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A clandestina poesia de Facebook

Crédito da imagem: Jack Zylkin


Linha fina: “A poesia de Facebook tem algo de pregador de trem: ocupa um espaço
inesperado, lotado, e falando em uma linguagem estranha, mas reconhecível, tenta catequizar os
cansados usuários, indo e voltando do trabalho”.

A poesia brasileira vive e se renova. Que isso não aconteça sempre nos espaços
convencionais, passa às vezes a impressão de que morrem os velhos poetas sem que surjam os
novos. A própria crítica, muitas vezes, se recusa ou, desatenta, perde a chance de sair para
procurar novas vozes em novos espaços. O que não aparece criticado na coluna especializada de
um grande jornal, palestra de universidade ou o que não chega cerimoniosamente pelo correio,
com reverência, como presente com dedicatória elogiosa ao crítico pelo aspirante a escritor,
acaba ficando fora do radar como se não merecesse, talvez, leitura e reflexão. Quem acompanha
a cena literária pelas grandes cidades do Brasil, no entanto, sabe que há uma cena viva de trocas
e disputas entre poetas e críticos de tamanhos diversos que vivem em um tipo de mundo paralelo
da literatura escolar mais oficial. Esse surgimento do fora, a ser eventualmente incorporado pelo
sistema literário institucional dos grandes concursos, festivais, editoras e críticos universitários,
não é inédito na literatura brasileira, muito pelo contrário. Em um país com histórico colonial e
com amplas cifras de analfabetos, funcionais ou não, ou seja, em um país em que se lê pouca
literatura que não seja bíblica, é fatal que o que se produz seja ao mesmo tempo “salvo” e
“guardado à distância” do resto da sociedade pelas instituições literárias. O que faz com que sua
renovação, de geração em geração, surja frequentemente dos espaços ainda clandestinos. É assim
desde o Barroco brasileiro, clandestino em sua relação com a matriz portuguesa, foi assim com
os estudantes românticos das “repúblicas” do Largo São Francisco no século XIX, foi assim com
a intervenção intelectual não-uspiana do Concretismo e da Tropicália, foi assim com a “Geração
mimeógrafo” na década de 1970, é assim com a chamada “Literatura marginal” e tantos outros
movimentos em épocas e partes do país, etc. Trata-se de um movimento constante de uma parte
relevante da literatura brasileira: surgimento clandestino e posterior institucionalização, com
crítica, ampliação ou revisão da própria ideia de literatura (basta pensar nos debates acerca da
obra de Carolina Maria de Jesus e da chamada poesia indígena!). Algo desta irrupção clandestina
parece acontecer agora, na segunda década do século XXI, em espaços inesperados como as
praças das grandes cidades e as redes sociais na internet.
O que os saraus e slams significam para a renovação da poesia brasileira falada, os blogs,
revistas eletrônicas e linhas do tempo no Facebook representam para a poesia escrita. Revistas
literárias, quase todas exclusivamente virtuais, têm usado o Facebook para espalhar poesia de
novos autores. A qualidade da poesia, ainda que variada, muitas vezes impressiona, sobretudo na
diversidade de vozes. Alguns exemplos importantes são a Escamandro, a Mallarmargens, a
Raimundo, a Modo de Usar & Co., entre muitas outras. Mas muitos poetas optam por publicar
diretamente em suas linhas do tempo, levantando a questão que o título deste artigo propõe: já
existe um gênero chamado “poesia de Facebook”? Talvez se possa pensar nele como gênero em
formação, como possibilidade futura. Porque se é verdade que muito do que circula seja mera
reprodução, divulgação de uma poesia produzida em e para outro meio, também é verdade que
aos poucos os poetas passam a escrever pensando nos leitores e no contexto do Facebook. Isso se
deve em muito às comunidades que trocam poesia entre si, ou seja, lêem e criticam. Os
agrupamentos políticos que o Facebook ampliou e modificou, como grupos de mulheres, negros,
LGBTs, ambientais, etc, também se refletem em grupos interseccionais de mulheres escritoras,
negros escritores, LGBTs escritores, etc. Não apenas as pautas, mas tradições e formas
específicas (como a influência do RAP e de tradições orais) compõem a poesia destes grupos
misturados às outras características do meio. O apoio mútuo dentro destes grupos, das curtidas e
comentários ao compartilhamento, também acontece, formando nichos de poetas e leitores, às
vezes inclusive com revistas e edições temáticas. Se a questão da existência ou não do gênero
talvez não seja interessante agora, a influência que os meios de publicação têm na forma e nos
temas desta poesia já rende boas reflexões e hipóteses. E se isso não bastar, a qualidade inegável
de certos autores que usam o Facebook e outras redes sociais como meio privilegiado de
publicação, já deveria chamar a atenção da crítica. É o caso, por exemplo, de Carla Diacov, uma
das poetas mais importantes da poesia brasileira recente, tanto na quantidade de publicações,
quanto na qualidade inegável, quanto na diversidade surpreendente (que inclui seus trabalhos de
artista plástica, sobretudo em seus desenhos com sangue menstrual).
Uma primeira hipótese em relação à influência do meio diz no texto respeito ao contexto
leitura de poesia no Brasil. Na falta de um público amplo estabelecido, seja de livros impressos,
seja em revistas e portais dedicados à literatura, os poemas publicados no Facebook acabam se
infiltrando clandestinamente no cotidiano das pessoas, se espremendo entre as notícias, a
propaganda, as postagens pessoais e o entretenimento, assumindo também de alguma maneira
algo da forma destas outras manifestações. A poesia de Facebook tem algo de pregador de trem:
ocupa um espaço inesperado, lotado, e falando em uma linguagem estranha, mas reconhecível,
tenta catequizar os cansados usuários, indo e voltando do trabalho. Walter Benjamin, em uma
resenha ao poeta Erich Kästner, descreve em uma imagem irônica, porém precisa, a relação do
texto com o contexto na época da poesia publicada em jornal no começo do século passado: “Os
poemas de Kästner estão reunidos hoje em três imponentes volumes. Mas quem pretende
investigar as características dessas estrofes deveria de preferência lê-las em seu formato original.
Em livros, elas parecem comprimidas e um pouco sufocadas, ao passo que nos jornais deslizam
como peixes na água. Se essa água nem sempre é das mais puras e se muitos detritos nela
flutuam, tanto melhor para o autor, cujos peixes poéticos podem assim desenvolver-se mais e
engordar com maior facilidade”.
De maneira semelhante, os poemas do Facebook lidam com as reportagens e memes, com
a indignação da esquerda e dos movimentos sociais, com as tristezas e alegrias, compondo
também, corrompendo também, quem sabe, com sua sintaxe e ritmos específicos, a misteriosa
matemática do algoritmo. Assim, é talvez uma característica (feliz ou infeliz) desta poesia uma
atenção jornalística, de cronista, de comentarista, aos acontecimentos do dia. Isso, claro, não
garante sua contemporaneidade. O presente está raramente na manchete de jornal. Isso
prejudicaria até, quem sabe, o lado intempestivo da poesia? Da poesia como sismógrafo? Da
poesia como olhar que resgata o passado enterrado, esquecido? Apenas a leitura sistemática deste
novo contexto de produção e dos poemas em si pode responder. Outro aspecto “jornalístico”
desta poesia está em sua efemeridade. O que se publica é visto, ou não, e rapidamente desaparece
sendo encoberto pela tempestade de escombros que é a linha do tempo no Facebook. Ali, o texto
poético perde algo da imortalidade que adquiriu desde que se passou a guardar a poesia em
papiros e livros (uma captura de tela, quem sabe, salvará para as gerações futuras um bom poema
da geração!). Sobre esta efemeridade nova, muito mais própria da poesia falada do que da
escrita, a poetisa Bianca Pataro escreve: “Como as demais postagens, são efêmeras e passam
rápido. Somem. Nem os autores acho que voltam aos textos. São suspiros”. Isso coloca também
uma questão interessante em relação à forma livro. Os poemas estabelecem mais relações com
conteúdos extra-literários do que com outros poemas do mesmo autor ou do mesmo tema. A
antologia é singular e diária, não faz mais uma constelação com a produção do autor. A poeta e
atriz Isabela Rossi define: “O poema não é para a obra, o poema quer explodir a tela do
Facebook”.
A forma dos poemas também parece se adaptar aos costumes de leitura da rede social. Os
poemas tendem a ser mais curtos, mais reconhecíveis, sem exigir tempo demais do leitor (TL;DR
ou, em versão brasileira, “Nem Ly, Nemlerei”!). Também se reconhece nos títulos e primeiros
versos a influência das estratégias de marketing, iscas de cliques, que tentam prender a atenção
tão disputada dos leitores com termos chamativos, polêmicos ou engraçados. A forma trocadilho,
tão querida de escritores como Oswald de Andrade e tão rejeitada em certos círculos literários
mais “sérios”, encontra uma vizinhança confortável ao lado dos memes. As estratégias que a
publicidade aprendeu com as vanguardas literárias e instrumentalizou durante o século XX são
talvez agora reapropriados novamente para a gratuidade relativa da poesia. (Relativa já que cada
manifestação, por críptica, desinteressada, hermética que seja, é também propaganda do
enunciador). E se o Facebook impõe certos limites à experimentação visual com o verso, pois é
limitado o uso de espaçamentos entre as palavras e os versos, há quem escape bem da limitação
seja publicando os poemas em imagens, a partir de um documento do Word, por exemplo,
produzindo diretamente poesia-visual, como é o caso do poeta André Vallias, ou produzindo
poesia exclusivamente a partir de emojis e caracteres especiais. Para aqueles que quiserem
acompanhar de perto este movimento em formação (ou já em decadência, quem saberá?), segue
uma lista de poetas contemporâneos, da minha limitada lista de conhecidos-poetas que postam
poesia com alguma frequência direto no Facebook, para buscar e seguir, com perdão aos
esquecidos: André Nogueira, Mari Alter, Thiago Cervan, Cássio Corrêa, Pedro Tostes, Nina
Rizzi, Nil Kremer, Lisa Alves, Alexandre Guarnieri, Marcelo Labes, Júlia Vita, Camila Santos,
Cândido Rolim, Aline Bei, Alberto Lins Caldas, Líria Porto, Sérgio Villa Matta, Tarso de Melo,
Michele Santos, Maia Meirom, Bianca Pataro, Leandro Durazzo, Mariana Basílio, Ana Farrah,
Ricardo Domeneck, Nydia Bonetti, Chris Herrmann, Tiago Rendelli, Casé Lontra Marques,
Claudinei Vieira, Elizeu Braga, Julia Mendes, Isabela Penov, Teófilo Fostes, Gabriel Sanpêra,
Joaquim Bührer, Pedro Venturini, Everton Behenck, Pedro Spigolon, Nydia Bonetti, Otávio
Campos, Júlia Hansen, Marceli Becker, Rafael Zacca, Jeff Vasques, Marília Moscovitch,
Augusto Meneghin, Natália Luna...

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