por identificar o sucesso econômico como
um sinal da eleição divina, e que isto teria, de algum modo, contribuído na história da evolução do ca-
pitalismo”. As proximidades e diferenças entre Calvino e Ockham são outro tema dessa entrevista.
Graduado em Filosofia pelas Faculdades Associadas do Ipiranga, é mestre e doutor em Filosofia
pela Universidade de São Paulo (USP) com a tese A Realidade e seus Signos: as proposições sobre
o futuro contingente e a predestinação divina na lógica de Guilherme de Ockham. É professor da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) no Centro de Educação e Ciências Humanas. Confira a
entrevista.

IHU On-Line - Quais foram os princi- acadêmico como o possível delinea- humanidades em geral.
pais desafios em traduzir A institui- mento de um projeto um pouco mais O responsável por reunir as pesso-
ção da religião cristã, de Calvino? ambicioso. Por um lado, a proposta as que poderiam corresponder a este
Carlos Eduardo Oliveira - Quando nos da editora era a de que fosse levada perfil foi o professor José Carlos Estê-
foi proposta, a tradução da Instituição a cabo uma nova tradução que pudes- vão, professor de História da Filosofia
da Religião Cristã de João Calvino não se ser apresentada não apenas como Medieval no Departamento de Filoso-
foi nada menos que uma boa provoca- legível ou correta – uma vez que já fia da USP. Além de montar a equipe
ção. Atendendo a uma solicitação que, havia em português uma tradução de tradutores e ele próprio contribuir
embora curiosamente tenha partido de para este livro –, mas como um tra- ativamente na tradução do primeiro
fora da Universidade, dizia respeito a balho que também levasse em conta a dos dois volumes do texto de Calvi-
um texto de reconhecida importância tecnicidade do vocabulário emprega- no, publicados pela editora da Unesp
na academia, a editora da Unesp apre- do pelo autor bem como o seu refe- (equivalentes aos livros I e II da “Ins-
sentou o pedido de que fosse feita a rencial teórico. Concomitantemente,  José Carlos Estêvão: doutor em Filosofia
tradução desta obra de Calvino tendo propunha-se a tarefa de tentar reunir, pela USP, onde é professor. É membro fundador
em vista algo que contemplasse tanto a partir desta tradução, um conjunto do Centro de Estudos de Filosofia Patrísitica e
Medieval de São Paulo - CEPAME. Trabalha com
as exigências próprias de um trabalho de tradutores que, depois, pudessem Filosofia, com ênfase em História da Filosofia,
 Confira, também, o recém lançado A ins- ser envolvidos em outros projetos de em especial com os seguintes temas e autores:
tituição da religião cristã (São Paulo: Editora tradução de textos latinos relevantes o nominalismo medival, Pedro Abelardo e Gui-
UNESP, 2009, Tomo II, 508 p.), traduzido por lherme de Ockham, e o pensamento político
Omayr José de Moraes Júnior e Elaine C. Sar- tanto para a área de filosofia como de de Tomás de Aquino e Agostinho de Hipona.
torelli. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line)

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tituição”), ele foi também o principal “O que há de concreto co a partir do qual o texto está sendo
revisor e assessor para as questões escrito são ameaças constantes à rea-
técnicas e propriamente teóricas do entre Calvino e a filosofia lização da tradução, e os motivos mais
texto apresentado neste tomo. Assim, frequentes de um possível insucesso. É
no final, o primeiro volume da tradu- ockhamiana não parece nesse sentido que não é nada despro-
ção acabou sendo feito por uma equi- positado o ditado de que todo tradutor
pe que mesclou tanto especialistas em ir além de uma relação não é senão um traidor...
filosofia medieval (o próprio professor
Estevão e eu) como contou com a co- de profunda antipatia. Demandas acadêmica e comercial
laboração de especialistas em língua
latina, como o professor Ilunga Kaben- As poucas referências No caso de Calvino, especificamen-
gele, especialista em letras clássicas te, foi preciso, além disso, que apren-
(latim). Outro ponto interessante foi feitas a Ockham por dêssemos quando seus textos faziam
a preocupação de agregar novos for- referência a uma certa tradição de
mandos que poderiam vir a se dedicar Calvino no segundo livro debates, fato nem sempre evidente.
a este tipo de trabalho, donde a cola- Basta lembrar que muito da argumen-
boração de alguns alunos do curso de da ‘Instituição’ são tação de Calvino busca seu apoio em
letras da USP na realização das ver- textos patrísticos, especialmente os
sões iniciais da tradução. Num segun- sempre negativas, não textos de Agostinho de Hipona, autor
do momento, encarregou-se da tradu- que possui um estilo próprio baseado
ção do segundo tomo da “Instituição” fazendo mais do que principalmente numa filosofia de ca-
(correspondente aos livros III e IV) a ráter platônico. Com o apoio destes
professora Elaine Cristine Sartorelli, desqualificar como textos, Calvino busca construir uma
do Departamento de Letras Clássicas e argumentação que apareça como uma
Vernáculas da USP, com a colaboração ‘vulgares’ as propostas sorte de contraposição ao modo de
de Omayr José de Moraes Júnior. argumentar próprio daqueles que, se-
ockhamianas” guindo sua própria esteira, podemos
Desafios da tradução vagamente chamar de “escolásticos”,
autores que, por sua vez, eram clara-
dutor, preocupado inclusive com uma
Falando propriamente dos desa- mente devedores da tradição aristoté-
melhor fluência da versão por ele ela-
fios de realizar esta tradução, vale a lica. Sendo assim, ainda mais quando
borada, é o emprego de sinônimos. E
pena mencionar alguns dos percalços se trata de um texto volumoso como
isso, é claro, não acontece somente
que ladearam a constituição da pri- o traduzido, fica claro que a principal
quando as repetições são manifestas.
meira equipe acima mencionada. Ba- dificuldade a ser superada e uma das
É obviamente ainda mais fácil ocorrer
sicamente, seja ela feita a partir de coisas que dificilmente podem ser ne-
o emprego de termos sinônimos para
uma língua clássica, como é o caso do gociadas é o espaço de tempo reque-
traduzir uma mesma palavra ou ex-
latim, seja ela a tradução de um texto rido para a realização de uma tradu-
pressão, especialmente quando esta
escrito numa língua moderna, impor- ção como a proposta. E quanto a esse
repetição não é tão evidente assim.
ta bastante para a realização de uma aspecto, no final foi forçoso constatar
Ora, o grande problema por trás destas
tradução de qualquer texto filosófico que, mesmo em se tratando de uma
opções, seja para o tradutor, seja para
não só, como é óbvio, um bom conhe- editora universitária, infelizmente o
o autor, é que o emprego, seja reite-
cimento da língua original, mas tam- tempo visado ainda não consegue dei-
rado ou não, de uma mesma palavra
bém certa fidelidade na reprodução xar de estar completamente vinculado
pode não significar simplesmente uma
das escolhas do autor por certas pala- ao tempo do financiamento externo e
(boa ou má) escolha estilística, mas a
vras e expressões, mesmo quando isso da suposta “oportunidade” editorial,
própria construção de um conceito.
possa vir a ser finalmente visto, tanto no mais nem sempre conseguindo es-
Perceber quando este é o caso é
em matéria de tradução como de re- capar de não se deixar reduzir a muito
fundamental para qualquer pessoa que
dação, como estilisticamente pouco mais do que a uma promissora carta
se propõe a traduzir um texto acadê-
recomendável. de boas intenções.
mico, o que faz com que se espere da
Um exemplo para que isso possa Por fim, não é possível deixar de
tradução não apenas um bom trabalho
ser mais facilmente compreendido é o mencionar que a versão da tradução
de versão, mas inclusive, e, principal-
expediente, às vezes, empregado pelo por nós entregue passou ainda por uma
mente, uma tradução que tenha por
autor da repetição seguida de certas revisão independente e, por vezes, de-
base um bom trabalho de interpreta-
palavras. Uma das tentações do tra- savisada das opções tomadas, alteran-
ção, que seja o máximo possível fiel
 Elaine Cristine Sartorelli: doutora em Letras  Aurélio Agostinho (354-430): conhecido
Clássicas pela USP, onde é professora. Atua nos às ideias do próprio autor. Assim, a má como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho,
seguintes temas: retórica, século XVI, gênero compreensão do argumento que está bispo católico, teólogo e filósofo. É considera-
deliberativo, ethos, polêmicas. (Nota da IHU sendo traçado ou do horizonte teóri- do santo pelos católicos e doutores da doutri-
On-Line) na da Igreja. (Nota da IHU On-Line)

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do tanto a tradução de termos técni- o de “calvinismo” pode ser tomado
cos quanto substituindo por traduções
“Para além de sua como a exata expressão daquilo que
correntes da Bíblia trechos em que a propôs Calvino. Neste sentido, talvez
própria citação de Calvino não segue
fortuna crítica dentro fosse melhor chamarmos de “calvi-
exatamente a Vulgata... Assim, é um niano” aquilo que entendemos dizer
pouco como o resultado espremido en-
da história da própria respeito diretamente às propostas do
tre o que é exigido por essas duas de- próprio Calvino. Mas, ainda assim, se
mandas, a saber, a acadêmica e, diga-
Reforma, o for possível afirmar que as várias es-
mos assim, a “comercial”, que aparece pécies de calvinismo tenham (ao me-
a presente tradução.
protestantismo calvinista nos enquanto pretensão) suas raízes
no pensamento do próprio Calvino, já
IHU On-Line - Quais são as principais
e a teologia de Calvino teríamos nisto um bom sinal indicati-
peculiaridades dessa obra? vo da força e da importância da obra,
Carlos Eduardo Oliveira - A Instituição
ganham nova força na digamos desta vez, calviniana. Mas,
da Religião Cristã é uma obra apologé- para além de sua fortuna crítica den-
tica composta com um estilo próprio,
atualidade através da tro da história da própria Reforma, o
profundamente diverso daquele que protestantismo calvinista e a teologia
marcou as principais obras teológicas da
obra de Max Weber, que, de Calvino ganham nova força na atu-
Idade Média. Como pano de fundo de seu alidade através da obra de Max Weber,
trabalho, Calvino apoia-se, sobretudo,
em seu livro A ética que, em seu livro A ética protestante
na sucessão de citações de várias passa- e o espírito do capitalismo, defende
gens das Escrituras retoricamente apoia-
protestante e o espírito a existência de uma ligação entre o
das, principalmente, pela explanação de sucesso do capitalismo moderno e as
textos patrísticos. Por outro lado, ape-
do capitalismo, defende bases da ética calvinista, cujos prin-
sar de sua declarada contrariedade para cípios são elencados por Weber com
com a filosofia “escolástica”, quando
a existência de uma base principalmente no texto da Con-
conveniente, Calvino não se furta nem fissão de Westminster.
mesmo a retomar alguns dos principais
ligação entre o sucesso
tópicos discutidos na teologia medieval. Predestinação e sucesso econômico
Mas sem abandonar seu estilo polêmico,
do capitalismo moderno
Calvino parece frequentemente preferir É também através desta obra de
a força da retórica aos recursos argu-
e as bases da ética Weber que a teoria calvinista da pre-
mentativos, desenvolvidos na esteira da destinação ganha nova força e reapa-
aproximação medieval da teologia com a
calvinista” rece como objeto de grande interesse
filosofia aristotélica. Quanto ao seu con- mesmo fora da esfera protestante.
teúdo, o adversário é facilmente identi- IHU On-Line - Por que essa obra é Muito mal resumidamente, poderíamos
ficado: os abusos da Igreja de sua época, considerada um dos tratados teoló- dizer que Weber defende que os calvi-
apontados por Calvino como uma decor- gicos mais influentes da história do nistas acabaram em algum momento
rência do mau uso e compreensão da tra- cristianismo? por identificar o sucesso econômico
dição cristã nos quais amplamente teria Carlos Eduardo Oliveira - Antes de como um sinal da eleição divina, e que
incorrido a “escolástica”. Inicialmente tudo, é preciso ter cuidado com os isto teria de algum modo contribuído
não mais que um pequeno catecismo, as superlativos para não confundir a jus- na história da evolução do capitalis-
várias versões da obra certamente con- ta menção à real importância de uma mo. É certo que hoje já há quem de-
feriram à Instituição o lugar de uma das obra com o mero proselitismo, seja ele fenda que aquilo que Weber havia pro-
mais abrangentes e importantes obras de cunho religioso ou não. Isto obser- posto como próprio da ética calvinista
de teologia do século XVI. vado, é inconteste a importância e a não teria senão uma pálida relação
influência exercida pelo pensamento de familiaridade com o calvinianismo
de Calvino na história da Reforma, original. Seja ou não assim, permane-
 Patrística: nome dado à filosofia cristã dos
primeiros sete séculos, elaborada pelos Pais da principalmente na formulação dos di- ce o fato de que não há como negar a
Igreja, os primeiros teóricos, daí “Patrística”. versos tipos de protestantismo que pu- extensão da fortuna seja de Calvino,
Consiste na elaboração doutrinal das verdades deram de algum modo ser abarcados
de fé do Cristianismo e na sua defesa contra os seja dos diversos “calvinismos”. Agora,
ataques dos “pagãos” e contra as heresias. Fo- sob o rótulo de “calvinismo”. que estes elementos sejam suficientes
ram os padres da Igreja responsáveis por con- Embora eu utilize aqui, frequen- para fazer da Instituição a obra mais
firmar e defender a fé, a liturgia, a disciplina, temente, o adjetivo “calvinista” in-
criar os costumes e decidir os rumos da Igreja, influente da história do cristianismo
ao longo dos sete primeiros séculos do Cristia- dicando aquilo que é próprio à obra parece ser já uma outra conversa...
nismo. É a Patrística, basicamente, a filosofia do próprio Calvino, especialmente a
responsável pelo elucidação progressiva dos Instituição, sabe-se que nem tudo o
dogmas cristãos e pelo que se chama hoje de IHU On-Line - De que forma a teolo-
Tradição Católica. (Nota da IHU On-Line) que é classificado sob este rótulo e
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gia calvinista dialoga com a tradição prudente considerar se tais aproxima-
cristã, em especial com Agostinho e
“Calvino provavelmente ções não teriam seguido um raciocínio
Tomás de Aquino, por exemplo? semelhante ao proposto por Etienne
Carlos Eduardo Oliveira - Basta dar
concordaria com Ockham Gilson, que, ao falar sobre Ockham,
uma rápida passada de olhos na intro- aponta ser preciso notar que a crítica
dução que Calvino escreve para a Ins-
enquanto ele diz que é ockhamiana à “filosofia escolástica”
tituição, especialmente na carta ao foi capaz de provocar a ruína desta fi-
rei Francisco I, para perceber o quão
impossível conhecermos losofia muito antes da constituição da
Calvino quer apresentar-se consoan- filosofia moderna. Assim, se encarado
te ao espírito da mais primitiva Igreja
a vontade divina. Mas como um crítico do aristotelismo, ou,
cristã. Para isso, afirma estar imedia- ao menos, de certa tradição interpre-
tamente alinhado ao que seria próprio
sua compreensão deste tativa do aristotelismo própria àquilo
dos ensinamentos que ele reclama se- que se chama vagamente de escolás-
rem seguidos diretamente dos Pais da
ponto se dá de um modo tica, talvez de fato seja possível ver
Igreja, afastando suas conclusões do alguma aproximação entre Ockham e
que entende ser uma má apropriação
muito diferente Calvino. Mas, para além desse quadro
feita destes ensinamentos pela Igreja muito geral e, por isso mesmo, prova-
de sua época. De fato, grande parte do
daquele que é defendido velmente falho, o que há de concreto
que é defendido por Calvino aparece, entre Calvino e a filosofia ockhamia-
em última análise, apresentado como
por Ockham” na não parece ir além de uma relação
apoiado na doutrina de Agostinho, Pai de profunda antipatia. As poucas re-
da Igreja a quem Calvino presta gran- dade segundo algo [secundum quid] e a ferências feitas a Ockham por Calvino
de deferência, preferindo-o a qualquer necessidade absoluta, assim como en- no segundo livro da “Instituição” são
outro. Para a evidência disso, basta tre a necessidade do consequente e a sempre negativas, não fazendo mais
lembrar a elaboração da doutrina da da consequência [...]”. do que desqualificar como “vulgares”
predestinação de Calvino, insistente- as propostas ockhamianas.
mente por ele apresentada como las- IHU On-Line - Como especialista em
treada obviamente pelas Escrituras e Ockham, você percebe similarida- A predestinação em
pelas conclusões da doutrina agosti- des na forma como esse pensador e Ockham e Calvino
niana. No que diz respeito a Tomás de Calvino concebiam a predestinação?
Aquino, apesar da declarada antipatia Carlos Eduardo Oliveira - Não é no- No que diz respeito precisamente
de Calvino pelos escolásticos, a relação vidade para a literatura especializada ao tema da predestinação, a preo-
equilibra-se entre a crítica e o manejo a indicação de uma pretensa relação cupação de Ockham parece, de fato,
de algumas de suas teses. Mesmo que entre o que propõe Calvino e certo completamente distinta daquela
Tomás não guarde no pensamento cal- “nominalismo” de verve ockhamiana, proposta por Calvino. Ockham, que
vinista nem de longe o mesmo estatuto ou mesmo entre Ockham e a Reforma dedicou até mesmo um Tratado ao
conferido a Agostinho e aos demais Pais em geral. Mas, pelo menos no caso assunto, o Tratado da Predestina-
da Igreja, Calvino não esconde que en- de Calvino, esta relação parece ser ção, parecia ter em vista não mais do
contra, no Aquinate, algumas boas dis- muito tênue, senão inexistente. Para que a tentativa de mostrar o quanto
tinções, como é possível constatar em não ignorá-las sem mais, talvez seja aquilo que, segundo sua interpre-
sua exposição sobre a lei moral. Aliás,  William de Ockham (1285-1350): filósofo tação, a fé propunha sobre a pre-
é importante reconhecer aqui que a lógico, teólogo escolástico inglês, frade fran- destinação de fato se afastava das
crítica de Calvino aos escolásticos não ciscano e criador da teoria conhecida como teses que Ockham entendia serem
Navalha de Ockham (em inglês, Ockham’s Ra-
é cega, como comprova o trecho que zor), que dizia que as “pluralidades não devem as de Aristóteles. E no que poderia
encerra o capítulo XVI do primeiro li- ser postas sem necessidade”. Considerado um ser visto como um motivo de grande
vro: “[...] Por isso vemos, novamente, dos fundadores do nominalismo, teoria que contrariedade para qualquer espíri-
afirmava a inexistência dos universais, que se-
serem inventadas nas escolas, não sem riam apenas nomes dados às coisas, e portanto to calvinista, a resposta ockhamiana
propósito, distinções entre a necessi- produto de nossa mente sem uma existência será que Aristóteles e a fé divergem
prática assegurada. Por causa de suas ideias muito pouco. A maioria das aparen-
 São Tomás de Aquino (1225-1274): padre foi excomungado pela Igreja. O conceito, bas-
dominicano, teólogo, distinto expoente da tante revolucionário para a época, defende a tes diferenças entre o discurso reli-
escolástica, proclamado santo e cognomina- intuição como ponto de partida para o conhe- gioso e o filosófico não passariam,
do Doctor Communis ou Doctor Angelicus pela cimento do universo. Ockham foi discípulo do em última instância, de diferen-
Igreja Católica. Seu maior mérito foi a sínte- filósofo Duns Scotus e precursor do empirismo
se do cristianismo com a visão aristotélica do inglês, do cartesianismo, do criticismo kantia- ças semânticas. No fim das contas,
mundo, introduzindo o aristotelismo, sendo re- no e da ciência moderna. �����������������
Sobre Ockham, al-
descoberto na Idade Média, na escolástica an- gumas boas fontes de pesquisa são A compen-  Étienne Gilson (1884-1978): historiador e
terior. Em suas duas “Summae”, sistematizou dium of ockham’s teachings (New York: The filósofo francês, considerado o maior medie-
o conhecimento teológico e filosófico de sua Franciscan Institute, 1998); Ockham’s theory valista do século XX, tanto pela quantidade de
época: são elas a Summa Theologiae, a Summa of terms (South Bend: St. Augustine’s, 1998). suas obras, tanto pela originalidade das teses
Contra Gentiles. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) que levantou. (Nota da IHU On-Line)

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Ockham defenderá que apenas seria compreensão deste ponto se dá de um com seu salvador poderia ser muito
possível apontar uma única diferen- modo muito diferente daquele que é mais do que uma consequência de sua
ça real entre o que, na sua interpre- defendido por Ockham. Transforman- eleição. Embora refutada por alguns
tação, é defendido por Aristóteles do em regra aquilo que em Ockham calvinistas como não expressando se-
e o que é defendido pela fé: a cer- não aparece senão em tese e como não uma má caricatura daquilo que é
teza aristotélica de que Deus nada um possível caso de exceção, Calvino defendido por Calvino, ainda parece
poderia conhecer certeiramente a defenderá que a eleição divina seja válida uma velha objeção já muitas
respeito do futuro contingente. Mas absolutamente, independentemente vezes levantada contra o pensamento
mesmo aqui Ockham deu o crédito de qualquer coisa feita por parte do de Calvino a respeito da relevância de
para Aristóteles: em sua opinião, de homem. Para Calvino, a eleição divina qualquer ação humana. Por um lado,
fato é impossível que compreenda- independe até mesmo da fé. dado que a eleição de qualquer homem
mos racionalmente o modo pelo qual seja absolutamente independente de
Deus é capaz de ter tal conhecimen- Desígnios divinos insondáveis qualquer coisa que ele faça, não se vê
to. Nada mais próximo de Calvino e, muito bem a razão da insistência de
ao mesmo tempo, nada mais antical- Portanto, de acordo com Calvi- Calvino na importância de o homem
vinista. no, cabe somente ao desígnio divino mostrar-se reconhecido a Deus pela
– que para nós continua, no mais, in- graça da salvação. Afinal, se ao eleito
Eleição divina independe sondável – salvar ou condenar a al- é dado o espírito divino e a falta de
até mesmo da fé guém. E ele avança ainda um pouco tal reconhecimento não seria senão a
mais a esse respeito: ao eleger al- expressão da não eleição, parece im-
No que diz respeito ao aspecto es- guém para a salvação, Deus confere possível para aquele que Deus esco-
tritamente teológico da questão, para a ele seu espírito de sabedoria, dan- lheu não ter tal reconhecimento. Por
Ockham, tal como depois também do-lhe a conhecer a revelação cristã. outro lado, como dito, na contramão
defenderá Calvino, aquilo que faz o O condenado, porém, seria privado do que acontece para com os eleitos,
homem absolutamente não pode ser por Deus da graça de seu espírito o afastamento do condenado não é
considerado como uma causa para a como sinal de sua condenação. Ainda senão uma das consequências de sua
sua salvação ou condenação, no sen- a esse respeito, Calvino não hesita não eleição, uma vez que ele está pri-
tido de que podemos entender por afirmar que seja certo que aqueles vado do espírito divino que propicia
isso que as ações do homem de certo que se afastam do Cristo perecerão, a adequada compreensão da revela-
modo “obrigariam” Deus a salvá-lo ou e que é certo que aqueles que se ção cristã. Sendo tal afastamento não
a condená-lo. Mas para Ockham, Deus afastam de Cristo o fazem porque a mais do que um dos sintomas de sua
claramente escolhe salvar aqueles que eles não foi conferido o espírito divi- não eleição, como Calvino ainda pode
são finalmente justificados pela gra- no. Ao propor tais teses, Calvino não sustentar, na esteira de Agostinho,
ça e condenar aqueles que morrem faz mais do que reafirmar sua pro- que o homem escolhe livremente agir
em impenitência final, uma vez que, funda crença na absoluta liberdade mal, uma vez que o livre-arbítrio não
como reza o adágio proposto por Agos- divina. No entanto, este modo pelo poderia ser negado a fim de justificar
tinho, “Deus não se vinga antes que qual Calvino confessa esta sua cren- o pecado? Desafortunadamente, a
alguém seja pecador, do mesmo modo ça parece não fazer mais do que lhe resposta de Calvino para esta questão
que não recompensa antes que alguém trazer alguns problemas que podem, não vai além de um dogmatismo es-
seja justificado pela graça”. Uma úni- ao final, se mostrar até mesmo in- magador: “se certas línguas desenfre-
ca possibilidade de exceção a esta re- solúveis. adas vomitam seu veneno contra isto,
gra é considerada por Ockham no caso Ainda que os desígnios divinos per- não nos envergonhemos de exclamar:
da Bem-aventurada Virgem e dos an- maneçam insondáveis, para Calvino é « ó homem! Quem és tu, para que
jos bons, que poderiam ter sido pre- certo que o homem, principalmente alterques com Deus? » (Rm 9, 20).
destinados antes mesmo que fossem aquele que é conhecedor da revela- Porque Agostinho diz muito bem que
merecedores da predestinação. Mas ção cristã, deve se mostrar grato pela aqueles que medem a justiça de Deus
Ockham nem mesmo leva o assunto graça que lhe foi dada e se mostrar pela dos homens agem muito mal”.
adiante, dizendo tratar-se de um caso desejoso de que, uma vez conhecedor Aqui, fica evidente que o que Calvino
sobre o qual não é possível arriscar ne- do Cristo, ele também seja um dentre tem reconhecidamente de melhor pa-
nhum palpite. Provavelmente, não por os eleitos. Mas, se de um lado Calvino rece poder lhe servir também de pro-
outra razão senão pelo próprio fato de alerta que esta esperança não pode blema: embora claramente um exce-
Deus não ter-nos revelado o que real- ser convertida em soberba através lente polemista e retórico, de fato a
mente se deu... de uma falsa “certeza” da salvação, leitura de seus textos, frequentemen-
Assim, de seu lado, Calvino pro- por outro lado, seus argumentos não te, dá a impressão ao leitor de que
vavelmente concordaria com Ockham são suficientemente claros para que ele tenha preferido a boa prosa a uma
enquanto ele diz que é impossível co- se entenda de fato como este reco- melhor estruturação dos argumentos
nhecermos a vontade divina. Mas sua nhecimento que o homem tem para propostos.

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Calvino. Um revolucionário ou um conservador?
Yves Krumenacker explica que verdadeira vontade de Calvino era reformar a Igreja
devolvendo-lhe a forma primitiva. Por isso, seria um conservador. Hoje, redesco-
bre-se um homem talvez “excessivo em suas ideias”, que se pensava um profeta

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

Q
uinhentos anos após seu nascimento, Calvino é redescoberto como um homem talvez
“excessivo em suas ideias, que acreditava ser um profeta, mas que tinha um grande
sentido da glória de Deus e de sua majestade, um homem que não podia aceitar supers-
tições, ou seja, segundo ele, cultivar as falsas imagens de Deus e o falso culto prestado
a Deus”. A análise do historiador francês Yves Krumenacker vai adiante: “Esta orientação
de todo o seu ser para Deus, este cuidado exclusivo de Deus ainda podem, sem dúvida, falar aos
cristãos de hoje, embora as épocas sejam muito diferentes”. Examinando a possibilidade de Calvino
ser um revolucionário ou um conservador, Krumenacker aponta para a segunda como muito mais
plausível. Isso porque o reformador queria restituir a forma primitiva da Igreja. No entanto, pondera,
“sua ação teve consequências revolucionárias que certamente o ultrapassaram”. As relações entre a
Companhia de Jesus e a Contra-Reforma são outro tema da entrevista a seguir, concedida à IHU On-
Line por e-mail.
Professor na Universidade Lyon 3, na França, desde 1998, Krumenacker foi aluno da Escola Normal
Superior de Saint-Cloud. Desde 2008, é membro do Instituto Universitário da França. Pesquisa sobre-
tudo a história religiosa da França moderna, nomeadamente sobre espiritualidade do século XVII e o
protestantismo. Escreveu, entre outros, Les Protestants du Poitou au XVIIIe siècle (1681-1789) (Paris:
H. Champion, 1998) e Calvin. Au-delà des legendes (Paris, Bayard, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - O calvinismo foi uma Yves Krumenacker - Lutero realmente o rei Francisco I se aproxima do papa
reforma ou uma revolução? fundou o alemão moderno, o que não por razões políticas. Calvino começa
Yves Krumenacker - Calvino jamais é o caso de Calvino para o francês. No a compreender, em fins de 1533, que
foi um revolucionário, ele antes teria entanto, ele é reconhecido, há alguns a reforma, tal como ele a deseja, é
sido um conservador. Os movimentos anos, como um escritor muito desta- impossível. Ele pensa então que é pre-
radicais, como os anabatistas, o horro- cado, claro, sóbrio, elegante, com um ciso romper com “o papismo”. A partir
rizam. Sua reforma é verdadeiramente estilo muito moderno; é um dos escri- de outubro de 1534, os que se opõem a
uma vontade de reformar a Igreja, de tores de sua época mais legíveis para Roma são perseguidos. Calvino se sen-
formá-la novamente, restituindo-lhe um francês de hoje. Calvino também é te ameaçado e deixa a França.
sua forma primitiva, de retornar, por- um dos primeiros a escrever teologia
tanto, à Igreja antiga. No entanto, sua em francês. IHU On-Line - Como os jesuítas e a
ação teve consequências revolucioná- Contra-Reforma reagiram ao calvi-
rias que certamente o ultrapassaram. IHU On-Line - Quais foram as circuns- nismo?
Com efeito, Calvino contribuiu para tâncias nas quais se deu o exílio de Yves Krumenacker - A Igreja católi-
fazer a Europa sair da cristandade me- Calvino? ca reagiu primeiro ao luteranismo, e
dieval, ele trouxe a formação de Esta- Yves Krumenacker - Em sua preo- os primeiros calvinistas franceses são
dos pluralistas, ele obrigou a se pensar cupação de reencontrar uma Igreja considerados como luteranos. Os livros
mais a liberdade de consciência. pura, Calvino aproximou-se pouco a de Calvino são condenados e dão lugar
pouco dos ambientes franceses mais a controvérsias teológicas, mas os pri-
IHU On-Line - Em que medida pode- reformadores e mais próximos dos meiros jesuítas não participam delas,
mos estar de acordo com a afirmação protestantes suíços. Ele esperava que pois é ainda demasiado cedo para a
que Calvino teria sido para a língua a França pudesse reformar-se seguin- Companhia de Jesus. Somente a par-
francesa o que Lutero foi para a língua do os conselhos dos evangélicos, como
 Companhia de Jesus: Fundada em 1534 por
alemã – uma figura quase paternal? o humanista Lefèvre d’Etaples. Mas, um grupo de estudantes da Universidade de
Paris, liderados por Ignácio de Loyola. Seus

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tir de 1560, ou seja, no momento em “É, sobretudo, o lugar questão precedente explica que a re-
que Calvino desaparece (ele morre em lação não me parece evidente. Calvino
1563), que os jesuítas são verdadeira- considerável que os não condena a riqueza, mas gostaria
mente ativos contra o calvinismo: posse que se tivesse dela um uso moderado
de colégios em regiões marcadas pelo jesuítas tomam na e que ela permitisse aliviar os pobres.
calvinismo, redação de catecismos (o Ele aceita o empréstimo a juro, mas
do Pe. Auger é de 1563), missões nas Contra-Reforma que faz gostaria que se emprestasse gratui-
zonas rurais, controvérsias. No Concí- tamente aos pobres: isso não é muito
lio de Trento, os jesuítas contribuíram com que se veja neles capitalista!
para precisar os dogmas católicos con- Diversos grandes países capitalistas
tra as ideias protestantes. Confessores os principais adversários foram influenciados pelo calvinis-
ou conselheiros de numerosos prínci- mo. Mas, na Holanda, são os calvi-
pes católicos, eles irão atuar para que dos calvinistas” nistas mais distantes de Calvino (os
se realize uma reconquista católica das arminianos) que desenvolvem o co-
regiões protestantes, por exemplo, na mércio. Na Inglaterra, os verdadei-
Europa central, graças às missões, às por causa de sua ligação ao papa, mas ros calvinistas são os puritanos, e
pregações, mas também pela força. ele não fala disso. De fato, como se nenhum capitalista é puritano. Na
É, sobretudo, o lugar considerável que viu, as polêmicas entre os jesuítas e os França, o calvinismo não triunfou.
os jesuítas tomam na Contra-Reforma calvinistas são mais tardias. O ponto comum entre estes países
que faz com que se veja neles os prin- é antes o fato que eles se voltaram
cipais adversários dos calvinistas. Mas, IHU On-Line - Pode-se falar de uma para o oceano Atlântico e que eles
essa é apenas uma de suas numerosas “ética calvinista e o espírito do capi- lucram pela transferência da econo-
atividades, e eles não são os únicos a talismo”? Por quê? mia do Mediterrâneo para o Atlân-
se opor ao protestantismo: eles são Yves Krumenacker - Foi o sociólogo tico. Portugal, politicamente muito
simplesmente os mais eficazes. alemão Max Weber que desenvolveu, frágil, não o pode fazer, e a Espa-
no início do século XX, a tese de elos nha atravessa uma crise econômica
IHU On-Line - Quais eram as relações muito fortes entre a ética calvinista e muito grave para lucrar plenamente.
entre Calvino e os jesuítas? o espírito do capitalismo. Ele procura- As circunstâncias políticas e econô-
Yves Krumenacker - Calvino podia ter va mostrar a influência que as religi- micas tiveram, a meu ver, um papel
conhecido Inácio de Loyola. Ele deixa, ões puderam ter no advento do mundo mais preponderante do que as razões
com efeito, o colégio de Montaigu, em moderno. Para ele, o calvinismo incita religiosas.
Paris, em 1528, quando Santo Inácio en- ao trabalho racional e consciencioso,
tra ali. Os dois homens seguem cursos recusando os prazeres da vida; isso IHU On-Line - Qual é a atualidade
em Paris ao mesmo tempo, em 1532. permite acumular capital, que é, sem de Calvino 500 anos após seu nas-
Ambos têm uma piedade muito cristo- cessar, reinvestido. Ganhar dinheiro cimento?
cêntrica e têm quase a mesma divisa: para fazê-lo frutificar também se tor- Yves Krumenacker - Calvino foi em
Soli Deo gloria para Calvino; Ad ma- na uma virtude. Pessoalmente, sou parte esquecido pelos calvinistas du-
jorem Dei gloriam para Santo Inácio. muito cético em relação a essa ideia. rante diversos séculos. Sua teologia,
Aliás, Calvino jamais polemizou muito Com efeito, o exame da vida real dos em particular, a predestinação, foi
com os jesuítas; era antes a faculdade calvinistas mostra que seu comporta- muito criticada, mesmo pelos pro-
de teologia de Paris que ele atacava. mento não é sempre racional e que testantes. Redescobre-se hoje um
Ele não devia gostar muito dos jesuítas os pastores têm, frequentemente, homem talvez excessivo em suas
muita dificuldade em lhes impor uma ideias, que acreditava ser um profe-
membros são chamados jesuítas. A esses reli-
giosos coube papel destacado nos Sete Povos
vida austera. De outra parte, diversas ta, mas que tinha um grande sentido
das Missões, na catequização dos índios daque- correntes de espiritualidade católica, da glória de Deus e de sua majesta-
las localidades e no estímulo à vida comuni- de jesuítas a São Francisco de Sales, de, um homem que não podia aceitar
tária. Hoje a Companhia de Jesus dedica-se,
sobretudo, ao serviço da fé, a promoção da
insistem também na necessidade de superstições, ou seja, segundo ele,
justiça, o diálogo cultural e inter-religioso. realizar da melhor forma sua vocação cultivar as falsas imagens de Deus e
A Unisinos é uma universidade pertencente à sobre a Terra. o falso culto prestado a Deus. Isso o
Companhia de Jesus. (Nota da IHU On-Line)
 Concílio de Trento: realizado de 1545 a
levou a romper com Roma, mas isso
1563, foi o 19º concílio ecumênico. É consi- IHU On-Line - Como explicar a rea- era para ele necessário caso qui-
derado um dos três concílios fundamentais na
ção de Calvino em relação à riqueza? sesse prestar um culto puro a Deus.
Igreja Católica. Foi convocado pelo Papa Pau-
lo III para assegurar a unidade da fé (sagrada Há relação entre o calvinismo gras- Esta orientação de todo o seu ser
escritura histórica) e a disciplina eclesiástica, sar em países como Holanda, Escó- para Deus, este cuidado exclusivo de
no contexto da Reforma da Igreja Católica e a
cia, França, Inglaterra e EUA e seu Deus ainda pode, sem dúvida, falar
reação à divisão então vivida na Europa devido
à Reforma Protestante, razão pela qual é de- desempenho econômico positivo? aos cristãos de hoje, embora as épo-
nominado como Concílio da Contra-Reforma. Yves Krumenacker - Minha resposta à cas sejam muito diferentes.
(Nota da IHU On-Line)

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A teologia política de Calvino
Teologia calvinista buscava estruturar uma comunidade política em Genebra. Reli-
gião e política andavam lado a lado, o que era compreensível para aquela época,
diz Volker Leppin

Por Márcia Junges | Tradução Benno Dischinger

M
anter conexas política e religião era a forma de cumprir a vontade de Deus, pensava
Calvino. Evidentemente, isso “não corresponde as nossas concepções modernas de li-
berdade, mas era totalmente plausível na passagem da Idade Média ao início da Era
Moderna”, explica o teólogo alemão Volker Leppin na entrevista especial que concedeu
à IHU On-Line por e-mail. “Calvino acentuou a seriedade da vontade de Deus – isto é
manifestamente importante e significativo na pós-modernidade!”, avaliou.
Leppin é graduado em Teologia e Literatura Alemã pelas Universidades de Marburg, Jerusalém e
Heidelberg. É PH.D pela Universidade de Heidelberg, e, desde 2000 leciona história da Igreja na Uni-
versidade de Jena, na Alemanha, onde é decano da Faculdade de Teologia. Escreveu, entre outros,
Martin Luther (Darmstadt: Primus Verlag, 2006), Die christliche Mystik (München: Beck, 2007), Das
Zeitalter der Reformation. Eine Welt im Übergang (Darmstadt: Theiss Verlag, 2009) e Martin Luther:
Gestalten des Mittelalters und der Renaissance (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft,
2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Sob que aspectos a teo- humanistas, mas ele desenvolveu suas IHU On-Line - Neste mesmo artigo es-
logia calvinista é uma teoria política? reflexões políticas pessoalmente a creve Spataro que não há razões para
Volker Leppin - A teologia de Calvino partir de sua teologia. se festejar os 500 anos do nascimen-
tinha relevância política, em primeiro to de Calvino. Ele qualifica o refor-
lugar, porque interessava a Calvino a IHU On-Line - Num artigo publicado mador como “triste e solitário, duro
estruturação de uma comunidade polí- na revista Cristianità de março des- e intolerante, orgulhoso, colérico e
tica da cidade de Genebra. Ela deveria te ano, Roberto Spataro considera vingativo”. Como o senhor define a
corresponder à vontade de Deus. O for- que a organização teocrática pro- pessoa de João Calvino?
te significado da vontade de Deus con- posta por Calvino propunha uma le- Volker Leppin - Calvino foi um pen-
duziu, entre os huguenotes da França, gislação opressora. Qual é o sentido sador assaz, inteligente e penetrante.
a que o pensamento calvinista tenha do reformador em manter conexas a Avaliar o seu caráter na forma descrita
levado a uma forte oposição contra política e a religião? por Spataro é inadequado, e não consi-
os soberanos que oprimiam a fé. Um Volker Leppin - Como disse anterior- dera que em Calvino atuou um teólogo
longínquo efeito disso ainda se vê nos mente, ele pensava que podia cum- manifestamente íntegro, que – como
desenvolvimentos do século XX, como prir assim a vontade de Deus – e isso todos nós – evidentemente também
específica forma de relacionamento não corresponde às nossas concepções cometeu erros.
calvinista, ou, como gostamos mais de modernas de liberdade, mas era total-
dizer em alemão: teólogos cunhados mente plausível na passagem da Idade IHU On-Line - Como a teologia calvi-
pela Reforma que fundaram a oposi- Média ao início da Era Moderna. nista pode inspirar o homem atual a
ção da Igreja ao nacional-socialismo. buscar Deus e um sentido para sua
IHU On-Line - Quais os pontos básicos vida? Neste sentido, qual é a atuali-
IHU On-Line - De que modo Calvino de sua teoria política que continuam dade do legado religioso de Calvino?
dialoga com outros pensadores polí- atuais? Volker Leppin - Calvino acentuou a
ticos? Quais são suas principais influ- Volker Leppin - Calvino inculcou que a seriedade da vontade de Deus – isto é
ências? fé cristã exige opor-se ao poder esta- manifestamente importante e signifi-
Volker Leppin - Calvino foi influen- tal se ele ultrapassar os seus limites. cativo na pós-modernidade!
ciado, principalmente, pelos teóricos
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A fé reformada e os compromissos existenciais inevitáveis
Reverendo Hermisten da Costa afirma que fé calvinista é mais do que status vazio,
e que o homem reformado vive plenamente, partindo da Palavra, cujo alvo final é
a glória de Deus. Grandeza humana reside em sua semelhança com Deus

Por Márcia Junges

“N
ossa fé tem compromissos existenciais inevitáveis. Ser reformado não é apenas
um status nominal vazio de sentido, antes reflete a nossa fé em atos de forma-
ção e transformação”, garante o reverendo Hermisten Maia Pereira da Costa,
na entrevista especial que concedeu, por e-mail, à IHU On-Line. Ele continua:
“Devemos acentuar que Calvino, com sua vida e ensinamentos, contribuiu para
forjar um tipo novo de homem: ‘O reformado’, que vive no tempo, a plenitude do seu tempo para a
glória de Deus!”. Teologia dessa orientação vê e atua na realidade, partindo da Palavra, almejando a
glória de Deus. Conforme o reverendo, “dentro da perspectiva Reformada, a grandeza do homem está
no fato de que ele foi criado à imagem de Deus e, mesmo que o pecado tenha obscurecido esta ima-
gem, ele jamais deixou de sê-la, visto que isto implicaria em deixar de ser humano. A imagem de Deus
não é algo colado, acidental à existência, antes faz com que sejamos o que somos: seres humanos”.
Graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul, também cursou Filosofia pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais – PUCMG, e Pedagogia pela Universidade Presbiteriana Macken-
zie. Possui cinco especializações, é mestre e doutor em Ciências da Religião pela Universidade Meto-
dista de São Paulo – Umesp, com a tese O Conceito de Escritura Sagrada no Seminário de Princeton e
a sua Introdução no Pensamento Protestante Brasileiro. Cursou pós-doutorado na Universidade Pres-
biteriana Mackenzie e é pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil, além de lecionar no departamento
de Teologia do Seminário Presbiteriano Reverendo José Manoel da Conceiçao, em São Paulo. Escreveu,
entre outros, Calvino de A a Z (São Paulo: Editora Vida, 2006), Fundamentos da Teologia Reformada
(São Paulo: Mundo Cristão, 2007) e A Inspiração e Inerrância das Escrituras (2. ed. São Paulo: Cultura
Cristã, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que diferencia a em- Calvino faz parte de uma segunda ge- foi bem compreendido. O seu princi-
preitada de Calvino e Lutero de “pu- ração que, dentro do mesmo propósito pal trabalho teológico Loci Communes
rificar” o cristianismo? de Lutero, pôde consolidar a Reforma (1521), quando foi traduzido para o
Hermisten Maia Pereira da Costa - por meio de um trabalho constante e francês (1546), recebeu o prefácio de
Só há Reforma quando há necessida- sistemático de expor as Escrituras e Calvino.
de objetiva ou subjetiva. A busca por escrever e ampliar a sua obra magna, Calvino tinha muito respeito por Lu-
purificar a Igreja encontrou em Lutero As Instituições da Religião Cristã for- tero. Na única carta que lhe escreveu
a eficácia antes não encontrada por neceu a base para todo o desenvolvi- (25/01/1545), a qual este, ao que pa-
diversas razões políticas, sociais, eco- mento do pensamento reformado. rece, jamais recebeu, Calvino se dirige
nômicas e, principalmente, pela força A Reforma, proposta por ambos, a Lutero como “meu respeitadíssimo
repressiva da Igreja romana. Lutero  e em que pese a motivação primária e pai”, “respeitadíssimo pai no Senhor”
Calvino, cada um ao seu modo, em intensamente religiosa, atingiu todas e “meu pai sempre honorável”. A Re-
contextos diferentes, esforçaram-se as esferas da realidade, buscando uma forma não foi um movimento no âmbi-
por fazer a Igreja voltar às suas ori- coerência prática com a nossa percep- to apenas da moral, antes forneceu um
gens bíblicas. Na realidade, Lutero ção oriunda da Escritura. Infelizmen- novo quadro de referência por meio do
iniciou o processo em 1517. Calvino, te, Lutero e Calvino não se conhece- qual todas as áreas de nossa vida de-
quando aderiu à fé protestante (em ram pessoalmente. O doce e pacífico vem ser pautadas pela Escritura. Isto
1532-1534), o movimento reformista Melanchthon, amigo de Lutero e cor- foi e continua sendo revolucionário e
já havia se expandido pela Europa. respondente de Calvino nem sempre purificador em qualquer sociedade.

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IHU On-Line - Quais são os maiores Majestade de Deus e do Senhorio de IHU On-Line - Quais são as fontes de
méritos dessa teologia protestante Cristo em todas as coisas a começar de sua teologia? E como essa teologia
reformada? nossa salvação definitiva. calvinista inspira hoje outras teolo-
Hermisten Maia Pereira da Costa - A 10) A compreensão de que a Igreja gias de orientação protestante?
grande relevância da Teologia Refor- de Deus não é um conjunto de pessoas Hermisten Maia Pereira da Costa - A
mada continua sendo sua volta à Es- individuais, mas é o corpo de Cristo, Reforma jamais rejeitou os credos. Ela
critura, a qual revela de forma verbal o povo constituído por Deus por inter- se valeu dos principais credos da Igre-
definitiva Jesus Cristo, o Senhor Eter- médio do Seu Espírito, para cultuá-Lo, ja. Aliás, é importante ressaltar que a
no. A partir deste retorno, a constan- viver a Sua Palavra e proclamar a Sua Reforma foi levada a efeito por cató-
te busca por interpretar a realidade e salvação em Cristo. licos piedosos. Lutero, por exemplo,
agir de forma coerente com esta pers- 11) O zelo pela pregação fiel da se constitui num exemplo eloquente.
pectiva. Portanto, podemos dizer que Palavra, administração correta dos A Reforma, partindo das Escrituras
o calvinismo prima não simplesmente Sacramentos e o exercício fiel da dis- como única autoridade infalível, pas-
pela preocupação teológica – o que ciplina. sou a examinar todas as contribuições
sem dúvida é fundamental –, mas sim 12) Oração sincera e submissa. históricas, tentando estabelecer o que
pela obediência incondicional ao Deus Calvino entendia que “com a oração, considerava ser a interpretação cor-
da Palavra. Assim, dentro desse princí- encontramos e desenterramos os te- reta das Escrituras. A Reforma, sem
pio fundamental, podemos dizer que souros que se mostram e descobrem dúvida, foi um movimento com forte
a teologia Reformada enfatiza, entre a nossa fé pelo Evangelho” e, que “a tonalidade hermenêutica.
tantas outras coisas, que: oração é um dever compulsório de to- A teologia calvinista continua com
dos os dias e de todos os momentos grande vitalidade na Europa e nos Es-
1) O fundamento de nossa relação tados Unidos. Ela tem sido descoberta
com Deus está no Pacto da Graça por aos poucos no Brasil. Aqui, conhece-se
meio do qual Deus “livremente ofere- “Lutero e Calvino, cada pouco da tradição Reformada. Faz-se
ce aos pecadores a vida e a salvação uma caricatura que acentua, muitas
através de Jesus Cristo....”. (Confis- um ao seu modo, em vezes, pontos equivocados. O pensa-
são de Westminster, VII.3). mento Reformado mantém a sua vita-
2) A salvação por Graça unicamen- contextos diferentes, lidade porque entende que ele não é
te em Jesus Cristo; o Deus encarnado: nem pode ser “arquetípico”, antes é
Verdadeiro Deus e Verdadeiro Ho- esforçaram-se por fazer uma reflexão sistematizada das Escri-
mem. turas. A fonte é a Palavra. Ele se ali-
3) A suficiência do sacrifício de Cris- a Igreja voltar às suas menta e oxigena na exegese bíblica.
to para salvar completa e totalmente Creio que aí está seu vigor e poder
o povo de Deus. origens bíblicas” de influenciar a sociedade de manei-
4) A fé como a boa obra do Espírito ra intensa. O pensamento Reformado
em nós que nos capacita a responder não se restringe a cinco pontos, como
positivamente ao chamado de Deus. de nossa vida”, e: “Os crentes genu- alguns pensam; diria: nem a mil. A te-
5) A Palavra de Deus, e somente Ela ínos, quando confiam em Deus, não ologia calvinista é uma forma de ver
é a autoridade final de todo o nosso se tornam, por essa conta, negligen- e atuar na realidade partindo da Pala-
pensar, crer, agir e sentir. tes à oração”. Portanto, este tesouro vra tendo como alvo final a glória de
6) A inerrância e infalibilidade das não pode ser negligenciado como se Deus.
Escrituras como princípios teóricos e “enterrado e oculto no solo!”. “Ago-
práticos que norteiam a nossa pers- ra, quanto é necessário, e de quantas IHU On-Line - Sob quais aspectos a
pectiva da realidade em todas as suas maneiras o exercício da oração é útil teologia calvinista pode oferecer pis-
dimensões: religiosa, social, política, para nós, não se pode explicar satisfa- tas para a autocompreensão do sujei-
econômica, ética, profissional, fami- toriamente com palavras”. Aqui está o to frente ao sentido de sua vida?
liar etc. Portanto, uma ética compro- segredo da Palavra de Deus, segundo a Hermisten Maia Pereira da Costa - A
metida com as Escrituras. percepção de Calvino: Estudo humilde teologia Reformada sustenta que o ho-
7) O Culto a Deus como meta e ra- e oração, atitudes que se revelam em mem não consegue ter uma visão cor-
zão de ser da Igreja, que se manifes- nossa obediência a Cristo. reta de si por si mesmo. Ele precisa
te em consonância com a Palavra, em 13) A Glória de Deus como alvo su- conhecer a Deus. Somente Deus pode
santo temor e sincera gratidão para premo de toda as coisas (1Co 10.31). nos dar uma visão adequada daquilo
com Deus. “Não busquemos nossos próprios inte- que somos e do que poderemos ser por
8) Um compromisso com o real a resses, mas antes aquilo que compraz Sua graça. Dentro da perspectiva Re-
partir da fé em Cristo, gerada em nós ao Senhor e contribui para promover formada, a grandeza do homem está
pelo Espírito. sua glória” (Calvino). no fato de que ele foi criado à imagem
9) A aceitação incondicional da de Deus e, mesmo que o pecado tenha

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obscurecido esta imagem, ele jamais
deixou de sê-la, visto que isto impli-
“A Reforma não foi um No entanto, mesmo com toda essa
influência, o calvinismo não moldou a
caria em deixar de ser humano. A ima-
gem de Deus não é algo colado, aci-
movimento no âmbito cultura ocidental somente por meio de
ideias, mas, principalmente, por meio
dental à existência, antes faz com que
sejamos o que somos: seres humanos.
apenas da moral, antes de seus ideais que fizeram com que
homens fiéis morressem pelo testemu-
Portanto, a essência do homem não
pode ser simplesmente determinada
forneceu um novo nho de sua fé. “Os protestantes fran-
ceses, ao serem levados para a prisão
em si e por si; é preciso uma dimensão
verdadeiramente teológica para que
quadro de referência ou para a fogueira, cantavam salmos
com tanta veemência que foi proibido
possamos entender melhor o que so-
mos. A genuína antropologia deve ser
por meio do qual todas por lei cantar salmos, e aqueles que
persistiam tinham sua língua cortada.
sempre e incondicionalmente teocên-
trica! Conhecer a Deus é viver.
as áreas de nossa vida O salmo 68 era a Marselhesa hugueno-
te” (Leith).

IHU On-Line - Por que Calvino é con-


devem ser pautadas pela Na França, em diversas ocasiões, os
protestantes foram atacados enquan-
siderado o iniciador de uma era?
Qual é o seu grande legado ao cris-
Escritura. Isto foi e to prestavam culto a Deus, orando,
lendo a Palavra e cantando salmos.
tianismo?
Hermisten Maia Pereira da Costa - O
continua sendo Depois de narrar algumas dessas per-
seguições, Baird constata: “A Liturgia
vigor da influência de Calvino está no
conjunto de seu pensamento, ampara-
revolucionário e do protestantismo francês foi banhada
com o sangue de seus mártires”.
do na Escritura. A filosofia calvinista,
como todo e qualquer sistema de pen-
purificador em Do mesmo, no Brasil, quando os
calvinistas franceses Jean du Bourdel,
samento e valores, não é neutra. An-
tes, parte da própria Escritura tendo
qualquer sociedade” Matthieu Verneuil, Pierre Bourdon e
André Lafon não negaram a sua fé
como pressuposto a suficiência da Re- diante de Nicolas Durand de Ville-
velação para a interpretação e análise ja e o Estado, e renovar a sociedade gaignon (1510-1571), foram presos.
de toda realidade. Nesta tarefa, ela permeando todos os setores da vida, Jean Crespin registra: “Entretanto,
luta contra os ídolos do pensamento tanto públicos como privados, com a os condenados consolavam-se e rego-
que surgem em cada cultura e em to- influência da religião”. zijavam-se em suas cadeias, orando e
das as épocas. Um ídolo chama outro cantando, com extraordinário fervor,
ídolo, tendo sempre como ponto de Compromissos existenciais salmos e louvores a Deus”.
partida o desejo humano de autossufi- inevitáveis Na manhã de sexta-feira, 9 de
ciência. Contrariamente, o pensamen- fevereiro de 1558, quando Jean du-
to calvinista reafirma como ponto de O Cristianismo não é uma forma de Bourdel, o autor da Confissão de Fé,
partida o Deus soberano e transcen- acomodação na cultura, antes de for- ia sendo conduzido ao rochedo para
dente que Se revela na Escritura e que mação e de transformação por meio de ser executado, acompanhado por Vil-
somente a partir desta compreensão uma mudança de perspectiva da reali- legaignon e seu pajem, narra Crespin:
podemos compreender a chamada re- dade, que redundará necessariamente “ao passar junto da prisão em que es-
alidade e atuar de forma criativa para numa mudança nos cânones de com- tavam os seus companheiros, gritou-
a glória de Deus e o bem-estar da hu- portamento, alterando sensivelmente lhes em alta voz que tivessem cora-
manidade. A convicção da direção de as suas agendas e praxes. Assim sendo, gem, pois iam ser logo libertados desta
Deus sobre a história e sobre a nossa a nossa fé tem compromissos existen- vida miserável. E, caminhando para a
vida em particular não se opõe à ora- ciais inevitáveis. Ser Reformado não morte, entoava salmos e louvores a
ção, à vida devocional. Desta forma, o é apenas um status nominal vazio de  Jean du Bourdel, Matthieu Verneuil, Pierre
calvinismo tem uma fé que, por graça, sentido, antes reflete a nossa fé em Bourdon e André Lafon: redatores da Confis-
atos de formação e transformação. são de Fé da Guanabara, primeiro escrito pro-
ultrapassa em muito os limites de nos- testante do Brasil e de toda a América, em 17
sa racionalidade, mas, também, é uma O calvinismo fornece-nos óculos de janeiro de 1558. O documento foi escrito
fé operante que crê que nós somos os cujas lentes têm o senso da soberania em cerca de doze horas, numa prisão da ilha
de Deus como perspectiva indispensá- de Serigipe, atual Ilha de Villegagnon. �������
Após a
instrumentos ordinários de Deus para sua finalização, os seus autores foram execu-
construir, transformar e aperfeiçoar a vel e necessária para ver, interpretar (Nota da IHU On-Line)
tados. ���������
cultura. e atuar na realidade, fortalecendo,  Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571):
modificando ou transformando-a, con- cavaleiro da Ordem de Malta e diplomata que,
O estudioso inglês Tawney (1880- como oficial naval francês, alcançou a distin-
1962) observa que “o calvinismo foi forme a necessidade. Isso tudo num ção de Vice-almirante da Bretanha. Notabili-
uma força ativa e radical. Era um cre- esforço constante de atender ao cha- zou-se, entre outros feitos, pela fundação de
mado de Deus a viver dignamente o um estabelecimento colonial francês na costa
do que buscava não meramente purifi- do Brasil, conhecido como França Antártica.
car o indivíduo, mas reconstruir a Igre- Evangelho no mundo. (Nota da IHU On-Line)

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Deus, o que causava grande espanto a Deus é o autor de todo o bem. Por- ortodoxia. De modo muito interessan-
Villegaignon e ao carrasco”. tanto podemos nEle descansar sendo te Spener chama Gerhard de “piedoso
Como nos adverte Kuyper, “[a] conduzidos pela Sua Palavra. teólogo”.
vida que o Calvinismo tem pleiteado Deve ser enfatizado que Calvino Recebemos Calvino sempre de se-
e tem selado, não com lápis e pincel usou como ninguém de todas as ferra- gunda mão. Isto é apenas uma consta-
no estúdio, mas com seu melhor san- mentas então acessíveis para uma boa tação. As suas obras começaram a ser
gue na estaca e no campo de bata- exegese, dispondo o seu material de traduzidas para o português em 1985.
lha”. A força prática da teologia re- forma clara, lógica e simples, sendo Ele começou a ser entendido a partir
formada não está simplesmente em chamado, não sem razão, de o “prín- do início da tradução de seus comen-
seu vigor e capacidade de influenciar cipe dos expositores”. Em sua inter- tários (1995). A sua obra começou a
intelectualmente os homens, mas no pretação bíblica Calvino combinou de ser lida sistematicamente nos seminá-
que tem produzido na vida de mi- forma harmoniosa a análise filológica rios de minha igreja, a Igreja Presbi-
lhões de pessoas, conduzindo-as, em com a teológica, associando tudo isso teriana do Brasil, somente a partir de
submissão ao Espírito, à fidelidade a um pensamento construtivo que fez 1984. Ainda hoje, poucos seminários
bíblica e a uma ética que se paute com que a sua teologia tivesse seus de minha denominação o lêem de for-
pelas Escrituras. A grande contribui- próprios fundamentos na Palavra de ma sistemática.
ção do calvinismo não se restringe Deus. Ele foi de fato o exegeta por ex-
aos manuais das mais variadas áreas celência da Reforma, sustentando que O homem reformado
do saber, mas, estende-se à integra- a Escritura é a melhor intérprete de
lidade da vida dos discípulos de Cris- si mesma. A erudição, portanto, deve Hoje temos em nossa língua edi-
to que seguem esta perspectiva. ter em vista a edificação do povo de ções diferentes das Institutas, alguns
Deus com o objetivo de que este, ins- de seus comentários bíblicos, catecis-
IHU On-Line - Como a erudição e a truído na Palavra, possa glorificar ao mo e, recentemente foi lançada uma
piedade se relacionam em seu pen- seu Senhor. edição com algumas de suas cartas e
samento? saiu também, no mês passado, outu-
Hermisten Maia Pereira da Costa - IHU On-Line - Gostaria de acrescen- bro, a primeira edição dos seus ser-
Calvino era um intelectual; todavia tar algum aspecto não questionado? mões do capítulo primeiro de Efésios.
não usava do púlpito ou de seus escri- Hermisten Maia Pereira da Costa - O Muito desse trabalho é feito de forma
tos para ostentar isso, pelo contrário, pensamento e a obra de Calvino nun- abnegada e diletante por pessoas qua-
é frequente a sua preocupação com a ca foram amplamente difundidos no se anônimas que, num ato heróico,
simplicidade e em não tentar ultra- Brasil. Quando os primeiros missioná- propõem-se a este trabalho. Deus tem
passar o revelado por intermédio de rios presbiterianos aqui chegaram, a sido generoso conosco.
especulações pecaminosas: A Palavra partir de 1855, eles não conheciam Devemos acentuar que Calvino,
é a “Escola do Espírito”; é por meio bem a obra de Calvino. A formação com sua vida e ensinamentos, con-
dela que Deus nos fala. E Deus nos fala que tiveram (Fletcher e Simonton) tribuiu para forjar um tipo novo de
objetivando a nossa edificação. foi no Seminário de Princeton (fun- homem: “O reformado” que vive no
Para Calvino, o conhecimento de dado em 1812) que estudava a obra tempo, a plenitude do seu tempo para
Deus está associado à verdadeira pie- do grande teólogo Reformado Francis a glória de Deus! Portanto, como dis-
dade, que ele define como “reverência Turretin. Charles Hodge (1797-1878), se Barth: “O verdadeiro discípulo de
associada com amor de Deus que o co- então professor de Teologia Sistemáti- Calvino só tem um caminho a seguir:
nhecimento de Seus benefícios nos fa- ca, elaborava a sua obra de Teologia não obedecer ao próprio Calvino, mas
culta”. E: “.... zelo puro e verdadeiro Sistemática. Enquanto isso, ensina- Àquele que era o mestre de Calvino”.
que ama a Deus totalmente como Pai, va, conforme aprendera, sob a égide Ser Reformado significa um apego
o reverencia verdadeiramente como do pensamento de Turretin, o grande irrestrito ao Deus da Palavra que nos
Senhor, abraça a sua justiça e teme representante escolástico da Teologia instrui e nos capacita a viver para a
ofendê-lo mais do que a própria mor- Reformada, do mesmo modo que Jo- Sua Glória, desempenhando o nosso
te.” Ele então pergunta: “Quê ajuda, hann Gerhard (1582-1637), tido como papel na sociedade, seja em que ní-
afinal, conhecer a um Deus com Quem um dos maiores teólogos luteranos da vel for, apresentando o fruto de nosso
nada tenhamos a ver?”. A sua res- labor como uma oferenda a Deus que
posta é simples: O conhecimento de  Ashbel Green Simonton (1833-1867): pas- nos criou e nos sustenta. Este é o cris-
tor presbiteriano e missionário estaduniden-
Deus deve valer-nos, “primeiro, que se, fundador da Igreja Presbiteriana do Brasil. tianismo que buscamos praticar. Gló-
nos induza ao temor e à reverência; (Nota da IHU On-Line) ria, somente a Deus.
em segundo lugar, tendo-o por guia e  Francisco Turretini (1623-1687): teólogo
protestante italiano. (Nota da IHU On-Line)
mestre, que aprendamos a dEle buscar  Charles Hodge: um dos maiores expoentes
todo bem e, em recebendo-o, a Ele e defensores do Calvinismo histórico nos Esta-
creditá-lo”. A piedade não pode es- dos Unidos durante o século XIX. Ele define a  Karl Barth (1886-1968): teólogo cristão-pro-
teologia como uma apresentação dos fatos da testante, pastor da Igreja Reformada, e um
tar dissociada da fé que confessa que Bíblia, dando ênfase na ordem dos mesmos e dos líderes da teologia dialética e da neo-orto-
em suas relações. (Nota da IHU On-Line) doxia protestante. (Nota da IHU On-Line)

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“A Reforma, sem dúvida, foi um movimento
com forte tonalidade hermenêutica”
Essência do homem não pode ser simplesmente determinada em si e por si, defen-
de Risto Saarinen. “É preciso uma dimensão verdadeiramente teológica para que
possamos entender melhor o que somos”, completa

Por Márcia Junges | Tradução Luís Marcos Sander

A
Igreja não deveria ser dirigida por bispos, mas por todos bons cristãos. Essa ideia de Calvino
trilhou o caminho para a criação das estruturas democráticas, explicou o teólogo e filósofo fin-
landês Risto Saarinen. Em sua opinião, a herança mais importante do calvinismo é o binômio
educação e direitos civis, cujo esteio é a liberdade de consciência. As declarações podem ser
conferidas, na íntegra, na entrevista a seguir, concedida, por e-mail, à IHU On-Line.
Saarinen é professor de Teologia Ecumênica no Departamento de Teologia Sistemática na Universidade
de Helsinki. É teólogo e filósofo por essa instituição e ordenado pastor pela Igreja Evangélica Luterana em
1985. Entre outros, escreveu Moral Philosophy on the Threshold of Modernity (Dordrecht: Synthese Histo-
rical Library, 2005) e Keskiajan filosofia, toim (Helsinki: Gaudeamus 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line - Como podemos com- preparou o caminho para estruturas de- cessário pensar que instituições edu-
preender o pensamento político-re- mocráticas. A Reforma também forneceu cacionais precisam ser oferecidas para
ligioso de Calvino? uma “valorização da vida comum”, isto que as pessoas possam levar uma vida
Risto Saarinen - A melhor maneira é sim- é, não só as vocações eclesiais, mas tam- decente. Desta maneira, a educação e
plesmente ler as Institutas de Calvino. bém a vida na família e no local de traba- o conhecimento formavam a base im-
Esta obra ainda é muito boa de ler. Boas lho deveria ser vista como cumprimento portante da ética e da vida boa.
biografias como a de Alister McGrath dos propósitos de Deus. Calvino também
também ajudam. Os estudos clássicos propagou a “liberdade de consciência”, IHU On-Line - Qual é o maior legado de
de Max Weber sobre a ética protestante uma ideia que constituiu o fundamento Calvino ao cristianismo no século XXI?
também podem ser recomendados. dos direitos humanos modernos. Risto Saarinen - Acredito que a educa-
ção e os direitos civis são, ainda hoje, a
IHU On-Line - De que forma essas IHU On-Line - Em que medida tais mais importante herança do calvinismo.
ideias serviram como esteio ao pen- concepções foram decisivas para a
samento moderno? formação de países como a Inglater- IHU On-Line - A teologia calvinista
Risto Saarinen - A ideia de Calvino de ra, Escócia e Estados Unidos? pode sedimentar o diálogo inter-re-
que a Igreja não deveria ser dirigida por Risto Saarinen - Esses países desenvol- ligioso? Em que aspectos?
bispos, mas por todos os bons cristãos, veram um forte sistema parlamentar Risto Saarinen - Muitas confissões cal-
de governo. Eles também estiveram vinistas ensinam que Deus deu “dois li-
 Alister McGrath (1953): professor de teo- entre os primeiros a dar liberdade de vros” à humanidade: a Bíblia e o Livro da
logia histórica da Universidade de Oxford e
pesquisador sênior do Harris Manchester Col- consciência e liberdade de expressão Natureza/Criação. O Livro da Natureza
lege. Ex-ateu, é pós-doutor em biofísica mo- a seus cidadãos. está aberto para todas as religiões. O
lecular e doutor em teologia por Oxford. Seu estudo intensivo da natureza, que é tão
interesse principal se concentra na história do
pensamento cristão, com ênfase particular na IHU On-Line - O que destacaria como básico para o surgimento da ciência mo-
relação entre as ciências naturais e a fé cristã. mais importante sobre a ética na te- derna, tinha uma motivação religiosa.
Considerado um dos mais influentes pensado- ologia de Calvino e na teologia de Atualmente, religiões diferentes podem,
res cristãos da atualidade, concedeu à revista
IHU On-Line 245, de 26-11-2007, O novo ate- Lutero? em minha opinião, ter uma concepção
ísmo em discussão, a entrevista intitulada “Em Risto Saarinen - Tanto Lutero quanto comum desse “livro da natureza” e estu-
vez de reduzir a influência do fundamentalis- Calvino acentuaram a importância da dar em que sentido elas podem valorizar
mo, Dawkins está piorando as coisas”, disponí-
vel para download em http://www.ihuonline. educação em escolas e universidades. o meio ambiente biológico vulnerável
unisinos.br/index.php?option=com_tema_cap Sua concepção um tanto pessimista do como algo que Deus deu a todos os seres
a&Itemid=23&task=detalhe&id=838. (Nota da pecado na natureza humana tornou ne- humanos.
IHU On-Line)

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Brasil em Foco
O papel das Forças Armadas no Brasil e na América Latina
Os militares brasileiros abraçaram junto com a elite civil um projeto de desenvolvi-
mento que é industrial, de alta tecnologia, e, até hoje, isso é muito forte, defende
Maria Celina Soares D’Araujo

Por Graziela Wolfart

Q
uem já não ouviu alguém em uma roda de conversa defendendo a opinião de que os
militares deveriam ganhar as ruas para fazer a segurança que é de responsabilidade
da polícia? Pois, segundo a professora da PUC-Rio, Maria Celina Soares D’Araujo, “as
pesquisas indicam que a população quer as Forças Armadas atuando contra a violência.
Mas os dirigentes e comandantes das mesmas não querem fazer isso, porque sabem que
causará um impacto muito grande para a instituição”. Na entrevista que concedeu à IHU On-Line, por
telefone, a socióloga explica que “a função do militar não é combater bandido. As Forças Armadas
devem estar preparadas caso possa haver uma eventualidade de uma ameaça, de uma guerra, para
dissuadirem-na. Não é nem para atacar”. E continua: “temos, no Brasil, uma experiência de envolver
as Forças Armadas no combate político. E isso é um problema até hoje. É um estigma que ficou para
as Forças Armadas”.
Doutora e mestre em Ciência Política (Ciência Política e Sociologia) pela Sociedade Brasileira de Ins-
trução - SBI/IUPERJ, Maria Celina é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense.
Atualmente, é professora de graduação e pós-graduação na Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro – PUC-Rio. Foi pesquisadora e professora titular do Cpdoc/Fundação Getúlio Vargas - RJ, pro-
fessora da Universidade Federal Fluminense e professora visitante em algumas universidades do Brasil
e do exterior. Tem trabalhado nas seguintes áreas de pesquisa: militares e defesa, sindicatos, partidos
políticos, Era Vargas, autoritarismo na América Latina, Justiça militar, elites e carreiras do Poder Exe-
cutivo, democracia e novos direitos. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é o papel social e é um equívoco. Porque, se a polícia enfim, fortalecer as instituições que
policial das Forças Armadas no Brasil é ineficiente, se ela é mal organiza- têm por função específica essa ati-
hoje e qual deveria ser esse papel? da ou se não tem as condições para vidade. As Forças Armadas têm a
Maria Celina D’Araujo – O seu papel administrar a questão da violência, função constitucional de defesa do
policial existe em situações excep- temos que melhorá-la. Não é tra- Estado. Não é de fazer segurança
cionais. Há um artigo na Constitui- zendo outra instituição para tapar o nas ruas. É defender o Estado em
ção Federal que fala que as Forças buraco que se resolve o problema. caso de ameaça que, felizmente, é
Armadas, quando requisitadas por Este é o debate. Há uma parte do remota no Brasil. Além disso, elas,
um dos poderes da República, podem parlamento, do governo, que quer constitucionalmente, no Brasil e em
atuar na garantia da lei e da ordem. envolver mais as Forças Armadas na todo mundo, têm funções humani-
Isso é uma atividade excepcional. O atividade da polícia, e há uma parte tárias. Em caso de catástrofes, elas
que se discute hoje é se devemos ou da academia que também quer isso. são imediatamente acionadas para
não ampliar essa atividade policial. No entanto, há uma parte que não, ajudar os poderes dos países, ajudar
O argumento para isso é de que as que pensa que devemos aprofundar, a sociedade em casos de terremotos,
polícias são muito ineficientes, a melhorar, requalificar os sistemas de de enchentes, de epidemias. Há uma
violência é muito grande, e as For- segurança pública no Brasil: a polí- série de atividades humanitárias
ças Armadas podem dar essa contri- cia civil, a polícia militar, a polícia quando a sociedade está em risco
buição. Isso, do meu ponto de vista, comunitária, as guardas municipais, que as Forças Armadas são chama-

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das a atuar, bem como em missões “No caso do Brasil, o industrialização, é preciso pesquisa,
de paz. Ou seja, há funções sociais é preciso ter uma siderurgia, o que
previstas, mas para esses casos ex- enlace dos militares com aconteceu nos anos 1940. E sempre
cepcionais. tiveram um engajamento muito for-
as questões econômicas te em atividades científicas, em es-
IHU On-Line - Quais as consequências colas. As escolas militares são esco-
de o governo delegar para as Forças é muito forte. Os las de excelência. Mas isso não é o
Armadas o papel da polícia? que ocorre nos países vizinhos, onde
Maria Celina D’Araujo - O que sabe- militares brasileiros os militares têm uma ação econômi-
mos pelo mundo afora é que isso não ca mais no sentido social. Os nossos
costuma dar muito certo. Temos, no tiveram muita vizinhos militares não têm um pro-
Brasil, uma experiência de envolver as jeto de desenvolvimento como o
Forças Armadas no combate político. preocupação com Brasil teve. Os militares brasileiros
Isso é um problema até hoje, pois fi- abraçaram junto com a elite civil um
cou um estigma para elas. E há vários armamentos, com projeto de desenvolvimento que é
países que as envolveram não só no industrial, de alta tecnologia,e,até
combate político, mas também no nar- indústria nacional de hoje,isso é muito forte.
cotráfico. A Bolívia, o Paraguai, a Ve-
nezuela, a Colômbia, o México, enfim, armamento, da IHU On-Line - Em que sentido as
nossos vizinhos têm uma experiência Forças Armadas no Brasil e na Amé-
nesse sentido, de dar para as Forças defesa, e para isso é rica Latina continuam sendo vistas
Armadas papel de polícia. Isso tem como um recurso instrumental para
problemas sérios, porque, na medida preciso industrialização, promover o desenvolvimento e para
em que colocamos o militar em con- praticar políticas de bem-estar e de
tato com o traficante, tende a haver é preciso pesquisa, é assistência social, mesmo conside-
uma contaminação e a facilidade de se rando a debilidade política desta ins-
corromper. A corrupção e as alianças preciso ter uma tituição?
com o narcotráfico na América Latina Maria Celina D’Araujo - O que aconte-
são muito fortes. Como as da polícia siderurgia, o que ce hoje na América do Sul é uma ins-
no Brasil, no caso de alguns policiais. trumentalização das Forças Armadas
A função do militar não é combater aconteceu nos no sentido de usá-las como um recur-
bandido. As Forças Armadas devem es- so para políticas sociais, como saúde,
tar preparadas caso possa haver uma anos 1940” educação, infraestrutura, construção
eventualidade de uma ameaça, de de casas, distribuição de alimentos
uma guerra, para dissuadirem-na. Não etc. Isso na Venezuela é muito for-
é nem para atacar. Os EUA querem que as Forças Arma- te, assim como no Peru e no Equador.
das no Brasil assumam essa função, Cada país tem autonomia e soberania
IHU On-Line - Qual a visão que a so- como uma força auxiliar dos EUA no para seguir suas metas e dar a defini-
ciedade civil tem das Forças Arma- combate ao narcotráfico, e há uma ção que quiser às Forças Armadas. E,
das? pressão muito grande dos EUA nesse nos países citados, elas são como que
Maria Celina D’Araujo – Temos uma sentido. Mas os militares, talvez por um braço do governo para auxiliar nas
situação bastante singular aqui. As isso mesmo, por essa pressão norte- políticas sociais e de distribuição de
pesquisas indicam que a popula- americana, não querem esse papel renda. Isso é delicado, porque é um
ção quer as Forças Armadas atuando de combater o narcotráfico. envolvimento muito grande em ques-
contra a violência. Mas os dirigentes tões de governo, e, portanto, uma
e comandantes não querem fazer IHU On-Line - Quais os principais possibilidade muito grande de partida-
isso, porque sabem que causará um pontos da história da relação dos mi- rização das Forças Armadas, e isso é
impacto muito grande para a insti- litares com as questões econômicas, um risco. Imagino que isso crie certas
tuição. Mas as pesquisas indicam que em especial a industrialização, no debilidades. Por outro lado, cada so-
a população quer isso, porque ela Brasil e na América Latina? ciedade adapta suas Forças Armadas
quer segurança. Não interessa quem Maria Celina D’Araujo - No caso do às suas conveniências. De toda forma,
vai fazer, se é a guarda municipal, Brasil, o enlace dos militares com as estamos tendo uma situação muito
civil, estadual, federal. Ela é a favor questões econômicas é muito forte. singular na América do Sul, com For-
que haja mais gente cuidando disso. Os militares brasileiros tiveram mui- ças Armadas mais subordinadas ao po-
 Sobre o tema há uma enquete no ar no sítio ta preocupação com armamentos, der civil. No entanto, elas possuem um
do IHU (www.ihu.unisinos.br), onde a maioria com indústria nacional de armamen-
dos internautas acha que as Forças Armadas grande protagonismo político e social.
não devem ter poder de polícia. (Nota da IHU to, da defesa, e para isso é preciso
On-Line)

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IHU On-Line - O que marca a diferen- do perfil das Forças Armadas brasi-
ça de postura dos militares da época
“Não há exército leiras?
da ditadura para o regime democrá- Maria Celina D’Araujo – Muita, mui-
tico?
prestigiado se não ta. Vargas, nos anos 1930 e 1940,
Maria Celina D’Araujo – Há um fato foi um chefe de governo muito pre-
que é o tempo, o Deus Chronos. Aca-
houver uma sociedade ocupado com a formação de Forças
bou a guerra fria e acabou a ideia Armadas como instituições nacio-
de que os militares eram a única
que o prestigie; não há nais. Isso quer dizer que, até então,
instituição competente para livrar o o Brasil tinha Forças Armadas muito
país do comunismo, um projeto que
honra militar se não caracterizadas por chefes locais, por
deu certo em 1964, de proteger o caudilhos locais gaúchos, pernambu-
país contra o comunismo, e a ideia
houver uma sociedade canos etc. O que se vai fazer a par-
de que as Forças Armadas eram a tir dos anos 1930 com Vargas é criar
única instituição com condições de
que lhe dê honra; e não padrões de avaliação, de carreira,
fazer isso. Nem o comunismo era de renovação das escolas, para criar
tão grande, nem as Forças Armadas
há governo militar se não um profissional militar que tivesse
eram a instituição mais apropriada um padrão de qualidade de norte
para governar o país. Foi assim que
houver uma sociedade a sul e para valorizar a profissão.
aconteceu. Hoje sabemos que era A valorização do militar no sentido
um conflito ideológico, que havia
que acabe dando de melhorar os quartéis, dos unifor-
um projeto político dos militares mes terem mais qualidade e um pa-
que queriam, sim, dirigir o país, com
consentimento a ele” drão, é o momento mais importante
o apoio da sociedade, porque mili- no sentido da formação das Forças
tar sozinho não governa se não tiver mental, e vários líderes militares se Armadas modernas. Só que ainda
apoio. Nem militar nem ninguém. O transformaram em caudilhos, e não acabaram muito politizadas, envol-
que observamos entre os comandan- eram expressões democráticas. O vidas com a política. O que hoje não
tes militares atuais é uma diferença autoritarismo é uma característica temos mais. Mas Getúlio realmente
abissal. Hoje eles têm uma ideia de forte do continente, não só dos mi- teve um papel importante nisso tudo
profissionalismo muito mais forte, litares. Não há exército prestigiado e sempre governou com o apoio das
e não têm um projeto político, são se não houver uma sociedade que Forças Armadas, que sempre foram
servidores do Estado e obedecem ao o prestigie; não há honra militar se suas avalistas. E quando não teve
governo democrático de direito e não houver uma sociedade que lhe esse apoio, em 1945, ele caiu.
à Constituição. Não se apresentam dê honra; e não há governo militar  Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954): po-
mais como atores políticos, que po- se não houver uma sociedade que lítico gaúcho, nascido em São Borja. Foi pre-
acabe dando consentimento a ele. sidente da República nos seguintes períodos:
dem ter um projeto próprio ou falar 1930-1934 (Governo Provisório), 1934-1937
em nome de um setor. É uma mudan- Não podemos dizer que o autorita- (Governo Constitucional), 1937-1945 (Regime
ça muito grande e positiva que indi- rismo vem dos militares. Ele está de Exceção), 1951-1954 (Governo eleito po-
entre os militares com mais força pularmente). Sobre Getúlio o IHU promoveu o
ca o fortalecimento da democracia Seminário Nacional A Era Vargas em Questão
no Brasil. As democracias têm como porque eles são parte da sociedade, – 1954-2004, realizado de 23 a 25 de agosto
característica a subordinação dos são pessoas que nasceram e estuda- de 2004. Paralela ao evento aconteceu a Ex-
ram numa sociedade X. Eles não vie- posição Eu Getúlio, Ele Getúlio, Nós Getúlios,
militares ao poder civil e democráti- no Espaço Cultural do IHU. A revista IHU On-
co. Isso dá mais segurança ao regime ram de Júpiter ou Saturno. Acabam Line publicou os seguintes materiais refe-
democrático. refletindo projetos políticos, ideais, rentes a Vargas: edição 111, de 16 de agosto
vícios, valores de cada sociedade. A de 2004, intitulada A Era Vargas em Questão
– 1954-2004 e a edição 112, de 23 de agos-
IHU On-Line - Qual a influência das diferença é que o militar tem arma e to de 2004, chamada Getúlio. Na edição 114,
Forças Armadas para a construção o monopólio das armas. Isso faz com de 6 de setembro de 2004, Daniel Aarão Reis
que, uma vez chegando ao poder, Filho concedeu a entrevista O desafio da es-
de uma postura de autoritarismo na querda: articular os valores democráticos com
América Latina? tenhamos um sistema político ana- a tradição estatista-desenvolvimentista, que
Maria Celina D’Araujo – O autori- crônico, que se mantém pela força, também abordou aspectos do político gaúcho.
embora esses golpes tenham con- Em 26 de agosto de 2004 o Prof. Dr. Juremir
tarismo é uma característica do ser Machado da Silva, da PUCRS, apresentou o IHU
humano, de usar mal sua autoridade. sentimento e haja uma parcela da Ideias Getúlio, 50 anos depois. O evento ge-
No caso da América do Sul, os milita- população que sempre apoie, mas a rou a publicação do número 30 dos Cadernos
manutenção desse poder se faz pela IHU Ideias, chamado Getúlio, romance ou bio-
res, desde o século XIX, com o ciclo grafia?, também de autoria de Juremir. Vale
de independência e a formação de força, e os custos são muito grandes destacar o Caderno IHU em formação número
repúblicas, tiveram um papel muito para a sociedade e a instituição. 1, publicado pelo IHU em 2004, intitulado Po-
pulismo e Trabalho. Getúlio Vargas e Leonel
importante, uma preeminência mui- Brizola. As versões eletrônicas encontram-se
to grande, um protagonismo funda- IHU On-Line - Getúlio Vargas teve al- disponíveis no sítio www.ihu.unisinos.br.
guma influência para a constituição (Nota da IHU On-Line)

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Entrevista da Semana
O mundo do trabalho e o marxismo
Antoine Artous analisa as problemáticas do trabalho em Marx e comenta as re-
leituras marxistas elaboradas por autores consagrados como Rosa Luxemburgo
e André Gorz

A
ntoine Artous é autor de Marx, l’État et la politique (Éditions Syllepse, 1999); Marx et le
travail (Editions Syllepse, avril 2003) e Le fétichisme chez Marx (Éditions Syllepse). Suas
principais influências teóricas foram: Merleau Ponty, Jean-Marie Vincent e Etienne Balibar.
Ele recebeu, em sua residência, o sociólogo brasileiro Henrique Amorim, em maio deste
ano, onde concedeu a entrevista a seguir, publicada com exclusividade pela IHU On-Line.
Eles traçam um instigante debate a partir das obras de Marx, O Capital e os Grundrisse, relacionando-
o com autores como André Gorz e Antonio Negri.
Coordenador da coleção Cahiers de Critique Communiste e membro do comitê de redação da revis-
ta ContreTemps, Artours inicia suas respostas afirmando que as leituras de Marx são plurais e situadas
na história do marxismo. Talvez, por isso, sugira: “não tem sentido ler Marx para restabelecer a verdade
de uma obra que não somente conheceu fortes evoluções de diversas problemáticas, mas da qual os
maiores textos – O Capital – são inacabados”.
Ao ser questionado sobre a relação entre trabalho imaterial e a produtividade do trabalho face ao
trabalho imaterial, ele assinala que “essas categorias fazem aparecer certas confusões atuais”. E expli-
ca: “O trabalho produz bens materiais ou serviços, mas o próprio trabalho não pode ser imaterial, ele
sempre mobiliza uma força de trabalho no quadro de um processo de produção dado”, e complementa:
“No que concerne à categoria de trabalho intelectual e manual, creio ser preciso evitar uma concepção
naturalista (os que trabalham com suas mãos ou com sua cabeça), ela visa a divisão entre as tarefas de
execução e de concepção”.
Henrique Amorim é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, onde
também realizou o mestrado em Sociologia e o doutorado em Ciências Sociais. Fez pesquisa de pós-
doutoramento na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) em Paris e na Unicamp. Atual-
mente, é pesquisador do Departamento de Sociologia da Unicamp. Entre suas obras, citamos Trabalho
Imaterial: Marx e o Debate Contemporâneo (São Paulo: Annablume, 2009) e Teoria Social e Reducio-
nismo Analítico: para uma crítica ao debate sobre a centralidade do trabalho (Caxias do Sul: Editora
da Universidade Estadual de Caxias do Sul, 2006). Amorim concedeu uma entrevista à IHU On-Line,
publicada nas Notícias do Dia do sítio do IHU em 13-11-2009, intitulada “A relação entre novas tecnolo-
gias da informação e a teoria do valor-trabalho” e disponível no link http://www.ihu.unisinos.br/index.
php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27473. Confira a entrevista.

Henrique Amorim - Como pensar somente conheceu fortes evoluções de que me diz respeito, minha caminhada
Marx nos dias de hoje? É necessário diversas problemáticas, mas da qual tem sido dupla: de uma parte, realizei
ir além de Marx? os maiores textos – O Capital – são um retorno crítico à análise do Estado
Antoine Artous - As leituras de Marx inacabados. Isso absolutamente não e da política em Marx e no marxismo;
se tornaram irremediavelmente plu- quer dizer que o rigor na leitura não e, de outra parte, faço referência aos
rais e, além disso, completamente si- seja necessário – ao contrário, e ainda textos ditos da maturidade (o período
tuadas na história do marxismo. Não mais do que no passado, sem dúvida, de O Capital) no que se refere à con-
tem sentido ler Marx para restabele- o dimensionamento das perspectivas ceitualização das problemáticas e das
cer a verdade de uma obra que não e as problematizações são plurais. No categorias. Assim, nos textos ditos da
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juventude, encontram-se indicações Na formação do pensamento econô-
muito interessantes sobre a especifi- “O ponto de partida das mico de Karl Marx (Maspero), Ernest
cidade do Estado moderno, mas é pre- Mandel escrevia: “Os Grundrisse ou a
ciso articulá-los com a análise das re- análises de Marx não dialética do tempo de trabalho e do
lações de produção capitalistas como tempo livre”. Esta concepção sempre
uma relação de exploração. Isso não é são dados ‘naturais’ ou me pareceu interessante. O debate de
fazer prova - como economista -, pois que você fala se refere a passagens
O Capital não visa fundar uma ciência ‘técnicos’, mas formas – muito marcantes – sobre o futuro da
econômica, mas se apresenta como produção capitalista, com o desenvol-
“crítica da economia política”; isto é, sociais; isto é, formas vimento do maquinismo, da ciência
como crítica das categorias de análise à produção etc.; e, neste quadro, do
e formas de objetividade do social tra- sociais de objetividade futuro do trabalho que perde sempre
zidas pelo capital. mais o seu caráter de prestação indi-
ligadas a relações sociais vidual. Marx emprega então a fórmula
Henrique Amorim - Qual é a impor- de “general intellect” de que se apro-
tância do conceito de fetichismo da dadas” priou Negri. Creio que convém ser
mercadoria em Marx? A teoria do fe- prudente quanto à própria categoria
tichismo é um desenvolvimento da explorado é pensado sob a forma de que só aparece uma vez e, aliás, não
teoria da alienação? um trabalho artesanal dominado pelo está presente em certas traduções.
Antoine Artous - Existe certamente capital) e nas problemáticas de eman- Em Negri, ela foi elevada ao nível de
um elo nas preocupações de análise. cipação: a emancipação é a marcha conceito fechado, articulado com ou-
Trata-se de dar conta sobre como, nas para uma sociedade transparente, tras categorias (poder constituinte,
relações de produção capitalistas, as pois acaba permitindo que se realize multidão...) para inscrever-se numa
relações sociais se conectam acima a essência humana. Ora, fundamental- problemática hoje conhecida: de um
da cabeça dos indivíduos (e, em pri- mente, em O Capital, Marx toma outro lado, o considerável alargamento da
meiro lugar, dos assalariados) e apa- ponto de partida: a especificidade das categoria de produção, já que, por
recem como o movimento da “coisa relações sociais de produção capitalis- meio do intelecto geral toda ativida-
social” (o capital, o trabalho, a mer- ta e seu efeito sobre o agir e o pen-
 Ernest Ezra Mandel (1923-1995) foi um eco-
cadoria...), relações sociais que são samento dos indivíduos. Neste quadro, nomista e político judeu-alemão radicado na
“naturalizadas”, consideradas como a teoria do fetichismo não remete ao Bélgica, considerado um dos mais importantes
“naturais”. Em todo caso, a teoria da que seria uma forma de consciência dirigentes trotskistas da segunda metade do
século XX. Além disso, foi significativa a sua
alienação, caso se queira levá-la a sé- alienada, mas à opacidade específica contribuição teórica ao Marxismo antistalinis-
rio, se apoia numa problemática “es- produzida pela dominação social da ta. Como economista, especializou-se no estu-
sencialista”; assim, nos Manuscritos forma valor caracterizada pelas rela- do das crises cíclicas. Também era conhecido
como Ernest Germain, Pierre Gousset, Henri
de 1844, o jovem Marx faz referência ções de produção capitalistas. Aqui, Vallin, Walter, etc. (Nota da IHU On-Line).
a uma essência humana (do trabalho) a concepção da dita “ideologia” é  Antonio Negri (1933): filósofo político e mo-
que se expressaria sob uma forma alie- interessante, pois Marx não se refere ral italiano. Durante a adolescência, foi mili-
tante da Juventude Italiana de Ação Católica,
nada no trabalho capitalista. Natural- inicialmente à produção manipulada como Umberto Eco e outros intelectuais italia-
mente Marx, que conhece Hegel, não de idéias pela classe dominante, mas nos. Em 2000, publica o livro-manifesto Impé-
a considera naturalista, ela se constrói – de certa forma – a um campo de vi- rio (5ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2003), com
Michael Hardt. Atualmente, após a suspensão
através da história. Isto tem diversas são imbricado nas relações sociais. É, de todas as acusações contra ele, definitiva-
consequências na análise (o trabalho por exemplo, desta maneira que Marx mente liberado, ele vive entre Paris e Vene-
 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo ale- critica a economia política clássica, za, escreve para revistas e jornais do mundo
mão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás inteiro e publicou Multidão. Guerra e demo-
de Aquino, tentou desenvolver um sistema fi- sem fazer disso um simples discurso cracia na era do império (Rio de Janeiro/São
losófico no qual estivessem integradas todas apologético. Paulo: Record, 2005), também com Michael
as contribuições de seus principais predeces- Hardt. Sobre essa obra, publicamos um artigo
sores. Sua primeira obra, A fenomenologia do de Marco Bascetta na 125ª edição da IHU On-
espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos Henrique Amorim – Nos anos 1980, Line, de 29-11-2004. O livro é uma espécie de
da Europa continental no séc. XX. Sobre Hegel, os Grundrisse de Marx foram revisi- continuidade da obra anterior da dupla, Impé-
confira a edição especial nº 217 de 30-04-2007, tados por diversos escritores, como, rio. Ele foi apresentado na primeira edição do
intitulada Fenomenologia do espírito, de Ge- evento Abrindo o Livro, promovido pelo IHU,
org Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), em por exemplo, Jean-Marie Vincent, em abril de 2003. Acaba de ser lançado o livro
comemoração aos 200 anos de lançamento André Gorz e Antonio Negri. Como Commonwealth (Comunidade), pela Harvard
dessa obra. O material está disponível em pensa a apropriação desta obra? University Press, dos pesquisadores Michael
http://www.unisinos.br/ihuonline/uploads/ Hardt e Antonio Negri, que completa a trilogia
edicoes/1177963119.41pdf.pdf. Sobre Hegel, Antoine Artous - Por razões de tra- sobre a globalização, iniciada com Império e
confira, ainda, a edição 261 da IHU On-Line, duções, os debates sobre estes tex- Multidão.
de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne- tos foram muito tardios na França e, Em 2003, Negri esteve na América do Sul (Bra-
Lima. Um novo modo de ler Hegel, disponível sil e Argentina) em sua primeira viagem in-
em http://www.unisinos.br/ihuonline/uploa- dito isso, eles começaram bem antes ternacional após décadas entre o cárcere e o
ds/edicoes/1213054489.296pdf.pdf. (Nota da dos anos 1980. Assim, desde 1967, exílio. (Nota da IHU On-Line)
IHU On-Line).

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de participa da produção; e, de outro dorias no mercado, o que permite pôr
lado, um novo quadro de expressão de
“Para Gorz, em relação social os diversos traba-
uma problemática “espontaneísta”, lhos. Além disso, é preciso insistir no
já que, sempre graças ao general in-
racionalidade caráter contraditório do processo des-
tellect, a consciência – comunista – é crito por Marx nos Grundrisse, como
imanente às mobilizações da multidão.
econômica é o faz de maneira pertinente Postone
Em Jean-Marie Vincent, a referência no livro que acaba de ser traduzido ao
ao general intellect é bem mais razo-
sinônimo de francês, Temps, travail et domination
ável e visa essencialmente sublinhar sociale (Mille et une nuits, 2009). De
as contradições em curso na evolu-
racionalidade um lado, a dinâmica do capital desen-
ção da produção capitalista moderna volve de maneira considerável as for-
que, de um lado é obrigada a pôr em
capitalista” ças produtivas que abrem para as pos-
obra formas de inteligência coletiva sibilidades de que fala Marx, mas, de
no processo de produção de conjunto, outro, ele não pode passar do tempo
trole da produção para simplesmente
introduzindo novas formas de segmen- de trabalho imediato que o capital re-
propor alternativas à margem, ele se
tação e de hierarquização. Nessa épo- segmenta sem cessar, já que a valori-
põe a explicar que a inteligência que
ca, como ele mesmo dirá mais tarde, zação (como processo de exploração)
se desenvolveu na produção, o desen-
Gorz conhece mal as análises de Vin- repousa sobre ele.
volvimento do capitalismo cognitivo
cent; notadamente, esta obra maior
– torna caduca a teoria do valor.
que é Crítica do trabalho (PUF), pu- Henrique Amorim - Você prefaciou a
blicada em 1987. Contrariamente, ele nova edição do livro de Isaak Roubi-
Henrique Amorim - A teoria do va-
critica de maneira muito forte (e com ne. Qual é a importância deste livro
lor-trabalho continua analiticamente
fórmulas corretas) as análises de Ne- e de Roubine para a teoria do valor-
válida face às novas formas de tra-
gri e a transparência do processo de trabalho?
balho, face às novas tecnologias da
produção que elas supõem. Ela funcio- Antoine Artous - Escrito na Rússia dos
informação? Como pensa as questões
na de certa maneira como um jogo de anos 1920, este livro (que desaparece-
colocadas à teoria do valor pelos teó-
espelho: Gorz explica que toda forma rá com seu autor. Aqui o problema é
ricos do capitalismo cognitivo?
de controle coletivo da produção mo- outro, a tradução pode estar errada de
Antoine Artous - Pode-se continuar
derna se tornou impossível, a não ser fato o livro e o autor podem ter sumi-
com Gorz. Segundo ele, a forte redu-
para desenvolver problemáticas um do, ou mesmo morrido, deve-se fazer
ção do “tempo de trabalho imediato
pouco “delirantes”, como as de Negri. uma consulta) é o primeiro texto que
necessário à produção da riqueza”,
Num segundo tempo, como ele mesmo faz aparecer claramente a ruptura de
para retomar uma fórmula de Marx
o explica, ele retoma a temática do Marx com a Economia Política Clássica,
nos Grundrisse, tornaria impossível a
general intellect de maneira, segundo em particular com Ricardo. Ele leva a
medida do tempo de trabalho sobre
ele, próxima de Vincent. Erradamen- sério conceitos como o de trabalho
o qual repousa o valor (Gorz tem fór-
te, a meu ver, pois, além do fato de abstrato e de fetichismo da mercado-
mulas mais ou menos avançadas, mas
que ele considera sempre que é im- ria, que são elementos-chave da teoria
esta é exatamente sua problemática).
possível desenvolver formas de con- marxiana do valor com, justamente, a
Seria preciso retornar mais em deta-
teoria do valor de Ricardo. Mais em
 André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco. lhe aos dados empíricos e às extra-
Escreveu inúmeros livros, vários deles tradu- geral – e isso me parece decisivo -, ele
polações feitas. Para permanecer no
zidos para o português, entre eles Adeus ao mostra como o ponto de partida das
proletariado (Rio de Janeiro: Forense Uni- plano geral, para Gorz tudo se passa,
análises de Marx não são dados ‘natu-
versitária, 1982), Metamorfoses do traba- portanto, como se o valor repousasse
lho. Crítica da razão econômica (São Paulo:  David Ricardo (1772 - 1823): economista in-
Annablume, 2003) e Misérias do Presente,
sobre uma medida imediata, no seio glês, considerado um dos principais represen-
Riqueza do Possível (São Paulo: Annablume, da produção, do tempo de trabalho. tantes da economia política clássica. Exerceu
2004). Realizamos uma entrevista com André Num olhar mais atento, isso remete a uma grande influência tanto sobre os econo-
Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição mistas neoclássicos, como sobre os economis-
da revista IHU On-Line, de 02-01-2005, e na
uma problemática bastante “vulgar”, tas marxistas, o que revela sua importância
íntegra no número 31 dos Cadernos IHU ideias, ligando valor e produção de bens ma- para o desenvolvimento da ciência econômica.
com o título A crise e o êxodo da sociedade teriais. Aqui se está bem longe de Vin- Os temas presentes em suas obras incluem a
salarial, disponível para download em http:// teoria do valor-trabalho, a teoria da distribui-
www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/
cent que não cessou de repetir (com ção (as relações entre o lucro e os salários), o
edicoes/1158331399.05pdf.pdf. Sobre André boas razões) que o tempo de trabalho comércio internacional, temas monetários. A
Gorz também pode ser lido o texto Pelo êxodo de que fala Marx não remete ao que sua teoria das vantagens comparativas cons-
da sociedade salarial. A evolução do conceito titui a base essencial da teoria do comércio
de trabalho em André Gorz, de autoria de An-
seria a naturalidade imediata (física) internacional. Demonstrou que duas nações
dré Langer, pesquisador do Cepat. O texto está do trabalho no seio da produção, mas podem beneficiar-se do comércio livre, mesmo
publicado nos Cadernos IHU n.º 5, de 2004. a um conjunto de procedimentos so- que uma nação seja menos eficiente na pro-
O site do Instituto Humanitas Unisinos – IHU dução de todos os tipos de bens do que o seu
deu ampla repercussão à morte de Gorz. Para
ciais. Na ocorrência aqui, a medida (a parceiro comercial. Ao apresentar esta teoria,
acessar o material, acesse as Notícias do Dia. comparação) dos tempos de trabalho usou o comércio entre Portugal e Inglaterra
(Nota da IHU On-Line) se realiza através da venda de merca- como exemplo demonstrativo. (Nota da IHU
On-Line)

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rais’ ou ‘técnicos’, mas formas sociais; “O crescimento da serviços, mas o próprio trabalho não
isto é, formas sociais de objetividade pode ser imaterial, ele sempre mobili-
ligadas a relações sociais dadas. Este produtividade do za uma força de trabalho no quadro de
livro desaparecerá para só reaparecer um processo de produção dado. O tra-
nos anos 1970, justamente com uma trabalho quer dizer que balho dos caixas do grande comércio
reatualização destes conceitos-chave. nada tem de um trabalho imaterial. No
Na França, estas correntes vão crista- um mesmo número de que concerne à categoria de trabalho
lizar-se notadamente na revista Cri- intelectual e manual, creio ser preciso
tiques de l’économie politique, onde trabalhadores produz, evitar uma concepção naturalista (os
se encontra Vincent, mas também que trabalham com suas mãos ou com
“jovens” economistas como Salama e por um mesmo ritmo sua cabeça), ela visa a divisão entre as
Valier, ligados, num primeiro tempo, a tarefas de execução e de concepção
Mandel. Eu retorno com mais detalhes de trabalho, uma e direção de que se falou mais acima.
sobre essa questão em meu prefácio. Quanto à questão sobre a produtivida-
quantidade maior de de, acredita-se que o processo de pro-
Henrique Amorim - Quais são suas dução, como processo de valorização,
censuras à análise de Ernest Mandel mercadorias. Em que só pode referir-se à produção de um
sobre a teoria do valor? Quais são as bem material e o trabalho imediata-
relações entre a análise de Mandel e medida o trabalho dito mente ligado a esta produção. O cres-
de Rosa Luxemburgo? cimento da produtividade do trabalho
Antoine Artous – Rosa e Mandel ques- ‘imaterial’ estaria fora quer dizer que um mesmo número de
tionam uma certa visão cientificista, trabalhadores produz, por um mesmo
apresentando a economia política não disso?” ritmo de trabalho, uma quantidade
como uma ciência da economia em ge- maior de mercadorias. Em que medi-
ral, mas como uma economia domina- da o trabalho dito “imaterial” estaria
da pelas relações mercantis e pelo pro- Dito isso (que não é difícil mostrar) fora disso?
cesso de valorização. Dito isso, Mandel a distinção de Marx entre trabalho
não trata da articulação do conjunto produtivo/improdutivo não remete à Henrique Amorim - Qual é a influ-
das categorias ligadas à teoria marxia- natureza do trabalho, mas à análise ência teórica de Jean-Marie Vincent
na da qual acabo de falar. Assim, em das relações sociais que o estruturam. sobre sua análise, sobretudo em re-
A formação do pensamento econômi- Para o capital, o trabalho produtivo é lação à teoria do valor?
co de Karl Marx, as categorias do fe- aquele que produz valor; pelo menos Antoine Artous - Nos anos 1960-70, em
tichismo da mercadoria e do trabalho segundo Marx. Além disso, creio que a sua maioria, a tradição marxista não se
são ignoradas, e Marx é simplesmente lógica do sistema repousa estrutural- interessava por essas questões (Althus-
apresentado como alguém que seguiu mente sobre a divisão entre trabalho ser), seja que, em oposição a Althusser,
o esforço de cientificidade de Ricardo. de execução e de elaboração/direção. reivindicava um “humanismo” marxis-
A dimensão crítica é injetada do exte- Marx o mostra muito bem em O Capital ta e da alienação, ou que, por vezes,
rior de uma exposição muito clássica e algumas de suas análises prefiguram se voltava para a teoria da coisificação
do valor-trabalho, em referência ao o desenvolvimento do dito fordismo. [réification] de Lukács de História e
que seria uma teoria da alienação es- Naturalmente, isso mudou (embora Consciência de Classe. Mas, a teoria
boçada nos Manuscritos de 1844. não se tenha feito a demonstração do marxiana do valor, como teoria crítica
que seria uma nova forma de regula- da forma valor dos produtos do trabalho
Henrique Amorim - A produção base- ção). O desenvolvimento das NTICs e das relações sociais ligadas à produção
ada sobre as NTICs supera a divisão permite pólos de autonomia relativa das mercadorias, eram pouco tratadas,
entre trabalho produtivo e trabalho em certos setores, mas globalmen- pelo menos com O Capital, como “crí-
improdutivo, entre tarefas de execu- te a economia organizada em rede e tica da economia política”. E, fazendo
ção e de elaboração? se apoiando sobre o general intellect isso, Vincent desenvolveu uma fórmula
Antoine Artous - Creio que notada- produz sem cessar não-inteligência, de Marx, nos Grundrisse, que escrevia
mente com Negri essas correntes to- novas segmentações e dominação. que, com o capitalismo, as relações de
maram pela letra extrapolações dos dependência não se manifestam “de
anos 1980 sobre as novas tecnologias. Henrique Amorim - Como pensar a  Louis Althusser (1918-1990): filósofo marxis-
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Artous prefaciou a última edição da célebre relação entre trabalho imaterial e ta francês. Seu envolvimento com a ideologia
obra de Isaak Rubin publicada pela Syllepse: trabalho material os relacionado aos marxista pode ser devido ao tempo gasto nos
Essais sur la théorie de la valeur de Marx. Este campos de concentração nazista, durante a
prefácio está disponível no link: http://www.
conceitos de trabalho manual e tra- segunda guerra mundial, depois da qual co-
contretemps.eu/lectures/isaak-roubine-es- balho intelectual de Marx? meçou sua carreira acadêmica. (Nota da IHU
sais-sur-theorie-valeur-marx. (Nota da IHU Antoine Artous - Essas categorias fa- On-Line)
On-Line)  Georg Lukács (1885-1971): foi um filósofo
 Novas Tecnologias de Informação e Comuni-
zem aparecer certas confusões atuais. húngaro de grande importância no cenário in-
(Nota da IHU On-Line)
cação. ��������� O trabalho produz bens materiais ou telectual do século XX. (Nota da IHU On-Line)

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maneira tal que os indivíduos são agora

Acesse outras edições da


vistos por abstrações, enquanto antes
eles eram dependentes uns dos outros”.
Vincent sistematizou esta análise da do-
minação através do que ele chamava de
“abstrações reais”; isso é falar das rela-
ções sociais tornadas formas abstratas,
dispondo de sua própria objetividade e
IHU On-Line.
circulando acima da cabeça dos indiví-
duos. É assim que o trabalho se tornara
uma forma abstrata captando o agir dos
indivíduos e dominando-o, não somente
no momento da produção, mas ao longo
de todo o processo de produção.

Henrique Amorim - Qual é o papel de


Max Weber sobre o pensamento de
Lukács? Quais os limites das análises
pautadas pela questão do desenvolvi-
mento da racionalidade econômica?
Antoine Artous - É fundamental, em His-
tória e consciência de classe, Lukács não
parte, como Marx, da análise das relações
de produção e de troca e do modo como
ele estrutura as relações sociais, mas da
categoria de Max Weber: a modernidade
como produto da racionalização do mun-
do. E ele acrescenta sua própria teoria da
reificação [ou coisificação] como, grosso
modo, uma teoria da coisificação das re-
lações sociais sob o efeito do cálculo. Este
livro terá uma influência sobre certas cor-
rentes críticas, notadamente a Escola de
Frankfurt10. E assim vai se construir toda
uma série de categorias (racionalidade
econômica, instrumental) através das
quais a produção moderna/capitalista é
fundamentalmente pensada como aplica-
ção da ciência moderna à produção. As-
sim, para Gorz, racionalidade econômica
é sinônimo de racionalidade capitalista.
Vincent conhecia muito bem todos esses
autores, e uma de suas contribuições é
ter retomado algumas de suas temáticas,
mas integrando-as na problemática mar-
xiana da “crítica da economia política”.

10 Escola de Frankfurt: Escola de pensamen-


to formada por professores, em grande parte
sociólogos marxistas alemães. Abordou critica-
mente aspectos contemporâneos das formas de
Elas estão disponíveis na
comunicação e cultura humanas. Deve-se à Es-
cola de Frankfurt a criação de conceitos como página eletrônica
indústria cultural e cultura de massa. Entre os

www.ihu.unisinos.br
principais professores e acadêmicos da Esco-
la podemos destacar: Theodor Adorno (1903-
1969), Max Horkmeimer (1885-1973), Walter
Benjamin, Herbert Marcuse (1917-1979), Franz
Neumann, entre outros. (Nota da IHU On-Line)

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Teologia Pública

“A energia máxima será sempre o amor”


Ana Luisa Janeira explica o conceito de energética teilhardiana e como Tei-
lhard de Chardin formulou a tese que se tornou a base de seu pensamento

Por Graziela Wolfart e Márcia Junges

A
na Luisa Janeira considera Teilhard de Chardin um pensador que desenvolve suas
ideias a partir de um conceito de evolução muito próximo ao seu pensamento (de
Teilhard de Chardin) e que tem uma visão marcadamente espiritualista da evolução,
além de teológica e sintética. A filósofa portuguesa esteve na Unisinos no último mês
de setembro, participando do IX Simpósio internacional IHU: Ecos de Darwin, onde
proferiu a conferência intitulada “A energética teilhardiana: missão evolutiva em terras cristãs”.
A entrevista que segue foi concedida pessoalmente. Janeira explica que, segundo Teilhard de
Chardin, tudo se desenvolve “numa lei da complexidade consciente. Quanto mais a matéria é
complexa, maior consciência haverá. E, nesse caso, a pessoa humana aparece como aquela que
sabe o que sabe, isto é, saber ao quadrado. Ela não é o término da evolução, ela é um marco,
e, a partir dela, a evolução é constituída, não em termos de cosmogênese, nem de biogênese,
mas em termos de noogênese, criando a noosfera. E essa noosfera é que é fundamentalmente a
dimensão sociológica da evolução”.
Ana Luisa Janeira é professora na Universidade de Lisboa, Portugal, doutora em Filosofia Con-
temporânea pela Université de Paris I, e autora de A Energética no Pensamento de Teilhard de
Chardin (Livraria Cruz-Faculdade de Filosofia, 1978). Confira a entrevista.

IHU On-Line - O que é a energética em 1881, apercebe-se, durante sua for-


teilhardiana? sua teoria evolucionista. O cinquentenário mação, da importância desse conceito,
de sua morte foi lembrado no Simpósio In-
Ana Luisa Janeira – A partir da segun- ternacional Terra Habitável: um desafio para e desenvolve uma visão do mundo, uma
da metade do século XIX, quando foram a humanidade, promovido pelo Instituto Hu- ideologia baseada na questão da ener-
assumidas a primeira e a segunda lei da manitas Unisinos de 16 a 19-05-2005. Sobre gia. E é isso que ele chamou de energéti-
Chardin, confira o artigo de Carlos Heitor
termodinâmica, houve uma movimen- Cony, publicado nas Notícias do Dia do site ca, que se caracteriza pela existência de
tação do pensamento dominante para do IHU, www.ihu.unisinos.br, de 16-06-2006, duas energias: a energia tangencial e a
as questões da energia. E o conceito de Teilhard: o fenômeno humano. O jesuíta foi energia radial. A energia tangencial atua
precursor do que foi chamado de evolucionis-
energia tornou-se muito influente, mo cristão. A edição 140 da IHU On-Line, de ao nível da matéria, e a energia radial
quase como o conceito de evolução. 09-05-2005, dedicou-lhe o tema de capa sob o atua ao nível do espírito. E Teilhard de-
A partir de certa altura, começou-se a título Teilhard de Chardin: cientista e místico, finiu uma relação entre as duas, dizendo
disponível em http://www.unisinos.br/ihuon-
falar de evolução de várias coisas, que line/uploads/edicoes/1158268345.05pdf. que para uma energia máxima tangen-
é um conceito gerado no interior da pdf. A edição 304 da IHU On-Line, de 17- cial há um mínimo de energia radial. E
geologia e da biologia, e que depois se 08-2009, intitula-se O futuro que advém. A
evolução e a fé cristã segundo Teilhard de www.unisinos.br/ihuonline/uploads/edicoes/
expande para outras áreas. O mesmo Chardin. Confira, ainda, as entrevistas Char- 1158266847.13pdf.pdf, ambas com Waldecy
acontece com o conceito de energia. E din revela a cumplicidade entre o espírito e Tenório. Na edição 143, de 30-05-2005, Geor-
então, Teilhard de Chardin, que nasce a matéria, http://www.unisinos.br/ihuonli- ge Coyne concedeu a entrevista Teilhard e a
ne/uploads/edicoes/1158267341.59pdf.pdf, teoria da evolução, disponível para download
 Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955): publicada na edição 135, de 05-05-2005 e em http://www.unisinos.br/ihuonline/uploa-
paleontólogo, teólogo, filósofo e jesuíta, que Teilhard de Chardin, Saint-Exupéry, publica- ds/edicoes/1158266098.47pdf.pdf. (Nota da
rompeu fronteiras entre a ciência e a fé com da na edição 142, de 23-05-2005, em http:// IHU On-Line)

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que para uma energia máxima radial, há
um mínimo de energia tangencial. E isso
“No caso de Teilhard, natureza é muito exuberante, prin-
cipalmente o espetáculo geológico
constituiu, de fato, a partir de um mo-
mento importante da vida dele, a base
tudo se desenvolve, de uma elevação imensa com carac-
terísticas muito fortes. Parece que
do seu pensamento. E ele equacionou
todo o pensamento a tal ponto que, por
segundo ele diz, numa seu pai era fascinado pelas questões
da geologia, das rochas, e é natural
inerência deste conceito, a energia má-
xima será sempre o amor.
lei da complexidade que ele tenha vivido essa sintonia,
esse casamento com a natureza de

IHU On-Line - Muitas pessoas cha-


consciente. Quanto mais uma forma muito intensa. E isso foi
se desenvolvendo depois, pois ele se
mam Chardin de “Darwin católico”.
Que aproximações a senhora faria
a matéria é complexa, tornou paleontólogo, acabou viven-
do no mundo dos biólogos e geólogos
entre ambos os cientistas?
Ana Luisa Janeira – Ah, eu não faço
maior consciência e isso cria naturalmente uma aproxi-
mação. Agora, não sei se é panteís-
aproximação nenhuma. Considero
que Teilhard é um pensador que de-
haverá” ta, ou se não é. O que interessa é a
sua capacidade de escrever quando
senvolve suas ideias a partir de um se encontra no deserto e não tem
conceito de evolução muito próximo outra opção. La messe sur le monde
ao seu pensamento e que tem uma cosmogênese, nem de biogênese, mas é de uma paz incontornável para a
visão marcadamente espiritualis- em termos de noogênese, criando a cultura no século XX.
ta da evolução, além de teológica noosfera. E essa noosfera é que é fun-
e sintética. Espiritualista porque, damentalmente a dimensão sociológi- IHU On-Line - Qual é o significado de
em última análise, a evolução ten- ca da evolução. se comemorar o bicentenário do nas-
de para um aumento do espírito; cimento de Darwin?
sintética porque ele não tem uma IHU On-Line - Em sua opinião, Char- Ana Luisa Janeira – A Unisinos, no
visão da descrição da energia à ma- din conseguiu harmonizar teoria da fundo dessas comemorações, posi-
neira, por exemplo, de Bergson, e, evolução e cristianismo? ciona-se com uma vanguarda avan-
simultaneamente, tem um conceito Ana Luisa Janeira – Essas harmonias çada de pensamento e se mostra ca-
finalista de evolução. Não sou muito nem sempre são muito conseguidas. paz de reconhecer em Darwin uma
partidária de grandes comparações, Muitas vezes, elas acabam por des- figura que inovou diante de suas
porque era preciso que eu conhe- truir, anular, ou reduzir certas dife- possibilidades e de seus limites, num
cesse tanto Darwin quanto Teilhard renças. Mas como projeto foi algo pensamento arrojado, original, cria-
para poder compará-los. Conheço muito consistente e muito bem con- tivo, revolucionário até. É algo mui-
mais Teilhard, por isso é preferível seguido. Evidentemente que muitos to importante nesse momento em
não fazer comparações. católicos continuaram a achar que as que vivemos no mundo, muitas ve-
ideias dele não têm consistência do zes, marcado por um conformismo,
IHU On-Line - O que caracteriza a ponto de vista da teologia cristã or- uma formatação que é própria da
ideia de evolução no pensamento de todoxa, e também muitos cientistas televisão, e há uma tendência muito
Teilhard de Chardin? continuaram a achar que as propostas forte para a normalização entre as
Ana Luisa Janeira – No caso de Tei- que ele tem não contribuem em ab- pessoas. Darwin continua sendo um
lhard, tudo se desenvolve, segundo solutamente nada com as ideias mais exemplo de alguém que arrojou com
ele diz, numa lei da complexidade avançadas da evolução do ponto de uma estratégia especial.
consciente. Quanto mais a matéria vista científico.
é complexa, maior consciência have-
rá. E, nesse caso, o homem aparece IHU On-Line - Os críticos de Chardin Leia mais...
como aquele que sabe o que sabe, acusam-no de ter uma visão dema-
>> Ana Luisa Janeira já concedeu outras
isto é, saber ao quadrado. Ele não é siado otimista da natureza, que fler- entrevistas à IHU On-Line:
o término da evolução, ele é um mar- ta com o panteísmo. Em que medida * Perfil – Ana Luisa Janeira. Publicada na IHU
co, e, a partir dele, a evolução pas- o jesuíta se inspira em Darwin para On-Line número 311, de 19-10-2009, disponível
no link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
sa, é constituída, não em termos de compor a sua cosmovisão? php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=d
Ana Luisa Janeira – Acho que não. etalhe&id=1863&id_edicao=339 ;
 Henri Bergson (1859-1941): filósofo e es-
critor francês. �����������������������������
Conhecido principalmente por
Ele tinha uma forte personalidade e * Missões jesuíticas em terras não cristãs. Publi-
cada na IHU On-Line número 313, de 03-11-2009,
Matière et mémoire e L’Évolution créatrice, uma maneira única de ser, de inti- disponível no link http://www.ihuonline.unisi-
sua obra é de grande atualidade e tem sido midade constante com a natureza. É nos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemi
estudada em diferentes disciplinas, como ci-
nema, literatura, neuropsicologia. Sobre
�����������
esse
provável que algo tenha acontecido d=23&task=detalhe&id=1881&id_edicao=341.

autor, confira a edição 237 da IHU On-Line, com ele desde criança, porque ele
de 24-09-2007, A evolução criadora, de Hen- nasce e vive numa zona onde domi-
ri Bergson. Sua atualidade cem anos depois. (Nota da IHU On-
 A missa sobre o mundo. ���������
(Nota da IHU On-Line)
na uma imensa montanha e onde a Line)

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do IHU

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A cultura do excesso
e alguns mitos da interatividade
Entre as mudanças decorrentes da chamada Revolução
Informacional, dois aspectos marcantes circundam
os debates em torno do tema: a multiplicação dos
meios e fluxos comunicacionais, e o surgimento de
inúmeros canais de interatividade que supostamente
possibilitam maior participação das audiências. Mas
até que ponto estas transformações estão operando
no sentido de ampliar o debate público e promover o
desenvolvimento humano?

Por Rodrigo Jacobus*

A carga de transformações da antevê mazelas decorrentes dos novos


chamada Revolução Informacional tempos, em que a midiatização gene-
vem interferindo significativamen- ralizada ocupa papel determinante,
te no modus vivendi das sociedades e a reflexão, calcada no raciocínio
contemporâneas. Novas rotinas são e na memória, cede lugar a um agir
estabelecidas nas relações sociais, condicionado por reflexos. A redução
compondo um quadro de incertezas dos espaços que definem as distâncias
oriundo da necessidade de adequação reais e físicas rompe com a grandeza
à velocidade intrínseca ao crescente natural do mundo e associa-se à lei
desenvolvimento tecnológico. Paul Vi- do menor esforço, introduzindo um
rilio, em sua obra A arte do motor, consumo desmedido de invenções que
 Paul Virilio: urbanista e filósofo francês, tendem a aumentar a velocidade de
nascido em 1932. Estuda e critica efeitos tudo. No encalço desta lógica, cujo
perniciosos da velocidade nas relações sociais
contemporâneas, desde os seus reflexos no (São Paulo: Estação Liberdade, 1999) e Ville
processo cognitivo até suas implicações na panique (Paris: Galilée. 2004). Reproduzimos
política. É autor, entre outros, de Guerra Pura duas entrevistas com Virilio sobre o seu livro
(São Paulo: Brasiliense, 1984); O espaço críti- Ville Panique, uma na 108ª edição da IHU On-
co (Rio de Janeiro: Editora 34, 1993); A má- Line, de 05-07-2004, outra na 136ª edição, de
quina de visão (Rio de Janeiro: José Olympio, 11-0-04-2005. Dele, também publicamos ou-
1994); Velocidade e Política (São Paulo: Esta- tra entrevista na 95ª edição da IHU On-Line,
ção Liberdade, 1996); A bomba informática de 05-04-2004. (Nota da IHU On-Line)

* Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação (FABICO/UFRGS).


Atua na comunicação comunitária como colaborador junto à Associação Brasileira de Radiodifusão
Comunitária do Rio Grande do Sul (ABRAÇO-RS) e radiocoms de Porto Alegre e Região Metropolita-
na. É membro do Grupo de Pesquisa Comunicação, Economia Política e Sociedade (CEPOS/UNISI-
NOS). E-mail: rodrigojacobus@gmail.com

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discurso propõe eficiência, pressupõe- o fato de que a exagerada fartura neste caso, é grande a possibilidade
se maior aproximação interpessoal e de inovações é imanente ao modo de uma convulsão social sem prece-
participação interativa. Na prática, a de produção capitalista, movido por dentes, pois a grande maioria não
cultura do excesso corrompe as possi- uma carga de intencionalidades que está preparada para uma repentina
bilidades e potenciais do ferramental atuam como o grande motor dos mo- interrupção cultural. Os estímulos a
tecnológico. tores de Virilio. Assim, se as novas que estamos sendo submetidos nos
O ritmo resultante dessa com- tecnologias ampliam e dinamizam tornaram irresponsavelmente de-
binação acelera o viver de modo a nossa capacidade de interação e pendentes da estrutura oferecida, e
questionável. A voracidade da pro- acesso à informação, não obstante esta se tornou mais importante que
dução atravessa a esfera pública e podem agir modestamente no sen- nós mesmos. Urge a necessidade de
gera uma recepção desenfreada da tido de promover a reflexão. A im- um rompimento de caráter distribu-
densa carga informacional, de modo posição cultural da lógica quantita- tivo e organicamente orientado para
que o ganho temporal acaba toma- tiva em detrimento da qualitativa, a uma nova lógica, mais próxima do
do pela própria lógica que o criou, supervalorização do avanço técnico pensamento sistêmico e orientada
ocupando-se de modo muito mais em lugar do conteúdo, e a submissão pela solidariedade e pelo bem-estar
quantitativo que qualitativo. Junto da audiência à lógica do mercado social para além de discursos políti-
à expansão dos espaços comunica- abrem demasiado espaço à entorpe- cos eleitoreiros e falaciosos.
cionais, cujo desenvolvimento está cente indústria do entretenimento A diluição informacional ineren-
diretamente associado à crescente e à reafirmação cíclica do culto ao te à Internet tende a comprometer
popularização da Internet e à con- hedonismo. O amanhã é tratado com a visibilidade massiva, mas sugere
sequente digitalização dos meios, é certa indiferença, sob a ótica de um uma falsa aparência de participação
inegável que se ampliam as possibi- despretensioso olhar vislumbrado, efetiva. Em termos de interferência
lidades de produção e participação. conformado com as possíveis conse- na esfera pública, por exemplo, é
Em contrapartida, as relações hu- quências da produção em um modelo preciso aceitar que o movimento em
manas são cada vez mais marcadas com tendências centralistas e mono- torno dos inúmeros blogs indepen-
pelo efêmero e o fugaz, conduzindo polistas. dentes ainda é incapaz de competir
a uma espécie de isolamento físico Entre as consequências mais gra- com a influência da grande mídia
que caracteriza uma das principais ves deste nebuloso caminho, há o monopólica, que continua concen-
faces do chamado hiperindividu- risco eminente de um colapso so- trando as maiores audiências em
alismo. Se, por um lado, há uma cial tal qual Saramago alertou em torno do viés mercadológico. Assim,
crescente qualificação técnica que seu Ensaio sobre a cegueira. Uma é necessário valorizar as alternati-
expande as capacidades humanas a quebra no fluxo a que estamos ha- vas descentralizadoras, mas também
limites nunca imaginados, por ou- bituados pode jogar a sociedade é preciso resgatar o envolvimento
tro, há uma redução dos vínculos no caos e rapidamente esmagar os da sociedade civil na elaboração do
com a realidade, estabelecendo-se projetos civilizatórios sob orienta- próprio rumo, ampliando o debate
uma atomização que se amplifica na ção hegemônica do capitalismo. E, público em torno de temas comuns
mesma medida em que a tecnologia  José Saramago (1922), escritor português, à grande maioria e combatendo a
enquanto bem de consumo invade os Nobel de Literatura em 1998. É conhecido por excessiva diluição das informações
cotidianos. utilizar-se de frases e períodos compridos, veiculadas. É preciso reconsiderar a
usando a pontuação de uma maneira não-con-
Há um abismo entre o avanço vencional (aparentemente incorreta aos olhos lógica de produção da mídia e bus-
tecnológico e a nossa capacidade da maioria). Entre suas obras, destacam-se: a) car a formação de redes que com-
de avaliar e lidar com a real neces- Poesia: Os Poemas Possíveis (1966), Provavel- partilhem objetivos, rompendo com
mente Alegria (1970); b) Crônica: Deste Mundo
sidade de tantas opções. A cultura e do Outro (1971); c) Teatro: A Noite (1979); a ideia de audiência enquanto pro-
do excesso tende a contaminar os Que Farei com Este Livro? (1980); d) Contos: duto e fomentando a participação
debates com discursos publicitários Objecto Quase (1978); e) Romance: Levantan- real dos receptores para muito além
do do chão (1980), A jangada de pedra (1986);
excessivamente otimistas, que re- A caverna (2001), O homem duplicado (2002); do papel de meros consumidores.
lativizam as contradições e omitem Ensaio sobre a lucidez (2004). (Nota da IHU
On-Line)
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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- Confira nas Notícias do Dia de 19-11-2009
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- “O pessoal fala que a Amazônia é o pulmão do mundo. Nós
nos.br) de 17-11-2009 a 21-11-2009. estamos no centro da floresta, então aqui é o coração. Se
nós somos o coração, será que as hidrelétricas não vão
“O mundo mudou e com ele as formas de propriedade prejudicar esse coração? Nós dependemos da Amazônia
também mudaram”. para sobreviver, como é que vamos estragar tudo?”, protesta
Entrevista com Sergio Amadeu a coordenadora do Movimento Tapajós Vivo.
Confira nas Notícias do Dia de 17-11-2009
“Quando a sociedade muda e acaba apostando num tipo O BNDES na visão dos movimentos sociais.
de tecnologia que é baseado na troca de bens e mate- Entrevista com Luiz Dalla Costa.
riais, que não tem desgaste nem escassez, de arquivos Confira nas Notícias do Dia de 20-11-2009
digitais que podem ser copiados uma vez ou um milhão Primeiro Encontro Sul-americano de Populações Afetadas por
de vezes sem nenhuma alteração do seu original, nós Projetos Financiados pelo BNDES discutirá o impacto social
estamos numa outra fase”, aposta o professor. e ambiental dos grandes projetos financiados pelo BNDES.
“Queremos que o BNDES seja um banco público, de interesse
SUS: ‘‘Saúde é uma responsabilidade pública’’. público e popular e o mais democrático possível”, afirma o co-
Entrevista com Veralice Maria Gonçalves ordenador do Movimento por Atingidos por Barragens - MAB.
Confira nas Notícias do Dia de 18-11-2009
“Quem constrói e faz o SUS acontecer é a população, Zen Budismo brasileiro: uma construção a partir de
mas, em muitos casos, ela não conhece a sua força na uma tradição milenar
discussão das prioridades e ações que têm que ser reali- Entrevista com Monja Kokai
zadas no Sistema Único de Saúde”, afirma a gestora do Confira nas Notícias do Dia de 21-11-2009
DATASUS/RS. Na última sexta-feira, dia 20-11, o Mestre Moriyama Ro-
shi, considerado um dos maiores mestres vivos do Zen-
Hidrelétricas no Tapajós: “Nós dependemos da Budismo japonês, esteve em São Leopoldo. Monja Kokai,
Amazônia para sobreviver, como é que vamos estragar líder religiosa do centro de práticas Zen Vale do Sinos,
tudo?’’ comenta a importância dessa visita e aborda outros as-
Entrevista com Jesielita Gomes pectos da prática zen.

Leia as Notícias do Dia em

www.ihu.unisinos.br
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Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


www.ihu.unisinos.br

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Agenda da Semana
Confira os eventos dessa semana realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU
(www.ihu.unisinos.br).

Dia 26-11-2009
IHU ideias
Prof. Dr. Alfredo José da Veiga-Neto – Ulbra
Governamentalidade neoliberal e Educação: problematizações a partir de Michel Foucault

Participe dos eventos do IHU


A programação completa está
disponível no endereço eletrônico

www.ihu.unisinos.br

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IHU Repórter

Gelson Fiorentin
Por Patricia Fachin | Foto Arquivo Pessoal

G
elson Fiorentin nasceu no noroeste do Rio Grande do
Sul e, ainda jovem, em busca de formação universi-
tária, mudou-se para São Leopoldo onde conheceu
a Unisinos. Formado pela instituição, há vinte anos
ele integra o corpo docente do curso de Biologia da
Unisinos e acompanha a história da universidade desde a década
de 80. Na entrevista que segue, ele conta alguns aspectos desta
trajetória e fala sobre seu trabalho no PASEC. Confira.

Origens – Nasci no município de para estudar na universidade. Eu gos- dos na Unisinos, fui contemplado pelo
Constantina, no Rio Grande do Sul. tava da área de ciências biológicas, Crédito Educativo e, então, paguei a
Meus pais eram agricultores e, aos mas ainda não tinha convicção sobre matrícula e ganhei uma ajuda de cus-
seis anos, comecei a trabalhar na la- que curso escolher. Aceitei o convite to para poder estudar. No decorrer do
voura. Tenho mais dois irmãos mais e mudei para São Leopoldo com eles. curso, desenvolvi atividades volun-
velhos. Trabalhei no interior com Optei pela Biologia, uma área que tárias sob orientação do padre Josef
meu pai até os 17 anos e, nesse tem- sempre gostei, pois tive contato, des- Hauser, com planárias. Na época, o
po, também vendi pasteis e picolés. de pequeno, com animais e plantas. curso de Biologia oferecia duas licen-
Por alguns meses, também trabalhei Em São Leopoldo, morei num edifício ciaturas: a Curta e a Plena. Em 1984,
com meu irmão em um escritório de onde hoje é o Hotel Colina. Nós o apeli- me formei na Licenciatura Curta, o
contabilidade. Lá, conheci uma fun- damos de “cachopão”, porque o prédio que confere o direito de lecionar no
cionária que me incentivou a conti- não tinha reboco. Do outro lado da rua, ensino fundamental. No ano seguinte,
nuar os estudos e a sair da cidade. existia o arvoredo, onde ficavam hos- concluí a Licenciatura Plena e pas-
pedadas as moças, também alunas da sei a lecionar no Colégio Rio Branco,
Vida de estudante - Me aventurei universidade. Para nós, estudantes, era em São Leopoldo. Em março de 1985,
com mais oito colegas para estudar importante ficar nesse local porque não iniciei a pós-graduação na Pontifícia
fora da minha cidade e me mudei tínhamos despesas com passagem para  Confira a edição número 92 da IHU On-Line,
de 15-03-2004, intitulada Homenagem ao Pe.
para Passo Fundo. Lá cursei o pré- se deslocar até a universidade e ainda Josef Hauser. (Nota da IHU On-Line)
vestibular. Na cidade, trabalhei como almoçávamos e jantávamos na Unisinos,
office-boy e depois atuei na área de no Restaurante Universitário - RU.
cobrança bancária. Alguns colegas
que iriam prestar vestibular para en- Formação acadêmica e trajetória
genharia na Unisinos me convidaram profissional – Quando iniciei os estu-
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Universidade Católica - PUC-RS formação dos nossos acadêmicos
e, um ano mais tarde, recebi como para os estudantes, que IHU – Conheço o IHU desde a sua
uma bolsa do CNPq e me dediquei estão cercados pela violência formação. É um importante ponto
ao mestrado. Em 1987-88, fui doméstica e vários aspectos de de referência na universidade.
diretor da Reserva Biológica vulnerabilidade. Nosso trabalho
da Sagrina, em Ronda Alta, visa o desenvolvimento de ações Família – Sou casado com uma
Rio Grande do Sul. Concluí o interdisciplinares. bióloga, Ligia Pons, e tenho
mestrado em 1989 e, em seguida, três filhos: Guilherme, de 17
fui chamado para trabalhar na Unisinos – Muitos dos alunos anos, que está se preparando
Unisinos, como professor do que estudaram comigo tinham para prestar o vestibular em
curso de Biologia. Num período o sonho de trabalhar na Economia; Débora, 15, que
de crise da universidade, fiquei Unisinos. Quando estudávamos, está cursando o primeiro ano
afastado da sala de aula, mas a universidade tinha uma do ensino médio; e o Pedro
permaneci trabalhando com o Henrique, nosso caçula, tem 9
padre Hauser, com planárias e anos e cursa a quarta série do
insetos aquáticos. Em 1991 e ensino fundamental. O Gui sabe
1992, também fui secretário do “Sonho em manter a tocar guitarra, e a Débora e o
Meio Ambiente de São Leopoldo. Pedro estão aprendendo a tocar
Essa foi uma experiência qualidade de vida, a bateria: tenho uma banda em
interessante. Ainda não conclui casa. Minha esposa é professora
o doutorado e sou professor da cultura e a educação de Histologia na Ulbra. Residimos
graduação em Biologia. Também em Canoas.
atuo no curso de Enfermagem, em minha família.
na área de parasitas. Além disso, Lazer – Gosto muito de ficar
sou coordenador do Programa Também gostaria de em casa, mas minha esposa é
de Ação Sócio-Educativo na mais nômade. Então, temos um
Comunidade - PASEC. Dentro ver todas as equilíbrio. Aproveito o tempo
deste programa, existe o projeto livre para organizar o pátio,
Horta Mãe-da-Terra na escola comunidades vivendo mexer na terra, plantar e brincar
Municipal Santa Marta, em com meus filhos. Também gosto
São Leopoldo, onde trabalham com mais dignidade, de viajar, na medida do possível,
técnicos e monitores da Biologia, e fazer caminhadas relaxantes.
Nutrição e Serviço Social. num ambiente Sou gremista, e quando posso,
Trabalhamos no contra-turno assisto aos jogos. Consigo reunir
escolar e atendemos cerca de 80 saudável e com a família no período das férias,
crianças e adolescentes. A horta é porque no decorrer do ano
motivacional para a participação condições de vida mais sempre nos envolvemos muito
dos jovens. O Serviço Social com o trabalho.
faz visitas nas residências dos adequadas. Além
alunos para avaliar situações Sonho – Profissionalmente, quero
de vulnerabilidade, o setor disso, gostaria de ver a terminar o doutorado. Às vezes,
de Nutrição trabalha com a nos desiludimos. Sonho em manter
Educação Nutricional, enquanto ‘comunidade’ política a qualidade de vida, a cultura e
a Biologia é responsável pelas a educação em minha família.
questões ambientais tais como reduzida em 70%” Também gostaria de ver todas
a preparação do solo para o as comunidades vivendo com
plantio, a colheita, a importância mais dignidade, num ambiente
da separação do lixo, a saudável e com condições de
formulação de compostagem, vida mais adequadas. Além disso,
a recuperação de nascentes e estrutura bem diferente, não gostaria de ver a “comunidade”
a captação da água da chuva existia a Avenida Unisinos, política reduzida em 70%.
para irrigação. Recentemente, apenas uma rua com muito
conseguimos a aprovação de um barro vermelho, e brincávamos Religião – Sou católico e tenho a
projeto na secretaria do Meio que quando o campus estivesse minha fé, mas creio que a grande
Ambiente para implantar um pronto, estaríamos lecionando religião é saber viver, respirar o
aquecedor solar com garrafas na universidade. Trabalhar ar, curtir o sol e dar condições
pets. É um trabalho bastante aqui é agradável. Valeu todo o para que todos possam viver
interessante, tanto para a esforço. com dignidade.

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Destaques
Governamentalidade neoliberal, educação e Foucault
Na próxima quinta-feira, dia 26 de novembro, o tema do evento IHU ideias será Governamentalidade
neoliberal e Educação: problematizações a partir de Michel Foucault, a ser apresentado pelo Prof.
Dr. Alfredo José da Veiga-Neto, professor na Ulbra. O IHU ideias é realizado pelo Instituto Humanitas
Unisinos - IHU, sempre às quintas-feiras, das 17h30min às 19h, na sala 1G119 do IHU. A entrada é
gratuita.

IHU no Fórum Social Mundial


O IHU, em parceria com o Curso de Serviço Social, está preparando o IV Seminário de Políticas Pú-
blicas, que acontecerá em 27-01-2010, no Anfiteatro Padre Werner, na Unisinos. A quarta edição do
evento compõe um conjunto de atividades autogestionárias do Fórum Social Mundial 2010. O Fórum
está de volta a Porto Alegre na edição em que comemora seus 10 anos e será realizado de 25 a 29
de janeiro de 2010. Também no dia 26 de janeiro de 2010, o IHU participará do Fórum Mundial de
Teologia da Libertação, que se realizará na Escola Superior de Teologia – EST. O Instituto é uma das
Institutições que integra o Conselho Permanente do FMTL e apóia a atividade do FMTL no FSM - 10
anos, com a temática: Libertação e Teologia. Direito e justiça. Encontraram-se a graça e a verdade,
a justiça e a paz se beijaram (Sl 85,10).

10-12: inauguração e debate sobre Ignacio Ellacuría e companheiros


Para lembrar o assassinato de seis padres jesuítas, a funcionária da residência e sua filha de 15 anos,
no dia 16 de novembro de 1989, no jardim da comunidade jesuíta da Universidade Centro-Americana
José Simeón Cañas (UCA), em El Salvador, e celebrar a importância desse martírio para o contexto
latino-americano, o Instituto Humanitas Unisinos - IHU irá exibir o debate Memory and Its Strength:
The Martyrs of El Salvador [A memória e sua força: Os mártires de El Salvador], que irá ocorrer no
Boston College, nos Estados Unidos, no dia 30 de novembro. Nesse encontro, o filósofo norte-ameri-
cano Noam Chomsky e o jesuíta, teólogo e co-fundador da UCA, Jon Sobrino irão debater sobre a
importância dessa memória, mediados pelo jesuíta e reitor emérito do Boston College, J. Donald
Monan. A exibição no IHU, traduzida ao português, irá ocorrer no dia 10 de dezembro, Dia Interna-
cional dos Direitos Humanos. Nessa data, como homenagem póstuma da Unisinos, a atual sala de
eventos do IHU – 1G119 – será reinaugurada como Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros. Leia mais
em “Sala Ignacio Ellacuría - Memorial” (http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_conten
t&task=view&id=330&Itemid=102)

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