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Maputo , 21 de Setembro de 2016 Boletim Nº 91

IDeIAS
Informação sobre Desenvolvimento, Instituições e Análise Social

De Novo a Questão dos Saldos Rolantes na Conta Geral do Estado

António Francisco e Ivan Semedo


Se a Conta Geral do Estado (CGE) é o principal Estado de Direito, a actual crise
documento de prestação de contas do Tesouro financeira e institucional circuns-
Público, dedicar-lhe a devida atenção e monitoria creve-se ao relacionamento com
é uma das melhores maneiras de ajudar o Esta- os doadores e credores interna-
do e a sociedade a gastar melhor e, sobretudo, a cionais, colocando o País em
não se confundir gastar melhor com gastar mais situação de default ou incumpri-
ou demasiado. A recente divulgação da CGE de mento selectivo. Desconhece-se
2015 e do Relatório de Execução do Orçamento como, quando ou se o Governo
(REO), de Janeiro a Junho de 2016, fornece conseguirá encontrar uma saída
nova informação que justifica revisitarmos as positiva. Entendemos por saída
questões relativas aos saldos rolantes acumula- positiva, evitar o risco iminente
dos no Orçamento do Estado (OE) de Moçambi- de falência, se as suspeitas de
que (Francisco e Semedo, 2016), uma das quais incapacidade de o Estado hon-
é: o que mudou e o que ficou na mesma em rar os compromissos creditícios
2015 e 2016? que assumiu, por sua conta e
Quando falamos de saldos rolantes, referimo-nos risco, se concretizarem
aos saldos de caixa acumulados ao longo do (Francisco e Mosca, 2016).
corrente século XXI na Conta Única do Tesouro, Governo do ex-PR Guebuza contraiu tão elevado Num contexto tão sui generis como este, apare-
nas Recebedorias, em Outras Contas do Tesouro e inesperado endividamento oculto, nos últimos cer ao público a declarar que a despeito da
e Outras Contas de Estado. Saldos de caixa dois anos do seu mandato, não admiraríamos pesada factura creditícia e do imbróglio que o
parcialmente usados e repostos ou substituídos que o seu sucessor encontrasse os cofres Governo de Nyusi herdou do seu antecessor, o
por novas receitas de Estado e outras (donativos vazios. O vulgar raciocínio do óbvio fez com que Governo de Guebuza deixou 72 mil milhões de
e empréstimos), transitam para o ano seguinte. a falácia dos cofres vazios se tornasse viral na MT em saldo de caixa efectivo, causou alguma
Para além da sua dimensão (no início de 2015 imprensa e redes sociais. E como que a corrobo- perplexidade, tanto nos críticos como nos defen-
representaram 25% do valor total dos recursos rar tal raciocínio do óbvio, em meados de 2015 sores do regime do partido Frelimo. Para certos
totais do Estado em 2015), não menos importan- surgiram as declarações do Ministro da Econo- críticos, a denúncia da falácia dos cofres vazios
te é tais saldos rolantes serem tratados como mia e Finanças (MEF) Adriano Maleiane, anun- foi inoportuna, porque desvia as atenções da
residuais, ou quiçá, demasiado irrelevantes e ciando que o Governo estava a renegociar a crítica ao alegado sucesso da governação eco-
marginais, para serem incluídos no Orçamento reestruturação dos 850 milhões de USD da dívi- nómica do Presidente Guebuza. Para os apoian-
de Estado para cobertura do deficit orçamental, da da Empresa Moçambicana de Atum tes mais comuns da actual governação, mostrar
ou para justificarem atenção específica nos rela- (EMATUM), por considerar “curto” o prazo do que o Presidente Nyusi está longe de ter os
tórios de execução orçamental corrente e na pagamento do encargo. cofres vazios, retira-lhes munições úteis, na
supervisão do Tribunal Administrativo (TA). Nem Quando publicamos o IDeIAS 82 (Francisco e eventualidade de ser preciso desculpabilizar
mesmo a Assembleia da República (AR), quando Semedo, 2016), estávamos longe de imaginar novos descalabros económicos e financeiros.
solicitada a aprovar a proposta do Governo para que dois meses depois, novos endividamentos Um terceiro grupo, menor do que o anterior, mas
aumento dos limites de empréstimo interno e ocultos seriam revelados pela imprensa interna- associado a ele e de longe o que melhor conhe-
externo, se interroga sobre os saldos de caixa cional, adicionando mais 1,4 mil milhões de USD ce as reais disponibilidades orçamentais, sentiu-
transitados dos anos anteriores. à dívida pública. Mais uma vez, dívida contraída se como se tivesse ficado sem uma carta escon-
A nova informação orçamental disponibilizada em 2013 e 2014 pelos Serviços de Segurança do dida na manga, para ser usada à discrição.
confirma o nosso questionamento quanto à ale- Estado (SISE), para empresas alegadamente em
gação, amplamente difundida na imprensa local regime jurídico privado (ProIndicus - $622 O que mudou e o que continua na mesma?
em 2015: “Filipe Nyusi encontrou os cofres milhões de dólares americanos (USD), Mozambi- À semelhança do que fizemos no IDeIAS 82,
vazios”. Quando procuramos entender a origem que Asset Management (MAM) - $535 milhões vale a pena prestar atenção ao mapa global de
desta alegação, admitimos derivar da inesperada de USD, Ministério do Interior- $200 milhões de receitas, despesas e financiamento da CGE de
polémica provocada em 2013 e 2014, pela reve- USD) e com garantias do Estado. 2015 (Figura 1), afim de identificar as principais
lação pública da primeira vaga de endividamento Subitamente, Moçambique viu-se a braços com diferenças e semelhanças, comparativamente à
externo extra-legal, contraído pelo Governo do uma espantosa dívida pública, de viabilidade, CGE de 2014. Comecemos pelas diferenças:
Presidente (PR) Armando Guebuza. Endivida- legalidade e utilidade pública duvidosas; a última 1. A mobilização de recursos em 2015 represen-
mento feito à margem da Lei Orçamental, violan- vaga de endividamentos foi formalizada à poste- tou cerca de 36% do PIB, tendo decrescido 9,0
do ostensivamente a Constituição da República, riori nas “Garantias e Avales” da CGE 2015, em pontos percentuais em relação ao nível de reali-
sem a aprovação ou mesmo conhecimento quer Maio passado (MEF, 2016, p. 78–79). Em qual- zação do exercício económico anterior. As
das entidades competentes para o efeito, quer quer parte do mundo, de Estado de Direito mini- Receitas do Estado decresceram 2% em compa-
das autoridades supervisoras da macro- mamente funcional, uma dívida pública oculta ração ao nível de receitas do período homólogo,
economia, tanto nacionais (e.g. TA) como inter- que representasse mais de 10% do produto mas a maior queda aconteceu nos Recursos
nacionais (e.g. Fundo Monetário Internacional - interno bruto (PIB) do país, teria provocado uma Externos (-33%), devido à redução dos Emprésti-
FMI). enorme crise política e institucional interna. mos (-38%) e dos Donativos (-23%). Em contra-
Na lógica do senso comum mais vulgar, se o Como Moçambique continua longe de ser um partida, os Empréstimos Internos, essencialmen-
IESE - Instituto de Estudos Sociais e Económicos; Av. Tomas Nduda Nº1375, Maputo, Moçambique
Tel: +258 21 486043; Email: iese@iese.ac.mz; http://www.iese.ac.mz
Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto
te Obrigações do Tesouro, aumentaram 60% riori na CGE 2015? Em devido tempo saberemos. O Estado Moçambicano tem financiado défices
relativamente a 2014, de 5,7 para 9 mil milhões Por enquanto, o que observamos, é que a lógica crónicos das contas correntes, recorrendo às
de MT, se bem que em termos proporcionais, o de endividamento da actual governação, tal como duas opções convencionalmente possíveis: endi-
seu peso relativo no PIB continua inferior a 5% na anterior, segue a mesma estratégia de cresci- vidamento e emissão monetária. A capacidade de
(MEF, 2016a, p. 36-38). mento económico: maximização da substituição endividamento depende do nível de intolerância à
2. O Governo registou uma variação positiva de da poupança interna pela poupança externa dívida, que no caso de Moçambique, está visto
14 mil milhões de MT nos saldos de caixa, (Francisco et al., 2016). ser muito elevada. Quanto à emissão monetária,
“situação resultante do desembolso tardio de apesar da recente advertência da Missão do FMI,
parte considerável de fundos externos, o que não Cofres mais cheios em 2016 do que em 2015? em Junho passado, o actual OE Rectificativo
permitiu a sua utilização durante o exercício A execução do OE de Janeiro e Junho de 2016 levanta mais dúvidas do que o OE 2016 inicial
económico” (MEF, 2016a, p. 40). reporta uma mobilização de 104 mil milhões de 2016 (Mosca e Francisco, 2016). Obviamente, as
3. Se o Governo não tivesse usado parte dos MT em novos recursos, dos quais: 72 mil milhões autoridades monetárias nacionais dificilmente
saldos de caixa acumulados em 2015, teria termi- de MT em receitas do Estado, 29 mil milhões de admitirão que a triplicação do crédito interno,
nado no fim de 2015 com 86 mil milhões de MT. MT em recursos externos e 2 mil milhões de MT possa ser uma via disfarçada de injectar moeda
Porém, como mostra a Figura 1, o saldo de caixa em empréstimos internos. Não obstante a quebra nacional sem suporte real.
transitado para 2016 baixou para 46 mil milhões na arrecadação de receitas do Estado (41% do A situação de quase-falência em que se encontra
de MT; ou seja, uma redução de 39 mil milhões previsto no OE inicial e 44% do programado no a economia moçambicana, agravada pelas incer-
de MT (46%). Uma redução que tanto pode OE Retificativo), em meados deste ano os recur- tezas da instabilidade político-militar, poderá
representar um gasto efectivo, como poderá sos totais superaram as despesas (38,7% do encorajar o Governo a intensificar o recurso aos
parcialmente corresponder a uma espécie de previsto) situadas em 95 mil milhões de MT. O 55 mil milhões de MT de saldos rolantes disponí-
transferência ou migração de fundos das contas abrandamento da despesa deveu-se principal- veis. Contudo, só algo muito inesperado e impro-
do Tesouro para Outras Contas de Estado distan- mente ao fraco nível de redução da execução da vável, poderá justificar que o Governo termine o
tes da monitoria. despesa de Investimento que situou em apenas corrente ano 2016 com os cofres realmente
4. O saldo de caixa transitado para 2016 baixou 19,6% do orçamentado (MEF, 2016b, p. 33). vazios.
para pouco menos de dois terços do valor transi- O excesso de receitas sobre as despesas, no Por determinação da Constituição da República,
tado para 2015. Assim, enquanto no último ano primeiro semestre, resultou num aumento dos sendo o TA a entidade oficial encarregue de
da governação de Guebuza foram utilizados fora saldos de caixa em quase nove mil milhões de “emitir o Relatório e o Parecer sobre a Conta
do OE cerca de oito mil milhões, no primeiro ano MT (MEF, 2016b, p. 10). Adicionando este valor Geral do Estado”, será que este ano vai sur-
da governação de Nyusi, a utilização dos saldos aos 46 mil milhões de MT transitados de 2015, o preender-nos pela positiva? Ou seja, contraria-
rolantes quase quintuplicou (em “Outras Contas saldo rolante acumulado ronda 55 mil milhões de mente aos anos anteriores, irá o relatório do TA
do Estado”). MT (cerca de $785 milhões de USD, ao câmbio sobre a CGE 2015 e a execução do OE em 2016
5. O uso de 39 mil milhões de MT do saldo de médio de 70 MT/USD). A menos que este mon- prestar a devida atenção aos saldos rolantes?
caixa não tem precedente, no corrente século tante seja totalmente gasto nos meses que ainda Esperemos que sim.
XXI. Onde e como foram usados tais recursos? restam em 2016, o que é improvável, o Presiden- De igual modo, do FMI também aguardaremos
Infelizmente, à semelhança do que adiantámos te Nyusi deverá iniciar o ano 2017 com os cofres com expectativa uma postura mais atenta e dili-
em relação à CGE 2014, a partir do reportado na mais cheios do que iniciou em 2016. Esperamos gente, relativamente aos saldos rolantes. Não
CGE 2015, não nos é possível responder à ques- que esta folga orçamental não seja vista como obstante o descrédito do actual Governo,
tão anterior. Tão pouco é possível responder a uma margem negocial suficiente para se teimar Moçambique continua membro do FMI. Terá que
perguntas tão simples como as seguintes: Onde em dificultar a auditoria internacional independen- se encontrar uma saída para o actual imbróglio e
e como é gasto o saldo de caixa transitado para o te em nome de pseudo-soberanias. do FMI esparamos que se empenhe num novo
ano seguinte? Alguém monitora a execução tipo de relacionamento com as autoridades
orçamental dos saldos rolantes? Oportunidade para Reconquistar a Confiança governativas e o Banco de Moçambique; um
6. A AR fixou o limite do financiamento interno Em tudo na vida, quer seja no negócio, na políti- relacionamento menos paternalista, laxista e
em quase nove mil milhões de MT, para o OE ca, no amor, ou na amizade, a confiança conquis- complacente, na gestão de contas públicas. É
2015; ou seja, 1,6 vezes mais do que o limite ta-se com o tempo, mas quando quebrada, por claro que, em última instância, o restabelecimen-
aprovado, em Obrigações de Tesouro, no último vezes nem o tempo é capaz de recuperá-la. Esta to de uma nova cooperação internacional, com
ano da governação de Guebuza. Mais surpreen- nota surge num dos momentos de maior descré- maior ou menor confiança, dependerá sobretudo
dente ainda, é o recente Orçamento Rectificativo dito e desconfiança na governação política e de quem a danificou – o Governo de Moçambi-
surgir com o triplo do valor do crédito interno em económica moçambicana. que.
relação ao previsto no OE inicial de 2016 (Mosca No recente encontro em Washington, entre o
e Francisco, 2016). Como entender o aumento do Presidente Nyusi e a Directora do FMI, Christine Referências Principais
crédito interno de 7,6 mil milhões de MT, num OE Lagarde “salientou a necessidade de novas medi- Francisco, A., e Mosca, J. (2016) Pagar ou Não
em situação normal, para 21,8 mil milhões de das destinadas a estabilizar a economia e de Pagar a Dívida? Canal de Moçambique, 13 de
MT, num orçamento rectificativo? Veremos se a esforços mais decisivos para melhorar a transpa- Julho. Maputo.
próxima Missão do FMI, prevista para a segunda rência, nomeadamente uma auditoria internacio- Francisco, A., e Semedo, I. (2016) Saldos Rolantes
quinzena do corrente mês de Setembro, conside- nal e independente das empresas que foram no Orçamento do Estado Moçambicano: Nyusi
ra o aumento do financiamento interno para o financiadas no âmbito dos empréstimos divulga- Encontrou Cofres Vazios? IDeIAS, Boletim No
triplo, consistente com as recomendações da dos em Abril de 2016” (VOA, 2016). 82p, 4 de Fevereiro.
Francisco, A., Siúta, M., e Semedo, I. (2016) Estra-
Missão do Fundo, de Junho passado, e em linha Entendemos a preocupação do FMI com as con-
tégia de Crescimento Económico em Moçambi-
com a necessidade de se contrariar o expansio- troversas dívidas ocultas, pelas graves violações
que: Desta vez é diferente? L. de Brito, C. N.
nismo fiscal, e em particular, os exagerados dos princípios elementares de parceria interna- Castel-Branco, S. Chichava, & A. Francisco
créditos líquidos ao Governo. cional e boas práticas orçamentais, representam (Eds), Desafios para Moçambique 2016. IESE,
Quanto às semelhanças. Apesar do incremento na cooperação institucional com os parceiros Maputo.
significativo no uso dos recursos orçamentais, bilaterais e multilaterais internacionais. Contudo, MEF. (2016a) Conta Geral do Estado, Ano 2015.
dentro e fora do OE, a governação Nyusi não tem o esclarecimento das dívidas ocultas não passa Volume I. Ministério da Economia e Finanças
mostrado melhorias na transparência e prestação de um passo, sem dúvida fundamental, para o (MEF), Maputo.
de contas, relativamente aos saldos rolantes. restabelecimento de uma nova confiança na MEF. (2016b) Relatório de Execução do Orçamento
Tem, sim, intensificado o recurso a eles, e simul- governação moçambicana, tanto a nível nacional do Estado, Ano 2016, Janeiro a Junho. Ministé-
taneamente, procura ampliar os limites de finan- como internacional. Mas a verdadeira e efectiva rio de Economia e Finanças (MEF), Maputo.
ciamento interno, para níveis nunca antes vistos. estabilização da economia moçambicana vai Mosca, J., e Francisco, A. (2016) Orçamento: Recti-
Será para acomodar, em tempo oportuno, os depender de algo mais do que apenas melhorar a ficativo ou Ratificativo? Jornal Savana, 05 de
encargos da dívida oculta incorporados à poste- transparência financeira do Estado. Agosto, p. 14–15. Maputo.

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Isento de Registo nos termos do artigo 24 da Lei nº 18/91 de 10 de Agosto

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