Você está na página 1de 2

Maputo , 13 de Março 2017 Boletim Nº 93

IDeIAS
Informação sobre Desenvolvimento, Instituições e Análise Social

A Face Oculta do Orçamento do Estado Moçambicano: Saldos de Caixa são fictícios?

António Francisco e Ivan Semedo

Como se explica que 25% do total de recursos principalmente dos políticos com consciência da minimalista e meramente burocrática. Segundo,
financeiros colocados à disposição do Estado de relevância de uma gestão orçamental eficiente, desconhecemos se as agências internacionais,
Moçambique, na forma de Saldo de Caixa, sejam eficaz e saudável. No nosso caso, o interesse sobretudo o Fundo Monetário Internacional (FMI)
mantidos à margem do Plano Económico e pelos saldos rolantes surgiu no processo de e os doadores que apoiam o OE, indaguem
Social (PES) e da sua expressão financeira no pesquisa que temos realizado, sobre os meca- sobre o paradeiro dos montantes das aplicações
Orçamento do Estado (OE), como se de um nismos de protecção social. Uma pesquisa que desembolsados tardiamente, remetidos para
fundo oculto ou paralelo se tratasse? Ainda que visa identificar oportunidades de ampliação do gestão extra-orçamental no exercício do ano
sejam reportados na Conta Geral do Estado espaço fiscal e orçamental para uma proposta de seguinte. Terceiro, se a sociedade civil, principal-
(CGE), fiscalizados e confirmados pelo Tribunal Pensão Universal para Idosos. mente os mais preocupados com o endividamen-
Administrativo (TA), os saldos de caixa são geri- Para nossa surpresa, antes mesmo de pensar- to público, na actual crise económico-financeira,
dos como um novo tipo de fluxos extra- mos que poderíamos estar perante uma boa preferem acreditar que valores tão elevados de
orçamentais, à margem da execução orçamental oportunidade de espaço orçamental, digna de saldos de caixa correspondam a erros involuntá-
do Governo, nem a Assembleia da República ser colocada à consideração do Ministério da rios ou equívocos contabilísticos, dificilmente o
(AR) se pronuncia sobre eles, quando delibera Economia e Finanças (MEF) e ministérios direc- assunto receberá a atenção devida. E neste
sobre os níveis de despesas, empréstimos, sub- tamente envolvidos na problemática de protec- contexto, os responsáveis pela execução e pres-
sídios, avales e donativos. ção social (e.g. Ministério do Trabalho, Emprego tação de contas sobre o OE agradecem, alivia-
Sensivelmente há um ano, os autores deste e Segurança Social e Ministério do Género, dos, por tão generalizada e complacente desinte-
texto, apresentaram publicamente, um conjunto Criança e Acção Social), vimo-nos confrontados resse em relação aos saldos rolantes.
de questões relacionadas com os Saldos de com dois obstáculos. Primeiro, da parte do orga- O mais intrigante nas atitudes acima referidas, é
Caixa (Francisco e Semedo, 2016a). Designamo- nismo competente (e.g. MEF) para esclarecer a que nem mesmo o facto de os dados em causa
los “saldos rolantes”, porque compreendem razão de ser e o funcionamento dos saldos de serem produzidos pelo próprio Governo, fiscali-
saldos transitados e acumulados, de ano para caixa recebemos silêncio e aparente indiferença. zados e auditados pelo TA, bem como aprecia-
ano, em diversos organismos do Estado, dentro Por outro lado, daqueles que apesar de não dos e aprovados pela AR, constitui motivo sufi-
e fora do OE. Nas três últimas CGE (2013-2015), conhecer o assunto, dizem-se interessados em ciente para desencorajar os questionamentos
o valor transitado rondou em média 63 mil se inteirar e monitorar o processo orçamental, que surgiram, tais como: se os saldos de caixa
milhões de Meticais (MTs) anuais, corresponden- recebemos uma reacção de incredulidade, quan- são reais, onde está esse dinheiro, principalmen-
te a 1,9 mil milhões de dólares, à taxa de câmbio to à fiabilidade ou mesmo existência real dos te nos anos recentes, em que o Governo diz
média do mesmo período estar com falta de dinheiro para fazer
(32,96 MTs/USD). Um valor face às despesas programadas? O
superior ao capital social das saldo de caixa não será um mero artifí-
114 empresas com participação cio contabilístico, para efeito de equilí-
do Estado, quatro vezes maior brio das contas? Se são reais, porque é
do que o capital social das 14 que o Ministro das Finanças não recor-
empresas públicas com 100% reu a esse valor para evitar o corte de
de capital do Estado, e ainda, 50% do 13º vencimento dos funcioná-
suficiente para liquidar 91% do rios públicos?
stock total da dívida interna em Esta reflexão visa mostrar que a nega-
2015 (CGE 2015, Vol. I Tabe- ção da existência real do saldo de caixa
la28; CGE 2015, Vol. III, Anexo carece de base, não só jurisdicional,
4-a). mas principalmente empírica. Para
Considerando a longa trajectó- dissiparmos as dúvidas que os nossos
ria do défice orçamental público artigos, até aqui, não foram capazes de
moçambicano, o surgimento de evitar, recorremos ao cruzamento dos
saldos rolantes tão elevados dados de domínio público, nomeada-
dificilmente poderia passar mente: Conta Geral do Estado (CGE)
desapercebido. Obviamente, (www.dno.gov.mz/ ), relatórios do TA
não tem sentido tratar tal valor como provisões saldos de caixa. (www.ta.gov.mz/) e estatísticas do Banco de
contingentes, porque o OE prevê provisões para Compreendemos que o Governo não queira Moçambique (BdM) (www.bancomoc.mz). Em
riscos e eventos fiscais imprevistos. Então, como despertar a curiosidade pública para este assun- momento algum procuramos esclarecimentos
justificar saldos transitados e acumulados supe- to; mas se o silêncio se prolonga por mais de um sobre o assunto por vias informais, sobre even-
riores a 20% dos recursos totais fora da execu- ano, deve-se à complacência e indiferença de tuais motivos inconfessáveis para a mistificação
ção orçamental formal? múltiplos actores. Primeiro, as autoridades fisca- e forma estranha como os saldos transitados têm
O mínimo que se esperaria perante este fenóme- lizadoras da execução orçamental (e.g. TA), nos sido geridos. A nossa metodologia de pesquisa
no, era que despertasse a curiosidade e interes- termos da obrigatoriedade consagrada nas leis baseia-se na analise crítica, cruzamento e con-
se tanto académica e jornalística, de analistas e constitucional e orçamental, limitam-se a produzir frontação dos dados, das fontes disponíveis.
investigadores, como também atenção política, relatórios e pareceres de controlo jurisdicional
Saldos Transitados no Relatório do TA
IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Tomas Nduda Nº1375, Maputo, Moçambique
Tel: +258 21 486043; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz
Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto
O último relatório e parecer do TA, recentemente Através desta última fonte procuramos comple- ajudem a esclarecer a questão destacada no
tornado público, confirma que o Balanço Global mentar, na próxima secção, o apuramento forne- subtítulo deste IDeIAS. Uma vez dissipada a
de Caixa da CGE apresenta saldos transitados cido no relatório do TA. Concentramo-nos no dúvida quanto à existência real dos saldos de
de 2014 para 2015, totalizando 72 mil milhões de agregado designado “Crédito Líquido ao Gover- caixa na CGE, podemos concentrar nossas aten-
MTs, representando 25% do Total de Recursos. no”, das estatísticas do BdM, corresponde aos ções na interrogação inicial do texto. Parte da
Em momento algum o TA põe em dúvida a exis- créditos e depósitos de instituições do governo resposta já foi aflorada, ao longo desta breve
tência efectiva dos saldos transitados. Pelo con- central e demais instituições que dependem do reflexão, mas muito fica por ser dito sobre os
trário, ao referir que os recursos mobilizados em OE, incluindo entidades dentro e fora do orça- fluxos de recursos e despesas extra-orçamentais
2015 totalizaram 214,7 mil milhões de MTs, mento geral do Estado (e.g. instituições descen- que, em 2015, representaram 25% de todos os
acrescenta: “Este montante, adicionado ao Saldo tralizadas autónomas, governos locais e Instituto recursos financeiros mobilizados pelo Estado.
de Caixa de 71.521.888 mil Meticais, transitado Nacional de Segurança Social – INSS). Nesta nota, a nossa preocupação foi contribuir
do exercício de 2014, perfaz o total de recursos para a remoção dos dois obstáculos de percep-
do Estado em 2015, de 286.224.170 mil Meti- Saldos de Caixa em Depósitos Bancários
ção que temos enfrentado. Uma vez confirmada
cais”(TA, 2016, p. VIII-2). É importante distinguir dois conceitos de saldos: a existência dos saldos rolantes, não será difícil
O TA reporta que “...em 2015, houve uma dimi- “saldo disponível” (SD) e “saldo de caixa” (SdC). de admitir que estamos perante um processo
nuição de 35,1% do Saldo de Caixa, influenciado, Ainda que intimamente ligados, entre si, estes orçamental bastante sui generius, para não dizer
principalmente, pelos valores transitados das dois saldos desempenham papeis diferentes na paradoxal e profundamente anómalo. Em mea-
Outras Contas do Estado, com redução de programação orçamental. O SD compreende a dos da primeira década do corrente Século XXI,
64,5%”. Em 2014, a maior parte do saldo de totalidade dos valores em caixa e em depósito Moçambique possuía dois tipos principais de
caixa estava nas Outras Contas do Estado nas contas bancárias de todas as instituições fluxos de recursos e despesas extra-orçamentais
(65%). Já em 2015, o saldo transitado nesta públicas, numa data determinada (representa um (ou off-budget): 1) A parte da ajuda externa,
rúbrica, reduz significativamente, cerca de 30 mil stock). Já o SdC abrange a totalidade dos valores executada e controlada através de mecanismos
milhões de MTs; como nas outras rúbricas os em caixa e em depósito, nas contas bancárias de especiais de projectos específicos; e 2) As recei-
saldos registaram ligeiros aumentos, os gastos todas as instituições públicas, num intervalo de tas e despesas de vários organismos do Estado
finais dos saldos transitados foram de 25 mil tempo (representa um fluxo); diferentemente do desorçamentadas que não são incluídas no OE
milhões de MTs (TA, 2016, p. VIII-5, VIII-6). SD, o SdC corresponde a todo o valor que o (Hodges e Tibana, 2005, p. 69). Entretanto, ao
Ainda sobre as variações dos saldos transitados, Estado possui para efectuar novas despesas que longo desta última década, em vez de se superar
como sublinhamos no IDeIAS 91, a Tabela 7 - surjam no exercício do ano seguinte. a fragmentação dos fluxos de recursos e despe-
“Equilíbrio Orçamental” da CGE 2015, apresenta A Figura 1 compara a evolução dos depósitos sas do Estado, ela foi sofisticada e ampliada,
um acréscimo de 14 mil milhões de MTs, resul- bancários do Governo (SD) relativos ao último dia através do fluxo extra-orçamental, que designa-
tante “...do desembolso tardio de parte considerá- do mês de Dezembro com os valores do saldo de mos por saldos rolantes. Este novo fluxo é ali-
vel de fundos externos, o que não permitiu a sua caixa (SdC), extraídos da CGE do MEF. Repare- mentado pelos dois outros fluxos, mas segundo
utilização durante o exercício económi- se que o valor do SdC representa parte significa- uma racionalidade muito diferente. Como anteci-
co” (Francisco e Semedo, 2016b; MEF, 2016, p. tiva do SD, o qual não inclui os valores guarda- pamos no IDeIAS 82, e discutiremos noutra opor-
37). Significa que o Governo não só utilizou parte dos fora dos bancos. Todo o valor de SdC pode tunidade, os saldos rolantes evidenciam sinais de
dos saldos transitados de 2014, mas também os ser programado, para novas despesas no exercí- jogos de Ponzi, pelo facto do Estado recorrer
14 mil milhões de MTs adicionados em 2015. Se cio do ano seguinte, mas nem todo o valor de SD cada vez mais ao pagamento dos sucessivos
não o tivesse feito, o saldo final transitado seria pode ser usado para novas despesas, por parte défices orçamentais com a emissão de nova
86mil milhões de MTs. Portanto, o saldo de caixa dele já estar comprometido. dívida pública (e.g. Bilhetes e Obrigações de
efectivamente utilizado em 2015, totalizou 39 mil Quais as principais constatações e conclusões Tesouro).
milhões de MTs (25 mil milhões transitados de que a Figura 1 permite identificar? 1. Em todos os Pelo que podemos perceber, à medida que nos
2014 e os 14 mil milhões de MTs incrementados anos, o saldo disponível é maior do que o saldo habituamos a desfrutar de um OE crónica e per-
em 2015). de caixa, incluindo em 2014, ano em que o SD sistentemente deficitário (mesmo após os donati-
Lendo o relatório do TA, percebe-se um significa- rondou 83 mil milhões de MTs, contra os 72 mil vos externos), parece dispormos de mais moti-
tivo processo de desorçamentação dos saldos milhões de MTs do saldo de caixa. O SD foi vos, alento e espaço para nos convencermos que
transitados; ou seja, a sua transferência para fora significativamente maior do que o SdC (o rácio em Moçambique não haverá vida e futuro melhor
do controle directo do OE, contrariando o estipu- SdC/SD em média 68%, entre 2007 e 2016, com sem défices permanentes. Esta convicção é
lado no Sistema de Administração Financeira do excepção dos anos 2013 e 2014, últimos anos da consistente com a estratégia de crescimento
Estado (SISTAFE). Mas para onde vão tais valo- governação do Presidente Guebuza (rácio foi económico de maximização da substituição da
res? Como, quem e porque foram utilizados? O 98% e 86%, respectivamente). poupança interna pela poupança externa que
relatório do TA não revela com precisão, alega- 2. Como mostramos nos IDeIAS 82 e 91, os acreditamos prevalecer na economia moçambica-
damente por falta de informação adequada forne- cofres de Estado nunca estiveram vazios e sem- na contemporânea (Francisco et al., 2016).
cida pela a Direcção Nacional do Tesouro (DNT). pre houve liquidez suficiente no início de um novo
Referência
Nesta reflexão, não discutiremos os méritos e exercício. Por isso, questionamos as alegações,
deméritos do Relatório e Parecer do TA sobre a amplamente difundidas em 2015, tais como: “Os Francisco, A., Siúta, M., Semedo, I., 2016. Estraté-
cofres de Estado estão vazios”, “Presidente Nyusi gia de Crescimento Económico em Moçambique:
CGE. Contudo, sendo nosso objectivo dissipar
encontrou cofres vazios”, “O Estado está sem Desta vez é diferente?, in: Desafios Para Moçam-
dúvidas sobre a existência real dos saldos de
dinheiro”. bique 2016. IESE, Maputo, pp. 271–328.
caixa, justifica-se referir algumas das limitações
da fiscalização do TA, que de algum modo contri- 3. O valor do saldo transitado para 2017 deverá Hodges, T., Tibana, R., 2005. A Economia Política
do Orçamento em Moçambique, 1a ed. Principia,
buem para a obscuridade e incredulidade em rondar os 54 mil milhões de MTs, previsão
Publicações Universitárias e Científicas, Lisboa.
torno dos saldos rolantes. Primeiro, a opção do baseada no Relatório de Execução Orçamental
TA por uma abordagem fragmentada, leva a que (REO) de Janeiro à Dezembro de 2016, sujeita a
o Relatório e Pareceres sobre o CGE não facili- confirmação pela CGE de 2016, ainda não dispo-
tem a percepção e avaliação da interdependência nível. Assim, tal como prevemos no IDeIAS 91,
entre o Movimento de Fundos, as Operações de apesar do agravamento da crise económico-
Tesouraria e a Dívida Pública. Segundo, o TA financeira, devido à controvérsia criada pelas
acabou por não aferir devidamente a fiabilidade dívidas ocultas, ainda por esclarecer, no início do
dos valores globais dos saldos de caixa. Terceiro, corrente ano 2017 existiam condições para que o
não se percebe porque é que o TA não procurou Estado tivesse os cofres mais cheios do que teve
confirmar a existência efectiva do valor do saldo no início do ano 2016.
de caixa da CGE, através dos extractos dos
depósitos das instituições governamentais, no Considerações Finais
Banco de Moçambique e Bancos Comerciais. Esperamos que as evidências aqui partilhadas
IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Tomás Nduda Nº1375, Maputo, Moçambique
Tel: +258 21 486043; Fax: +258 21 485973; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz
Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto

Você também pode gostar