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CHARBEL NIÑO EL-HANI

Diferenças
entre homens
e mulheres: biologia
ou cultura ?
A revista Veja publicou, em sua edição de mens e mulheres a padrões diferenciados de CHARBEL NIÑO
22 de março de 1995, uma reportagem acerca ativação de regiões cerebrais, deixando de lado EL-HANI é professor
de História e
das diferenças entre homens e mulheres, cujo toda a historicidade das condições masculina Filosofia das
título é uma pérola do determinismo biológi- e feminina: Ciências Biológicas
do Instituto de
co, “Neurônios que Fazem a Diferença” (1). Biologia da
Nessa reportagem, somente duas explicações “A principal diferença entre homens e mu- Universidade Federal
da Bahia.
alternativas, inteiramente opostas, são conce- lheres se encontra na forma pela qual utili-
bidas para a origem de tais diferenças: elas só zam o cérebro. Nos homens, predomina o
poderiam ser decorrentes da cultura ou da bio- uso do lado esquerdo, responsável entre ou- Agradecimentos: a Antônio
Marcos Pereira (Cesame/De-
logia. A contraposição dos biólogos, que afir- tras funções pelo raciocínio lógico. As mu- partamento de Medicina Pre-
ventiva da UFBA) e Diogo
mariam um primado da natureza, e dos psicó- lheres usam tanto a porção esquerda como Meyer (Instituto de Biociên-
logos e sociólogos, que privilegiariam a cultu- cias da USP) pela revisão do
a direita do cérebro, que deflagra os meca- manuscrito e por numerosas
ra, é explicitamente colocada pelas jornalistas nismos da emoção. Elas têm, por isso, uma sugestões que me foram ex-
tremamente valiosas.
(2). No entanto, torna-se cada vez mais claro relação mais emocionada com todas as for-
que a grande maioria das características hu- mas da linguagem. Eles são mais frios” (3).
manas, em especial aquelas de caráter
comportamental, é decorrente de uma interação A reportagem apóia-se em alguns resulta-
das estruturas biológicas e do ambiente físico dos obtidos por pesquisadores americanos, mas 1 K. Pastore e V. França,
e sociocultural. Esta terceira possibilidade, estes não indicam uma determinação biológi- “Neurônios que Fazem a
Diferença”, in Veja, ano 28,
mais plausível por não acorrentar a espécie ca das diferenças entre homens e mulheres, no 12, 1995, pp. 76-82.

humana a sua biologia, colocando-a à parte de mas apenas que deve existir uma contribuição 2 Pastore e França escrevem
(p. 76) que “há séculos os
sua natureza histórica e social, e tampouco da biologia para tais diferenças, de modo que biólogos afirmam o prima-
do da natureza enquanto
concebê-la como infinitamente flexível, sem elas não poderiam ser explicadas apenas por psicólogos e sociólogos
sempre privilegiaram a cul-
quaisquer restrições impostas por sua estrutu- fatores de ordem histórica e sociocultural. Num tura, a escola, a família ou,
ra biológica, foi simplesmente ignorada na certo momento, é feita a ressalva de que “[as] mais amplamente, a vida
em sociedade”.
reportagem. descobertas são interessantíssimas, mas é sem-
3 Pastore e França, op. cit.,
Antes, pelo contrário, as autoras do texto pre bom ter cautela diante de conexões fáceis p. 77.

praticamente reduzem a diferença entre ho- da neurologia com o comportamento” (4). No 4 Idem, ibidem, p. 80.

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entanto, as próprias autoras não parecem dar ção do coração, do sistema nervoso central,
grande atenção a esta ressalva, uma vez que do sistema imune, e de qualquer outro órgão
seu artigo é recheado de tais conexões fáceis. e tecido necessário para a vida” (6).
5 Cf. K. C. Smith, The Desse modo, é sintomática que a irredu-
Emperor’s New Genes: the
Role of the Genome in tibilidade do comportamento a uma determi- O desenvolvimento é aqui reduzido a nada
Development and Evo-
lution, tese de doutora- nação exclusivamente neurológica não seja mais que uma simples leitura da informação
mento defendida na Univer-
sidade de Duke, em agosto explorada de modo adequado, vinculando-se genética num ambiente celular passivo, de tal
de 1994. Em sua tese,
Smith faz uma crítica exten- a referência à cautela necessária na compreen- modo que isso implica que as propriedades do
siva da explicação
genecêntrica do desenvol-
são das conexões entre a biologia e o compor- organismo poderão ser igualmente reduzidas
vimento. tamento apenas à seguinte citação, atribuída a a uma determinação genética (7). Encontra-
6 C. DeLisi, “The Human Doreen Kimura, neurologista da Universida- mos aqui a mesma oposição simplista entre
Genome Project”, in
American Scientist 76: 488- de de Ontário Ocidental, Canadá: “A desco- genes e ambiente, natureza e cultura, que per-
493, 1988, p. 489.
berta de substanciais diferenças entre os sexos mite que os genes sejam selecionados como
7 O determinismo genético é
a versão mais reducionista sugere que homens e mulheres possam ter in- causas do desenvolvimento, relegando-se os
e refinada do determinismo fatores ambientais ao papel de simples condi-
biológico. Ele pode ser de- teresses e habilidades diferentes, independen-
finido como a explicação de
temente de qualquer influência social”. A afir- ções passivas desse processo. O desenvolvi-
propriedades fenotípicas
por meio de uma redução a mação de Kimura não está necessariamente mento orgânico depende, no entanto, de um
causas genéticas, ainda
que apenas parcialmente. comprometida com um determinismo bioló- conjunto de fatores genéticos e ambientais que
Neste último caso, as influ-
ências ambientais são leva- gico, uma vez que implica apenas um reconhe- interagem de modo extremamente complexo.
das em consideração, mas
os pesos relativos das cau- cimento de que há diferenças de natureza bio- Os genes são apenas parte deste conjunto de
sas genéticas e ambientais
são vistos como separada- lógica entre homens e mulheres. De qualquer fatores, ou, em outras palavras, da totalidade
mente computáveis, de de condições necessárias ao desenvolvimen-
modo que a interação entre modo, ela não contribui para esclarecer aos
os dois componentes cau-
leitores que estas diferenças biológicas são to, e, por conseguinte, não é de forma alguma
sais é excluída da explica-
ção. O determinismo gené- condições necessárias mas não suficientes para evidente que eles mereçam maior atenção,
tico pode ser também defi-
nido como a redução dos a explicação das diferenças no comportamen- enquanto fatores causais, do que os outros
processos de desenvolvi-
mento a um simples desdo- to dos dois sexos. Por outro lado, a reportagem componentes deste complexo multifatorial.
bramento de um programa
genético prévio, de forma como um todo enfatiza a idéia de uma sufi- Antes, pelo contrário, parece mais lógico su-
que as propriedades do or-
ganismo podem ser vistas ciência prática das diferenças biológicas na por que o complexo em si, e não os genes ou
como preestabelecidas qualquer outro de seus componentes, deve ser
pela informação genética. A
explicação destes traços comportamentais.
explicação exclusivamente
O recurso a dicotomias simplistas, tais visto como a causa do processo de desenvolvi-
genética do desenvolvi-
mento é referida como a como inato versus adquirido, natureza versus mento. Dessa forma, as explicações
“visão genecêntrica do de-
senvolvimento” (cf. Smith, cultura, genético versus ambiental, é prejudi- genecêntricas dependem de algum procedi-
1994).
cial ao entendimento dos fenômenos biológi- mento que permita a seleção dos genes como
8 Os fatores são ditos
epigenéticos quando são cos e, em especial, para a compreensão da fatores causais, e a conseqüente redução dos
pertinentes aos processos
de desenvolvimento que se “natureza humana”, que não é apenas biológi- fatores epigenéticos (8) a simples condições, e
colocam acima do nível pri- não propriamente causas do desenvolvimento
mário de ação gênica. Des-
ca mas também histórica e socialmente con-
se modo, esses fatores ca- tingente. Não se trata, no entanto, de um equí- orgânico.
racterizam níveis de orga-
nização de maior comple- voco exclusivo de jornalistas ou do público em As visões genecêntricas repousam em su-
xidade que a organização
molecular, onde têm propri- geral, uma vez que explicações igualmente posições errôneas acerca da relação entre os
amente lugar os processos
de desenvolvimento. Esses simplistas podem ser encontradas na literatura fatores genéticos e epigenéticos e da natureza
processos são principal-
mente orgânicos, e não científica, sobretudo no que se refere ao enten- da explicação causal e devem ser substituídas
moleculares e celulares.
Isso implica que eles não dimento dos processos de desenvolvimento (5). por teorias mais inclusivas dos processos cau-
podem ser dissociados dos sais no desenvolvimento:
processos celulares e
Num artigo acerca do Projeto Genoma Huma-
moleculares, mas também no, cujo objetivo é o conhecimento completo
não podem ser simples-
mente reduzidos a produ- da informação genética da espécie humana, “A solução parece residir no reconheci-
tos desses processos.
encontramos por exemplo o seguinte trecho: mento de que a natureza complexa dos sis-
9 K. C. Smith, op. cit., p. 122.
temas biológicos freqüentemente empres-
10 L. Partridge, “Genetics and
Behaviour”, in T. R. Halliday
“Esta coleção de cromossomos no ovo fer- ta-lhes uma independência e importância
e P. J. B. Slater (eds.), Ani- tilizado constitui a série completa de instru- que não pode ser capturada por explica-
mal Behaviour, vol. 3,
Genes, Deve-lopment and ções para o desenvolvimento, determinan- ções reducionistas, monísticas. Embora
Learning, Blackwell, 1983,
pp. 11-51. do a temporização e os detalhes da forma- possamos [...] nos empenhar em explica-

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ções dos produtos dos sistemas biológicos sociocultural (11). Desse modo, o desenvolvi-
em termos de seus componentes, deve-se mento é certamente um produto sintético da
11 Cf. R. Levins e R. Lewontin,
ter em mente que estas são exceções à re- interação de fatores genéticos e epigenéticos, The Dialectical Biologist,
Cambridge, Harvard
gra. Devemos alterar a maneira como con- e qualquer tentativa de reduzi-lo a uma deter- University Press, 1985, pp.
cebemos a causação biológica, de modo minação genética ou epigenética contribui para 2-3. “O grande sucesso do
método cartesiano e da vi-
que possamos reconhecer que os próprios um fortalecimento da abordagem analítica de são cartesiana da nature-
za é em parte o resultado
sistemas são freqüentemente as melhores fatores “principais” e “secundários”. Esta dis- de uma via histórica de
menor resistência. Aque-
explicações de seus produtos” (9). tinção, no entanto, e como escreve Mackie, é les problemas que se ren-
dem ao ataque são perse-
inteiramente arbitrária quando aplicada a fato- guidos com maior vigor,
precisamente porque o
Como escreve Partridge, num artigo so- res que são itens igualmente necessários de método funciona ali. Ou-
tros problemas e outros fe-
bre genética e comportamento, a idéia de que uma condição suficiente mínima para a ocor- nômenos são deixados
todas as instruções para formar organismos rência de uma fenômeno (12). para trás, isolados do en-
tendimento pelo compro-
podem ser encontradas nos genes é infeliz Os limites da idéia de uma correspondên- misso cartesiano. Os pro-
blemas mais difíceis não
(10). Os genes apenas coordenam o processo cia direta entre genes e fenes estão associados, são tocados, simplesmen-
te porque carreiras cientí-
de desenvolvimento, que conduzirá do zigoto em primeiro lugar, ao fato inegável de que os ficas brilhantes não são
construídas sobre fracas-
ao organismo, ou seja, o genótipo traz em si produtos gênicos são parte de um nível mais so permanente. Assim os
problemas da compreen-
a informação primária para a constituição de complexo de organização, o ambiente celular, são do desenvolvimento
embrionário e psíquico e
padrões metabólicos que, por meio de um pro- em que eles adquirem novas propriedades que da estrutura e função do
cesso complexo de interação com o meio não têm enquanto biomoléculas individuali- sistema nervoso central
permanecem em muito no
ambiente e com a própria estrutura orgânica zadas. A relação entre a informação genética e mesmo estado insa-
tisfatório em que se encon-
em formação, originam as propriedades do o desenvolvimento das características orgâni- travam há cinqüenta anos,
enquanto os biólogos
organismo. O desenvolvimento não pode ser cas dificilmente é direta porque ela atravessa moleculares seguem de
triunfo em triunfo na des-
reduzido a um programa genético apenas, em barreiras de descontinuidade entre níveis crição e manipulação de
genes”. O cartesianismo
virtude da influência que os fatores organizacionais, oriundas da associação das referido por Levins e
Lewontin nada mais é que
epigenéticos exercem sobre os referidos pa- partes em todos organizados que lhes confe- um sinônimo para redu-
drões metabólicos, sobre a própria expressão rem novas propriedades, que elas não têm cionismo.

da informação gênica e sobre o produto final, enquanto partes. A dialética da relação todo- 12 J. L. Mackie, “Causes and
Conditions”, in American
o organismo. No caso da espécie humana, parte evidencia que os retratos reducionistas Philosophical Quartely
2(4): 245-264, 1965, p.
então, a situação é bem mais complicada: os dos fenômenos orgânicos, baseados em sele- 253. “[...] cada um dos
momentos na condição
traços comportamentais não podem sequer ções causais arbitrárias, são extremamente suficiente mínima [...] pode
ser igualmente considera-
ser reduzidos ao nível do organismo, uma vez pobres, e que a ciência vê-se desafiada, do a causa. Eles podem
ser distinguidos como cau-
que eles são o resultado não só do desenvol- contemporaneamente, a aproximar-se dos sis- sas produtoras, causas
vimento orgânico, mas também da história temas complexos sem despi-los de toda a sua disparadoras, e assim por
diante, mas é inteiramen-
do indivíduo numa pluralidade de redes de complexidade, uma vez que eles são caracte- te arbitrário selecionar-se
como ‘principais’ ou ‘se-
relações sociais. rizados por processos emergentes, que não são cundários’ diferentes mo-
mentos que são itens
A ênfase na explicação genética do desen- prontamente redutíveis a fenômenos de níveis igualmente não-redundan-
tes numa condição sufi-
volvimento introduz um viés na pesquisa, que de organização mais simples. ciente mínima [...]”. De for-
ma similar, Darwin escre-
aumenta o conhecimento do desenvolvimento Smith procura demonstrar que a função veu, em A Origem das
Espécies (Belo Horizonte,
a um nível molecular mas, ao mesmo tempo, genética não é tão direta como freqüentemente Ed. Itatiaia/Edusp, 1985, p.
distancia a biologia de um conhecimento se sugere, uma vez que não só os produtos 95), seguindo a crítica da
distinção entre causas e
satisfatório deste fenômeno: o desenvolvimen- gênicos têm de ser incorporados numa totali- condições desenvolvida
por John Stuart Mill, em
to embrionário tem lugar num organismo em dade de relações celulares preexistentes, mas seu Sistema de Lógica:
“Todas as espécies [...]
formação, que confere aos produtos gênicos a própria expressão e regulação dos genes estão sujeitas à ação de
diferentes fatores que limi-
que se tornam uma sua parte novas proprieda- depende do ambiente celular: tam seus números, agin-
do durante períodos dife-
des, que eles não possuem enquanto produtos rentes de sua existência e
durante determinadas
gênicos isolados, e a origem de um conjunto “[...] a função genética não é tão direta épocas ou estações do
significativo de traços individuais, sobretudo como é tipicamente retratada. Para um gene ano. Alguns desses fato-
res devem ser mais ativos
de natureza comportamental, não pode ser produzir um fene, ele deve (pelo menos) que outros, mas é a ação
conjunta de todos eles que
dissociada de uma constante interação do ser ser ligado e assistido na produção de um irá determinar a quantida-
de média de ocorrência, se
humano com o ambiente circundante, a princí- transcrito de RNA por uma variedade de não mesmo a própria exis-
tência da espécie” (grifo
pio de natureza apenas biológica e logo enzimas. Este transcrito deve ser processa- nosso).

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do num mRNA maduro, quimicamente zir-nos para terrenos mais distantes do que
estabilizado e traduzido numa proteína. os processos envolvidos na expressão
Então a proteína deve ser marcada, dobra- gênica em si, tais como a montagem das
da em sua estrutura tridimensional e trans- estruturas celulares a partir de seus com-
portada para uma área da célula onde pode ponentes, a natureza da informação
exercer o efeito tencionado” (13). posicional, e o estabelecimento de gradi-
entes” (14).
A crítica de Smith é poderosa: o argu-
mento da correspondência direta entre genes A seleção dos genes como causas do de-
e características não se sustenta em face do senvolvimento pode ser baseada na relação
próprio conhecimento gerado pela bioquími- evidente entre a variabilidade dos padrões de
ca e biologia molecular. A compreensão do expressão gênica e a diferenciação celular.
metabolismo celular e, em particular, dos pro- Contudo, os fatores epigenéticos também apre-
cessos de expressão gênica indica que não há, sentam um grau considerável de variação que
na relação entre moléculas e células, apenas é relevante em termos causais. Esta conclusão
uma influência das partes sobre o todo, mas só pode ser evitada se a descrição das condi-
também uma influência significativa do todo ções subjacentes aos processos de diferencia-
sobre as partes. Desse modo, qualquer mode- ção celular e morfogênese for feita de modo a
lo explicativo que perca de vista a reciproci- enfatizar, na explicação do desenvolvimento,
dade desta relação entre moléculas e células a constância dos fatores epigenéticos e a vari-
se distanciará de uma explicação satisfatória abilidade dos padrões de expressão gênica.
dos processos orgânicos, reificando partes do Uma descrição de tal modo simplificada perde
processo como explicações de sua totalidade. de vista, no entanto, aspectos importantes do
O ambiente celular não pode ser reduzido desenvolvimento, como por exemplo a rela-
a um conjunto aleatório de produtos gênicos. ção entre a diferenciação celular e os padrões
Ao contrário, as células são constituídas por de distribuição espaço-temporal de fatores
compartimentos individualizados, de modo epigenéticos, que estão freqüentemente envol-
que as biomoléculas devem ser direcionadas vidos na regulação da expressão gênica:
para seus locais apropriados, incorporadas em
estruturas celulares previamente existentes, “[...] afirmar que a simples presença ou
e suas funções, acopladas a um conjunto or- ausência (dos) fatores (epigenéticos) é seu
denado de processos celulares. Além disso, o único aspecto importante em termos cau-
desenvolvimento está relacionado a padrões sais é simplificar grosseiramente a biolo-
espaço-temporais de concentração que são gia. Mesmo se admitíssemos que estes fa-
cruciais para a compreensão da diferencia- tores são universalmente presentes,
ção celular e dos processos morfogenéticos e constitutivamente produzidos e inteiramen-
a constituição de propriedades compor- te monomórficos (o que seria altamente
tamentais não pode ser dissociada de fatores incomum), eles ainda assim exibiriam pa-
socioculturais (Figura 1). drões de concentração, tanto no espaço
As explicações genecêntricas não se sus- como no tempo, que são cruciais para a
tentam porque a compreensão da origem e compreensão dos processos morfo-
função dos ambientes celulares distancia-nos genéticos” (15).
dos mecanismos puramente genéticos, colo-
cando-nos no domínio dos fatores epigenéticos: A descrição do processo de desenvolvi-
mento, vinculando-se ao pressuposto teórico
“A expressão dos genes em termos de pro- de que este se encontra inteiramente codifica-
teínas começa com o código genético, mas do num programa genético, pode transformar
13 K. C. Smith, op. cit., p. 108.
inclui os eventos responsáveis pela a natureza das próprias circunstâncias do de-
14 B. Lewin, Genes IV, Oxford, temporização da expressão gênica e pela senvolvimento, enfatizando a variabilidade
Oxford University Press,
1990, p. v. localização apropriada da proteína na cé- dos padrões de expressão gênica e a constân-
15 K. C. Smith, 1992, p. 339. lula. Estes últimos eventos podem condu- cia dos fatores epigenéticos, referidos apenas

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Figura 1

transcrição tradução
a) Informação genética (DNA) mRNA Produto gênico

Nível molecular: ação gênica

Direcionamento de proteínas (protein targeting) Ambiente celular


Compartimentalização das funções bioquímicas
Montagem de estruturas celulares (supramoleculares)
Padrões espaço-temporais de concentração
Processos morfogenéticos
Regulação de expressão gênica

Nível celular: fatores epigenéticos Padrões emergentes de distribuição,


estrutura e função dos produtos gênicos
Padrões de expressão gênica

Desenvolvimento orgânico:
nível orgânico/fatores epigenéticos Padrões fisiológicos

Redes de relações sociais: Construção da identidade


nível social/fatores socioculturais Comportamento

b)
Construção da identidade
Desenvolvimento orgânico: Padrões fisiológicos
Comportamento
nível orgânico/fatores epigenéticos

c)
Construção da identidade
Redes de relações sociais:
Comportamento
nível social/fatores socioculturais

O desenvolvimento retratado como um produto sintético da interação de fatores genéticos e epigenéticos,


incluindo as redes de relações sociais em que tem lugar a constituição da identidade subjetiva, de evidente
importância na origem dos traços comportamentais (a). Esta representação esquemática evidencia as limitações
das explicações deterministas, como a proposta por Pastore e França, que em sua reportagem relacionam de
modo direto as diferenças comportamentais de homens e mulheres a padrões fisiológicos cerebrais (b), ou a
defendida pelo culturalismo, que reduz estes mesmos traços comportamentais a uma determinação exclusiva-
mente sociocultural (c). Dessa forma, a submissão do comportamento a uma determinação biológica ou cultural
exclui da explicação das diferenças entre homens e mulheres a interação dos fatores biológicos e ambientais,
separando-os, portanto, em duas explicações causais que são inteiramente opostas. As diferenças entre homens
e mulheres são melhor explicadas, decerto, pela referência a todo este sistema de relações fortemente
interdependentes do que pela redução a uma determinação biológica ou cultural.

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em termos de sua presença ou ausência e não esta explicação culturalista depende de uma
da variação de sua distribuição espaço-tempo- simplificação extremada da biologia humana,
ral. Além disso, a descrição pode efetuar uma salientando a constância dos fatores biológi-
dissociação entre os fatores epigenéticos e cos e a variabilidade dos fatores socioculturais,
genéticos, retratando os processos de regulação com base numa interação do modo de descri-
gênica como decorrentes apenas da influência ção e da apropriação da “natureza humana” no
de produtos gênicos (repressores ou determinismo cultural.
ativadores), obscurecendo o fato de que todos É evidente, portanto, que as explicações
os produtos gênicos, vindo a ser parte do am- deterministas, sejam biológicas ou culturais, são
biente celular, adquirem novas propriedades, igualmente limitadas por sua necessidade de
referentes por exemplo a sua interação com simplificar a interação da estrutura biológica e
outras biomoléculas ou ao estabelecimento de do ambiente em que ela se encontra inserida.
gradientes de concentração. Em outras pala- Isto é verdadeiro tanto para a espécie humana
vras, a descrição traz em si mesma uma posi- como para os seres vivos em geral. Nesse sen-
ção interpretativa que atua como um referencial tido, não há qualquer abismo separando o ho-
necessário para a seleção pelo pesquisador dos mem das outras formas de vida, uma vez que a
aspectos que ele julga relevantes e irrelevantes própria condição vital depende, em diferentes
na compreensão do desenvolvimento. Desse graus, de uma interação das estruturas biológi-
modo, a “evidência” de que os genes são sufi- cas e das circunstâncias ambientais. No caso da
cientes para a compreensão do desenvolvimen- espécie humana, no entanto, os limites da sele-
to pode estar relacionada a um compromisso ção causal da estrutura biológica ou do contexto
prévio com o paradigma genecêntrico, de modo sociocultural são ainda mais notórios, em virtu-
que uma apropriação crítica de explicações ex- de da magnitude da influência que é exercida
clusivamente genéticas do desenvolvimento pelo homem sobre o ambiente em que vive,
se coloca na dependência do reconhecimento implicando a contrapartida de uma substancial
desta interação de fatos e teorias, descrição e influência deste ambiente, social e culturalmente
explicação. De outro modo, o pesquisador pode reconstruído, sobre sua biologia.
perceber na explicação genecêntrica apenas A explicação de um traço em termos ape-
um componente objetivo, na medida em que a nas da estrutura biológica traz consigo a pos-
variação dos padrões de expressão gênica está sibilidade de uma explicação complementar
decerto relacionada à diferenciação celular, do mesmo traço com base somente nas cir-
perdendo de vista a manipulação subjetiva do cunstâncias socioculturais, mas a ênfase par-
modelo descritivo empregado, baseado numa cial nos componentes biológico e ambiental
simplificação dos processos biológicos, tanto depende, com freqüência, de descrições arbi-
por meio do ocultamento das diferenças de trariamente simplificadas das condições de
distribuição espaço-temporal dos fatores produção das características. Existem possi-
epigenéticos como pela cisão injustificável velmente características que podem ser
entre estes padrões de distribuição e a regulação explicadas de um ponto de vista exclusiva-
da expressão gênica. mente biológico ou ambiental, mas estas de-
De forma similar, a dissociação entre a vem ser consideradas exceções à regra. Nesta
biologia e a cultura na explicação de caracte- perspectiva, a idéia de que é preciso distin-
rísticas humanas, sobretudo de natureza guir, na explicação de um traço, entre a influ-
comportamental, também é afetada por um viés ência biológica e cultural parte de uma pre-
descritivo. A referência de propriedades hu- missa errônea, na medida em que exclui a
manas apenas às circunstâncias culturais en- priori a possibilidade de uma interação de
contra-se muitas vezes fundamentada na idéia ambos os conjuntos de fatores: a interação
de que a estrutura biológica da espécie huma- entre a biologia e a cultura na constituição
na é invariante entre os indivíduos e etnias, de das propriedades humanas implica a compre-
modo que ela nada seria além de uma tabula ensão de que o produto final do desenvolvi-
rasa em que os fatores socioculturais deixari- mento é caracterizado por propriedades emer-
am suas impressões. É evidente que também gentes que não são biológicas ou culturais

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(ambientais), mas biológicas e culturais. plicando o recurso às mesmas dicotomias
Por exemplo, as diferenças entre homens e simplistas que marcam a reportagem publicada
mulheres (D) podem ser atribuídas exclusiva- pela revista Veja:
mente à diversidade de seus padrões de ativa-
ção de regiões cerebrais (C), de modo que elas “A assombrosa proliferação das técnicas
seriam traços biológicos, porque em circuns- genéticas e moleculares na biologia nos
tâncias ambientais idênticas (A) a diferença na últimos vinte anos foi uma das verdadei-
fisiologia cerebral explicaria essas diferenças ras revoluções na ciência moderna. Como
comportamentais (16): qualquer revolução, no entanto, ela teve
seus excessos. Um dos mais lamentáveis
dado A (C D) destes excessos é a tendência de um nú-
mero crescente de biólogos de retratar o
No entanto, a explicação dessas mesmas desenvolvimento como um processo diri-
diferenças como traços socioculturais seria gido pela informação codificada no
igualmente legítima. A contingência histórica genoma. [...] Muitos biólogos, senão a
e cultural na constituição das condições mas- maioria, dizem agora que os genes codi-
culina e feminina explicaria, com base na idéia ficam um ‘programa’ ou ‘projeto’ para a
de que a estrutura e a função biológica são construção de um organismo. Os genes
invariantes, as diferenças entre homens e mu- são vistos como as causas formais do de-
lheres: senvolvimento e supõe-se que uma com-
preensão dos genes e de sua regulação é
dado C (A D) tudo que é necessário para uma compre-
ensão do desenvolvimento” (17).
A reação imediata de um determinista bi-
ológico seria, talvez, a de indicar a evidência, O genecentrismo se coloca, no entanto, em
compreendida como fato despido de teoria, de contradição com um princípio básico da gené-
que há uma diversidade demonstrada na fun- tica: as características fenotípicas são, de um
ção cerebral de homens e mulheres. Essa rea- modo geral, o produto da interação do genótipo
ção, todavia, seria contrabalançada por uma e do ambiente. A visão genecêntrica do desen-
reação simétrica de um determinista cultural, volvimento está diretamente vinculada à ex-
afirmando que a historicidade das condições plicação determinista do fenótipo, uma vez que
masculina e feminina foi documentada em reduz o desenvolvimento a nada mais que uma
estudos de igual valor científico. A conclusão leitura da informação codificada nos genes, de
inevitável é a de que ambas as explicações tal modo que os fatores ambientais são, de uma
capturam importantes aspectos causais do fe- só feita, admitidos como condições necessári-
nômeno que pretendem explicar, mas perdem as do desenvolvimento e eliminados como
de vista a explicação mais apropriada por se componentes da explicação causal (18). Des-
envolverem em seleções causais arbitrárias. A se modo, há uma contradição profunda entre 16 Cf. Pastore e França, 1995,
pp. 76-82.
simetria das explicações deterministas demons- os modelos teóricos de explicação do desen-
17 K. C. Smith, op. cit., p. 101.
tra que a seleção causal é neste caso ilegítima, volvimento e do fenótipo; de um lado, a teoria
18 A crítica à visão gene-
uma vez que, na situação em que temos duas genética coloca o fenótipo como produto da cêntrica do desenvolvi-
possibilidades logicamente idênticas, a sele- interação de genes e ambiente e, de outro, a mento e/ou do fenótipo
pode ser encontrada em
ção só pode ser arbitrária. Isto indica, por sua hegemonia contemporânea das explicações S. Oyama, The Ontogeny
of Information: Develo-
vez, que a melhor explicação para os traços em moleculares no pensamento biológico reduz a pmental Systems and
Evolution, Cambridge
questão é de natureza sistêmica, não privilegi- compreensão do desenvolvimento a um pro- University Press, 1985; F.
H. Nijhout, “Metaphors and
ando nenhum dos componentes do processo grama genético. O equilíbrio dos dois modos the Role of Genes in
Development”, in
de desenvolvimento, mas o próprio sistema contraditórios de explicação das característi- Bioessays 12(9): 441-446,
1990; K. C. Smith, op. cit.;
em desenvolvimento. cas parece estar deslocado, no entanto, para o e C. N. El-Hani, Os Pa-
A explicação determinista do desenvolvi- lado do genecentrismo, ou, em outras pala- drões Explicativos na Pes-
quisa Genética e a
mento tem se mostrado, infelizmente, vras, do determinismo genético. Prevalência do Deter-
minismo, 1995, em prepa-
hegemônica na comunidade de biólogos, im- Nessa perspectiva, torna-se necessária ração.

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uma melhor compreensão desse confronto origem de seus comportamentos caracterís-
entre a visão interacionista da origem do ticos. Mark George, por exemplo, citado na
fenótipo e a visão determinista do desenvol- referida reportagem, relata da seguinte for-
vimento. Em primeiro lugar, porque ele im- ma os resultados de seus experimentos, em
plica que não podemos, como seria de se es- que pediu que dez homens e dez mulheres
perar, diagnosticar na comunidade científica rememorassem tragédias pessoais diante de
a prevalência de uma concepção bem infor- fotografias de rostos entristecidos, enquan-
mada acerca das relações entre genótipo, to seus padrões de ativação de regiões cere-
ambiente e fenótipo. A referência a uma rela- brais eram analisados: “Não há dúvidas. Elas
ção entre genes e ambiente precisa ser cuida- sofrem muito mais que eles. Sua tristeza é
dosamente analisada, pois não raro ela é in- certamente mais significativa” (19).
terpretada de modo que, surpreendentemen- A idéia de que as diferenças no sofri-
te, exclui a interação desses dois componen- mento e na tristeza de homens e mulheres
tes causais, permitindo a retomada de expli- podem ser atribuídas diretamente a diferen-
cações deterministas. ças cerebrais não constitui, no entanto, uma
A proposição de que características or- conclusão evidente de seus resultados, uma
gânicas ou comportamentais são determina- vez que eles apenas indicam, numa amostra
das de maneira absoluta pelos genes ou pelo consideravelmente reduzida, uma contribui-
ambiente depende da verificação de hipóte- ção biológica a essas diferenças, mas não
ses auxiliares que indicam claramente os li- excluem fatores de origem sociocultural (20).
mites de ambas as explicações deterministas: Ou seja, as diferenças podem não ser deter-
de um lado, a idéia de que uma característica minadas pela estrutura biológica de homens
é determinada apenas pelo ambiente depen- e mulheres, mas pelas redes de relações bio-
de de um conjunto de evidências que indi- lógicas e socioculturais em que a identidade
quem que ela é inteiramente desvinculada de homens e mulheres é constituída, e da
da estrutura biológica ou da história evolutiva qual a própria estrutura biológica é parte. A
da espécie; de outro, a determinação genéti- conclusão a que se pode chegar, portanto, é
ca de uma característica só pode ser propos- a de que a estrutura biológica, ao colocar-se
ta caso se verifique que a origem desta está em interação com os demais componentes
relacionada somente ao nível primário da dessas redes de relações, adquire novas pro-
ação gênica, de forma que exista uma cor- priedades, de modo que os fenômenos
respondência biunívoca entre um produto comportamentais de homens e mulheres não
gênico e a característica. Todavia, a cons- podem ser simplesmente reduzidos a uma
trução cultural de propriedades humanas determinação biológica, e tampouco
normalmente se encontra vinculada a uma desvinculados de sua biologia. Os resulta-
estrutura biológica subjacente e ao processo dos de George podem ter, decerto, um com-
evolutivo da espécie, e os produtos gênicos, ponente objetivo, mas este não indica que a
de sua parte, dificilmente podem ser melhor explicação para as diferenças de
desvinculados de processos que se colocam emotividade entre homens e mulheres en-
para além do nível primário da ação gênica, contra-se no cérebro, e sim nos próprios sis-
uma vez que eles se tornam, necessariamen- temas orgânicos e socioculturais de que o
19 Citado em Pastore e Fran-
ça, op. cit., p. 80.
te, parte de sistemas mais complexos, celu- cérebro é apenas uma parte.
lares e orgânicos, em que adquirem novas A compreensão do fenótipo como o
20 É necessário salientar que
a referência a diferenças propriedades, não-redutíveis ao nível da in- produto de um sistema complexo de fatores
entre “homens” e “mulhe-
res” é em si baseada numa formação genética. biológicos e ambientais em constante
grande generalização, na
medida em que a forma No caso das propriedades compor- interação evidencia a inadequação da maio-
como é vivenciada a triste-
za certamente varia de um tamentais de homens e mulheres, os limites ria das explicações deterministas que sur-
indivíduo a outro, de tal
modo que a amostra extre- do determinismo biológico são evidentes, gem tanto na literatura científica como nos
mamente reduzida empre- meios de comunicação. Neste último caso,
gada por George não per-
pois dependem da demonstração de que as
mite conclusões confiáveis circunstâncias socioculturais em que homens uma explicação demasiadamente
acerca de diferenças gerais
entre homens e mulheres. e mulheres vivem são irrelevantes para a simplificada da origem das características

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pode ser especialmente prejudicial, uma vez te se insere o ponto de sua interação. As ex-
que a mídia atinge a maior proporção da plicações deterministas são, afinal, decorren-
população, cumprindo o papel de formar a tes de trabalhos científicos. Isso nos força a
opinião pública acerca de questões pertinen- considerar duas hipóteses: elas podem se
tes à natureza humana. A idéia de que as encontrar presentes nos próprios artigos ori-
propriedades humanas são determinadas de ginais ou ser decorrentes do modo como a
forma absoluta pela estrutura biológica e, imprensa ou a opinião pública em geral inter-
em última análise, pelo patrimônio genéti- pretam as comunicações científicas. Porém,
co, transmitida por reportagens como a a comunidade científica não pode, mesmo
publicada pela revista Veja, deve ser com- neste último caso, lavar as mãos diante do
batida, uma vez que ela vem proliferando, problema; antes, pelo contrário, se os resulta-
sendo continuamente veiculada pelos meios dos da pesquisa científica deixam, de algum
de comunicação, mesmo quando as propri- modo, margem a interpretações deterministas,
edades referidas são relacionadas a compor- que podem não ser o objetivo do próprio pes-
tamentos sociais complexos, tais como a in- quisador, o modo de exposição dos resulta-
fidelidade, o homossexualismo ou a depen- dos deve ser submetido à investigação.
dência de drogas. Como escreve John Carr, Mas qual é a importância de todo este
“nós somos transformados em parte por debate? Em primeiro lugar, a visão
nossa imagem de quem nós somos e do que interacionista, ou dialética, das relações en-
poderíamos nos tornar. Se a mídia é o prin- tre genótipo, ambiente e fenótipo, e a visão
cipal meio de desenvolvimento de tais ima- determinista, ou genecêntrica, do desenvol-
gens, então nós temos, acredito, grandes vimento, produzem retratos radicalmente
motivos para preocupação” (21). distintos do desenvolvimento e do fenótipo.
É evidente, portanto, que a comunidade Em segundo lugar, como sugere Fernando
científica deve preocupar-se com o modo Reinach, num artigo acerca dos problemas
como seus resultados são divulgados para o éticos gerados pelo desenvolvimento da ge-
público em geral, procurando investigar, in- nética, as implicações éticas da prevalência
clusive, como estes resultados são enuncia- do determinismo são significativas:
dos no meio científico, em busca de aspectos
que eventualmente possam favorecer sua “O Projeto Genoma tem como objetivo
vinculação a explicações deterministas conhecer as informações genéticas da es-
simplistas. Além disso, a prevalência da ex- pécie humana. Esse conhecimento obriga-
plicação genecêntrica do desenvolvimento toriamente vai gerar um número muito
21 Esta asserção foi retirada
evidencia que os modelos deterministas da grande de testes para toda e qualquer pro- de uma mensagem envia-
pensão genética. E conseqüentemente uma da por John Carr (Faculda-
relação entre genes e fenes ainda se encon- de de Humanidades e Ci-
tram presentes na própria comunidade cien- maior capacidade de prever o futuro das ências Sociais, Universida-
de de Tecnologia, Sydney,
tífica. Desse modo, a eliminação das explica- pessoas. Isso deve gerar novos problemas Austrália), em 29 de mar-
ço de 1995, para o grupo
ções deterministas não depende apenas de um éticos para a sociedade [...]” (23). internacional de discussão
em rede (internet)
engajamento da comunidade científica em um DARWIN-L (Darwin-L-
@ukanaix.cc.ukans.edu),
programa de educação, capaz de provocar no Dessa forma, as explicações deterministas, que se ocupa da história e
teoria das ciências históri-
público leigo uma mudança de paradigma que ao confundirem propensão genética com cas. Não se trata de uma
inevitabilidade, podem servir de fundamento rede devotada exclusiva-
tire de cena o determinismo biológico (22); mente à História, entendi-
faz-se necessária uma compreensão de como para que os testes genéticos sejam utilizados da como uma disciplina, e
sim a todos os campos do
a própria ciência muitas vezes perde de vista de uma maneira que a maioria dos geneticistas conhecimento que lidam
com sistemas evolutivos.
que, em princípio, todo resultado que indica definiria como não-ética, conforme indica
22 Cf. S. D. J. Pena, “Confli-
uma contribuição biológica para o apareci- Reinach com um exemplo concreto: tos Paradigmáticos e a Éti-
ca do Projeto Genoma
mento de uma característica comportamental Humano”, in Revista USP,
24, 68-73, 1994-95, p. 73.
é mais provavelmente explicável por meio da “Imaginemos [...] um teste hipotético ca-
co-evolução dos processos biológicos e paz de determinar se um indivíduo tem pro- 23 F. Reinach, “Como Sepa-
rar o Preto do Branco num
socioculturais, que encontram no sujeito e na pensão à esquizofrenia. [...] A maioria das Gradiente de Cinzas”, Re-
vista USP, 24, 6-9, 1994-
rede de relações sociais em que ele ativamen- pessoas provavelmente se oporia à utiliza- 95, p. 9.

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ção desse teste na hora de empregar um portamento humano como características
indivíduo para discriminá-lo ou para de- naturais dessas sociedades. Por tudo isso,
terminar o preço de seu seguro saúde. Por foi reconhecidamente apropriado como
outro lado, qual seria nossa reação se a legitimador político pela Nova Direita que
sociedade estivesse preparada para utili- vê assim os seus problemas sociais ele-
zar o resultado desse teste com o objetivo gantemente imputados à natureza; pois,
de evitar que um indivíduo com propen- se essas desigualdades são biologicamente
são à esquizofrenia fosse colocado em um determinadas, são portanto inevitáveis e
emprego com maiores possibilidades de imutáveis” (25).
induzir o aparecimento da doença? Deve-
mos lembrar que, nos casos de genes en- As explicações deterministas possibili-
volvidos em propensões a doenças, tanto tam, portanto, a internalização definitiva das
24 Idem, ibidem.
o ambiente quanto o genótipo determi- desigualdades sociais. Isso é particularmente
25 R. C. Lewontin, S. Rose e L.
J. Kamin, Genética e Políti-
nam o aparecimento do fenótipo. Portan- notável nos argumentos que surgem repeti-
ca (trad. port. de Not in Our
Genes: Biology, Ideology
to, qualquer consideração ética terá que damente na literatura científica, relacionan-
and Human Nature), Lisboa,
Publ. Europa-América,
obrigatoriamente levar em conta os dois do de forma simples e direta os genes à inte-
1984, p. 27. A Nova Direita lados da equação” (24). ligência e conferindo desse modo pouca ou
foi a corrente conservado-
ra, neoliberal, que ascendeu nenhuma atenção aos fatores ambientais, que
ao poder na Inglaterra e nos
Estados Unidos, com A referência a uma sociedade preparada têm certamente considerável influência so-
Margareth Thatcher e
Ronald Reagan, respectiva- para usar de modo ético um teste dessa nature- bre o desenvolvimento das habilidades
mente. A relação entre o
determinismo biológico e a za, capaz de direcioná-lo para benefício do in- cognitivas (26). Além disso, merece atenção
Nova Direita sugere que a
tese de que a ciência é um
divíduo que se encontra em risco, e não para o fato de que estes argumentos foram severa-
empreendimento inteira-
mente neutro apóia-se
discriminá-lo, coloca-se em contradição com mente criticados em todas as ocasiões em que
numa simplificação extrema a onda de explicações deterministas que inun- foram dados a público: foi este o caso com
das relações entre ciência
e sociedade, em que as in- da os meios de comunicação de massa, que Cyril Burt, Arthur Jensen e, mais recentemen-
fluências ideológicas, ne-
cessariamente colocadas parecem ávidos por genes do homos- te, com Charles Murray e Richard Herrnstein,
em qualquer atividade pro-
dutiva humana, são comple- sexualismo, da violência, do vício em drogas, autores de The Bell Curve (27). Desse modo,
tamente ignoradas.
etc., e desse modo contribuem para o emprego a constante retomada dessa linha de raciocí-
26 Uma evidência interessan-
te a esse respeito é que o
discriminatório de tais testes genéticos. A re- nio pode ter relação com o emprego de teori-
próprio Binet, que desenvol- portagem publicada pela revista Veja traz, a as científicas como meio de legitimar situa-
veu o primeiro teste de inte-
ligência, o fez com o propó- despeito de não alcançar o nível dos genes, a ções de desigualdade entre etnias, sexos, ra-
sito de detectar deficiênci-
as na inteligência de crian- mesma oposição entre explicações biológicas ças e classes sociais, conforme sugerem
ças, ou, em outras palavras,
desequilíbrios na relação e culturais das propriedades humanas, contri- Lewontin, Rose e Kamin. De fato, ela permi-
entre a idade cronológica e
a mental, de modo a possi- buindo igualmente, por meio da exclusão da te a redução da desigualdade social a uma
bilitar intervenções para re-
mediar o caso. O desenvol-
interação do inato e do adquirido, da biologia propriedade intrínseca dos indivíduos, pois a
vimento da inteligência de e da cultura, dos genes e do ambiente, para a
uma criança podia ser con-
posição social passa a ser vista como decor-
seguido, de acordo com prevalência do determinismo. rente, pura e simplesmente, da inteligência
Binet, por meio de cursos de
“ortopedia mental”. É óbvio, As explicações deterministas podem ser dos indivíduos que, por sua vez, é uma ques-
então, que o fundador dos
testes de Q.I. admitia a in- vistas, inclusive, como parte de uma luta ide- tão de herança. A influência da totalidade das
fluência do ambiente sobre
o desenvolvimento da inte- ológica, em que sua imposição à opinião pú- relações sociais sobre as oportunidades que
ligência. Por outro lado, as
teorias pedagógicas, de um blica estaria relacionada a uma estratégia de são particularmente conferidas a um indiví-
modo geral, partem do prin-
cípio, e não poderia ser de perpetuação da desigualdade social, como es- duo para desenvolver suas capacidades
outra forma, de que a inteli-
gência pode ser modelada
creveram Lewontin, Rose e Kamin, em Not in cognitivas é deixada de lado, de modo que a
pelo ambiente. Our Genes: perpetuação dos privilégios sociais é conce-
27 Estes trabalhos foram de- bida como uma espécie de manutenção de
batidos, por exemplo, em:
L. J. Kamin, The Science “O determinismo biológico (biologismo) uma linhagem que, antes de ser privilegiada
and Politics of IQ, Potomac,
Erlbaum, 1974; S. J. Gould, tem sido uma maneira persuasiva de ex- econômica e politicamente, é privilegiada
The Mismeasure of Man,
New York: W. W. Norton, plicar as visíveis desigualdades de posi- geneticamente. Desse modo, medidas extre-
1981; Lewontin, Rose e
Kamin, op. cit.; e L. J. Kamin, ção social, riqueza e poder nas sociedades mas como a educação das pessoas de baixo
“Behind the Curve”, in
Scientific American, 272(2),
industriais capitalistas contemporâneas, Q.I. apenas para a realização de tarefas mecâ-
1995, pp. 82-6. e de definir as ‘universalidades’ do com- nicas, como sugeriu Arthur Jensen, referin-

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do-se especificamente aos negros, ou mesmo mento de que as relações entre os indivíduos
os programas eugênicos de esterilização, en- e a totalidade das interações sociais são re-
contrariam legitimidade: cíprocas. Nesta perspectiva, os traços
comportamentais de homens e mulheres de
“Arthur Jensen, na Harvard Educational que se ocupa a reportagem publicada na Veja
Review, em 1969, [...] defende que a maior não poderiam ser desvinculados das redes
parte das diferenças de resultados nos tes- de relações sociais em que tem lugar a cons-
tes de Q.I. entre brancos e pretos é de ori- trução de sua identidade, de modo que ho-
gem genética. A conclusão, no sentido da mens e mulheres são, ao mesmo tempo, su-
ação social, era de que nenhum programa jeitos e objetos de sua história. Esta reporta-
educacional poderia igualar a posição so- gem reduz, no entanto, homens e mulheres a
cial de pretos e brancos e que o melhor era simples objetos de suas propriedades cere-
educar os negros para as tarefas mais me- brais, que choram, são frios, têm raciocínio
cânicas para as quais os seus genes os pre- lógico apurado ou capacidade de encontrar
dispunham” (28). coisas guardadas, simplesmente porque
acionam um ou ambos os lados do cérebro,
Trata-se de uma justificação da ordem so- utilizam mais o sistema límbico superior ou
28 Lewontin, Rose e Kamin,
cial existente levada, literalmente, às últimas inferior, etc. É óbvio que as diferenças nos op. cit., p. 36.

conseqüências porque depositada sobre os padrões de ativação das regiões cerebrais 29 A inteligência é uma outra
característica da espécie
genes por meio de uma explicação reducionista podem ser importantes na compreensão de humana que emerge num
nível de organização soci-
que acorrenta o ser humano à sua biologia, traços comportamentais, excluindo uma in- al, mais complexo que o bi-
despindo-o de toda a flexibilidade (29). As terpretação apenas culturalista, e deste modo ológico, sendo desse modo
irredutível a processos de
doutrinas liberais, inclusive em suas versões igualmente determinista, mas não a ponto natureza apenas biológica,
embora não possa, obvia-
contemporâneas, encontram no determinismo de homens e mulheres serem dissociados de mente, ser deles des-
vinculada. Nesta perspec-
biológico e, em última instância, genético um sua historicidade, tornando-se simples pro- tiva, a inteligência não
pode ser alienada da influ-
poderoso meio de legitimação, na medida em dutos das propriedades funcionais de seus ência dos ambientes socio-
culturais e tampouco en-
que as diferenças nas posições sociais dos sujei- encéfalos. tendida como uma propri-
edade fixa, determinada a
tos passam a ser explicadas como conseqüên- Em síntese, a prevalência das explica- priori pelos genes; antes,
cias inevitáveis de sua estrutura biológica ou ções deterministas nos meios confor- pelo contrário, a inteligên-
cia é uma propriedade su-
de seu patrimônio genético: madores da opinião pública contrapõe-se à jeita a desenvolvimento,
como salientava o próprio
suposição de que a sociedade saberá fazer Alfred Binet (citado em
Lewontin, Rose e Kamin,
“A ideologia social da modernidade [...] se bom uso dos avanços da pesquisa genética, op. cit., p. 100), que certa
feita protestou contra o ar-
fundamenta, ontologicamente, na priori- em especial no que diz respeito ao Projeto gumento de que os resul-
tados obtidos por uma cri-
dade do indivíduo sobre a sociedade. Os Genoma. As questões éticas colocadas pe- ança nos testes de Q. I.
eram uma medida fixa de
sujeitos teriam propriedades intrínsecas, e los desenvolvimentos recentes da genética sua capacidade cognitiva:
competiriam, com estas suas propriedades, vêm exigir, portanto, uma análise mais “Devemos protestar e rea-
gir contra um pessimismo
no espaço social. As propriedades da soci- cuidadosa das relações entre a pesquisa tão brutal”.

edade como um todo seriam redutíveis às científica e as redes de interações sociais 30 I. C. Santos e C. N. El-Hani,
“A Crise da Modernidade e
propriedades de suas partes, os indivíduos. em que ela necessariamente se insere. Está a Natureza da Educação”.
Submetido a Textos de
A desigualdade social, como uma propri- colocada a possibilidade, sem dúvida, de Cultura e Comunicação,
Salvador-BA, 1995. Enten-
edade do todo, seria decorrente de uma meios mais radicais de discriminação do demos por modernidade
um modo de produção da
desigualdade intrínseca aos sujeitos. Não que aqueles com que estamos, infelizmen- vida social que, gestado a
haveria, nesta perspectiva, possibilidade de te, acostumados: a idéia de que os compor- partir das revoluções mer-
cantil e burguesa, se ca-
transformação da sociedade, pois que esta tamentos humanos são determinados pela racteriza por uma inversão,
no que se refere à Idade
expressaria uma ordem objetiva das coi- biologia e, em última instância, pelos genes Média, na relação entre a
posição social e a ação hu-
sas, uma extensão natural das proprieda- cria as condições de uma internalização mana, conferindo ao indi-
víduo a condição de Homo
des inerentes aos sujeitos” (30). definitiva dos processos subjacentes à de- faber, ou seja, de sujeito
de sua própria existência,
sigualdade social, de forma que a ciência de homem que faz sua
vida.
A crítica desta explicação determinista pode vir a contribuir para que, uma vez mais,
da sociedade pelas propriedades inatas dos a culpa seja lançada sobre as vítimas (31). 31 W. Ryan, Blaming the
Victim, New York,
sujeitos se faz obviamente pelo reconheci- A necessidade de que a comunidade ci- Pantheon Books, 1971.

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entífica se debruce sobre a forma como in- com que confrontam o mundo. Esta estrutura
terpreta e expõe seus resultados é evidente. traz em si pré-concepções implícitas, ideolo-
Decorrerão as explicações deterministas da gicamente contingentes, porque são, por um
má leitura a que os jornalistas submetem os lado, referentes à existência social do pesqui-
resultados da pesquisa científica, ou elas se sador, e, por outro, porque o modo de produ-
encontram no cerne da própria comunicação ção do conhecimento científico e de organi-
original? Ou ainda, caso os artigos originais zação da sociedade moderna, desenvolven-
não tragam em si explicações deterministas, do-se na mesma infra-estrutura de relações,
que aspectos na forma como os resultados co-evoluíram, colocando-se em consistência
são enunciados podem favorecer o recíproca.
determinismo biológico na transcrição feita A análise das relações entre a ciência e as
pelos jornalistas? redes de interações sociais em que ela se en-
Estas são questões que devem ser respon- contra inserida não deve se restringir, portan-
didas, ao nosso ver, por meio de um exame de to, à investigação dos problemas da divulga-
como a tensão entre a explicação intera- ção científica, mas apropriar-se criticamente
cionista do fenótipo e a determinista do de- das relações entre ciência e ideologia, uma
senvolvimento influencia os padrões vez que, como escreve Arlindo Machado,
explicativos na pesquisa genética.
Esta investigação poderá nos conduzir, no “os sistemas de representação [...] não
entanto, à hipótese de que a estrutura que for- são simples ‘espelhos’ para refletir o
nece os fundamentos para a análise a que um mundo de forma imediata: ao representar,
cientista submete o mundo não pode ser ao construir sistemas para operacionalizar
dissociada dos valores que ele utiliza, como o mundo, ao articular as relações em que
um ser social, para compreender sua própria se acha mergulhado, o homem necessari-
existência e definir sua posição diante dos amente ‘inverte’, isto é, interfere, inter-
interesses que são parte das redes de relações preta e altera o objeto representado, por-
sociais (32). Como escrevem Richard Levins que a ação do sujeito é sempre produtiva
e Richard Lewontin, e não pode ser reduzida à atitude do es-
pectador passivo” (34).
“[...] nós praticamos uma ciência que é
verdadeiramente cartesiana. No mundo As questões éticas, legais e sociais rela-
cartesiano, isto é, o mundo como um tivas à aplicação dos avanços da genética
relógio, os fenômenos são as conse- irão convergir numa interação social da co-
qüências da reunião das partes munidade científica com a comunidade em-
atomísticas individuais, cada uma com presarial e a sociedade em geral (35). No
suas propriedades intrínsecas, determi- contexto dessa interação, a prevalência das
nando o comportamento do sistema explicações deterministas nos meios de co-
como um todo. As linhas de causalida- municação de massa pode contribuir decisi-
de fluem da parte para o todo, do átomo vamente para o emprego não-ético do co-
para a molécula, da molécula para o or- nhecimento produzido pela genética, uma
ganismo, do organismo para a coletivi- vez que eles são fundamentais na formação
dade. Como na sociedade, também em dos paradigmas de que se valem a opinião
toda a natureza a parte é onto- pública e a empresarial na compreensão do
32 D. Meyer e C. N. El-Hani, “O
Papel da Ética na Pesquisa logicamente anterior ao todo” (33). papel dos genes e do ambiente na constitui-
Básica”, in Revista USP ,24,
1994-95, pp. 10-9. ção do fenótipo humano. Torna-se necessá-
33 R. Levins e R. Lewontin, Pode-se perceber, portanto, como o pro- rio, então, compreender como a informação
1985, pp. 1-2.
blema das explicações reducionistas não é referente à relação entre genes e caracterís-
34 A. Machado, A Ilusão Es-
pecular: Introdução à Foto-
apenas metodológico, mas encontra-se im- ticas é interpretada, alterada, “invertida”, não
grafia, São Paulo,
Brasiliense, 1984, p. 14.
bricado com a visão de mundo prevalente no só pelos jornalistas e pela opinião pública
discurso e no método da ciência, que fornece em geral, mas também pela própria comuni-
35 S. D. J. Pena, op. cit., pp.
69-70. aos pesquisadores a estrutura de pensamento dade científica.

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