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XXI

ISSN 1413-6651
São Paulo - 2009
Ficha Catalográfica

Cadernos Espinosanos / Estudos Sobre o século XVII


São Paulo: Departamento de Filosofia da FFLCH-USP, 1996-2009.
Periodicidade semestral. ISSN: 1413-6651

Imagem da Capa:
Interior de igreja
Hendrik van Steenwijck II
1609
Editora Responsável Institucional
Marilena de Souza Chaui

Editora Responsável N. XIX, JUL-DEZ DE 2009 – ISSN 1413-6651


Tessa Moura Lacerda

Comissão Editorial
Celi Hirata, Daniel Santos, Eva Turim e Valéria Loturco da Silva.

Conselho Editorial
Atilano Domínguez (Univ. de Castilla-La Mancha), Diego Tatián (Univ. de Córdoba), Diogo Pire-
sAurélio (Univ. Nova de Lisboa), Franklin Leopoldo e Silva (USP), Jacqueline Lagrée (Univ. de
Rennes), Maria das Graças de Souza (USP), Olgária Chain Féres Matos (USP), Paolo Cristofo-
lini (Scuola Normale Superiore de Pisa) e Pierre-François Moreau (École Normale Supérieure de
Lyon).

Pareceristas
Pareceristas: André Menezes Rocha, Cíntia Vieira da Silva, David Calderoni, Eduardo de Carvalho
Martins, Eduino José de Macedo Orione, Herivelto Pereira de Souza, Homero Santiago, Luciana
Zaterka, Luís César Oliva, Marcos Ferreira de Paula, Mônica Loyola Stival, Roberto Bolzani Filho,
Sérgio Xavier Gomes de Araújo.

Publicação do Grupo de Estudos Espinosanos e de Estudos sobre o Século XVII

Universidade de São Paulo


Reitora: Suely Vilela
Vice-Reitor: Franco Maria Lajolo

FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas


Diretora: Sandra Nitrini
Vice-Diretor: Modesto Florenzano

Departamento de Filosofia
Chefe: Moacyr Novaes
Vice-Chefe: Caetano Ernesto Plastino
Coord. do Programa de Pós-Graduação: Marco Antônio de
Ávila Zingano
Endereço para correspondência:
Profa. Marilena de Souza Chaui
A/C Grupo de Estudos Espinosanos
Departamento de Filosofia – USP
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315
05508-900 – São Paulo-SP – Brasil
Telefone: 0 xx 11 3091-3761 – Fax: 0 xx 11 3031-2431
e-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com
site: http://www.fflch.usp.br/df/espinosanos

Projeto Gráfico: Taynam Bueno /// Tiragem: 1000 exemplares

A Comissão Editorial reserva-se o direito de aceitar, recusar ou reapresentar o original ao autor com sugestões de mudanças.
APRESENTAÇÃO

O Grupo de Estudos Espinosanos do Departamento de Filosofia da


Universidade de São Paulo, em 2004, completou 10 anos.Ao longo deste período,
diversas atividades foram desenvolvidas e procurou-se fazer o registro delas para,
como diz Espinosa, tentar contornar as forças do “tempo voraz que tudo abole da
memória dos homens”. Os Cadernos Espinosanos se inspiram nesse propósito.

Desde o número X, dedicado ao Professor Lívio Teixeira, os Cadernos


estão dedicados também a Estudos sobre o século XVII, seu subtítulo. O que, na
verdade, expressa algo que já acontecia na prática, pois textos acerca de vários
outros filósofos do período sempre estiveram presentes a cada edição.

O objetivo destes Cadernos continua sendo publicar semestralmente


trabalhos sobre filósofos seiscentistas, constituindo um canal de expressão dos
estudantes e pesquisadores deste e de outros departamentos de Filosofia do país.

Porque destinados a auxiliar bibliograficamente aos que estudam o


Seiscentos, tanto para os trabalhos de aproveitamento de cursos, quanto para
a elaboração de outros projetos de pesquisa, estes Cadernos também publicarão,
regularmente, ensaios de autores brasileiros e traduções de textos estrangeiros,
contribuindo com o acervo sobre o assunto.

Esperamos que esta iniciativa estimule os estudos sobre os filósofos


daquele período a que esta publicação é inteiramente dedicada e permita criar
ou ampliar a comunicação entre os que estão envolvidos com a pesquisa desses
temas, incentivando, inclusive, outros departamentos de Filosofia a colaborar
conosco no desenvolvimento deste trabalho.
Franklin Leopoldo e Silva
SOBRE ESTE NÚMERO

Neste número, uma variedade de temas a respeito da filosofia espinosana


em artigos escritos por autores de várias partes do mundo: a questão do método,
da liberdade, a crítica a uma filosofia política utópica, as paixões, a natureza
humana em Espinosa, a crítica à leitura hegeliana da Carta 12.
Há ainda dois artigos que resultaram de nossa Jornada “Recepção pela
contemporaneidade do pensamento do século XVII”: sobre a teoria da livre
criação das verdades eternas para o cartesianismo contemporâneo e sobre a leitura
heideggeriana de Leibniz.
Esperamos que aproveitem a leitura!

Os Editores
SUMÁRIO

A SECULARIZAÇÃO DOS AFETOS RELIGIOSOS NOS ESCRITOS DE


SPINOZA: ESPERANÇA E MEDO, AMOR E GENEROSIDADE
Gábor Boros...............................................................................11

HERMENÊUTICA E PLURALISMO SUBJETIVO:


O FUNDAMENTO DA LIBERDADE NO PENSAMENTO DE ESPINOSA
Victor-Manuel Pineda Santoyo...................................................41

A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA EM BENEDICTUS DE SPINOZA


Emanuel Angelo da Rocha Fragoso............................................83

A PRESENÇA DO MÉTODO NAS DEFINIÇÕES INICIAIS DA PARTE II DA


ÉTICA DE ESPINOSA
Sérgio Luís Persch......................................................................96

O TEMPO DAS PARTES. TEMPORALIDADE E PERSPECTIVA EM ESPINOSA


Mariana de Gainza...................................................................118

HEIDEGGER E LEIBNIZ: A ABERTURA DO CONCEITO DE MÔNADA


Cristiano Bonneau....................................................................130

O RACIONALISMO CARTESIANO POSTO EM QUESTÃO


Carlos Eduardo Pereira Oliveira................................................140
ESPINOSA: UM PENSAMENTO DA ATUALIDADE E DA CRÍTICA À UTOPIA
POLÍTICA
Daniel Santos da Silva...............................................................159

INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES..........................................................175


A SECULARIZAÇÃO DOS AFETOS RELIGIOSOS NOS
ESCRITOS DE SPINOZA: ESPERANÇA E MEDO, AMOR E
GENEROSIDADE

Gábor Boros*

Resumo: Posicionando-se como “filósofo natural” no tratamento das paixões,


Descartes dá início a uma secularização dos afetos ou emoções. Nisso ele é seguido por
Spinoza. Em ambos os casos a abordagem filosófica dos afetos tem como consequência
desvinculá-los da perspectiva moral, secularizando as emoções: separadas da moral,
sua explicação desvincula-se ao mesmo tempo da religião, já que a moral encontra
seus fundamentos no deus transcendente. Nesse ponto, Spinoza vai mais longe que
Descartes, na secularização das emoções, pois nele o deus é naturalizado, Deus sive
natura. A generosidade, por exemplo, não depende mais de um deus dotado de boa
vontade, mas sim do exercício natural do homem dotado de razão como parte da
Natureza racionalizada. De modo que nem mesmo o amor intelectual de Deus seria
substituto do impulso moral religioso: em Spinoza, tal amor, assim como a generosidade
e a amizade, inscrevem-se na ordem necessária da natureza, não dependendo de uma
vontade livre divina, mas também não se reduzindo a uma vontade humana.
Palavras-chave: emoções, moral, secularização, amor, generosidade

Admitir a inequívoca tendência, na filosofia atual, de que as teorias


das paixões e dos afetos, propostas por Descartes e Spinoza, experimentam
uma renovação surpreendente, parece promissor para investigar o que a
negação da ordem moral em Spinoza significa, no nível da teoria da emoção.
Parece óbvio que uma das contribuições principais dos afetos para a vida
moral do homem é conectar a esfera dos usos cotidianos com a esfera dos
valores morais. O que podemos esperar e o que devemos temer, o que nos
* Professor Associado da Universidade Eötvös, Budapeste, Hungria.
Tradução de Maria Cristina dos Santos de Souza, Doutora pela UERJ; revista por Pablo Azevedo,
mestrando da UFRJ.

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Cadernos Espinosanos XXI

é permitido ou urgente amar, e se, quando pensamos, nos encontramos


no estado de felicidade, a resposta para todas estas questões depende
claramente do que consideramos serem os valores morais básicos e como
– se em todo caso – consideramos que eles estão ancorados em alguma
espécie de realidade imutável e eterna, explorada tradicionalmente pelos
administradores do folclore religioso. Por conseqüência, se alguém renega
a consideração moralmente avaliativa das emoções, ele deve, também,
renunciar, pelo menos temporariamente, a sua interpretação teológico-
religiosa e vice-versa: despojando estas emoções, tradicionalmente
associadas a normas religiosas ou teológicas, precisamente desta base
teológico-religiosa, estabelecendo uma exclusiva ligação entre estes afetos
e nosso saeculum mundano, quer dizer, renunciando a uma importante
parte da ordem moral. Assim, quando Descartes adverte o leitor de As
paixões da alma de que sua “intenção era de explicar as paixões apenas
como um filósofo natural, e não como um retórico ou mesmo como um
filósofo moral”, ele coloca a relação entre os afetos e os valores morais
entre parênteses. E quando Spinoza repete esta exposição programática de
Descartes no Prefácio da parte 3 da Ética – “Tratarei, assim, da natureza
e da virtude dos afetos, bem como da potência da mente sobre eles, por
meio do mesmo método pelo qual tratei, nas partes anteriores, de Deus
e da Mente. E considerarei as ações e os apetites humanos exatamente
como se fossem uma questão de linhas, de superfícies ou de corpos.”
(Spinoza 10, p.163) –, o que faz não é apenas seguir a linha cartesiana da
“secularização”1 das emoções, mas dá um passo além: redefine teologia e
religião em termos de sua própria nova moralidade, e assim, quando, mais
tarde, restabelece a ligação entre esta religião e, pelo menos, alguns dos
afetos, isto será equivalente à negação dos afetos religiosos morais.
Certamente, o significado de religião, de religiosidade, neste
período, é um problema altamente controverso. Enquanto, para Descartes,

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Gábor Boros

parece óbvio que o catolicismo pós-reforma, filosoficamente arraigado no


nominalismo medieval tardio, representa um papel enorme em sua filosofia
(incluindo a ética), por outro lado, Spinoza é o pensador cujas idéias a
respeito dos afetos (quase) religiosos são extremamente importantes,
precisamente porque suas visões a respeito de religião são as mais
controversas entre os filósofos modernos prematuramente proeminentes.
De forma assumidamente arbitrária, escolhi esperança e medo, amor e
generosidade como os afetos a serem investigados no contexto da ética,
do conceito de religião e da política teológica de Spinoza. Após terminar
a análise, espero ser capaz não apenas de colocar a questão concernente
ao caráter preciso da negação da ordem moral em Spinoza, na forma da
“secularização” das escolhidas emoções, mas também oferecer algumas
tentativas de resposta para esta questão. Ao final, compararei a linha do
argumento de Spinoza a algumas daquelas que encontramos nos textos de
Tomás de Aquino.

1. Esperança e Medo

Hoje, teóricos da emoção são ambíguos sobre o caráter da esperança


enquanto emoção – às vezes, ela é considerada como uma “emoção
intelectual” – e, além disso, se perguntam esperança e medo podem ser
tomados como um par simétrico, tal como amor e ódio. Nessa ocasião,
escolhi este par de emoções, precisamente por que a esperança é, para
Spinoza, não apenas um entre muitos outros afetos – afeto é o termo dele,
o qual poderíamos chamar, hoje, emoção – porém, também, um entre os
mais proeminentes. O tratamento dos afetos em sua Ética é geométrico no
caráter. O que significa que, até certo ponto, isto ganha importância quando
exatamente um afeto particular torna-se primeiramente mencionado e

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Cadernos Espinosanos XXI

definido. A escala da esperança é absolutamente alta neste sentido: Spinoza


introduz primeiramente os três afetos primários, desejo, alegria e tristeza. A
segunda escala é conferida ao amor e ao ódio, porém, a terceira é atribuída
à esperança – e ao temor. O que J. R. Averrill estabeleceu em um dos
manuais contemporâneos, The Emotions, poderia ter sido uma afirmação
de Spinoza: “A pessoa não pode esperar por alguma coisa a não ser que ele
ou ela também tema que o evento esperado possa não acontecer. Esperança
e temor são dois lados da mesma moeda, por assim dizer; por esta razão, o
que concerne a um concerne também ao outro” (Averill 2, p.36-37). Para
Spinoza, alegria e tristeza são, por assim dizer, os dois principais gêneros
de afeto: todo afeto precisa pertencer a um deles. É quase evidente que
a esperança é o afeto que pertence à alegria, ao passo que o temor é um
afeto de tristeza. Porém, para contar a história inteira, temos de acrescentar
que Spinoza é um dos cognitivistas principais entre os teóricos antigos da
emoção. Para ele, os afetos são idéias e pressupõem idéias que constituem
seus objetos intencionais. Ao analisar um afeto é extremamente importante,
não apenas encontrar o gênero certo para ele, mas também conhecer em
quais espécies de conhecimento a idéia tem sua origem. No que concerne à
esperança e ao temor, suas definições respectivas deixam claro que o objeto
esperado ou temido é representado em uma idéia da imaginação, termo
usado por Spinoza para designar o mais baixo gênero de conhecimento.
Temos uma idéia temporalmente certa de um evento futuro ou passado
como o objeto intencional da esperança e do temor. Mas passado, presente e
futuro não são nada mais do que características, não da coisa mesma, mas de
nosso ser próprio, que é-afetado ou que foi-afetado; enquanto que as idéias
que se originam na razão não têm relação com o tempo, com nossa afetação.
Por conseqüência, partindo-se do fato de que as idéias básicas de esperança
e de temor são inadequadas, segue-se que não é permitido, àquelas que são
comandadas pela razão, terem estes dois afetos.

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Gábor Boros

Os afetos da esperança e do medo não podem ser, por si


mesmos, bons. [...] Assim, quanto mais nos esforçamos por
viver sob a condução da razão, tanto mais nos esforçamos
por depender menos da esperança e por nos livrar do medo;
por dominar, o quanto pudermos, o acaso; e por dirigir
nossas ações de acordo com o conselho seguro da razão.
(Spinoza 10, IV, prop.47 e esc., p.321)

O homem inteiramente comandado pela razão é essencialmente


sem-esperança. Contudo, se devemos admitir que o homem comandado
pela razão não pode sempre ‘conquistar a fortuna’, isso é ainda mais válido
no caso do homem comandado pela imaginação, mesmo que este já tenha
percebido o caráter ilusório da maior parte de suas idéias inadequadas,
especialmente no que concerne os eventos futuros que a imaginação
considera como bons ou maus. Estas são precisamente as idéias das quais
dependem suas esperanças e seus temores. Em uma passagem famosa
de seu Tractatus de Intellectus Emendatione (§7), Spinoza compara o
homem comandado pela imaginação, o qual detecta o caráter ilusório
de seu mundo cotidiano, mas já não poderia encontrar o novo mundo da
razão para alguém “que sofre de uma doença fatal”: ele tem de “empregar
um remédio, [...] não obstante incerto, com toda a sua força. Apesar de
tudo, sua esperança repousa nisto”. Aqui novamente: o temor da morte
necessariamente envolve a esperança de uma nova vida. Há, contudo, uma
clara assimetria entre o temor e a esperança. Embora ambas as espécies
de homens vivam no limite – o homem da imaginação que procura pela
razão, e o homem da razão que não é capaz de livrar-se inteiramente da
imaginação – ambos são instigados pelo temor e amparados pela esperança.
É incomparavelmente melhor, para eles, anelar pelo estado esperado dos
acontecimentos do que fugir dos temidos. Pois, a esperança é um afeto
de alegria que – ao contrário do de tristeza – pode muito bem ser ativo

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Cadernos Espinosanos XXI

no sentido spinozista, quer dizer, pode ser baseado na idéia adequada do


objeto intencional dele, enquanto a tristeza não pode, porém, ser passiva,
basicamente, inadequada. Para ser claro, como dissemos, a esperança
mesma nunca se tornará ativa. Ainda, ao contrário do temor, a esperança
pode nos guiar para a atividade. Este aspecto da esperança encontramos
reafirmados em alguns argumentos políticos do segundo magnum opus
de Spinoza, o Tratado Teológico-Político. A questão é como as pessoas
podem ser forçadas a observar as leis estabelecidas por um certo governo,
dado que as duas principais forças motivadoras profundamente enraizadas
na natureza humana são precisamente a esperança e o temor. De acordo
com Spinoza, no cap.5 do Tratado Teológico-Político, a sociedade, na
qual as leis são observadas por pessoas que esperam por recompensas, é
preferível àquela na qual a maior parte das pessoas é motivadas pelo temor
de punições.

Em segundo lugar, as leis de todo estado deviam ser tal modo


dispostas, que homens são menos restringidos pelo temor
do que pela esperança de algum bem, o qual eles desejam
enormemente; isto assegurará que todos cumpram seu dever
com entusiasmo (TTP, V).

Este tratado também dirige nossa atenção para um outro papel da


esperança, o qual é estritamente relacionado ao caráter religioso possível
desta emoção (Cf. Lagrée 7, p.91-103).2 No Prefácio, Spinoza reflete
sobre as causas do porquê é tão difícil remover a superstição da mente dos
homens. Ele nos induz a reconhecer a força motivacional da esperança.

A origem da superstição dada acima nos fornece uma


clara razão para o fato, que acomete a todos os homens
naturalmente, embora alguns atribuam sua origem a
uma noção obscurecida de Deus, universal para o gênero
humano, e que, também, tende a mostrar que ela não é

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Gábor Boros

menos inconsistente e variável do que outras alucinações


mentais e impulsos emocionais, e, ademais, que não pode
apenas ser mantida pela esperança, pelo rancor, pela raiva, e
pela decepção; visto que surge, não a partir da razão, porém,
unicamente a partir das mais poderosas fases da emoção.
Além disso, precisamos entender prontamente o quanto é
difícil manter no mesmo curso, homens predispostos a toda
forma de credulidade. Pois, como a massa da humanidade
se mantém aproximadamente sempre no mesmo nível de
miséria, ela nunca admite, por muito tempo, um remédio,
mas é sempre melhor satisfeita por uma novidade, que não
tem ainda demonstrado ser ilusória.

Por conseguinte, a esperança tem um papel religioso eminente a


representar em Spinoza, embora a citação se refira apenas a seu papel de
sustentação da superstição, quer dizer, da falsa religião. Os objetos esperados
das superstições são aqueles bens que são principalmente ilusórios: Há
sempre alguns novos que ainda não demonstraram ser ilusórios, e por esta
razão podem ser esperados, pelo menos até a ilusão evaporar. Para obter
estes objetos, os homens são naturalmente predispostos a acreditar no
poder superior de quaisquer daqueles que, como tais, são oferecidos.
Assim, podemos notar agora, como pode ser miserável o estado
do homem da imaginação, abandonado à superstição. Pode-se imaginar,
contudo, se este é o único papel da esperança como uma emoção religiosa
em Spinoza. Considera ele que supersitione tollenda tollitur religio?3 A
resposta imediata é: certamente não. Embora não apenas a falsa religião,
mas também a verdadeira, possa ser “investida de tal pompa e cerimônia,
que pode sair superior de todo choque, e ser sempre observada com
reverência zelosa pela totalidade das pessoas”, e embora o “nome precioso
da religião” possa bem ser mal utilizado em regimes despóticos para fazer
“homens [...] lutarem tão bravamente tanto pela escravidão como pela

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Cadernos Espinosanos XXI

salvação, e contando para isto não a vergonha, mas a mais alta honra em
arriscar seu sangue e suas vidas pela vanglória de uma tirano”, tudo isto
não altera o fato que Spinoza faz uso da “religião verdadeira” universal, a
qual certamente não é idêntica à superstição, e não desaparecerá mesmo
que a superstição seja apagada.
Mas existe um papel para a esperança na verdadeira religião
spinozista? Certamente não esgotarei aqui a complexa questão da
“verdadeira religião” em Spinoza. No entanto, certas demonstrações
básicas precisam ser feitas em torno do tema da esperança. Evidentemente,
a esperança por objetos ilusórios não pode ser tolerada na religião
verdadeira. Ilusões sobre o uso real – ou o caráter nocivo dos objetos para
nós –, são enraizadas nas idéias inadequadas da imaginação, das quais
poderíamos inferir, para a conexão estreita da razão, idéias adequadas e
religião verdadeira, mesmo que não encontrássemos as linhas seguintes na
quarta parte de Ética:
De resto, remeto a religiosidade tudo quanto desejamos
e fazemos e de que, enquanto temos a idéia de Deus, ou
seja, enquanto conhecemos a Deus, somos a causa. Quanto
ao desejo de fazer o bem, que surge por vivermos sob a
condução da razão, chamo de civilidade. Já o desejo que
leva o homem que vive sob a condução da razão a unir-se
aos outros pela amizade chamo de lealdade. E chamo de
leal aquilo que os homens que vivem sob a condução da
razão louvam, e de desleal aquilo que contraria o vínculo da
amizade. (Spinoza 10, IV, prop. 37, esc.1, p.307-309)

Se, de acordo com esta série de definições, os desejos


verdadeiramente religiosos e as ações têm sua origem no modo racional
de vida, tomados no estrito sentido spinozista, a esperança precisa ser
esquecida para representar algum papel na verdadeira religião. Isto pode
ser visto com abundante clareza no escólio da penúltima proposição da

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Gábor Boros

Ética, parte 5, onde é dito que piedade e religião pertencem à “Firmeza


do Ânimo” (Animi Fortitudinem)4 introduzida na parte 3, escólio da
Proposição 59.5
Esta identificação não apenas mostra, novamente, as conexões
essenciais entre moralidade e religião no século 17, mas, também, que a
maneira da verdadeira religião e a maneira de ser guiado pela razão são
também dois lados da mesma moeda. Neste escólio, a esperança – e o
medo – são as principais emoções motivadoras daquelas pessoas que
permanecem supersticiosas no sentido spinozista, quer dizer, que acreditam
em uma vida pós-morte de recompensas e punições, em vez de conhecer,
como o sábio, a natureza verdadeira e os ditados da razão, tanto quanto o
caráter verdadeiro da eternidade da mente – que não tem nada que fazer
na vida pós-morte.
Até então, tudo bem. Infelizmente, podemos estar bem certos
que pessoas reais dificilmente chegariam algum dia ao estado da pura
razão, sem mencionar o intelecto retificado do sábio spinozista, no qual
não apenas nada mais há a temer, como também nada a esperar. Por isto,
não penso que traímos o sentido spinozista, quando concluímos que a
esperança, ao mesmo tempo como emoção do homem com uma doença
letal e como motivação das pessoas governadas por legisladores prudentes,
tem realmente – ao contrário do temor – um papel importante, que pode
perfeitamente ser interpretado como papel moral-religioso, desde que sirva
à conversão da superstição na verdadeira religião – pelo menos no sentido
spinozista.

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Cadernos Espinosanos XXI

2. Amor

A estrutura do amor, que oportunamente esbocei, pode certamente


ser considerada, em geral, como paradigmática para os afetos mais básicos
de Spinoza. Assim, há uma profusão de coisas que podem ser inferidas
também no que concerne ao amor spinozista – sem qualquer pretensão de
ser absolutamente exaustivo.
Gostaria de começar pelo final, quer dizer, pelo final da parte 5
da Ética. As passagens enigmáticas sobre o amor intelectual por Deus
emergem de modo geral um tanto inesperadamente, mas há, além disso,
alguns tópicos particulares que brotam de forma surpreendente e inesperada
em meio ao conjunto. O tópico particular, que gostaria de acrescentar
agora, é o tópico que tem um papel importante no tratamento cartesiano da
espécie de amor que Descartes denomina “devoção”: o temor da morte.6
Para Descartes, a melhor medicina contra o temor da morte é a devoção,
que é principalmente amor por Deus ou amor pelo soberano. Esta, que
é a cura cartesiana do temor da morte, é a pedra angular do princípio
fundamental para uma – para ser exato, ela mesma, não desenvolvida em
Descartes – teologia política. Contrariamente a isto, embora a terapia de
Spinoza contra o temor da morte seja baseada em uma espécie de amor por
Deus, este, posteriormente, não é politicamente motivado, mas pertence a
uma metafísica do conhecimento.

Como os corpos humanos são capazes de muitas coisas,


não há duvida de que podem ser de uma natureza tal
que estejam referidos a mentes que tenham um grande
conhecimento de si mesmas e de Deus, e cuja maior
parte, ou seja, cuja a parte principal, é eterna, e que, por
isso, dificilmente temem a morte. (Spinoza 10, V, prp.39,
esc., p.405 itálico nosso).

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Gábor Boros

Do mesmo modo, se há passagens, também em Descartes, que


conectam o amor por Deus ao conhecimento de certas verdades, a base
teológico-política é inegável e muito mais acentuada em seus escritos do
que na Ética de Spinoza. Ao mesmo tempo, temos, também, uma passagem
em Spinoza, na qual ele conecta a teologia política ao amor de Deus. Nas
já citadas passagens do “Prefácio” ao Tratado Teológico-Político, ele
encontra ocasião de falar no “precioso nome da religião”, que pode ser mal
usado por regimes despóticos para fazer os homens lutarem pela servidão
como se lutassem pela liberdade e arriscarem-se pela glória de um tirano.
Entretanto, para Spinoza, a contraparte de uma religião supersticiosa,
explorada politicamente em favor de um tirano, não é, de nenhum modo, o
uso político da religião verdadeira em favor de Deus como de um príncipe,
isto é, o uso teológico-político do amor não era para ele uma opção viável
– o que certamente não significa que o amor patriótico não possa estar de
acordo com um papel político e religioso não contaminado. Susan James
demonstrou recentemente que de acordo com a visão admitida em seu
Tratado Teológico-Político, Spinoza foi um daqueles pensadores políticos
da modernidade nascente que optaram pelo amor no lugar do temor
quando a questão despontou, dos quais ele é o mais apto para representar a
coerência de membros de um estado particular tão estável quanto possível.
Ao contrário, os pensadores patriarcais não constroem sociedades políticas
como unidades coerentes, ligadas pela mesma emoção da espécie de amor
natural, que encontramos unindo membros de famílias naturais. Porém,
ele contou com os efeitos benevolentes de uma espécie de amor artificial
despertada pela realização de similaridades, semelhanças “em alguns
aspectos importantes”, como “dever cívico ou ocupação” compartilhada
por aqueles que vêm de uma mesma cidade, são “unidos por uma vocação
particular”, ou são “estudantes e professores, ou adeptos de uma única
religião” (James 6, p.43-54). Podemos nos referir a uma interessante

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Cadernos Espinosanos XXI

cadeia de proposições na parte 3 da Ética, no qual Spinoza estabelece


uma conexão entre as idéias de similitude, amor e classe social ou nação.
Comecemos com a proposição 27:

Por imaginarmos que uma coisa semelhante a nós e que
não nos provocou nenhum afeto é afetada de algum afeto,
seremos, em razão dessa imaginação, afetados de um afeto
semelhante. (Spinoza 10, p.195)

Isto quer dizer, pura similaridade – “em alguns aspectos
importantes” – basta deixar o “mecanismo”, função que atualmente os
biólogos denominam “contágio emocional”. E, embora Spinoza não diga
isto explicitamente, somos autorizados a pensar, de acordo com ele, que ao
ter realizado alguma similaridade significativa, estamos aptos para sentir
o tipo de amor artificial necessário ao estabelecimento da “consciência
de classe”. E este amor pode certamente multiplicar a força do “contágio
emocional”. A proposição 21 diz:

Quem imagina que aquilo que ama é afetado de alegria ou de
tristeza será igualmente afetado de alegria ou de tristeza; e
um ou o outro desses afetos será maior ou menor no amante
à medida que, respectivamente, for maior ou menor na coisa
amada.

A Proposição 22 diz essencialmente o mesmo, segundo um outro


ângulo:

Se imaginamos que alguém afeta de alegria a coisa que


amamos, seremos afetados de amor para com ele. (Spinoza
10, p.189)

O primeiro corolário da proposição 27 nos mostra claramente o

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Gábor Boros

quanto o amor emerge daquela “imitação dos afetos”. Spinoza a descreve


aqui:

Se imaginarmos que alguém, que não nos provocou qualquer


afeto, afeta de Alegria uma coisa semelhante a nós, seremos
afetados de amor para com ele. (Spinoza 10, p.195)

Não apenas o amor realmente multiplica a eficácia do contágio


emocional, mas um dos aspectos essenciais é seu empenho para ser
multiplicado, como a proposição 33 nos lembra:

Quando amamos uma coisa semelhante a nós, esforçamo-


nos, tanto quanto podemos, por fazer com que, de sua parte,
ela nos ame. (Spinoza 10, p.203)

Note que Spinoza é perfeitamente ciente do fato embaraçoso


que o ódio, em um grupo particular de pessoas, contra um outro grupo,
pode acentuar consideravelmente a coesão entre os membros de ambos
os grupos. A segunda sentença da proposição 22, e seu primeiro corolário
citado acima, não nos deixa dúvida sobre isto:

Se, contrariamente, imaginamos que a afeta de tristeza,


seremos, contrariamente, afetados de ódio contra ele.
(Spinoza 10, p.189)

Assim, talvez, possamos concluir que o amor – um afeto de alegria


– é capaz de unir pessoas internamente, enquanto que o ódio – um afeto
de tristeza – é capaz de criar coesão grupal de uma maneira exterior. O
que Spinoza diz na proposição 46 pode provavelmente ser interpretado ao
longo dessas linhas:

Se alguém foi afetado, de alegria ou de tristeza, por um outro,

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Cadernos Espinosanos XXI

cujo grupo nacional ou social é diferente do seu, alegria ou


tristeza que vem acompanhada, como causa, da idéia desse
outro, associada a designação genérica desse grupo, ele não
apenas amará ou odiará esse outro, mas também todos os
que pertencem ao mesmo grupo.(Spinoza 10, p.217)

Spinoza não dá exemplos de como o amor comum pode unir nações,


enquanto faz menção de exemplos da força coesiva do ódio comum7.
Porém, ao retornar ao conceito de amor da Ética, a principal
definição do amor, o primeiro afeto depois dos afetos básicos do desejo,
da alegria e da tristeza, um afeto que possibilita passividade e atividade a
ambos, é a seguinte:

6. O Amor é uma Alegria acompanhada pela idéia de uma
causa externa.

Explicação: Esta definição explica muito claramente a


essência do amor. Já a definição dada pelos autores que
definem o amor como a vontade do amante de unir-se
à coisa amada não exprime a sua essência, mas uma de
suas propriedades. E como a essência do amor não foi
suficientemente examinada por esses autores, tampouco
puderam ter qualquer conceito claro dessa propriedade, o que
fez com que todos julgassem sua definição extremamente
obscura. (Spinoza 10, p.241-2)

Existe um grande número de questões em aberto concernentes a


esta definição, e, também, à maneira como Spinoza faz uso dela. Não é
claro o que significa “acompanhamento”; não é claro porque Spinoza fala
de uma causa “externa”, dado que a fonte da alegria, ao produzir amor
ativo, é a transição para um aperfeiçoamento maior de nossa própria alma
cognoscente (Cf. Martins 8).

24
Gábor Boros

Talvez a principal dificuldade que motiva os comentadores a


exercitar sua clareza interpretativa é o caráter interno da alegria, essencial
para o amor, que é, porém, uma transição para uma maior perfeição, e não
a posse completa da mais alta de todas as perfeições. Certamente, este é
um aspecto que ameaça o mais emblemático conceito de Spinoza, o amor
intelectual por Deus. Sem ser capaz de estender-me muito nestes problemas,
gostaria de sugerir uma provável solução. Por que não considerar o amor
por Deus no sentido de estado de satisfação, de posse da mais elevada
alegria como um conceito incerto? Não há ninguém que tenha a posse de
um completo amor intelectual por Deus; construímos este conceito a fim de
entender e encorajar continuamente nosso procedimento no caminho para
o estado absolutamente “raro”, “excelente”, “difícil”, e, ainda, “rigoroso”
da “bem-aventurança”.8
Por mais que a interpretação do conceito de amor de Spinoza seja
laboriosa, se retornarmos à definição do amor encontrada acima, uma coisa
torna-se profusamente evidente: aquele que ele critica por seu conceito
obscuro do papel da vontade no amor é Descartes. Ele mesmo pensa as leis
que regulam a incitação dos afetos, apresentados na parte 3 da Ética, como
sendo leis geométricas, as quais ele promete dar seqüência no Prefácio
deste mesmo livro 3. A vontade é, no melhor dos casos, um conceito da
psicologia popular que não tem valor explanatório em um tratado filosófico
mais geométrico.
Com o fim de acentuar a significação e o suporte científico
contemporâneos para naturalizar a ordem moral de Spinoza, permito-me
aludir ao trabalho do biólogo holandês Frans B. M. De Waal (De Waal
11). A principal preocupação de De Waal é que sua disciplina, a biologia
evolucionária, quando se dedica à questão dos valores morais, parece
virar-se para a direção errada ao destacar a esfera inteira da ordem moral a
partir da evolução natural. De acordo com De Waal, isto contraria ambos, a

25
Cadernos Espinosanos XXI

compreensão original de Darwin e os fatos descobertos por – em parte sua


própria – investigação em torno do comportamento dos primatas. Para dispor
isto de uma maneira menos abstrata, a questão de De Waal é que os biólogos
de proa seguem Thomas Henry Huxley ao duvidarem que a evolução possa
conduzir aos valores morais, endossando a visão de que toda moralidade
é criada pela cultura contra a evolução natural e o geneticamente baseado
egoísmo instintivo de nosso ser puramente biológico. Contrariamente a
isto, De Waal argumenta em favor da visão naturalista segundo a qual
o próprio Darwin, em A Origem do Homem (1871) “inequivocamente
acentuou a moralidade como parte da natureza humana.”(De Waal 11,
p.7). Darwin reconheceu que a promoção do comportamento de servir-se
a si mesmo “de nenhuma maneira impede a evolução do altruísmo e das
tendências simpáticas” e “enfatizou a continuidade com os animais até
mesmo no domínio moral” (Idem, p.11). De fato, não é necessário acentuar
que esta ênfase na simpatia da visão de Darwin deve sua origem a David
Hume e a Adam Smith, e, neste sentido, alguém poderia argumentar que
Darwin foi mais inspirado por sua predileção filosófica a priori do que
por experimentos a posteriori. Porém, o interessante é que, não obstante
Darwin poder ter sido profundamente influenciado pela filosofia escocesa,
as buscas experimentais contemporâneas parecem também sustentar suas
teses. De Waal usa a expressão “contágio emocional” para referir-se ao que
acontece em crianças de um ano, em animais domésticos e em primatas
que habitam a selva, “o estado emocional de um indivíduo induz a um
estado de emparelhamento e de afinidade em outro” (Idem, p.16). Isto ele
considera como o primeiro estrato de seu “Modelo do Boneco Russo”,
que é significativo para mostrar como as formas de empatia, embasadas
socialmente na cognição consciente e na cultura, se desenvolvem,
não contra “esta base bem amarrada, firme” do “impacto emocional
automático”, mas para além dela (Idem, p.23). Tudo isto parece levar a

26
Gábor Boros

concluir que a investigação das condições básicas de nossa vida, de valor


neutro em si mesma, encontrou o valor primitivo da importância de outros
na forma do fenômeno do contágio emocional. E ainda se é verdade que
uma espécie de teleologia parece estar envolvida no quadro, isto não nos
coloca atrás no campo da evolução natural:

Visto que a sobrevivência de muitos animais depende da


ação concertada, da ajuda mútua, e da transferência de
informação, a seleção deve ter favorecido mecanismos
imediatos para avaliar os estados emocionais de outros e
rapidamente responder a eles sob formas adaptativas. (De
Waal 11, p.17)

Não é difícil descobrir que o argumento de De Waal é digno de


todo respeito, paralelamente ao que propriamente aderimos da Ética. Na
Proposição 27 da parte 3 da Ética citada acima, Spinoza antecipa claramente
a idéia de De Waal, Hatfield et al. (cf. Hatfield 5, p.96-99). Permitam-me
citar agora a demonstração desta proposição que certamente lança luz sobre
as diferenças de método entre um filósofo seguindo a ordem geométrica do
século 17 e um cientista atual. Spinoza alega:

As imagens das coisas são afecções do Corpo humano, cujas
idéias representam corpos exteriores como presentes a nós,
isto é, cujas idéias envolvem a natureza de nosso corpo e,
ao mesmo tempo, a natureza presente de um corpo exterior.
Assim, se a natureza de um corpo exterior é semelhante à de
nosso corpo, então a idéia do corpo exterior que imaginamos
envolverá uma afecção de nosso corpo semelhante à do corpo
exterior. Conseqüentemente, se imaginarmos que alguém
semelhante a nós é afetado com algum afeto, essa imaginação
exprimirá uma afecção de nosso corpo semelhante àquele
afeto. Portanto, por imaginarmos que uma coisa semelhante
a nós é afetada de algum afeto, seremos afetados de um afeto

27
Cadernos Espinosanos XXI

semelhante ao seu. Mas, se odiarmos uma coisa semelhante


a nós, então, seremos afetados, neste caso, não de um afeto
semelhante ao seu, mas de um afeto contrário. (Spinoza 10,
III, prop. 27, dem., p.195)

Por mais diferentes que seus respectivos métodos possam ser,


podemos também ter uma perfeita compreensão do sentido spinozista do
Modelo do Boneco Russo de De Waal. Pelo fato de a imitação dos afetos,
caracterizados acima, não envolver um mínimo de atividade cognitiva, esta
imitação pode ser tomada para estabelecer o nível mais básico de empatia.
O nível seguinte é alcançado nas proposições 21 a 24, quando Spinoza
fala sobre a transferência dos afetos no caso em que já se está “ajustado”
emocionalmente: amamos ou odiamos a coisa em questão.

Quem imagina que aquilo que ama é afetado de alegria ou
de tristeza será igualmente afetado de alegria ou de tristeza;
e um ou outro desses afetos será maior ou menor no amante
a medida que, respectivamente, for maior ou menor na coisa
amada. (Spinoza 10, III, Prop.21, p.189).

Entretanto, se lembrarmos que Spinoza também menciona o caso


simétrico quando uma pessoa odeia outra e, assim, por implicação, ela
encontra alegria em sua mágoa, isto poderia sugerir uma contradição ao
Modelo do Boneco Russo: o segundo nível não parece conter o primeiro.
Porém, Spinoza acrescenta uma importante nota à proposição 23, ao lembrar
ao leitor que “Esta alegria dificilmente pode ser duradoura e sem qualquer
conflito mental. À medida que (como devo demonstrar imediatamente
na prop. 27) alguém imagine que algo, como ele mesmo, é afetado com
um afeto de tristeza, ele estará triste. E o oposto, se alguém imagina que
a mesma coisa é afetada com a Alegria” (Spinoza 10, p.191). E, assim,

28
Gábor Boros

ele deixa mais do que claro que assume a existência de uma relação de
implicação à maneira do Boneco Russo.
Depois do segundo nível, ao qual alguém pode também ser ajustado
através de idéias inadequadas, o que segue é o terceiro nível, onde não
existe mais espaço para o rancor. Ainda, se estamos magoados por alguma
ofensa, o ódio que resulta disto é “para ser conquistado pelo amor, ou pela
generosidade, não por retribuir isto com ódio em retorno.” (Spinoza 10, V,
prop.10, esc., p.379). Este princípio de uma empatia natural tripla poderia
ser estendido a várias formas de sociedades humanas, porém, não é minha
tarefa adentrar agora por esta direção. A moral, que eu gostaria de extrair
da comparação com De Waal, é que Spinoza elaborou uma idéia de uma
teologia sem um mantenedor e um criador transcendental de um telos, a
qual parece fechada para o que, hoje, ambos, neurocientistas e biólogos,
denominam ou praticam de uma forma nova.

3. Generosidade

Ao mostrar de uma maneira bem rápida, como o terceiro nível de


empatia amorosa, sem qualquer traço de rancor, completa o Modelo do
Boneco Russo em Spinoza, preparamos já a maneira de tratar, neste artigo,
da terceira emoção, que é a generosidade.
Permitam-me lembrar, de modo bem breve, o que penso serem as
principais características da generosidade cartesiana, que Spinoza deve ter
conhecido muito bem ao desenvolver seu próprio conceito.
Por ora, a generosidade cartesiana é um expediente para superar
as deficiências éticas do conceito metafisicamente funcional de um
eu penso, ego cogitans, o qual poderia, de outro modo, nos induzir ao
desenvolvimento de um universo solipsista. O universo cartesiano é guiado

29
Cadernos Espinosanos XXI

por um Deus pessoal; a maneira indireta como ele governa os eventos


mundanos dá-se através do amor e pelo esforço em direção à perfeição
distribuída a todas as criaturas. A generosidade é uma paixão do homem
e, ao mesmo tempo, sua virtude, a qual consiste no reconhecimento da
liberdade dada por Deus e da benevolência da vontade em nós e – lógica
e simultaneamente – nos outros, guiando-nos à descoberta da comunidade
original do gênero humano.
É apenas no fim da terceira parte da Ética, no escólio da proposição
59, que os afetos, que não são originados da imaginação, que são aqueles
não passivos, paixões no sentido técnico do termo, são mencionados.

Remeto todas as ações que se seguem dos afetos que estão


relacionados à mente a medida que ela compreende, à
fortaleza, que divido em firmeza [fortitudo] e generosidade
[generositas]. Por firmeza compreendo o desejo pelo qual
cada um se esforça por conservar seu ser. Por generosidade,
por sua vez,compreendo o desejo pelo qual cada um se
esforça, pelo exclusivo ditame da razão, por ajudar os
outros homens e para unir-se a ele pela amizade. (Spinoza
10, p.235)

O que é mais conspícuo na conexão com esta definição é que,


enquanto a inter-individualidade, contida no conceito de Descartes da
generosidade, tem que ser desenterrada através de uma análise de seu
conceito de favor, a mesma inter-individualidade é caracterizada, no
tratamento da generosidade em Spinoza, a partir do verdadeiro princípio.
Como sabemos, Spinoza desenvolve sua teoria dos afetos de modo
mais sistemático do que Descartes. Ele tem, porém, três afetos primários,
desejo, alegria e tristeza. Não obstante no escólio da proposição 59 da
terceira parte temos apenas desejo e alegria, não podendo ocorrer, pois,
que um afeto ativo tenha origem na tristeza. A generosidade spinozista

30
Gábor Boros

é conectada primeiro ao desejo e, em segundo lugar, à amizade, e é


precisamente, isto o que constitui sua diferença própria e específica dentro
de seu genus proximum, o qual é fortitudo, força de ânimo. Posto que
Spinoza assevera, sem ambigüidade, que estas ações, que ele reconhece
como generosas, não aspiram somente a algo que é apenas vantajoso
para o agente mesmo. Para ele, o respeito pelas necessidades dos outros é
constitutivo de qualquer ação generosa.
Eu acredito que é uma característica distintiva adicional à teoria
spinozista da generosidade, que a perspectiva de outros seja introduzida
sob o título da “amizade” (amicitia). Como uma questão de fato,
Descartes havia já estabelecido ligações sistemáticas entre os conceitos
etimologicamente vinculados de amor e de amizade. Gostaria de propor
que se interpretasse o conceito de Spinoza de amizade (amicitia) como
paralelo ao de amizade em Descartes, quer dizer, como o tipo de amor
onde o amante e o objeto amado, ao compor o conjunto da relação de amor,
são de igual valor. Colocando à parte esta semelhança, entretanto, é muito
mais importante reconhecer a diferença crucial entre os dois tratamentos do
amor e da amizade. É a amizade, unicamente, que Spinoza assume entre os
três tipos cartesianos de amor: afeição, amizade e devoção. A significação
deste movimento é que, logo de início, um relacionamento desigual entre
seres humanos está excluído do vocabulário de Spinoza concernente tanto
ao amor como ao pensamento sobre ele em geral.
A Generosidade é, assim, um afeto altamente positivo, que é
originado do desejo e do amor, com a amizade como uma mediadora. “o Amor
é” – para lembrar a já citada definição – “uma alegria acompanhada pela
idéia de uma causa externa”. Deixem-me elaborar, além da já mencionada
característica da filosofia de Spinoza, que consiste em refutar em tomar
seriamente a vontade como um conceito filosófico: “Já a definição dada
pelos autores que definem o amor como a vontade do amante de unir-se à

31
Cadernos Espinosanos XXI

coisa amada não exprime a sua essência, mas uma de suas propriedades”.
Não deveria nos surpreender como Spinoza prescinde
completamente da vontade em sua filosofia: não apenas da boa vontade,
dirigida para o Bem pela providência divina, porém, também, e mais
basicamente, da idéia de nossa autonomia para dispor indiferentemente
nossas volições. “Deus ou Natureza” – esta é uma expressão frequentemente
fundada em ambos, nas Paixões da Alma de Descartes e na Ética de Spinoza.
Porém, enquanto em Descartes ela designa uma natureza impregnada pelo
divino, cuja base transcendente permanece a uma distância do universo
criado, em Spinoza, ela revela um deus naturalizado, quer dizer, um deus
que não age à maneira da decisão livre indiferente a sua vontade.
Em Spinoza, o fato de não existir boa vontade tanto no nível
humano como no divino, não implica que pessoas generosas não possam
ser amigáveis com relação às outras, no sentido pleno da palavra, ainda
que esta amizade não tenha fundação na faculdade inata da vontade livre,
como em Descartes. As últimas proposições da quarta parte da Ética
sobre o homem livre, explicam claramente que a liberdade não tem de ser
necessariamente fundada na autonomia para dispor indiferentemente nossas
volições para sermos eficientes na vida. Na proposição 71, encontramos
todos os ingredientes de uma teoria da generosidade, sem vontade boa e
livre, ainda que Spinoza não empregue o termo “generositas” para este
afeto do homem livre.

Proposição 71: Só os homens livres são muito gratos uns para


com os outros.
Demonstração: Só os homens livres são muito úteis uns para
com os outros e se unem entre si pelo mais estreito laço de
amizade[máxima amicitiae necessitudine], e se esforçam
com a mesma intensidade de amor por fazerem bem uns aos
outros[parique amoris studio]. Por isso, só os homens livres
são muito gratos uns para com os outros. (Spinoza 10, p.347)

32
Gábor Boros

Não é, também, difícil de reconhecer a reciprocidade e a igualdade


no relacionamento dos homens livres, que caracterizam o amor na forma da
amizade para ambos, Spinoza e Descartes. Spinoza refere-se ao primeiro
corolário à proposição 35 da quarta parte, na qual é colocado que viver sob
a direção da razão faz as pessoas viverem harmoniosamente, quer dizer,
as torna mais benéficas para outras. Consequentemente, a generosidade
spinozista não depende de um deus dotado de boa vontade, que criou o
homem com uma boa vontade similar a sua própria, e que estabeleceu,
ao mesmo tempo, um domínio no meio do universo, onde é possível agir
de acordo com as decisões livres desta boa vontade. Além disso, ainda
que não possa ser negado que a linha básica do argumento na Ética, que
concerne à faculdade de harmonizar o comportamento das pessoas, seja
intelectualista, entre homens que não vivem sob a direção da razão, uma
espécie de “proto-generosidade” pode também ser detectada. Como vimos,
quando tratamos das análises do “contágio emocional”, Spinoza acredita
que a semelhança é suficiente para incitar em nós uma emoção similar
àquela de um outro, se somos neutros para com o outro. Em vez de me
deter mais tempo sobre a semelhança elementar, citarei as palavras de
Spinoza que concernem ao papel que a generosidade deve representar em
nossa vida, quando não somos (ainda) sábios – o qual é também o período
da geração da emoção de base instintiva. Parece-me que o argumento
seguinte é o foco onde todos os ingredientes da teoria de Spinoza estão
reunidos. A passagem que tenho em mente é o escólio da proposição 10 da
Parte 5 da Ética, onde nos é proposto um método baseado na imaginação
para dele fazermos uso neste período da vida – o qual é, para muitos de nós,
o único. A principal idéia é a seguinte. Primeiro, formamos princípios de
vida sustentados pelo segundo tipo de cognição. Segundo, os gravamos em
nossa memória, e, terceiro, os aplicamos aos casos particulares da vida real.

33
Cadernos Espinosanos XXI

Como resultado deste procedimento, nossa imaginação será informada de


uma maneira especial, e, até mesmo, nos casos em que não somos capazes
de deixar a razão regular nossa vida diretamente e continuamente, nossa
imaginação nos governará de acordo com as pré-impressas linhas-guias da
razão. Quais são as “máximas de vida” que Spinoza recomenda?

Por exemplo, estabelecemos, entre as regras de vida, que o


ódio deve ser combatido com o amor ou com a generosidade,
em vez de ser retribuído com um ódio recíproco. Entretanto,
para que esse preceito da razão esteja sempre à nossa
disposição quando dele precisamos, deve-se pensar e refletir
sobre as ofensas costumeiras dos homens, bem como sobre a
maneira e a via pelas quais elas podem ser mais efetivamente
rebatidas por meio da generosidade. Ligaremos, assim, a
imagem da ofensa à imaginação dessa regra, e ela estará
sempre à nossa disposição quando nos infligirem uma tal
ofensa. Pois, se também tivermos à disposição o princípio
de nossa verdadeira utilidade, assim como a do bem que
se segue da amizade mútua e da sociedade comum; e se
considerarmos, além disso, que a suprema satisfação do
ânimo provém do princípio correto de viver; e que os homens
agem, como as outras coisas, em virtude da necessidade da
natureza; então a ofensa – ou seja, o ódio que costuma dela
provir – ocupará uma parte mínima da imaginação e será
facilmente superada. (Spinoza 10, V, prop.10, p.379-381)

Como é notório, esta regra já foi introduzida na proposição 46 da


parte 4.

Quem vive sob a condução da razão se esforça, tanto quanto
pode, por retribuir com amor ou generosidade, o ódio, a
ira, o desprezo, etc. de um outro para com ele. (Spinoza 10,
p.321)

34
Gábor Boros

O propósito de Spinoza é surpreendente: não é o reconhecimento


da liberdade e, essencialmente, da boa vontade em nós e em outros, que nos
induz a ser generosos, porém, o contrário: o reconhecimento do fato “que
homens, como outras coisas, agem a partir da necessidade da natureza.”
Podemos ainda acrescentar que se Descartes foi autorizado a interpretar
o homem como a imagem de Deus, seu criador, na base da integridade e
da autonomia da vontade presente em ambos, Spinoza poderia pensar que
o agir a partir da necessidade da natureza é uma “imagem” da maneira
determinadamente livre como a natura naturans “age”. Descartes escreve
a Elizabete, em 15 de setembro de 1645, o seguinte: “quando elevamos
nossa mente para considerar [o verdadeiro objeto do amor, que é a
perfeição], encontramos a nós mesmos naturalmente tão inclinados para
amá-lo que recebemos alegria até de nossas aflições, quando pensamos
que sua vontade se realiza pelo o que sofremos.”9 O que Descartes tinha
em mente era o Deus transcendente, dotado de uma vontade livre. Em
contraste com isto, apesar de Spinoza estar um tanto convencido que nos
sentimos naturalmente inclinados para amar Deus, como Descartes, a
motivação para esta inclinação foi naturalizada: é precisamente a secreta
necessidade de tudo o que acontece. Se Descartes recebia alegria até
mesmo de suas aflições físicas, isto foi suficiente para o persuadir de que
era a metafísica inteira, a moral e a religião, determinada pela vontade
divina, que se realizava nelas, destituídas de vontade livre no que tange
às causas físicas. E se ele recebia alegria de suas aflições morais, isto foi
suficiente para convencê-lo de que a causa humana das aflições tomava
posse de sua própria vontade livre, empregada pela vontade divina para
se realizar. Contrariamente a isto, Spinoza não estava inclinado a admitir
um ser de vontade divina, como um ator secreto por trás dos seres físicos e
morais, justificando nossas aflições, físicas ou morais.
Chegamos ao ponto, no qual podemos concluir nossa discussão

35
Cadernos Espinosanos XXI

sobre Spinoza. A generosidade spinozista é estreitamente conectada ao


amor e à amizade, porém, esta conexão não foi estabelecida por um Deus
pessoal e, também, amoroso. O amor de Deus em Spinoza não pode, porém,
ser interpretado a partir da perspectiva do amor humano, como uma espécie
de conceito limítrofe que enriquece o amor e encoraja o amante mesmo,
ao conduzi-lo cada vez mais próximo ao aspecto dinâmico, eficiente da
natureza.

4. Secularização

Após fazer esta avaliação dos afetos escolhidos como casos


paradigmáticos dos afetos religiosos antigos e sempre possíveis, podemos
nos perguntar o que falta nas análises sublinhadas acima da esperança e do
temor, do amor, da generosidade, e o que substituiu o impulso religioso.
Em consideração à transparência, citarei algumas passagens de
Tomás de Aquino, não por pretender uma ambiciosa comparação histórica,
porém, para ser capaz de ver mais claramente a fenda que foi aberta no
período da “dissolução da perspectiva medieval”. Não aspirarei por
completude: confinarei minha comparação à emoção da esperança.
Permitam-me apenas que me refira a quarta parte das Questões
Discutidas sobre as Virtudes de Aquino, a qual trata da Esperança. No
“artigo 1: se a esperança é uma virtude”, nas objeções 5 e 6, emerge a
questão que distingue a esperança e o amor, como emoções que “dão seus
nomes às virtudes”, de outros afetos como a saudade e o prazer, que não o
fazem. Ao responder, Aquino deixa claro que apenas as virtudes teológicas
podem extrair seus nomes diretamente de “movimentos, ou emoções” da
mente. A Esperança, enquanto uma emoção, pode apenas ser eminente por
dar nome a uma virtude teológica, quando seu objeto não for ruim, quer

36
Gábor Boros

dizer, for o objeto duplo da “vida eterna mesma” por um lado, e “a ajuda de
Deus, através da qual podemos esperar alcançá-la.” (Aquinas 1, p.221).
Em Spinoza, podemos também ter um tipo de esperança eminente,
como vimos. Porém, esta esperança, certamente, não pode ser considerada
uma virtude isolada de uma virtude teológica. Podemos esperar “objetos
ruins”, quer dizer, bens ilusórios, enquanto o objeto da esperança eminente
é o mais alto bem real, o qual é o conhecimento amoroso da união da mente
com a natureza inteira. Se existe um segundo objeto desta esperança,
este não é, certamente, a ajuda da Natureza-Deus no nível da substância.
Apenas causas finitas, “homens livres” guiados pela razão, podem nos
ajudar, em primeiro lugar, a obter este estado, o qual pode ser chamado
eternidade da mente, como vimos. Porém, não no sentido de uma pós-vida,
onde devemos experimentar o prazer ‘como uma das dádivas da bem-
aventurança”(Aquinas 1, p.223).
Existe também um aspecto político de distinção da esperança
em Spinoza: em um Estado bem-governado as pessoas observam as leis
do Estado com base na esperança por recompensa como uma espécie de
alegria, a qual pode nos guiar ao Estado de um homem livre que segue as
leis como se fossem sua sponte10, ao ter o prazer necessário sem qualquer
esperança ou necessidade de que lhe sejam dadas recompensas.

Referências bibliográficas:

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Cambridge: CUP, 2005
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Oaks, 1996.

37
Cadernos Espinosanos XXI

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History of Philosophy Quarterly, 20 (April 2003) 149-163
4. BLUMENBERG. The Legitimacy of the Modern Age. Cambridge: MIT, 1983
5. HATFIELD. E., CACIOPPO, J.T .and. RAPSON, R. L: “Emotional Contagion”, in:
Current Directions in Psychological Science 2.
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Moors (eds): The Concept of Love in Seventeenth- and Eighteenth-Century
Philosophy. Budapest / Leuven: Eötvös Kiadó / Leuven University Press,
2007
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(eds): Spinoza et les afects. Paris: Sorbonne, 1998
8. MARTINS, A. “L’amour  : cause et concomitance” in Jaquet, C.; Sévérac, P.;
Suhamy, A. (eds). Spinoza philosophe de l’amour. Saint-Étienne: P.U.
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9. MATHERON, A. “O problema da evolução de Spinoza do Tratado teológico-
político ao Tratado político” in E. M. Curley; P.-F. Moureau (eds): Spinoza –
Issues and Directions: the Proceedings of the Chicago Spinoza Conference.
Leiden: Brill, 1990.
10. SPINOZA, B. Ética. Edição bilíngüe latim/português, Tradução e notas: Tomaz
Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007
11. DE WAAL, F. B. M. “Morality and the Social Instincts: Continuity with the Other
Primates”, in Grethe B Peterson (ed.) The Tanner Lectures on Human
Values, 25. Salt Lake City: The University of Utah Press, 2005, p.1-40.

The secularization of the religious affects in Spinoza’s works: hope and fear, love
and generosity

Abstract: Positioning himself as «natural philosopher» in the treatment of the


passions, Descartes initiates a secularization of affects or emotions. Surely with
regard to this he is followed by Spinoza. In both cases, the philosophical approach of
affection is to release them from a moral perspective, secularizing in this manner the
emotions: separated from morality, their explanations are no more attached to religion,
since the moral is based on the idea of transcendent God. At this point, Spinoza goes

38
Gábor Boros

further than Descartes at the secularization of emotions, because in Spinoza God is


naturalized, God sive natura. Generosity, for example, does not depend on a God
endowed with good will, but on the natural exercise of human reasoning as part of the
rationalized Nature. So that even the intellectual love of God would not be a substitute
for religious moral impulse: to Spinoza, this love, as well as generosity and friendship,
is in necessary order of nature, neither depending on a divine free will, nor being
reducible to human will exclusively.
Keywords: emotion, morality, secularism, love, generosity

NOTAS:

1. O século 17 é o período em que figura proeminentemente nas teorias ou a


manutenção ou a crítica da tese que o principal traço da prematura modernidade é
ser construída como a secularização dos genuínos bens religiosos ou teológicos. No
que concerne a este debate sigo Blumenberg: a meu ver, aquilo que períodos mais
tardios retomam do período imediatamente anterior, não são soluções substanciais,
mas questões selecionadas sem respostas, tarefas sem soluções – entretanto, as
respostas e soluções alegadas, elaboradas nos períodos precedentes, fizeram crescer
o vazio de significado. É neste sentido, que minha investigação visa revelar algumas
formas particulares de “secularização” das emoções religiosas tomadas nas teorias
dos pensadores mencionados acima. Tomei esta expressão no sentido de compreender
questões que vêm adquirindo alguma relevância na nova ordem do conhecimento, sem
as respostas das quais elas eram providas na antiga ordem. Para esta interpretação de
“secularização”, ver Blumenberg: “O que ocorre, principalmente, no processo que é
interpretado como secularização, pelo menos até agora em aproximadamente algumas
instâncias reconhecíveis e específicas, deveria ser descrito não como a transposição
do conteúdo autenticamente teológico na alienação secularizada desde sua origem,
porém, mais propriamente, como a reocupação das posições de resposta que tornaram-
se vagas e às quais correspondem questões que não podem ser eliminadas”. (Cf.
Blumenberg 4).
2. Contudo, sua interpretação das emoções religiosas difere consideravelmente da que
demonstro neste artigo.
3. Ao suprimir a superstição, a religião é suprimida (N.T.)
4. “Parece ser outra a convicção comum do vulgo. Com efeito, são muitos os homens

39
Cadernos Espinosanos XXI

que parecem acreditar que são livres apenas à medida que lhes é permitido entregarem-
se à licenciosidade e que renunciam a seus direitos se são obrigados a viver conforme
os preceitos da lei divina. Acreditam, assim, que a civilidade e a religiosidade e, em
geral, tudo que está referido a fimeza do ânimo, são fardos de que eles esperam livrar-
se depois da morte, para, então, receber o preço da sua servidão, ou seja, da civilidade
e da religiosidade. E não é apenas por essa esperança, mas também, e sobretudo, pelo
medo de serem punidos, depois da morte, por cruéis suplícios, que eles são levados
a viver, tanto quanto o permitem sua fraqueza e seu ânimo impotente, conforme os
preceitos da lei divina. Se os homens não tivessem essa esperança e esse medo, e
acreditassem, em vez disso, que as mentes morrem juntamente com o corpo, e que não
está destinada, aos infelizes esgotados pelo fardo da civilidade uma outra vida, além
desta, eles voltariam a sua maneira de viver, preferindo entregar-se a licenciosidade e
obedecer ao acaso e não a si mesmos”.
5. “Todas as ações que seguem dos afetos referidos à Mente enquanto intelige eu
refiro à Fortaleza, que distingo em Firmeza e Generosidade. Pois por Firmeza entendo
o Desejo pelo qual cada um se esforça para conservar seu ser pelo só ditame da razão.
Por Generosidade entendo o Desejo pelo qual cada um se esforça para favorecer os
outros homens e uni-los a si por amizade pelo só ditame da razão.”
6. Quanto ao tratamento do amor por parte de Descartes ver Boros 3.
7. Talvez não seja inapropriado lembrar, neste ponto, que Alexandre Matheron
desenvolveu uma reconstrução evolucionista do conceito spinozista da gênese de um
estado, precisamente ao longo destas linhas, baseado no Tratado Político de Spinoza,
contra aqueles que sustentam que Spinoza seja um filósofo contratualista. Podemos
encontrar esta análise em Matheron 9, p. 258-270.
8. Note que a expressão “bem-aventurança” (beatitudo) atesta o encadeamento da
moralidade e da (reinterpretada) religião, que equivale a prover ambos de um caráter
“secularizado”.
9. “quando elevamos nosso espírito para considerá-lo tal qual ele é [o verdadeiro
objeto do amor, que é a perfeição], encontramos a nós mesmos naturalmente tão
inclinados para amá-lo, que tiramos a alegria mesmo de nossas aflições, ao pensar que
sua vontade se realiza nisto que as recebemos.”
10. De seu próprio movimento ou vontade (N.T.).

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HERMENÊUTICA E PLURALISMO SUBJETIVO:
O FUNDAMENTO DA LIBERDADE NO PENSAMENTO DE
ESPINOSA

Victor-Manuel Pineda Santoyo*

Resumo: Este trabalho tem como propósito central expor uma das aspirações mais
caras à filosofia de Espinosa: a liberação da faculdade de julgar, tanto como perspectiva
hermenêutica como em seu significado político. A partir deste conceito, pretende-
se reconstruir alguns tramos do programa do filósofo, sempre enfático a respeito da
liberdade, tanto no âmbito ético como no político, e os diversos significados que esta
tem em sua obra. Há uma liberdade concebida sub specie aeternitatis e uma liberdade
sub specie durationis? A questão leva a estabelecer a relação que este filósofo tem
com as coisas do mundo político, sempre movido a partir de paixões e interesses
e, frequentemente, afastado de um sentido virtuoso da liberdade. Sem abandonar
as aspirações de um sentido superior da liberdade, o autor sustenta que Espinosa se
propõe examinar o problema da liberdade em um contexto no qual há mais prejuízos
que idéias adequadas, mais temores que esperanças, mais superstição que sabedoria.
Palavras-chave: liberdade, hermenêutica bíblica, faculdade de julgar.

1. A fonte das liberdades subjetivas

Nas páginas mais notáveis do pensamento espinosano concorrem


diversos graus e concepções da liberdade. Essas noções sempre foram
vinculadas por Espinosa à diversidade de técnicas intelectuais que possui
o entendimento para percepções das coisas: da mesma forma podiam
ser referidas à constituição imaginária da subjetividade, isto é, ao erro e
às ficções mais delirantes, como à potência que a alma possui para ser

* Professor de Filosofia na Univerdad Nicolaita – México.


Texto traduzido por Daniel Santos (Doutorando do Departamento de Filosofia da USP).

41
Cadernos Espinosanos XXI

fonte ativa de todas as suas ideias. Um nível da liberdade se assume como


uma reivindicação racional desta, e, inclusive, é concebida no marco das
aspirações mais veementes de seu pensamento, o da construção de uma
liberdade surgida no marco da cidade constituída em função de valores
superiores.1 Há, assim mesmo, outro plano da liberdade que não está
vinculado com a racionalidade senão com a aspiração a exercê-la desde
o reconhecimento da divergência dos “modos de pensamento” que possui
uma comunidade: se trata de uma defesa da liberdade que assume que o
princípio sobre o qual se deve edificar uma sociedade é a aceitação do
dissenso nos afetos e que exige que a imunidade do juízo seja a garantia mais
sagrada das liberdades. Os argumentos espinosanos a favor da liberdade
são igualmente sagazes quando explicam uma condição na qual ela não
coincide ainda com a virtude. Reclama os direitos à liberdade inclusive
para defender a pobreza intelectual dos espíritos menos nobres: os dos
supersticiosos. O terreno no qual se dão as disputas sobre a subjetividade
se expressa nas diferentes narrações que existem sobre a ideia de Deus: a
dos profetas e a dos filósofos, a que surge da teologia revelada e a do saber
construído no recinto da razão. Espinosa estabeleceu esse legado a favor
da liberdade a partir do suposto de que todas as representações, racionais
ou imaginárias, são geradas a partir da relação dos homens com a ideia de
Deus. As formas dessa relação assumem particularidades que ele estudou
minuciosamente em toda a sua obra; com efeito, podemos encontrar uma
consistente reflexão acerca de todos os gêneros de elaboração racional,
imaginária, simbólica e, no contexto de seus tratados políticos, e nas
conseqüências que esta tem em seu posicionamento social. Sua Ética pode
ser explicada como dirigida à geração de uma ideia racional de Deus;2
toda essa obra concentra seus recursos mais persuasivos na concepção de
uma filosofia teocêntrica, porém apartada dos artigos mais dogmáticos
da revelação. Entre a liberdade que nos foi concedida pela natureza e a

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

liberdade que se conquista através do poder reformador da ideia de Deus,


existe um vasto mundo de ideias, de afetos, de paixões e de interpretações;
essa multidão de ideias que se desdobram no seio da vida social requer que
sejam reconhecidas em sua diversidade e, sobretudo, no reconhecimento
dos limites naturais da autoridade para guiá-las neste ou naquele sentido.
A chave na qual Espinosa compreende a representação de Deus
no plano político lhe impôs a necessidade de expor essa questão em um
registro distinto daquele que oferece em sua Ética: pretende estudar os
mecanismos imaginários que assume a ideia de Deus na trama que forma
a cidade. É de suma importância sublinhar o fato de que Espinosa contrai
duas posturas divergentes em razão dos propósitos de que pretende dar
conta: a Ética é um livro que se desdobra sobre a construção de uma ideia
adequada de Deus e põe a questão do conhecimento como um guia para
assinalar o caminho da conversão intelectual dos homens guiados pela luz
da razão. O Tratado teológico-político e o Tratado político assumiriam
uma visão imposta pela necessidade de pensar a natureza das circunstâncias
e os acontecimentos ocorridos no domínio da vida coletiva. A ideia de
Deus gera, para este filósofo, convergências e divergências, articula e
dissolve relações sociais, comporta argúcias a favor da guerra e serve à
reconciliação, envolve a superstição e a lucidez. No entanto, a questão não
é que todos os homens tendem a possuir uma ideia de Deus senão qual é
o domínio a partir do qual se forja essa ideia. Entre o Deus da ágora e o
Deus surgido dos mais agudos instrumentos da razão há uma diferença de
grau e não uma de natureza: essa diferença é trazida pela origem de que
derivam um e outro e os planos intelectuais aos quais correspondem: a
imaginação e a razão.3 Um filósofo como Espinosa parte do suposto de que
a razão possui um papel que tende a constituir laços humanos nascidos da
virtude e, ao mesmo tempo, formula toda classe de críticas à imaginação
que dissolve os laços da concórdia, da solidariedade e da generosidade.

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Cadernos Espinosanos XXI

Não formulou seus votos filosóficos somente em função de que a razão


contribua para os verdadeiros laços de amizades entre os homens; o faz
a partir de uma convicção mais profunda: sua exigência de que a vida
social não se reduza à mera congregação de homens e sim que avance essa
aliança até a conquista da liberdade.
Haveria uma espécie de distinção espinosana pela qual se explique
a Deus como uma espécie de idola fori e a irrupção de um Deus concebido a
partir dos emaranhados conceituais mais sólidos da filosofia?4 Assumimos
de entrada que a filosofia de Espinosa se expõe em dois planos: um que
aspira a construir uma filosofia perene e sujeita às propensões eternas da
razão; a outra perspectiva parece inclinada a interrogar sobre as coisas
mais seculares que ocorrem ao homem comum e corrente: se propõe a
formular uma alegação a favor da liberdade dos homens de razão e
reivindica o direito de todos os indivíduos a professar suas próprias crenças
em um marco de pluralismo subjetivo. A liberdade exercida no horizonte
multitudinário da cidade, a da realização da plena natureza dos indivíduos,
se desdobra originariamente a partir da interpretação autônoma destes sobre
as Escrituras. A partir dessa neutralização de toda autoridade em matéria de
interpretação, quer dizer, da coincidência entre poder e religião, Espinosa
abre um dos capítulos mais decisivos na edificação da modernidade:
o sentido da liberdade abre passagem a partir do reconhecimento da
soberania do indivíduo sobre suas crenças e ideias. Os escritos políticos
espinosanos estão consagrados a romper com o exercício mais dogmático
e autoritário da interpretação dos textos sagrados; demandam que todo
exercício hermenêutico repouse sobre uma liberdade que o indivíduo
possui originariamente, a de julgar em função de sua própria constituição
intelectual, à margem de algo que a cidade não pode nem deve arrogar-se:
o direito natural ao discernimento autônomo.

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

2. A falsa e a verdadeira religião

Uma das impugnações mais persistentes que formula Espinosa


se dirige contra a superstição. Não se limita a denunciar os estragos que
provoca na ordem da vida social: se impõe a tarefa de compreender o
modus operandi de todas as representações imaginárias que forma para
si todo homem que ignora a verdadeira causa das coisas. A ignorância e
a superstição se instalam ali onde não se pode atribuir uma explicação
causal a um acontecimento ou a uma coisa. As motivações da Ética e os
tratados que a precedem estão inspirados por um zelo intenso e infatigável:
exibir as causas dos delírios da imaginação. Espinosa impõe a si a tarefa
de compreender adequadamente como se formam as ideias mais ilusórias
com a mesma minúcia com que exibe a estirpe das ideias adequadas. Quer
combater a imaginação conhecendo-la em suas entranhas mais abismais.
Um discurso reformador como o que ostenta Espinosa começa fazendo um
reconhecimento do terreno sobre o qual pretende desenvolver a ação de
reconversão intelectual da humanidade; assume, em certo sentido, que todo
intento de reforma social é banal se não se articula com a necessidade de
explicar as origens de um tipo de subjetividade submetida ao despotismo
da ignorância.
Quais são as molas que impulsionam a superstição a seus mais
enérgicos transes? O desejo é um dos elementos que estão implicados na
geração da superstição. Espinosa atribui ao desejo um poder tal que, a
partir dele, derivam-se uma pluralidade de acontecimentos que expressam
todas as inclinações que jogam o homem em diversas direções. Uma
explicação comum à Ética e ao Tratado teológico-político consiste em
assinalar a duas paixões derivadas do desejo todos os motivos pelos quais
o homem pode gerar as mais diversas formas de culto ao absurdo: o medo
e a esperança: “... e daqui surgiram as superstições, cujos conflitos sofrem

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Cadernos Espinosanos XXI

em toda parte os homens. Não creio, além disso, que valha a pena mostrar
aqui que as flutuações de ânimo que nascem da esperança e do medo, já
que da só definição destes afetos se segue que não se tem esperança sem
medo nem medo sem esperança (como explicaremos mais amplamente em
seu lugar); e porque, do mais, na medida em que esperamos ou tememos
algo, o amamos ou odiamos” (Espinosa 2, III, P50, esc., p.159). De sua
parte, as primeiras palavras do Tratado teológico-político partem com a
mesma determinação a criticar as origens da superstição: “Se todos os
homens pudessem conduzir todos os seus assuntos segundo um critério
firme, ou se a fortuna lhes fosse sempre favorável, nunca seriam vítimas da
superstição” (Espinosa 3, prefácio, p.61). Ora, essas formulações têm um
vazio específico: a imagem puramente exterior de Deus que se traduz em
uma fonte de concepções distorcidas sobre sua natureza. Os enclaves a partir
dos quais se propõe estudar a imagem externa das religiões tradicionais são
os cultos e as cerimônias instituídas pelos regimes teocráticos aos quais
aludem as histórias bíblicas; porém, nesta reconstrução das circunstâncias
histórico-hermenêuticas da Bíblia, não encontra um mero propósito erudito.
As formas da idolatria e de superstição que estuda estão submetidas à
exigência de expor todas aquelas práticas que criaram os prejuízos que
limitam as liberdades subjetivas na nascente modernidade.5 A hermenêutica
espinosana não apenas assume uma função crítica a partir da qual destrói
o continuum entre poder e fé: se desenvolve a partir da necessidade de
explicar a liberdade em suas origens mais impuras, contudo igualmente
mais incontestáveis; interpretar é um direito do qual não se pode declinar
a favor da autoridade. Isso vale tanto para o filósofo que propõe a si a livre
indagação como para o ignorante que imagina a natureza das coisas.
O filósofo de Amsterdã está longe de pretender que as religiões
desapareçam do mapa dos afetos humanos; em todo caso, sua tentativa está
orientada a despojar as religiões da superstição, pois uma crítica ilustrada

46
Victor-Manuel Pineda Santoyo

destas não consiste em suplantá-las, senão, inicialmente, depurá-las de


toda aquela mitologia que justifica o terror e a servidão tão arraigados no
mundo social. A distinção entre a falsa e a verdadeira religião é um dos
meios formulados para esse propósito; ao longo de toda a sua obra está
presente esse eixo, embora sob diversas formulações. A Ética ataca o tema
da diferença entre uma imagem exterior e uma ideia adequada de Deus;
parte de uma teoria do conhecimento que se propõe formular as normas que
servem para reconhecer os gêneros de conhecimento que são adequados ou
inadequados em relação à representação de Deus. De sua parte, os tratados
políticos a constroem em função da ideia da falsa e da verdadeira religião; a
necessidade explicativa que se encontra na formulação desta última distinção
consiste no fato de que Espinosa não menospreza o valor da religião, com
a condição de que se encontre associada à filosofia e não às superstições.
A superação da superstição é obra da filosofia, porém esse deslocamento
do intelecto até uma verdadeira religião não consiste no abandono dos
valores, como a generosidade e a animosidade, sim em substituir pela
virtude interna as afecções funestas como o temor e a esperança. A questão
conduz, assim mesmo, a estabelecer qual é a religião da liberdade e qual
é a religião que está a serviço da servidão e dos prejuízos. Enquanto o
conteúdo da profecia tende a refugiar-se no mistério, na revelação e nos
signos, Espinosa coloca a razão no lugar mais visível: suas atividades se
desenvolvem à vista de todos, longe dos véus dos poderes carismáticos;
não a concebe como uma visão privilegiada, sim como uma esfera a que
todo homem pode aceder. O aberto e o fechado de uma e outra as tornam
irreconciliáveis, pois a obrigação de exibir argumentos que possam ser
contrastados por todos se opõe à pretensão de iluminação da profecia e o
espaço na qual irrompe: o privilégio da revelação se dá na “intimidade do
diálogo com Deus”.
É patente que a religião da liberdade surge dos âmbitos da razão.

47
Cadernos Espinosanos XXI

No entanto, o caminho até a liberdade virtuosa, que implica na conversão


do intelecto à “verdadeira” religião, tem uma implicação aparentemente
paradoxal, a saber, que parece defender os direitos que possuem todos
aqueles que não conquistaram os frutos da razão. Com efeito, a construção
da liberdade geral consiste, simultaneamente, em uma limitação da
influência dos prejuízos e em uma liberação da razão, porém, em não
menor medida, também ampara os direitos que possuem todos aqueles que
não reconhecem nenhuma autoridade em matéria religiosa, salvo as que
subministra seu próprio juízo: “... chego à conclusão, já antes formulada:
que se há de deixar a todo mundo a liberdade de opinião e o poder de
interpretar os fundamentos da fé segundo seu juízo (itálico nosso) e que
só pelas obras se deve julgar se a fé está segundo seu juízo, e que só pelas
obras se deve julgar se a fé de cada um é sincera ou ímpia. Deste modo,
todos poderão obedecer a Deus com liberdade e sinceridade, e só a justiça
e a caridade merecerão a estima de todos” (Espinosa 3, prefácio, p.70).
Não se deve compreender Espinosa como movido por uma espécie de
culto intransigente à liberdade virtuosa, a dos homens prudentes; a defesa
das liberdades hermenêuticas vale para todos que fazem uma interpretação
livre dos livros sagrados como para todos aqueles que podem exibir seus
contra-sensos. Tanto as hermenêuticas hegemônicas como as que são
derivadas dos atos particulares de interpretação respondem à mesma paixão:
considerar que suas pretensões são legítimas. Ao propor que os indivíduos
sejam os legítimos intérpretes de sua relação com Deus, Espinosa desloca
do centro da interpretação o princípio de autoridade. Não se trata, no
entanto, de uma abdicação do pensamento espinosano de construir um
mundo dirigido em função da virtude e da razão; trata-se, bem mais, de
uma defesa da liberdade que, não havendo nascido da virtude, precisa ser
justificada a partir das paixões e da subjetividade. Esse momento pelo qual
a liberdade subjetiva parece superior frente à razão se coloca como uma

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

etapa transitória para a cidade; inclusive se pode dizer que esta tese reforça
com maior veemência a alegação espinosana a favor da liberdade: se as
paixões justificam imperiosamente a liberdade, com maior determinação
podem-no fazer a virtude e a razão.

3. Alfakhar ou Maimônides

O que fazer com as Escrituras? Assumi-las como um limite ou


como um ponto de partida? Encontrar-se diretamente com seus dogmas
ou deslocar-se até um fundo que espera ser encontrado pela razão? Ater-se
a suas partes explícitas sem presumir que por trás delas há um conteúdo
latente? Presumir sua consistência imediata? Dogmatismo e ceticismo
se definem em função do poder que se atribui à razão frente à teologia;
uns consideram que os fundamentos da fé podem ser vislumbrados
pela razão e outros se fazem acompanhar da ideia de que as Escrituras
contêm em si mesmas, sem outro auxílio que suas próprias forças, toda
a verdade e, portanto, não é necessário ir mais além do que oferece sua
letra. Espinosa denomina dogmatismo à disposição que quer que as
Escrituras sejam guiadas por uma interpretação eminentemente racional;
ao contrário, define o ceticismo como a doutrina pela qual a razão se
submete integralmente às Escrituras, na qual esta modera e limita sua
intervenção interpretativa. 6
Uns querem averiguar o que há por trás da
linguagem de parábola, outros querem aferrar-se à letra para assinalar
que nelas se expressa inequivocamente a mensagem revelada. Essas duas
perspectivas são personificadas em Maimônides e Alfakhar;7 essas duas
figuras mantêm que a letra é ou um começo ou um limite para a razão.
O intelectualismo dogmático ou o literalismo vulgar estão na origem de
muitas das deformações que a religião possui, pois com Maimônides se

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Cadernos Espinosanos XXI

problematizou onde não havia a necessidade de fazê-lo, com Alfakhar se


consagraram todas aquelas opiniões que o vulgo da antiguidade professava.
Aristóteles foi tomado como o estandarte da racionalização dogmática;
o vulgo ávido de maravilhas é tomado como fonte e destinatário das
revelações, o engenho que regula a redação e a predicação da Mensagem.
Maimônides quer sofisticação intelectual onde Alfakhar quer condescender
com o vulgo; porém o refinamento trapaceiro não é menos pernicioso que
os prejuízos do vulgo de qualquer tempo e de qualquer lugar. Em ambas
as perspectivas, Espinosa encontra espelhamentos e deformações: o
literalismo toma as metáforas como verdades absolutas, assumindo sem
exame e sem resistência as várias perspectivas que, sobre um mesmo
tópico, possuem as Escrituras: a corporeidade de Deus, sua apresentação
antropomórfica, o caráter da criação, sobre se tem movimentos locais ou se
o céu é sua morada, etc.; ao contrário, o apelo à razão como instrumento de
interpretação acaba por extraviar-se em um mar de sutilezas e de distinções
que acabam por ser completamente estranhas ao objeto interpretado.
Os excessos da literalidade abriram a possibilidade de conceber uma
imagem de Deus que ao longo de toda a Ética é criticada: as representações
antropomórficas de Deus são a fonte da superstição e do integrismo que
assumem que as Escrituras não apenas desenvolvem “modos de falar” como
também verdades absolutas. Para Alfakhar a retórica bíblica não é só um
meio expressivo senão o fundo mesmo da interpretação. Não há um sentido
silencioso, porque a superfície é o fundo. O plano da expressão não oculta
um infinito de significados obscuros porque eles aparecem determinados
pontualmente pelos signos. A perspectiva de Alfakhar permite ler, porém
impede de julgar. Essa leitura não permite remontar o que aparece na
letra e renuncia a submeter, ponderar e comparar os diversos livros das
Escrituras, quer dizer, se mostra incapaz de descobrir as contradições que
há entre eles. Quem aceita tudo, sem nenhuma reticência, acaba por negar

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

tudo. Prescindir em absoluto do juízo implica relativizar todas as passagens


recorridas, pois aceitar tudo o que as escrituras aceitam e rechaçar tudo o
que rechaçam é uma renúncia ao sentido comum. Prescinde-se, em poucas
palavras, da lógica e se admite, sem nenhuma reserva sua pureza originária:
Deus é zeloso e não zeloso, se move e não se move, o céu é um sólido e
Deus não o é (Espinosa 3, XV, p.325). As antinomias do literalismo são
as próprias do modo vulgar de representar-se as coisas. Assentir ou negar
algo, essa atividade na qual vontade e entendimento coincidem, são os
atos elementares pelos quais se apreende qualquer coisa. Espinosa ratifica
essas teses da Ética nas quais se nega qualquer tipo de epoché – incluída
a epoché hermenêutica, como a que pretende Alfakhar. Assim, pois, “é
necessário servir-se do juízo e da razão para dar-lhe nosso assentimento”
(Espinosa 3, XV, i, p.323). Alfakhar ignorou os ingenia (redatores diversos,
públicos díspares, tempos heterogêneos) que intervieram para a confecção
final das Escrituras. Aí onde o literalismo vê uma obra de uma só peça, na
realidade se movem uma multiplicidade de fragmentos que respondiam a
uma diversidade de fins, como, por exemplo, a predicação das escrituras e
a necessidade de adaptá-las aos fins de conversão.
Em um sentido oposto, Maimônides se propôs a purificar as
Escrituras das inconsistências, isso por uma virtude da razão. Na realidade,
o que faz é “arrancar das Escrituras as bagatelas aristotélicas e suas próprias
ficções” (Espinosa 3, p.83). Espinosa alude à autoridade dos filósofos, essa
crença segundo a qual são donos da razão por chamar-se como se chamam,
e não em virtude dos argumentos. Maimônides declarou a infalibilidade dos
filósofos, e, ao fazê-lo, os transformou em pontífices. As ideias professadas
pelo filósofo cordobês supõem que a interpretação deve levar-se ao ponto
em que se exija a intervenção da filosofia como ferramenta interpretativa
fundamental. A consequência dessa prática de sobreinterpretação é a
confusão entre filosofia e teologia, que amiúde aparecem em sua obra

51
Cadernos Espinosanos XXI

como a mesma coisa: “Ele supõe, em primeiro lugar, que os profetas


estiveram de acordo uns com os outros e que foram grandes filósofos e
teólogos; porque pretende que eles tiraram conclusões a partir da verdade
das coisas” (Espinosa 3, VII, iv, p.218). Ele privilegia o plano do conteúdo
por sobre o plano da expressão e convoca a filosofia a arrancar significados
mais além da letra. Espinosa o acusa de exigir das escrituras coisas que
não se podem exigir delas e, por outro lado, de renunciar a explicar as
coisas que deve explicar. Em que consiste pontificar uma opinião? Em
substituir a letra pela interpretação, e, mais ainda, em enfatizar a eminência
da interpretação e em torná-la um assunto de autoridade. Os pontífices
sentenciam na cátedra e, ao mesmo tempo, legislam sobre crenças; nessa
dupla função radica o perigo para a faculdade de julgar. A limitação dessa
faculdade traz consigo a violência dogmática que limita e pretende suprimir
um direito natural. Maimônides enfatizou não só o papel da autoridade no
campo da interpretação, mas faz igualmente dessa autoridade uma forma
de poder. Está fundada no pressuposto de que os indivíduos não têm direito
a suas crenças e suas ideias. A pontificação da interpretação é algo mais que
sutileza: é o ato a partir do qual se abre espaço ao dogmatismo religioso até
seu posicionamento como supremo poder. A crítica a Maimônides conclui
que “nem a teologia tem de servir à razão, nem a razão à teologia, pois cada
uma possui seu domínio próprio: a razão, o reino da verdade e da sabedoria;
a teologia, o reino da piedade e da obediência” (Espinosa 3, XV, iii, p.327).
Assim como à razão não se pode exigir obediência, à teologia não se pode
demandar lucidez: a restituição dos foros legítimos de cada uma delas é
concludente no capítulo XV do Tratado Teológico-político; não se trata
mais de estabelecer nexos de colaboração entre ambas, trata-se senão de
reassumir o papel que cada uma tem. A piedade e a justiça não necessitam
de sofismas nem de sutilezas, e sim, tanto mais, de um ânimo dócil. A
conclusão é ainda mais vantajosa para a razão: não necessita sujeitar-se a

52
Victor-Manuel Pineda Santoyo

nenhuma autoridade nem a cânone algum, pelo que a faculdade de julgar


não tem de prestar contas a nenhuma instância exterior a ela mesma.
A tendência a fazer da religião algo acadêmico tem conseqüências
não apenas para a própria sorte da religião, como também, sobretudo,
para a vida social. Dessa disposição se desprendeu o gênio dogmático
que começou por racionalizar a fé e acabou por legislar sobre opiniões
e crenças; o dogmatismo não chegou às Escrituras antes que os filósofos
começassem a incorporar sutilezas que formavam parte de tratados,
porém não de revelações. A filosofia, unida às escrituras, contribuiu para
interpretar de uma maneira cerrada os conteúdos da revelação e com isso
contribuiu para estabelecer cânones rígidos controlados e administrados a
partir das posições de poder. Os pontífices (sejam os fariseus ou os papas)
estão investidos de uma autoridade que interpreta de uma maneira infalível
e inequívoca. Daí que o caráter inquestionável de sua autoridade radique
na eliminação do discernimento dos submetidos a sua autoridade. Quando
o poder torna a interpretação absoluta, os limites da liberdade se tornam
estreitos, pretende-se governar a faculdade de julgar e se promulgam leis
que consagram um regime absoluto de crenças e persegue-se por razões de
crenças e de ideias.

4. Legisladores, profetas e doutores

Porém a Espinosa não interessa apenas a chave pela qual a tradição


interpretou as escrituras, mas ele também quer encontrar as que serviram
para a redação de suas diversas partes. A compreensão das circunstâncias
nas quais foram escritas subministram as explicações interpretativas que
nela se desenvolvem: escrever para constituir um Estado, para revelar os
éditos de Deus sobre sua condução ou em circunstâncias de decomposição

53
Cadernos Espinosanos XXI

social; tais são os diversos registros aos quais Espinosa remete cada um
dos episódios de sua redação. O ordenamento e a depuração do cânone
bíblico instituído pelos diversos concílios negligenciaram a miscelânea de
suas múltiplas intervenções, perspectivas de predicação e circunstâncias
políticas e povos aos quais foi transmitido seu conteúdo; isso exige, na
perspectiva espinosana, estabelecer os domínios aos quais pertencem seus
diversos componentes. Para Espinosa as Escrituras não são sagradas por si
mesmas, senão pela virtude que despertam. Daí que a idolatria à letra seja
uma de suas mais fulminantes críticas: adorar à letra acabou por distrair da
determinação de perseguir da melhor forma seu espírito. Quem corrompe
a palavra de Deus? O homem de fé que prescinde das obras ou aquele que
obra virtuosamente ainda que não tenha fé? Moisés mesmo se encarregou
de romper com as tábuas da lei quando estas se haviam convertido em letra
morta e seu povo havia retomado a idolatria prévia, quando deixaram de
ser o testemunho da aliança. Daí que elas não tenham um significado em
si, apenas que as ações delas derivadas possam submeter-se ao juízo de
piedade ou impiedade. Para Espinosa, são as ações que podem ser julgadas
como profanas ou sagradas, não as crenças. A crítica bíblica espinosana se
endereça a reconstruir chaves para ordenar o processo de criação textual
a que correspondem seus dois grandes segmentos. O caráter sagrado das
Escrituras já não repousa em seu autor, senão nas obras às que chamam
seus ensinamentos. A Ética apresenta de uma maneira mais incisiva esta
crítica à imagem mosaica de Deus, no mesmo sentido em que o Tratado
teológico-político sustenta que “uma coisa é compreender a Escritura e a
mente dos profetas e outra compreender a mente de Deus, quer dizer, a
verdade mesma da coisa.” (Espinosa 3, XII, ii, p.295) Assim, pois, esse
tratado não se propõe a conhecer a natureza de Deus senão a organização
interna das Escrituras e sua difusão como normas de vida.
As chaves tipológicas das Escrituras podem ser classificados em

54
Victor-Manuel Pineda Santoyo

três grandes ramos: o legislativo, o profético e o doutoral. Os dois primeiros


dominam a redação do Antigo Testamento, enquanto o terceiro seria a forma
dominante do Novo Testamento. Não encontra nenhuma homogeneidade
de tópicos e de tratamento ao longo de um livro que considera ter sofrido
a intervenção de diversos autores, em tempos diversos e destinado a
públicos heterogêneos. A revelação profética, a fundação de um Estado
ou o conhecimento doutoral se remetem a fundamentos distintos: uma
empresta a voz a uma mensagem que vem do mistério, outra instaura uma
lei que pactua com Deus e a última nasce de um conhecimento que Espinosa
interpreta como humano. Espinosa parece muito próximo à mensagem
doutoral que possuem as escrituras. Suas afinidades intelectuais estão
do lado de Salomão, Santiago e Mateus, reconhecidos por sua boa dose
de bom senso, prudência e piedade. Sem embargo, o Tratado teológico-
político possui a virtude de estabelecer as mecânicas da produção textual
das partes que Espinosa apresenta de maneira crítica: não é o mesmo redigir
para constituir um Estado (Moisés) e receber mensagens para ratificar a
aliança do povo judeu (profetas) ou mesmo escrever em um momento
de dissolução, com uma ótica doutoral e com um conteúdo especulativo
e universal das coisas (Cristo e os apóstolos). Em que se reconhece um
autor bíblico que fala como legislador? Fundamentalmente, o objeto de sua
intervenção não são ideias de tipo universal senão a confecção de leis que
permitam a fundação e conservação do Estado. Os limites desses textos
radicam nas delimitações espaciais e temporais com que foram concebidos,
quer dizer, como destinados especificamente a regular a vida política do
povo judeu. Uma vez destruído esse Estado, perdem para Espinosa todo
o sentido. A representação majestática de Deus tem, como conseqüência,
um sentido mais imanente e mundano que transcendente e especulativo;
Espinosa encontra nessa representação de Deus uma figura que responde
mais à ideia de majestade política do que de um ser absolutamente infinito;

55
Cadernos Espinosanos XXI

o culto a Deus é o culto mesmo aos deveres frente ao Estado. Moisés


encarna o protótipo do legislador cujas leis têm menos caráter de profecia
que de constituição política: nos textos que lhe são atribuídos flutua com
claridade a ideia de que o fundo da revelação são as coisas práticas mais
que as que possuem um conteúdo dogmático. Ali onde alguns intérpretes
vêem, no Pentateuco, a criação cósmica, Espinosa encontra a semente da
formação do Estado hebreu. O fundo ao qual se deve atender nos escritos
de Moisés são os preceitos ético-políticos: a veneração a Deus é a chave
fundamental para entender um Estado teocraticamente fundado. Daí que a
imagem constante de Deus seja a de um príncipe dotado de uma vontade
que se altera, que governa o mundo segundo decretos, absolve e condena.
Uma vez liberados da sujeição ao Egito e recuperados todos os direitos
naturais, se tornou necessário estabelecer as leis às quais se sujeitariam e
transferir todo o seu direito a um homem, a um grupo de notáveis, a uma
multidão ou a Deus.
Submeter um povo ao governo de Deus implica estabelecer o
vínculo de comunicação com o sobrenatural. Espinosa descreve o primeiro
pacto como uma democracia em que todos os membros da comunidade
podiam consultar Deus sem mediação alguma. Apesar disso, o primeiro
pacto termina em razão do temor pelo numinoso, o temor de escutá-lo
e de perecer deu lugar à legitimidade de Moisés, o único membro da
comunidade dotado da capacidade de escutá-lo sem ser abatido pelo
transcendente. Destruído o primeiro pacto de caráter democrático em
virtude do temor a Deus, o segundo confere a Moisés o papel de um
“oráculo divino” (Espinosa 3, XVII, ii, p.362). Os dogmas estabelecidos
por Moisés são religiosos, ao mesmo tempo em que são leis civis, mesma
relação das cerimônias religiosas com as cerimônias cívicas. Assim, pois,
o emaranhado de religião e de direito repousa sobre um Estado constituído
em função da obediência a Deus. A legitimidade do poder depositado em

56
Victor-Manuel Pineda Santoyo

Moisés radica somente no monopólio da interpretação dos ditos e direitos


de Deus; dessa maneira, Moisés não é concebido como um legislador que,
através da razão e do consenso, pode fundar o direito da cidade. Moisés não
se distingue dos profetas no que se refere a “consultar a Deus”; sua diferença
radica na ordem dos fins pelos quais se estabelece essa comunicação, pois
se movem, tais fins, na ordem das relações de obediência entre Deus e o
povo de Israel. Trata-se de um intérprete que, diferentemente dos grandes
profetas, não especula sobre as coisas sobrenaturais; sua tarefa estava
focada, pela perspectiva de Espinosa, na salvação do Estado. As sucessivas
destruições do Templo de Jerusalém e o cativeiro a que foram submetidos
os israelitas assinalam as limitações temporais da lei de Moisés. A validez
desta depende exclusivamente da existência do Estado.
Por sua parte, a profecia é uma interpretação de todas aquelas
coisas que a razão não consegue explicar. Fundamenta-se na fé, pois seu
sentido radica na aceitação passiva dos mistérios. A narrativa profética
faz incursão nos lados obscuros de Deus e se desdobra sobre os signos
e vestígios que lança sobre o mundo. Os sonhos e visões formam parte
de toda a série de fenômenos aos quais se referem as interpretações da
vontade de Deus. Está claro que, para Espinosa, a chave de geração
textual a que responde a maioria das partes do Antigo Testamento se pode
classificar sob essa categoria, como surgida à margem da razão, como
determinada pela imaginação que se consome em signos e que impõe a
essas partes um significado arbitrário. Como se reconhece a autoridade
de um profeta? Da presunção de um vínculo com a vontade de Deus. A
relação vis-à-vis que estabelece nesse escrutínio se desenvolve através dos
signos, de fenômenos naturais, de vestígios, quer dizer, pertence à ordem da
imaginação. A sondagem da vontade de Deus é um objeto de interpretação
que requer uma capacidade sobrenatural e sobre-humana para escutar sua
voz: “se não queremos forçar a Escritura, há de se conceder, sem mais, que

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Cadernos Espinosanos XXI

os israelitas ouviram uma voz verdadeira, já que ela disse expressamente


(Deuteronômio, 5, 4): Deus falou cara a cara com vós, etc., quer dizer,
igual a dois homens que queiram comunicar-se mutuamente conceitos,
mediante os corpos de ambos.” (Espinosa 3, I, ii, p.79) Quando Espinosa
sustenta que a profecia supõe uma relação corporal entre o emissor da
mensagem e aquilo que ele transmite, está assinalando que se trata de
uma experiência sensível, não intelectual. A profecia se explica desde os
ingenia que mobilizam as percepções dos profetas, quer dizer, está referida
a um conjunto de dispositivos anímicos que impulsionam determinadas
visões. Respondem, portanto, a estados de “iluminação” estritamente
privados, bem além da constatação pública da experiência. A profecia
é, portanto, uma das formas de afecção do corpo e uma experiência que
passa pela linguagem. As palavras e os signos de indexação a partir dos
quais se formula uma ideia da vontade de Deus têm lugar em uma forma
de conhecimento na qual não há nenhuma explicação do tipo causal; daí
os equívocos a que dá lugar o significado de uma experiência como as
chamadas proféticas. Os signos de indexação e as palavras, diferentemente
da ideias, não podem ser ordenadas causalmente. A categoria de ordem
pertence ao conhecimento, porém não de profecia: uma experiência dessa
classe não é ordenada nem pode ser traduzida em termos de ordem. Se
não há ordem, há imperativos. A profecia é um instrumento disciplinar,
na medida em que, qualquer que seja o conteúdo dela, sempre convoca a
submeter-se à vontade de Deus. A obediência pela obediência se chama
fé. A aceitação passiva dos mistérios consiste em uma renúncia explícita à
problematização do conteúdo da revelação: a faculdade de julgar as coisas
a partir de si mesmo está excluída da ordem das proposições de caráter
imperativo que nela dominam. Deus sentencia, ordena, julga e os homens
calam e obedecem. As profecias são feitas mais em função do espírito de
rebanho que de individualidade: convocam os povos a submeter-se aos

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

princípios sobre os quais se fundaram seus cimentos políticos, religiosos


e culturais.
Em troca, a autoridade dos apóstolos não radica na edificação
de leis. A natureza dos textos do Novo Testamento, ao ser de ordem
especulativa, está submetida a divergências de fundamentação da religião.
As duas posturas fundamentais nas quais se sedimenta a ideia de religião
no Novo Testamento são as que estão no princípio de muitas das disputas
teológicas do cristianismo: ou bem se fundamenta a religião na fé, ou bem
nas obras. A importância da fundamentação da religião radica no fato de
que dela se deriva ou a possibilidade de dirigi-la até a ordem da limitação
das ações externas, quer dizer, que governe e limite a ordem dos afetos
sociais, ou bem até a ordem dos foros subjetivos de cada indivíduo e,
assim, tutele todas as suas crenças. Espinosa explica o mundo antigo como
aquele no qual a religião é a lei da pátria.8 O advento de Cristo tornou
ecumênica a lei de Deus e rompeu com a delimitação temporal, espacial e
política da lei mosaica. Com efeito, a delimitação entre a lei dos judeus e a
palavra de Deus difundida universalmente confere às Escrituras um caráter
supranacional e confere uma personalidade mais racional ao objeto dessa
sabedoria. O Novo Testamento não expressa os elementos da aliança entre
Deus e um povo e lhe dá um conteúdo que, em primeira instância, não é
político. Os ensinamentos do Novo Testamento têm um caráter moral e
têm uma origem doutoral, correspondem a um tipo de sabedoria que está
fincada em meios e fins humanos. A diferença entre os evangelhos e o
Antigo Testamento consiste igualmente no meio pelo qual se vincula Deus
aos homens: “se Moisés falava com Deus cara a cara, como um homem
fala com seu companheiro (quer dizer, mediante dois corpos), Cristo se
comunicou com Deus alma a alma” (Espinosa 3, I, ii, p.85). Essa relação
de alma a alma é aquela que freqüentemente tem sido interpretada como
a prova patente de que Espinosa eleva o registro desse vínculo a um nível

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Cadernos Espinosanos XXI

que a Ética denomina ciência intuitiva. O conteúdo dos textos de origem


doutoral está dirigido ao “ânimo interno”, quer dizer, a inspirar o sentimento
de piedade e justiça.
Cristo não foi um profeta armado nem desarmado; tratou-se de
um dos mais altos sábios do mundo antigo, inclusive Espinosa o identifica
como um modo infinito do pensamento de Deus. Teve essa disjunção,
porém não elegeu ser uma coisa nem outra; converteu-se em um pensador
da crise e dissolução da cidade, porém suas ideias se distinguem das
revelações de Moisés na medida em que vão mais além da opressão
local e anunciam uma liberação que não é apenas política. O contexto no
qual se desenvolveram os evangelhos foi aquele de uma decomposição
dos fundamentos da justiça, uma sabedoria que se levanta em épocas de
opressão e que se funda no mais alto sentido da fraternidade humana. Um
Cristo doutoral que alcança o terceiro grau de conhecimento? Porém não
apenas Cristo é concebido como autor de uma sabedoria que versa sobre
o bem viver; também os apóstolos são concebidos como personalidades
que recolhem o testemunho dos ensinamentos de Cristo, além de que eles
mesmos podem ser concebidos como partícipes ativos de uma indagação
de ordem moral: “Paulo fala segundo seu próprio parecer” (Espinosa 3,
XI, i, p.278). Dessa perspectiva, podem ser considerados autores e não
um simples veículo de uma mensagem que os transcende. Os evangelhos
têm uma perspectiva humana na qual há um vínculo de responsabilidade
com o que se diz, eles retêm a personalidade do autor. Essa é uma das
possíveis interpretações do alcance intelectual dos evangelhos.9 Espinosa
prescinde da ideia antropomórfica de um filho de Deus para concebê-lo
como um entendimento puro, como uma encarnação mesmo da ideia de
Deus. Surgidos à margem da revelação, os evangelhos não representam
nenhum poder sobrenatural nem encontram seu suporte na presunção de
ser o produto de uma palavra transcendente.

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

5. A lógica da ilusão

É fundamental, para a interpretação dos tratados políticos


de Espinosa, particularizar a perspectiva a partir da qual ele se propõe
interpretar os livros sagrados. Não projeta encontrar neles mistérios e
chaves para a interpretação da presença de Deus no mundo. A busca pelo
conteúdo interior da religião o leva de maneira indefectível a exibir como
os verdadeiros fundamentos desta estão na prática da caridade e da justiça.
Dizer que os ensinamentos dos livros sagrados se reduz a questões do tipo
prático implica admitir que todas as questões reveladas não formam parte da
ordem das verdades eternas, sim da confusão derivada do delírio profético.
Por momentos, Espinosa parece assumir abertamente que, para possuir
virtudes, não se requer nada da revelação; que para conter as paixões não
basta o poder da religião. Inclusive chega a afirmar que as religiões são uma
pródiga fonte dessas paixões: produzem mais paixões do que as revogam.
No entanto, essa perspectiva hermenêutica não se reduz à apresentação das
fontes da antiga escravidão e dos novos prejuízos; propõe-se a encontrar
na prática das diversas religiões uma fonte de conflitos propiciados pela
diversidade de concepções do mundo e, ao mesmo tempo, uma solução
libertária à presença desses conflitos na esfera da vida pública. Nesse
conflito subjetivo, a razão não é nem um contendor nem árbitro. Sustenta
que, se a razão é o único meio para encontrar o soberano bem da sociedade
política, estará por cima das contendas de tipo religioso, que as religiões
tradicionais não são um instrumento para a concórdia e que, à falta de
juízo, convém fazer uso de um instrumento que não é a razão, porém que
é racional: a tolerância.
Cabe esperar de um espírito racionalista uma atitude pluralista e,
ao mesmo tempo, assumir que constituem a razão unicamente as verdades
necessárias e incontroversas das demonstrações da alma? Ainda que resulte

61
Cadernos Espinosanos XXI

numa colocação paradoxal, o espinosismo pode se fincar em ambas as


perspectivas. O fato de que aceite o pluralismo como uma espécie de “moral
provisória” não o impede de formular as demandas urgentes da razão.10
A compreensão da imaginação está formulada precisamente como uma
ausência de critério, como uma condição na qual a alma não tem uma pauta
para julgar as coisas; se algo comporta a razão, a alma é um instrumento para
taxar de maneira constante a consistência das coisas. Ter um critério firme
consiste em compreender as questões que ocorrem aos homens de acordo
com um cânone metodológico, pois a força da superstição consiste em que
a oscilação das opiniões é produto de um intelecto arrastado em diversas
direções, pelas mais heterogêneas e desencontradas ideias que subministra
a imaginação. Submeter as questões a um cânone da razão consiste em
julgar de acordo com a estável execução dos procedimentos desta. Em
sentido inverso obram as forças dos afetos: eles são a primeira força de
resistência à estabilidade do juízo que obra conforme as regras. Espinosa
e seus contemporâneos atribuíram à esperança e ao medo a acusação mais
tenaz, com o fim de combater energicamente as mitologias derivadas da
superstição. A maré das opiniões desloca a alma por todos os registros
mais fecundos da imaginação; o delírio se opõe à razão não apenas porque
está disposto a crer em qualquer coisa; poderíamos agregar que o método
é o sedimento pelo qual se encontram em uma plataforma sólida todas
as ideias do entendimento: “Se os homens pudessem conduzir todos os
seus assuntos segundo um critério firme, ou se a fortuna lhes fosse sempre
favorável, nunca seriam vítimas da superstição” (Espinosa 3. prefácio,
p.61). Com uma espécie de estoicismo asseado pela razão, Espinosa
costumava expor os prolegômenos de suas obras aludindo à contraposição
que suscitam as paixões geradas pela fortuna frente às prevenidas ideias
de uma alma assentada sobre a solidez dos critérios. Julgar as coisas a
partir das circunstâncias da fortuna, quer dizer, a partir das flutuações que

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

possui nossa esperança frente às promessas do futuro, consiste em despojar


de fundamento todas as coisas que se podem conhecer; nem a natureza
nem a razão podem ser consideradas adictas do extraordinário. A perda de
proporção sobre as causas das coisas se torna para Espinosa o alimento a
que mais recorre a ignorância.
A lógica da ilusão fica exposta a partir de observações dirigidas
pelo propósito de construir uma espécie de “ciência da natureza humana”.
Não se pode omitir em toda compreensão íntegra sobre os mecanismos da
superstição humana que um dos seus suportes mais poderosos constituí a
própria natureza do homem: a incerteza e a ignorância da verdadeira ordem
das coisas se ostentam como os motivos mais assíduos da superstição. Essa
lógica pode ser explicada por três momentos chaves: a) a inconstância no
ânimo e nas opiniões; b) exibindo suas origens; c) mostrando as formas
pelas quais se arraiga na vida social. O ânimo sobre o qual se implantam
as mais severas superstições está submetido à força das coisas exteriores
e é arrastado pelos fluxos encontrados que revolvem a imaginação e que
o impedem de seguir com claridade o curso das causas. No contexto
explicativo da ciência da natureza humana, o desejo ocupa um lugar que não
está qualificado senão em função das potencias das quais se faz acompanhar.
Se o desejo se turva com a imaginação, sua tendência será inevitavelmente
supersticiosa; se se faz acompanhar dos recursos das ideias, sua inclinação
se verá determinada à afirmação virtuosa da alma. Não há moderação,
prudência e Constancia de ânimo que logrem contrapor-se por si mesmos
aos excessos de um desejo assenhorado pela imaginação. A virtude e a
claridade para ver a natureza das coisas provêm da mesma fonte, porém
Espinosa não crê que possa haver ação virtuosa que ao mesmo tempo não
contenha a capacidade para ver com claridade a ordem das coisas. No
Tratado Teológico-político, Espinosa está empenhado em mostrar que na
origem da superstição se encontram associados um desejo incontinente

63
Cadernos Espinosanos XXI

e uma imaginação excitada: “Precisamente por isso, constatamos que os


mais aferrados a todo tipo de superstição são os que desejam sem medida
coisas incertas; e vemos que todos, muito especialmente quando se
acham em perigo e não podem defender-se por si mesmos, imploram o
auxílio divino com súplicas e lágrimas...”(Espinosa 3, prefácio, p.62).11
A demarcação a que se propõe Espinosa localiza, por um lado, as fontes
imaginárias da superstição e, por outro lado, as fontes racionais com que
um intelecto percebe as regularidades que compõem a ordem da natureza,
unida à convicção de que “suprimida a ignorância, se suprime também o
estupor”(Espinosa 2, I, apêndice, p.71).
Assim, pois, a superstição é originada pelo desejo e conservada
pelo temor. As superstições se arraigam com maior vigor ali onde há
ignorância: o temor contribui para alimentar sua continuidade. Ora,
Espinosa não desconhece que é parte constitutiva da natureza humana essa
paixão; a humanidade do temor não é, porém, condição a que se resigna
sem resistência. O caráter reformador da filosofia de Espinosa se põe
à prova frente a essa classe de obstáculos que impedem que o homem
se vincule com as partes mais ativas de sua alma. A razão suficiente do
surgimento e da persistência da superstição, apesar de constituir uma parte
da natureza humana, não é uma fatalidade, salvo que os regimes políticos
baseados em uma obediência passiva e tirânica se empenham em fomentar
essas causas. Por isso, Espinosa exibe o Estado democrático e republicano
como o portador dos valores libertários, como o único que é capaz de
estabelecer as condições a partir das quais se podem suprimir do espaço da
vida social o temor e a esperança. São tarefas da razão a derrota de todas
as formas de tirania e os supostos passionais nos quais se sustenta. Para
avançar até um exercício virtuoso e ilustrado da liberdade se precisa, por
uma dupla partida, de condições externas favoráveis – as que subministra
uma sociedade democrática – e das condições que comporta o próprio

64
Victor-Manuel Pineda Santoyo

intelecto. Na medida em que impõe o dever da ilustração tanto ao Estado


como aos indivíduos, assume que antes de consumar a liberdade esta tem
que transitar pelos campos do prejuízo. Com efeito, a liberdade se exerce,
de maneira primária, em um mundo dominado pelos prejuízos.
Uma nota destacável é o fato de que a liberdade apareça unida à
explicação espinosana sobre os prejuízos. A leitura mais óbvia sobre essa
relação seria que a liberdade se opõe necessariamente aos prejuízos e à
superstição. No entanto, o propósito de Espinosa não está exclusivamente
orientado e desterrá-los. A conseqüência principal do questionamento de
Espinosa é que não se pode pensar seriamente a natureza deles sem exibir
as relações que guardam com a liberdade. Não é que Espinosa admita
que a liberdade se fundamenta nos prejuízos; melhor, pensa essas partes
obscuras do entendimento humano no marco de uma espécie de trégua da
razão: por meio dela demanda que a vida social admita um horizonte plural
de religiões e de concepções de mundo. Os prejuízos não são combatidos
por outros prejuízos, apenas a liberdade permite superar seus limites
estreitos. Um marco de liberdades subjetivas pode admitir os membros de
uma sociedade como donos legítimos de todos os seus prejuízos. Porém
os prejuízos vinculados ao poder não têm a capacidade de incluir uns nos
outros. O que defende Espinosa é o caráter inclusivo da liberdade, não os
prejuízos enquanto tais. O prejuízo é um correlato da liberdade, no mesmo
sentido em que para Descartes a liberdade é correlata do erro: só erra aquele
que possui liberdade. Espinosa parece disposto a pôr a liberdade por cima
da consideração acerca de se o homem é servo de suas paixões ou um
ser racional. Não importa o estofo intelectual de que cada indivíduo está
dotado: o que realmente importa é que os prejuízos não podem limitar-se
a partir dos âmbitos do poder. O campo das neutralizações subjetivas que
estabelece tem também alcance para todas as igrejas; isto implica despojá-
las de todo privilégio, quer dizer, de seu caráter iluminado em torno da

65
Cadernos Espinosanos XXI

interpretação.
Na medida em que a exegese das Escrituras está dirigida a mostrar
que o Estado não perde estabilidade negando-se a interferir no campo dos
direitos subjetivos, Espinosa arremata essas exposições sustentando que a
substância fundamental da coisa pública é a liberdade. Não conclui que o
exercício dos direitos com os quais a natureza dota os indivíduos seja um
motivo para as rupturas na ordem social; os direitos subjetivos são um bem
soberano: no campo da vida social, igualmente ao campo da vida ética,
tudo o que é virtude tende à afirmação e à fundação instituinte. A liberdade
edifica mais do que quebranta. A paz não pode estar assentada sobre a
submissão das consciências, sim sobre o reconhecimento de que todas as
formas de culto têm lugar na cidade. Nas primeiras páginas do Tratado
Teológico-político fala-se da liberdade como uma espécie de concessão;
sabemos que Espinosa não a assume, em última instância, como uma
mera forma de capitular em suas atribuições. A tese mais radical sobre a
natureza da liberdade está colocada em função da impossibilidade que tem
o Estado para controlar todas as coisas relativas à consciência: a gratuidade
da liberdade não pode deslindar-se de uma concepção sobre os limites da
autoridade e dos direitos dos indivíduos. Não é uma concessão senão uma
condição natural no homem. O filósofo acaba por concluir que em matéria
de liberdade não apenas não é possível não concedê-la como, mais ainda,
é perigoso que se assuma como poder que pode limitá-la: o preço dessa
limitação é a paz.12 A realização da liberdade como ratio última do Estado
consiste, em primeiro lugar, em renunciar à pretensão de delimitá-la; em
segundo lugar, consistiria em promover ativamente todos os meios ilustrados
para conquistar uma liberdade que amadureça como fruto da razão. Em
relação à primeira fase da liberdade, o processo é acompanhado pela
tolerância; a segunda fórmula se desdobre a partir da virtude republicana.
Seja por uma visão ativa, seja por um exercício passivo, a liberdade é o

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

único meio pelo qual os homens de uma comunidade podem se consagrar à


paz. Pelo contrário, institucionalizando os prejuízos, a autoridade se aplica
à perseguição. Discorrendo sobre essa matéria, Espinosa não dissimula
sua crítica aos regimes monárquicos; todos eles baseiam a estabilidade
na superstição. Nas palavras seguintes, Espinosa parece antecipar tanto a
Rousseau como a Montesquieu:

“Ora, o grande segredo do regime monárquico e seu máximo


interesse consistem em manter enganados os homens e em
disfarçar sob o especioso nome de religião o medo com o qual
se quer controlá-los, a fim de que lutem por sua escravidão
como se se tratasse de sua salvação (grifo do autor), e não
considerem uma ignomínia, senão a máxima honra, dar
seu sangue e sua alma para o orgulho de um só homem.
Pelo contrário, em um Estado livre não caberia imaginar
nem empreender nada mais desditado, já que é totalmente
contrário à liberdade de todos assenhorar-se do livre juízo de
cada qual mediante prejuízos ou coagi-lo de qualquer forma.
E quanto às sedições, suscitadas com o pretexto da religião,
surgem exclusivamente porque se dão leis sobre questões
teóricas e porque as opiniões – igualmente aos crimes – são
julgadas e condenadas como delito. A verdade é que seus
defensores e simpatizantes não são imolados para a salvação
pública, e sim tão somente para o ódio e a crueldade de seus
adversários. Pois se o Estado estabelecesse por lei que só se
perseguissem os atos e que as palavras fossem impunes, não
caberia disfarçar tais sedições de nenhum tipo de direito,
nem as controvérsias se transformariam em sedições.”
(Espinosa 3, prefácio, p.64-65)

Levado em conta que os princípios da religião não podem ser


interpretados de maneira inequívoca, é impossível evitar que as opiniões

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Cadernos Espinosanos XXI

se multipliquem. A imaginação tende, por natureza, ao pluralismo; a razão


é uma, a imaginação se bate em diversas direções e constitui uma multidão
de tendências subjetivas: “há tantas opiniões como cabeças, cada qual
abunda em seu próprio sentir, as discrepâncias entre os cérebros não são
menores que entre os paladares. Esses ditos bastam para mostrar que os
homens julgam as coisas segundo a disposição do seu cérebro e que mais
as imaginam que as entendem” (Espinosa 2, I, apêndice, p.76). Adorar a
Deus como a cada um lhe agrade é a base de uma liberdade republicana
construída sobre a base da tolerância, mesmo que não necessariamente
sedimentada em princípios racionais. Inclusive a lei revelada, para já não
mais falarmos da lei natural, deixa a liberdade de cada um, de acordo
com os poderes de seu intelecto ou com a impotência de sua imaginação,
poder resolver sua vida intelectual ou religiosa. Não se pode ignorar que
a defesa da tolerância implica uma certa atitude pessimista; a base de sua
defesa contém o suposto de que nem todos os homens podem se despojar
do véu da ignorância. Não poucas vezes, Espinosa deve ter se colocado
um problema típico da filosofia política, o que fazer com os ignorantes
nos quais se arraigam todas as superstições? Um remédio exterior sempre
tem sido, para um pensador da liberdade, admitir sua existência na cidade
e renunciar a fazer dela o lugar da comunhão dos santos. O outro remédio
é a educação, e essa é uma tarefa que a razão teria que empreender para
assegurar o advento da liberdade virtuosa.
A chave interpretativa da qual parte Espinosa não consiste em
seguir de maneira imanente os conteúdos das Escrituras. Sua perspectiva
metodológica pode ser compreendida como uma reconstrução crítica
e não, como seria a perspectiva privilegiada pela Ética, construtiva e
demonstrativa. Esse método representa o capítulo espinosano sobre a disputa
fides-ratio que se encontra presente em muitos pensadores modernos. Ao
não promover as causas obscuras da imaginação, pretende levantar um

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

procedimento de análise no qual se evite todas as armadilhas estendidas


por seus interesses. Desautorizados no nível intelectual, o reduto no qual
as Escrituras possuem uma influência indubitável pertence à ordem da vida
moral. Há um Espinosa genealogista que se propõe a exibir os verdadeiros
fins da profecia:

“Estes são, pois, os pensamentos que me embargavam: que


a luz natural não só é depreciada, como muitos a condenam
como fonte de impiedades; que as elucubrações humanas são
tomadas por ensinamentos divinos, e a credulidade por fé,
que as controvérsias dos filósofos são debatidas com grande
paixão na igreja e na Corte, e que daí nascem os mais cruéis
ódios e dissensões... à vista disso, decidi examinar de novo,
com toda a sinceridade e liberdade, a Escritura e não atribuir
a ela nem admitir como doutrina sua nada que ela não ensine
com a máxima claridade... Guiado por essa cautela, elaborei
um método para interpretar os sagrados volumes”(Espinosa
3, prefácio, p.68).

Que a profecia esteja mais vinculada à vida prática que à espiritual


permite a Espinosa formular a tese segundo a qual o sentido último das
profecias se move no sentido do ensinamento de questões relativas ao
espaço político e moral. O mito do povo eleito e o do carisma profético
ficam reduzidos ao âmbito da explicação histórica: a edificação do Estado
de Israel e a consideração de que a piedade é o que motiva o sentimento
profético. Em ambos os casos não há “eleitos” e sim homens impulsionados
a atuar em função de coisas humanas, no entanto protegidos pela aureola
da divindade de suas opiniões. Ele encontra que o imperativo mais urgente
que move o entusiasmo profético é um que também o possui a razão – a
fundação de instituições, leis e critérios -, que, entretanto, realiza-o por

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Cadernos Espinosanos XXI

outros meios: as ações de fundação são a finalidade, a justificação espiritual


provendo o dogma da revelação que pretende que Deus tem um pacto
privilegiado com o povo de Israel. O que o entendimento averigua, ali
onde põe em tensão todas as suas forças, é que os fins da profecia radicam
em uma tarefa mundana.
De acordo com as pautas hermenêuticas que segue Espinosa,
não há a pretensão de voltar-se sobre a tradição para justificá-la, senão
exibir nela todos os sedimentos irracionais que persistem no presente. No
século de Espinosa, já não havia nem profecias nem profetas, porém havia
ministros de cultos e sectários com poder. Acudir à tradição implica exibir
nas diversas formas da religiosidade vestígios da antiga escravidão. Vincula
sua percepção do passado – particularmente o do povo hebreu – com a
escravidão e a irracionalidade de uma comunidade que vive a infância de
sua organização como Estado. Viajar à semente do prejuízo e da superstição
implica descobrir na escravidão dos antigos os fundamentos da servidão
do presente; nessa classe de perspectiva não se pode esperar que o vínculo
com a tradição seja, à maneira como professam os hermeneutas de nossos
dias, um “diálogo com a alteridade”; a tradição é a fonte dos prejuízos
e das servidões. O comportamento do vulgo não está longe, de acordo
com o exame de Espinosa, dos prejuízos dos escravos da antiguidade. A
religião que é desnudada com a crítica de Espinosa é a que se expressa em
formas puramente exteriores e que em nada contribui para a formação do
ânimo dos cidadãos; se converte em religião da servidão tudo o que ofereça
asilo à ignorância, que preserve a vestimenta puramente exterior – ritos,
narrações e costumes – e prescinda das partes ativas que havia nela. As
tradições a que remonta a filosofia de Espinosa não são objeto de nenhuma
reivindicação, sim de um severo escrutínio: justifica-as como práticas
de religiosidade primitiva, porém não como ensinamentos dirigidos ao
exercício da virtude.

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Victor-Manuel Pineda Santoyo

6. A liberação da faculdade de julgar

A faculdade de julgar não constitui um gênero de conhecimento,


no sentido em que a Ética e o Tratado da reforma do entendimento o
concebem. A faculdade de julgar raramente alcança as alturas do raciocínio,
não se guia geometricamente nem se constrói articulando as proposições
segundo a ordem das razões. O edifício do conhecimento requer algo mais
que uma boa dose de sentido comum; daí que Espinosa sustente que “ainda
que não possamos demonstrar matematicamente esse fundamento de toda
teologia e Escritura, podemos aceitá-lo com juízo são.” (Espinosa 3, XV,
iii, p.330). Julgar com juízo são não é, pois, conhecer de acordo com um
procedimento construído segundo uma regra. A faculdade de julgar não
tem por objeto aquilo que a razão pode investigar, pois seu papel é mais
negativo: se desenvolve sobre a ordem das coisas que se podem aceitar
sem acreditar que são representações racionais, e que, mesmo assim, são
inofensivas para a vida em comum. O registro a que pertencia o bom juízo
é o da certeza moral, que Espinosa distingue rigorosamente da certeza
matemática, “se equivocam, pois, totalmente de caminho aqueles que
se empenham em demonstrar a autoridade da Escritura com argumentos
matemáticos” (Espinosa 3, XV, iii, p.229). As crenças que se professam
em uma comunidade formam parte do índice de matérias a que se refere
o “juízo são”. À falta da geometria, basta uma boa cota de cautela e de
boas obras? Talvez sim. Em todo caso, Espinosa está convencido de que os
dogmas não podem servir para orientar a faculdade de julgar, pois a prova
crucial do bom juízo não reside no que se crê e sim no que se faz. Assim,
pois, o bom juízo tende a deslocar as questões teóricas e dogmáticas do que
se pode denominar de uma atitude de discernimento não ilustrado.
Porém, além de considerar essa questão em relação ao juízo sobre
o conteúdo de um livro em particular, Espinosa interpreta a faculdade

71
Cadernos Espinosanos XXI

de julgar como um poder do qual está dotado todo indivíduo, uma vis
nativa que constitui o espaço subjetivo de todo indivíduo. Remete-se à
ordem daquelas coisas irrenunciáveis que são constitutivas de cada um,
não uma simples atividade assessória daquela que se pode transferir como
se fosse uma letra de câmbio endossável. A faculdade de julgar, ativa ou
passivamente, está presente em todos os homens, ainda que não esteja
disciplinada por nenhuma espécie de método; trata-se de um nicho no
qual não há nenhuma autoridade que esteja por cima dos indivíduos. Essa
faculdade, pela qual cada indivíduo pode submeter a seu próprio critério
as coisas sagradas e profanas, é a expressão mesma da liberdade: essa
liberdade não lhe acontece, nem é recebida do exterior, não é concedida e
não se priva, daí a inutilidade de legislá-la, limitá-la ou invalidá-la. Está
antes e depois do poder, daí que o Estado que renuncia a pontificar seja o
menos violento. Permanece inalterável; permanece aí mesmo que não seja
consentida por um poder arbitrário; permanece por cima das duas formas
de debilitá-la, o temor e a esperança. Constituindo-se como um limite
para o poder, a faculdade de julgar cumpre com uma tarefa da natureza
humana, a de pensar além dos constrangimentos e dos limites externos
violentos. Inclusive nas condições mais precárias de sua existência, acaba
por se confirmar como uma esfera que está por cima de todo poder. A
racionalidade tampouco pode entender-se como uma “propriedade do
príncipe”, por exemplo, o filósofo-rei de Platão, salvo na racionalidade
do pacto social. A partir disso é questionado o princípio da autoridade:
a “verdade” não é propriedade da autoridade (filosófica ou política, ou
as duas juntas como queria Platão), sim uma propriedade da razão. Esse
projeto da modernidade não apenas consistiu em levar à sua maior crise os
princípios lógico-argumentativos do aristotelismo, como também à crítica
de seu conceito mesmo de sociedade política. A liberdade de pensar deve
ser colocada como um intento de subtrair esta do princípio de autoridade

72
Victor-Manuel Pineda Santoyo

e como algo alheio aos fins da ação da cidade. Não apenas se trata de
um impedimento da cidade como de um limite positivo ao conteúdo de
sua ação. Seu significado é, como já indicamos, ambíguo. Se estivesse no
poder do Estado o controle da consciência, não só seria legítimo como seria
um imperativo; porém o Estado não pode fazê-lo e por isso não tem direito
a isso. Por essa razão a liberdade de pensar não pode ser entendida como
uma concessão do Estado a seus associados, sim como um limite. Espinosa
sabia que nenhum Estado democraticamente constituído pode ser lesionado
pelas palavras. A violência ou a moderação frente à faculdade de julgar
proporcionava o critério mais forte para delimitar uma ordem concebida
a partir do respeito à liberdade mais fundamental da natureza humana. A
moderação, que é a forma de virtude política mais elogiada pelos modernos,
está dirigida fundamentalmente para o respeito de todos aqueles direitos
dos quais está investida a natureza humana e que constituem os limites da
intervenção do poder. Moderação é moderação frente às palavras e juízos
dos indivíduos. Apesar de ser possível usar o poder para fins contrários
à utilidade pública, Espinosa não menosprezou o valor que possuem os
limites para seu exercício, pois se trata, antes de tudo, de um imperativo
para os que detêm o poder e para os cidadãos que exercem um direito. Não é
que Espinosa sustente que a faculdade de julgar não tem limites, apenas que
esta não pode ser eliminada. A moderação não está prescrita em nenhuma
lei; pertence ao âmbito das coisas que correspondem ser guiadas pelo bom
sentido. Tanto os tiranos como o vulgo são extremamente perigosos para a
liberdade: a soberba para mandar e a humildade para obedecer se sustentam
em posições que estão acima de toda prudência. O vulgo não exerce como
tal a faculdade de julgar, apenas sua vontade de maravilhar-se no insólito;
os tiranos exercem o poder violentamente pretendendo sujeitar ao poder
coisas que estão acima de seu alcance. À força do bom juízo, Espinosa
quer que o vulgo não seja mais vulgo e que os tiranos deixem de sê-lo;

73
Cadernos Espinosanos XXI

uns devem renunciar à pretensão de seus palavreados e outros a dominar


uma matéria que escapa ao poder. A tolerância fundaria uma ordem não
autoritária na medida em que esta consistisse no reconhecimento dentro
do pacto social não da unanimidade ou da oficialização de uma crença,
sim no reconhecimento da complexidade do tecido social e, portanto, da
pluralidade de sua composição.13 A integridade e a soberania do Estado não
consistiriam então na homogeneidade das crenças, sim na compatibilidade
racional de todas elas em uma mesma entidade soberana.
Dessa maneira, o mais alto direito natural se alcança e se constitui
sob a égide da sociedade política: portanto tampouco se poderia, em
sentido estrito, dizer que a sociedade política consiste em renunciar a
este direito senão constituí-lo, não o criar, sim sacrificá-lo em favor do
Estado. Então por que se pode pensar o direito de pensar livremente como
um direito natural? Aparentemente esse direito não se dá no estado de
natureza, porém se conserva como se fosse um direito natural. O direito
ao pensamento livre se diz em relação ao todo social, frente às crenças
e frente à sociedade política. Da mesma maneira que a liberdade se diz
apenas em relação à sociedade política, o direito de se pensar livremente
se diz em função do âmbito das ideias e das crenças que formam o mundo
de supostos fundamentos da sociedade política. O objeto da intervenção
teórica do espinosismo consiste em evitar que a politização do temor e
da esperança tenha alcances subjetivos; daí que defina o direito como
aquilo que tem por objeto todas aquelas ações que rebaixam os foros da
subjetividade. Um sentido coerente do direito começa por definir o que pode
ser governado e limitado, todo aquele conjunto de coisas que os membros
de uma comunidade política elevam à qualidade de interdito e as coisas
a que explicitamente renunciam, como provocar danos a terceiros e ao
próprio Estado. Sobre a faculdade de atuar recaem todas as limitações que
os cidadãos se impõem. A politização do medo e da esperança que se abre

74
Victor-Manuel Pineda Santoyo

novamente para a ação por vezes transborda para os interesses privados


e para o engenho que tutela as ações que não coincidem com a utilidade
comum. Espinosa reflete com precisão sobre quais seriam os limiares
nos quais se impõem o direito; a conclusão mais clara é que não se pode
legislar sobre muitas coisas, assinaladamente, sobre as coisas subjetivas.
As cláusulas do direito natural não se suportam em distinções nas quais há
noções como “correto” ou “incorreto” como critérios heterônomos: apenas
a exterioridade das ações podem ser reconhecidas como submetidas ao
império do permitido e do proibido pelo direito.14 Assim, pois, a noção
de “pecado” corresponde a uma noção que está em poder do Estado, e,
dado conta de que o pensamento não está submetido a leis possíveis de
sancionar, ele - o pensamento – tem tanto alcance quanto tem a potência
de cada intelecto.

***

O direito natural é o que pode e deve governar as questões de
consciência; os atos, por sua parte, são governados pelo direito positivo,
pois os fatos que se apresentam como infratores no marco da vida social
são objeto da justiça. Os limites do direito natural são ilimitados: abrange
todas as liberdades que, por meio da razão ou da imaginação, se desdobrem
na ordem da subjetividade. Em troca, os atributos do direito positivo são
tangíveis, pois tipificam os atos como algo que está dentro ou fora da lei.
O juiz que tutela as liberdades da consciência é, em cada caso, o próprio
indivíduo que pensa ou imagina. Ao direito natural não corresponde fazer o
discernimento entre o bom e o mau em matéria intelectual; um pensamento
que expressa a potencia de pensar e outro que corresponde à potência da
imaginação não estão em poder de nenhuma autoridade: essa distinção é
uma tarefa para o método.

75
Cadernos Espinosanos XXI

Os direitos hermenêuticos que reivindica Espinosa para os


indivíduos – que cada qual seja juiz do que crê – são exigidos em nome da
razão. O marco espinosano de interpretação das Escrituras não aceita que
as origens destas tenham uma fonte revelada e misteriosa; o fundamento
hermenêutico de que provêm suas leituras se remontam ao exame livre
e racional. Porém Espinosa não fica satisfeito em assumir esse direito
como uma mera perspectiva de análise. Daí transita até o argumento pelo
qual declara que isso não pode ser apenas uma concessão à razão. Não
somente é necessário para o cumprimento dos fins do Estado deixar cada
cidadão como dono de seu universo subjetivo. Quando chega a pôr essa
tese de uma maneira mais radical, sustenta que as opiniões e as ideias não
podem ser objeto de nenhum limite. Subtrair de todo tipo de autoridade
o monopólio da interpretação das Escrituras é, antes de tudo, uma
garantia para a preservação da paz da comunidade política. A liberdade é
consumada na entronização dos direitos ao livre juízo, que nenhum tipo
de poder eclesiástico ou civil pode confiscar. A tentativa de diferenciar
conhecimento de profecia não é resolvida por Espinosa a partir de uma
disjunção; ao liberar uma de outra, cada uma delas reconhecerá os confins
nos quais teriam legitimidade em seu exercício. Entre a obediência que
propicia a religião e a livre investigação não há senão uma falsa disjunção,
pois Espinosa reconhece os foros de uma e de outra no marco da liberdade
democrática.

76
Victor-Manuel Pineda Santoyo

Referências bibliográficas:

1. Berlin, I. Conceptos y categorías, México: FCE, , 1992.


2. Espinosa .Ética. Vérsion de Atilano Dominguez. Madrid: Ed. Trotta, 2000.
3. ________, Tratado Teológico Político. Vérsion de Atilano Dominguez. Madrid:
Alianza editorial, 1986.
4. ________, Tratado politico. Vérsion de Atilano Dominguez. Madrid: Alianza
editorial, 1986.
5. ________, Correspondencia. Madri: Alianza Editorial, 1988.
6. Gadamer. Verdad y método, Salamanca: Ed. Sígueme, 1988.
7. Gueroult, M. Spinoza, Ethique 1, (Dieu), Paris: Aubier Montaigne, 1968.
8. Hayon, M. L’exégese philosophique dans le judaisme medieval, Tubingen: Mohr,
1992.
9. Matheron, A. Le Christ et le salut des ignorants chez Spinoza, Paris: Aubier
Montaigne, 1971.
10. Silver, D. Maimonidean criticism and the maimonidean controversy 1180-1240,
Leiden: E. J. Brill, 1965.
11. Strauss, L. Die Religionskritik Spinozas als Grundlage seiner Bibelwissenchaft,
Hildesheim – New York: Georg Olms Verlag, 1981.
12. Zac, S. L’idée de vie dans La Philosophie de Spinoza, Paris: PUF, 1963.
13. __________, Spinoza et l’interpretation de l’Ecriture, Paris: PUF.

Hermeneutics and subjective pluralism: the foundation of freedom in Spinoza’s


thought

Abstract: The main aim in this paper is to expose one of the greatest aspirations
of Spinoza’s philosophy: the liberation of the faculty to judge as hermeneutic
perspective as well as in its political sense. Taking this concept as starting point, our
aim is to reconstruct some of the interstices of the philosopher’s program, who is
always emphatic with regard to the freedom in ethical and political ambit, as well as
to reconstitute the several senses that this concept has in his work. Is there a freedom
that is sub specie aeternitatis conceived and another that is sub specie durationis?
This question leads us to establish the relation that this philosopher has to the political
world’s things, which he always thinks in terms of passions and interests, excluding

77
Cadernos Espinosanos XXI

from it a sense of freedom in which it is conceived as virtuous. Without abandoning the


aspirations of a superior sense of freedom, the author maintains that Spinoza proposes
to examine the problem of freedom in a context in which there are more prejudices
than adequate ideas, more fear than hope, more superstition than wisdom.
Keywords: freedom, biblical hermeneutic, faculty to judge

NOTAS:

1. Alguns autores, particularmente Silvain Zac (12, p. 207-242), foram influenciados


pela tipologia da vida social formulada por Ferdinand Tonies e a antinomia básica entre
sociedade e comunidade; com efeito, S. Zac considera que a teoria política espinosana
se dirige a construir um espaço de convivência que se aproxima da “comunidade
dos santos”, quer dizer, a um modelo de tipo apostólico e comunitário que se opõe à
sociedade entendida como um contrato; nossa proposta interpretativa pretende mostrar
que o valor supremo do espinosismo não radica na felicidade senão na liberdade que
garante à comunidade política assumir plenamente seus direitos subjetivos.
2. Espinosa utiliza, com efeito, um procedimento racional para construir a ideia de
Deus. A racionalização da ideia de Deus nada teria em comum com uma concepção
como a que oferecem as teologias que tomam como ponto de partida a revelação e sua
suposição mais fundamental, a saber, que Deus é um ser do qual não se pode ter uma
ideia clara e que sua essência permanece velada à alma humana. O ponto de partida de
Espinosa não se sustenta no mistério senão na construção metódica de uma ideia que
serve de ponto de partida a todo tipo de trama teórica. Não sabemos o que é Deus se
não sabemos como são seus atributos; deste ponto partem as definições e proposições
que compreendem os temas expostos desde a Definição 1 até a proposição 11 da
Ética. A propósito dessa tendência racionalista se podem encontrar notas de altíssima
precisão em um clássico dos estudos espinosanos, a obra de Martial Gueroult (7,
particularmente as páginas 11-16).
3. Espinosa sustenta, com efeito, que em todo intelecto, sem importar a qualidade
deste, se apresenta a ideia de Deus e não faz nenhuma distinção entre o homem que
é capaz de concebê-la clara e distintamente daquele que apenas forma uma ideia
imaginária e supersticiosa Dele. Assim é sustentado na proposição 15 da Ética: “Tudo
o que é, é em Deus, e sem Deus nada poder ser nem ser concebido”. A universalidade

78
Victor-Manuel Pineda Santoyo

dessa proposição alcança, como é de esperar-se, o conhecimento imaginário. As


consequências dessa afirmação também podem ser percebidas no exame que Espinosa
faz acerca da superstição no TTP, no qual Deus se concebe a partir de “um culto
externo”, quer dizer, dos prejuízos e da credulidade. Cf. notadamente o prefácio,
p.67.
4. Leo Strauss sustenta que a finalidade superior que persegue Espinosa, a liberdade
de pensamento, tem de passar necessariamente pela crítica dos dogmas dos teólogos.
Com efeito, pelos anos em que escreve o TTP, inicia uma polêmica correspondência
com um “teólogo aficcionado” chamado Willem van Blijenberg. Espinosa pensa neste
e em outros personagens semelhantes quando escreve sua perspectiva crítica das
religiões. Pode-se dizer que a liberdade de pensamento é uma coroação da odisseia das
liberdades. Por isso, a crítica aos prejuízos dos teólogos não é extrínseca à filosofia, e
sim o prolegômeno necessário para esta: uma vez que os prejuízos dos teólogos tenham
perdido seu poder sobre as consciências, fica livre o campo para a filosofia (Cf. Strauss
11, p.88). Porém se só existe liberdade ali onde há razão, põem-se abaixo todos os
argumentos jusnaturalistas sobre a impossibilidade de governar à subjetividade. Esse
ponto de vista de Strauss só explica a liberdade como uma realização do intelecto,
mas não como uma condição indispensável para o governo de uma cidade que pode
incluir, a partir da tolerância, os prejuízos dos ignorantes assim como os filósofos que
se tenham liberado dos prejuízos. Tal é o sentido da carta XXX (a Oldenburg) na qual
Espinosa assume esta posição: “Por isso, deixo que cada qual viva segundo seu bem
parecer e que os que assim o desejem, que morram por seu bem, desde que a mim me
seja lícito viver para a verdade” (Espinosa 5, p.231).
5. Gadamer formula sua exegese do conceito de prejuízo tomando Espinosa como
um pensador que precede e influi na Ilustração. Com efeito, podemos considerar
o jusnaturalismo como uma espécie de protoilustração que se propõe a relativizar
no horizonte da vida social o papel da superstição religiosa, que se vincula de uma
maneira direta com a fonte mais poderosa dos prejuízos. O jusnaturalismo de Espinosa
tem a particularidade de despojar do conceito de autoridade política o poder de
arbitrar o verdadeiro e o falso em matéria de fé. Uma das formas da liberdade consiste,
efetivamente, em desprender-se dos prejuízos. Gadamer assume a tese de Leo Strauss,
formulada em Die Religionskritik Spinozas, segundo a qual: “O termo ‘prejuízo’ é a
expressão mais adequada para a grande vontade da Ilustração, a vontade de um exame
livre e sem coerções. Prejuízo é o correlato polêmico inequívoco desse termo tão
excessivamente equívoco que é a liberdade” (citado em Gadamer 6, p.337). A leitura

79
Cadernos Espinosanos XXI

que propomos fazer sobre Espinosa se orienta em sentido diverso à que formulam
tanto Leo Strauss como Gadamer em sua exposição sobre esta crítica na Ilustração:
a liberdade tem sua expressão mais virtuosa na superação do prejuízo. No entanto,
não se pode ignorar que Espinosa é também um filósofo que se propõe explicar a
liberdade antes da conquista da razão. A liberdade não surge com a razão: é um direito
natural. Por isso mesmo, entende todos os indivíduos como dotados pela natureza
dessa condição original; a liberdade é uma conquista virtuosa da razão, contudo é uma
condição da qual nasce dotado todo homem. A liberdade existe apesar do prejuízo e da
superstição, não porque se as eliminou.
6. “Aqueles que não sabem separar a filosofia da teologia discutem se a Escritura deve
ser escrava da razão ou, ao contrário, a razão da Escritura. Este último é defendido
pelos céticos, que negam a certeza da razão; o primeiro, em troca, pelos dogmáticos”.
(Espinosa 3, p.320).
7. Maimônides representa o casamento entre Atenas e Jerusalém, Segundo uma
afortunada expressão de Daniel Jeremy Silver (10, p.1). Esse matrimônio desaprovado
por Espinosa, surgido da atmosfera tolerante e aberta do judaísmo arraigado na Espanha
do séc. XIII, é uma das causas da tendência especulativa dentro das igrejas. Aqui a
crítica vale para Maimônides, porém igualmente para qualquer doutor de qualquer
igreja. Maimônides não precisa ser apresentado de uma maneira detalhada nas grandes
tradições exegéticas do judaísmo, pois qualquer livro relativamente importante o
registra. Em troca, Alfakhar requereria um maior credenciamento, contudo não o tem
ou é difícil de rastrear. Maurice R. Hayon e sua L’exégese philosophique dans le
judaisme medieval não o faz nem uma vez.
8. “Antes da vinda de Cristo, os profetas costumavam predicar a religião como a lei
da pátria e em virtude da aliança feita no tempo de Moisés; em troca, depois da vinda
de Cristo, os apóstolos predicaram todos como lei universal e em virtude apenas da
paixão de Cristo.” (Espinosa 3, XII, ii, p. 295).
9. Alexandre Matheron insistiu sobre esse ponto em Le Christ et le salut des ignorants
chez Spinoza: “Ora, Cristo ensina ex cathedra o dogma da salvação dos ignorantes” (9,
p.250). Posteriormente se pergunta “quais consequências se pode inferir daí? Parece
que só uma, extremamente vaga: Cristo haveria ido demasiado longe no conhecimento
de terceiro gênero” (9, p. 251).
10. Um dos mestres do liberalismo, Isaiah Berlin, justifica o pluralismo a partir da
pertinência da filosofia política. O totalitarismo se refugia na presunção a partir da qual
se declara, como objeto da ação política, um fim soberano, absoluto, incontroverso. A

80
Victor-Manuel Pineda Santoyo

pertinência da filosofia radica em que, até agora, a ciência não disse a última palavra
sobre quais são esses fins últimos; portanto, corresponde a uma visão plural das coisas
seguir explorando esses fins divergentes; a pretensão de que um regime é possuidor
objetivo da justiça, ou de qualquer outro valor, conduz a ficções que servem para
justificar o terror: “...a crença em tais ficções se atribui psicologicamente ao medo da
liberdade – a ser abandonado por suas próprias forças; terror que conduz à aceitação
acrítica de sistemas que pretendem possuir autoridade objetiva de espúrias cosmologias
teológicas ou metafísicas que se ergueram como garantias da eterna validez de regras
e princípios morais e intelectuais” (Berlin 1, p. 253). O precedente mais claro dessa
primeira parte da formulação radica na obra de Espinosa; só que, em Espinosa, se
professa a ideia de que a razão comporta um sentido absoluto do que seria o bem para
uma comunidade política.
11. Em um mesmo teor argumentativo, Espinosa arremete contra os prejuízos gerados
pelas ilusões da vontade nascida da imaginação: “Será suficiente que se tome por
fundamento aquilo que todos devem reconhecer, a saber, que todos os homens nascem
ignorantes das causas das coisas e que todos têm apetite de buscar sua utilidade e são
conscientes disso. Pois disso se segue: 1) que todos os homens opinam que são livres,
porque são conscientes de suas volições e de seu apetite, e nem por sonhos pensam
nas causas pelas quais estão inclinados a apetecer e a querer, posto que as ignoram.
Se segue: 2) que os homens fazem tudo por um fim, quer dizer, pela utilidade de que
apetecem” (Espinosa 2, I, apêndice, p.68).
12. Evidentemente Espinosa toma como processos correlatos a liberdade e a paz. O
TTP defende com maior vigor o valor da paz; porém, com igual veemência sustenta
o TP (Espinosa 4, p. 119), que a paz é uma das razões pelas quais se forma parte de
uma comunidade política: “Qualquer que seja a constituição de um Estado qualquer,
se deduz facilmente a finalidade do estado político, que não é outra que a da paz e da
segurança da vida. Aquele Estado é, portanto, o melhor, no qual os direitos comuns se
mantêm ilesos.” O irenismo de Espinosa não se coloca como fundamento da paz pela
liberdade e vice-versa: uma paz que não suponha a liberdade é tirania; uma liberdade
que não suponha a paz é estado de natureza.
13. Espinosa não aspira somente construir uma “sociedade de sábios” que vivam
isolados dos ignorantes: aspira a que as paixões dos ignorantes não determinem o
rumo do Estado (Espinosa 3, prefácio, p.8). Inclusive eles têm o direito de existir
sob a proteção do direito da república. Porém não menor é o direito dos homens
racionais ao livre exame de todas as questões do pensamento. Não somente deve

81
Cadernos Espinosanos XXI

tolerar passivamente os ignorantes: o sábio deve aspirar a difundir o “uso público da


razão”. S. Zac pôs claramente essa questão: também o sábio, que se nutre da verdade,
obrigado a viver entre os não sábios, deve defendê-la em nome da verdade a que
aspira e a que, em princípio, todos podem aceder. Essa liberdade de pensar abre uma
via para a vida verdadeiramente humana (Zac 13, p. 3).
14. É no âmbito do direito positivo que Espinosa reconhece como noção apropriada
o “pecado”. Não se trata de uma noção moral ou teológica, como podem ilustrar as
seguintes palavras de Espinosa: “Pelo dito entendemos facilmente que no estado de
natureza não há nada que seja bom ou mau pelo acordo de todos; pois todo aquele que
está no estado natural olha tão só para sua utilidade e decide, segundo seu engenho
e tendo em conta sua utilidade, o que é bom e o que é mau, e não está obrigado por
lei alguma a obedecer a ninguém, fora ele mesmo; daí que no estado natural não seja
concebível o pecado. Porém sim no estado civil, onde por comum acordo se decide o
que é o bem e o que é o mal, e cada um está obrigado a obedecer ao Estado. O pecado
não é outra coisa que a desobediência, a qual é castigada pelo direito do Estado.”
(Espinosa 2, IV, P38, esc. 2, p. 210).

82
A CONCEPÇÃO DE NATUREZA HUMANA EM
BENEDICTUS DE SPINOZA*

Emanuel Angelo da Rocha Fragoso**

Resumo: Spinoza concebe a natureza humana em sua obra Ethica como constituída
por modos de dois dos infinitos atributos de Deus, o pensamento e a extensão, ou a ideia
e seu objeto, o corpo, respectivamente. A mente humana, enquanto essencialmente
uma ideia, e o objeto desta ideia, o corpo, pressupõe uma relação não causal entre
um modo finito do atributo pensamento e do atributo extensão. O corpo, enquanto
certa relação composta ou complexa de movimento e de repouso se mantém através
de todas as mudanças que afetam suas partes, está continuamente sujeito ao acaso dos
encontros (occursus), ou ao impacto dos múltiplos e variados corpos a sua volta. A
mente reflete estes encontros e através deles, ou das afecções corporais, conhece os
corpos externos. É a ideia-afecção. É o conhecimento imaginativo, ou o conhecimento
condicionado pela situação de nosso próprio corpo, por nosso temperamento, nossa
experiência prévia e nossos preconceitos.
Palavras-chave: Spinoza. Ethica. Natureza humana. Mente. Corpo.

Introdução

Há milênios a alma é considerada o suporte místico de inúmeras


seitas, religiões e assemelhados, e como tal, é tida como sendo em muito
superior ao corpo, seja quanto à sua infinitude, em oposição à finitude do
corpo, seja quanto às suas funções, de controle ou de comando sobre o

* Este texto é uma versão modificada e ampliada de nossa Palestra apresentada no Colóquio Natureza e
Linguagem, realizado no período de 12 a 14 de setembro de 2006, na Universidade Federal do ceará – UFC.
** Universidade Estadual do Ceará - UECE

83
Cadernos Espinosanos XXI

corpo, que seria por sua vez, comandado por ela. Para Spinoza, a alma, ou
melhor, a mente1, é apenas a ideia do corpo. E este é um objeto realmente
existente, ou seja, um modo do atributo extensão; e aquela, um modo do
atributo pensamento. As relações entre estes modos não se dão num plano
hierárquico ou causal, sendo somente possíveis graças ao que Spinoza vai
denominar Paralelismo. Utilizando a Ética, obra culminante de Spinoza,
elaborada por ele durante décadas e diversas vezes revisada, procederemos
a uma análise desta relação entre a mente e o corpo, ou seja, daquilo que
em Spinoza pode-se denominar de natureza humana.

1. A natureza humana

Em Spinoza, o homem é extensão e pensamento. E, analisar a


natureza humana é analisar a essência do homem, pois, por definição,
essência é “[...] aquilo que, se dado, a coisa é necessariamente posta e
que, se retirado, a coisa é necessariamente retirada;” (Spinoza 1, E2Def2 e
E2P10S2)2. Se o homem não é uma substância, segue-se que ele não existe
necessariamente, visto sua essência não envolver a existência necessária,
isto é, ele é um modo finito, o existir não pertence a sua natureza porque
ele não é causa de si próprio. Neste caso, ele deve necessariamente ser
concebido e existir por outro além dele mesmo, ou seja, o modo finito, em
razão de sua finitude, não pode determinar por si mesmo a sua existência.
No dizer de Spinoza: “A essência do homem não envolve a existência
necessária, isto é, segundo a ordem da natureza tanto pode ocorrer que
este ou aquele homem exista quanto que não exista.” (Spinoza 1, E2Ax1).
Ademais, nosso autor acrescenta explicitamente que o ser da substância
não constitui a forma do homem (Spinoza 1, E2P10S1); ou seja, não há
relação necessária entre a essência e a existência de todo ser que deva sua

84
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

existência a uma causa exterior. Muito provavelmente fundamentado na


Carta X 3, Léon Brunschvicg afirma que a análise da natureza humana não
deve ser compreendida do ponto de vista da existência do homem, pois
esta não nos levará à sua essência; e sim, compreendida em relação à sua
causa eficiente que é Deus. (Brunschvicg 3, p. 55-58).
Nesta análise está pressuposta uma radicalidade entre substância
e modo. Para Spinoza a distinção radical entre a substância e os modos,
é justamente a causa sui, isto é, a essência da substância envolve sua
existência. Assim, a univocidade dos atributos não implica nenhuma
confusão de essências, visto que os atributos constituem a essência da
substância, mas não constituem a dos modos. Segue-se que a essência
do homem não pode ser posta diretamente pela substância absolutamente
infinita ou pelos atributos que são infinitos em seu gênero, pois senão o
homem seria necessariamente dado e também existiria necessariamente.
Todavia, a natureza humana não pode existir e nem ser concebida sem os
atributos que são, em certo sentido, a própria substância. Donde, resulta
necessariamente que a essência do homem − ou sua natureza − é constituída
por modificações definidas dos atributos de Deus (Spinoza 1, E2P10C)4.
Brunschvicg corrobora esta afirmativa ao considerar que a
determinação da relação que liga o homem a Deus, supõe a Ciência
do homem e não a Ciência de Deus, porque uma relação não pode ser
estabelecida sem que os dois termos sejam igualmente conhecidos. Dentro
desta perspectiva, este autor vai considerar o problema inicial que se impõe
na análise da essência do homem ou a relação que liga este à sua causa
eficiente: se Deus é um ser absolutamente indeterminado, ele não pode ser
a razão de nenhuma determinação; logo, a essência do homem não pode
ser determinada diretamente, como uma consequência da natureza divina
ou do sistema eterno das coisas, ou seja, a substância infinita, em razão
de sua infinitude, não pode justificar a existência deste ou daquele modo

85
Cadernos Espinosanos XXI

finito. Para Brunschvicg, a essência do homem deve ser determinada com


a utilização de “auxiliares”, a observação sensível ou a experiência, que
atuarão provisoriamente como um ponto de partida desta Ciência humana.
(Brunschvicg 3, p. 55-58).
Esta postura de Brunschvicg tem o aval de Victor Delbos em sua
obra Le problème moral dans la Philosophie de Spinoza et dans l’Histoire
du spinozisme (Delbos 5, Cap. IV, p.72). No entanto, em sua outra obra, O
Espinosismo, ao referir-se ao uso da experiência por Spinoza, quando da
determinação dos caracteres principais da natureza humana, condiciona
este uso à explicação racional, logo a seguir, daquilo que a experiência
mostrou a Spinoza (Delbos 6, p. 84). Segundo Delbos, desta experiência ou
observação sensível, Spinoza retém certos fatos gerais incontestáveis aos
quais nomeia de “axiomas”. A utilização deste nome para os “fatos gerais
incontestáveis” retidos da experiência, iguala estes às proposições gerais
imediatamente evidentes que devem ser admitidas sem demonstração;
ou seja, os fatos gerais retidos da experiência têm o mesmo valor dos
“verdadeiros axiomas” da Ética, pois este nome até então só fora utilizado
por Spinoza para a denominação das “proposições gerais imediatamente
evidentes que são admitidas sem demonstração”. Segundo este mesmo
intérprete, os fatos gerais incontestáveis retidos da experiência são os
axiomas da Parte 2 da Ética (no início): o axioma número 2 “O homem
pensa.”, o número 4 “Sentimos que um certo corpo é afetado de muitas
maneiras.” e o número 5 “Não sentimos nem percebemos nenhuma outra
coisa singular além dos corpos e dos modos do pensar.” (Delbos 6, p. 84).

1.1 A mente humana

Se a natureza humana é constituída de modos dos atributos de


Deus, se estes atributos são concebidos por si e o conhecimento de um não

86
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

pode ser deduzido do outro, ainda que existam infinitos atributos, segue-se
que só podemos conhecer dois dos atributos divinos: o atributo extensão e
o atributo pensamento. Donde, a natureza do homem só pode ser definida
como modos destes dois atributos. Ora, pelo axioma 2, citado acima, “O
homem pensa.”, segue-se então que ele é constituído por um modo do
atributo pensamento: a ideia, pois, de todos estes modos é por natureza o
primeiro e, sendo ela dada, os outros modos, aos quais ela é anterior, devem
existir no mesmo indivíduo. Portanto, uma ideia é o que primeiramente
constitui o ser atual da mente [mens] humana (Spinoza 1, E2P11D). Mas
esta ideia não pode ser a ideia de algo que não existe realmente, pois neste
caso a mente não seria uma ideia real, seria uma quimera ou um mero nada.
Resultando que, se a mente do homem é uma ideia, ela necessariamente é
uma ideia de algo que existe realmente (Spinoza 1, E2P11D).
Neste ponto, intervêm os axiomas citados acima, o axioma 4:
“Sentimos que um certo corpo é afetado de muitas maneiras.” e o axioma
5: “Não sentimos nem percebemos nenhuma outra coisa singular além dos
corpos e dos modos do pensar.”. Pelo primeiro, segue-se que as ideias de
afecções de nossa mente necessariamente são de um certo corpo ou de
um certo modo do atributo extensão; pelo segundo, segue-se a exclusão
da possibilidade de qualquer outra coisa além do corpo ser o objeto da
mente, ou seja, se a mente humana é uma ideia, se nós sentimos que um
determinado corpo possa ser afetado e nós não sentimos nada além dos
corpos e dos modos do pensar, então a mente do homem é uma ideia ou de
um corpo determinado ou de um modo do pensamento. Ora, fora da ideia
como modificação do pensamento, ou ideia que implica o conhecimento do
seu objeto, nós não percebemos nada além dos corpos. Portanto, a mente
humana é essencialmente uma ideia, e o objeto que constitui a mente
humana é o corpo, isto é, um modo definido da extensão, existente em ato,
e nenhuma outra coisa (Spinoza 1, E2P13D)5.

87
Cadernos Espinosanos XXI

1.2 A relação entre a mente e o corpo

Como vimos, a mente humana é uma ideia do corpo humano,


ou seja, ela pressupõe uma relação entre um modo finito do atributo
pensamento e um modo finito do atributo extensão. Também foi afirmado
que os atributos são distintos entre si e cada um é concebido por si, isto é,
eles mantêm sua heterogeneidade, ainda que sejam aspectos de uma mesma
substância (Spinoza 1, E1P10). Se “O conhecimento do efeito depende do
conhecimento da causa e envolve este último.” (Spinoza 1, E1Ax4), os
modos de cada atributo envolvem apenas o conceito do atributo do qual
são modos e não o conceito dos demais atributos; segue-se que a ideia,
enquanto modo do atributo pensamento, não pode ser causada pelo corpo,
enquanto modo do atributo extensão, ou seja, a relação entre a mente e o
corpo não pode ser considerada como uma relação de causalidade entre os
atributos (ou inter-atributiva). No dizer de Spinoza: “Os modos de qualquer
atributo têm Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente
sob o atributo do qual eles são modos, e não enquanto é considerado sob
algum outro atributo.” (Spinoza 1, E2P6).
Desta recusa spinozista da causalidade inter-atributiva podemos
extrair duas consequências: a recusa da explicação realista da produção das
ideias e a recusa da interpretação idealista da produção das coisas, ou seja,
a causalidade inter-atributiva é negada em suas duas vias, quer sejam os
modos do atributo extensão considerados como causa dos modos do atributo
pensamento, quer os modos do atributo pensamento sejam considerados
como causa dos modos do atributo extensão. Quanto à primeira, na recusa
da explicação realista da produção de ideias, Spinoza nega que a causa das
ideias ou modos do atributo pensamento sejam o próprio ideado ou as coisas
percebidas por estas ideias. Quanto à segunda, na recusa da interpretação
idealista da produção das coisas, Spinoza nega que a causa das coisas ou

88
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

modos do atributo extensão sejam ideias presentes anteriormente no ser


divino que atuariam como modelos das coisas a serem produzidas.
A primeira recusa ocorre na proposição 5 da Parte 2 da Ética, na
qual Spinoza considera especificamente as ideias como impossíveis de
serem causadas pelos seus respectivos “seres formais”, isto é, a causa da
ideia do corpo ou da mente humana não é o corpo: “O ser formal das ideias
reconhece Deus como sua causa, enquanto Deus é considerado apenas
como coisa pensante, e não enquanto é explicado por outro atributo.”
(Spinoza 1, E2P5).
A segunda recusa ocorre no corolário da proposição 6, desta mesma
Parte 2, no qual Spinoza afirma que “[...] as coisas ideadas se seguem e
se deduzem de seus respectivos atributos, da mesma maneira, conforme
mostramos, que as ideias se seguem do atributo do pensamento, e com a
mesma necessidade.” (Spinoza 1, E2P6C); ou seja, a causa do corpo não é
a mente humana ou a ideia deste corpo.
Excluída a possibilidade da relação causal inter-atributiva, resta-
nos agora indagar acerca da verdadeira relação entre a mente e o corpo,
pois se ambos remetem a seus respectivos atributos, então, qual a relação
que se estabelece entre a mente e o corpo, ou entre a ideia e seu objeto?

1.3 O Paralelismo

Os modos de qualquer atributo que seja não envolvem mais que


o conceito do atributo do qual são modos, pois os atributos da substância
devem ser concebidos por si (Spinoza 1, E1P10). Assim, os modos do
atributo extensão ou os corpos, e os modos do atributo pensamento ou as
ideias, que constituem a natureza do homem, são modos pelos quais os
atributos de Deus se exprimem de uma maneira definida e determinada
(Spinoza 1, E1P25C). Donde, os corpos têm Deus como causa apenas

89
Cadernos Espinosanos XXI

enquanto ele é considerado sob o atributo extensão; da mesma maneira,


as ideias têm Deus como causa apenas enquanto ele é considerado sob o
atributo pensamento (Spinoza 1, E2P6). Portanto, ainda que os infinitos
atributos e seus respectivos modos sejam heterogêneos e irredutivelmente
distintos, suas determinações são subsumidas à mesma ordem e regras
segundo a mesma relação. No dizer de Spinoza: “A ordem e a conexão das
ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das coisas” (Spinoza 1, E2P7).
Para Deleuze (Deleuze 4, p. 74-75), com o paralelismo, Spinoza
estabelece uma identidade de ordem entre as ideias e os corpos ou isomorfia,
isto é, a identidade entre as séries dos atributos da substância absoluta; e
uma identidade de conexão entre as duas séries ou isonomia, isto é, os
atributos produzem seus respectivos modos autonomamente, mas eles
agem segundo um mesmo encadeamento e sob princípios iguais. Enfim,
é estabelecida a identidade de ser ou isologia, isto é, a mesma coisa é
produzida no atributo pensamento sob o modo de uma ideia e no atributo
extensão sob o modo de um corpo.
Deleuze estabelece ainda uma distinção entre o paralelismo
epistemológico e o paralelismo ontológico. O primeiro, ou o paralelismo
epistemológico, está expresso na proposição 7, da Parte 2 da Ética, na
sua demonstração e no seu corolário; este é descrito como o paralelismo
que se estabelece entre a ideia e o seu ideato, e segundo Deleuze, nos
conduz à simples unidade de um “indivíduo”, formado pelo modo de
certo atributo e a ideia que representa exclusivamente este modo. Este tipo
de paralelismo implica a correspondência, a equivalência e a identidade
entre um modo do pensamento e um modo tomado no seu atributo bem
determinado, podendo ser expresso pela forma geral: um só e mesmo
indivíduo é exprimido por certo modo e pela ideia que lhe corresponde, ou
seja, a toda ideia corresponde qualquer coisa, pois nenhuma coisa poderia
ser conhecida sem uma causa que a fizesse ser, e a toda coisa corresponde

90
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

uma ideia, pois Deus forma uma ideia da sua essência e de tudo o que dela
resulta. Considerado sob o aspecto das ideias e dos corpos, este paralelismo
se desdobra num caso particular: o paralelismo psico-físico 6.
O segundo paralelismo ou paralelismo ontológico está expresso
no escólio da proposição 7, da Parte 2 da Ética; este é o paralelismo que
se estabelece entre os modos de todos os atributos, modos estes que não se
distinguem senão pelos atributos, ou seja, uma só e mesma modificação é
exprimida por todos os modos correspondentes que diferem pelo atributo,
ou seja, os modos de todos os atributos expressam, nos seus respectivos
gêneros, uma única modificação da substância, à semelhança dos atributos
distintos que expressam uma única substância.
Martial Gueroult por sua vez, vai distinguir o paralelismo
epistemológico em dois tipos: o paralelismo extracogitativo e o paralelismo
intracogitativo. O primeiro ou o paralelismo extracogitativo é “A ideia
considerada como essência objetiva ou representação de uma coisa
diferente de um modo do pensamento.” (Gueroult 8, p. 70, grifo do autor),
ou seja, este paralelismo é dotado de função representativa, pois se dá
entre as ideias e os modos dos outros atributos não mentais. Este tipo de
paralelismo é o fundamento da correspondência entre a ideia e o seu objeto
e explica a necessidade desta relação de correspondência entre a ideia e o
seu objeto, garantindo assim que toda ideia tenha seu objeto. O segundo
ou o paralelismo intracogitativo, se dá no interior do próprio atributo
pensamento de duas formas: (1) entre a ordem e a conexão das ideias e
a ordem e a conexão das causas no interior do atributo pensamento; e (2)
entre a ordem e a conexão das ideias e a ordem e a conexão das ideias das
ideias.
À primeira forma do paralelismo intracogitativo corresponde a
ideia, enquanto “[...] considerada como essência formal (ou ser formal),
modo do pensamento, causa compreendida na cadeia infinita de causas

91
Cadernos Espinosanos XXI

no pensamento.” (Gueroult 8, p. 70, grifo do autor). Esta primeira forma


é a responsável pela concatenação lógica de nossas ideias segundo a
ordem das causas primeiras no interior do atributo pensamento, ou ordem
do intelecto, que é a mesma em todos os homens, possibilitando a mente
escapar da ordem fortuita das afecções do corpo ou associações de ideias.
Ordem fortuita esta que possibilita ao homem passar imediatamente do
pensamento de uma coisa para o pensamento de uma outra que não tem com
a primeira qualquer semelhança, isto é, não tem nenhuma relação causal ou
nenhuma conexão lógica. Como, por exemplo, do pensamento da palavra
pomum (maçã), um romano passará imediatamente para o pensamento de
uma fruta que não tem qualquer semelhança com este som articulado, nem
nada de comum com ele, a não ser que o corpo desse homem foi muitas
vezes afetado por estas duas coisas ao mesmo tempo: ele ouviu muitas
vezes a palavra pomum ao mesmo tempo em que via a fruta (Spinoza 1,
E2P18S).
À segunda forma do paralelismo intracogitativo corresponde a
ideia enquanto “[...] considerada em sua forma ou natureza, como ideia da
ideia, [...]” (Gueroult 8, p. 70, grifo do autor), isto é, a ideia considerada
como saber ou conhecimento reflexivo. Esta segunda forma é a garantia de
que “quem sabe, sabe que sabe”, isto é, tem a certeza, pois a ideia da ideia
não é senão a forma da ideia, enquanto é considerada como um modo do
pensar sem relação com o objeto (Spinoza 1, E2P21S). Este paralelismo,
considerado conjuntamente sob suas duas formas, é o fundamento da
possibilidade de conhecermos a correspondência entre a ideia e o seu
objeto, ou seja, é o garante da função representativa do paralelismo
extracogitativo.

92
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

Conclusão

Ao expor, ainda que de forma sucinta, o percurso demonstrativo


de Spinoza da mente como uma ideia do corpo e este como algo realmente
existente, pressupondo uma relação entre um modo finito do atributo
pensamento e um modo finito do atributo extensão, tornado possível
pelo Paralelismo, apresentamos o que constitui a natureza humana em
Spinoza; ou seja, o corpo, que se mantém através de todas as mudanças
que afetam as partes desse corpo, está continuamente sujeito ao acaso dos
encontros (occursus), ou ao impacto dos múltiplos e variados corpos a
sua volta. A mente reflete estes encontros e através deles, ou das afecções
corporais, conhece os corpos externos. É a ideia-afecção. É o conhecimento
imaginativo, ou o conhecimento condicionado pela situação de nosso
próprio corpo, por nosso temperamento, nossa experiência prévia e nossos
preconceitos individuais. E é justamente a partir desta ideia de homem
como ser imaginativo, que somente percebe os corpos exteriores através
de seu próprio corpo, que Spinoza irá definir os afetos ou sentimentos que
serão afirmados como as ideias de nossas afecções corporais.

Referências Bibliográficas:

1. SPINOZA, Benedictus de. Ethica/Ética. Edição bilíngue Latim-Português. Tradução


e Notas de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.
2. _____________. Correspondencia. Introducción, traducción, notas y índice de
Atilano Domínguez. Madri: Alianza, 1988.
3. BRUNSCHVICG, Léon. Spinoza et ses Contemporains. 5. ed. Paris: Presses
Universitaires de France, 1971. (Bibliothéque de Philosophie
Contemporaine).
4. DELEUZE, Gilles. Espinosa: Filosofia Prática. Tradução de Daniel Lins e Fabien
Pascal Lins. Revisão técnica de Eduardo D. B. de Menezes. São Paulo:

93
Cadernos Espinosanos XXI

Escuta, 2002.
5. DELBOS, Victor. Le Problème Moral dans la Philosophie de Spinoza et dans
l’Histoire du Spinozisme. Paris: Felix Alcan, 1893. Réimpr. Georg Olms,
1988.
6. ___________. O Espinosismo: Curso proferido na Sorbonne em 1912-1913.
Tradução de Homero Silveira Santiago. São Paulo: Discurso, 2002.
7. DELEUZE, Gilles. Spinoza et le Problème de l’Expression. Paris: Éditions de
Minuit, 1985. (Arguments).
8. GUEROULT, Martial. Spinoza. v. 2 (L’Âme). Paris: Aubier-Montaigne, 1997.
(Analyse et Raisons).

The conception of human nature in Benedictus Spinoza

Abstract: Spinoza in his Ethics conceives human nature as composed by means of


two of God’s infinite attributes, thought and extension, or the idea and it’s object,
the body. Human mind as an idea and the object of this idea, the body, assume a
non-causal relation between the finite mode of thought and extension. The body,
while a relation composed of motion and stillness is kept through the changes that
affects its parts, is continually subjected to encounters by chance (occursus), or to the
impact of multiple bodies around it. Mind reflects these encounters and through them
acknowledges external bodies. It’s the afection-idea. It’s the imaginative knowledge,
or the knowledge conditioned by the situation of our own body, by our temper, our
previous experience and our individual prior concepts.
 Keywords: Spinoza. Ethica. Human nature. Mind. Body.

NOTAS:

1. Spinoza utiliza o termo latino Mens. Optamos por utilizar em português o termo
Mente.
2. Para as citações internas da Ética indicaremos a parte citada em algarismos
arábicos, seguida da letra correspondente para indicar as definições (Def), axiomas
(Ax), proposições (P), prefácios (Pref), corolários (C), escólios (S) e Apêndice (Ap),
com seus respectivos números.

94
Emanuel Angelo da Rocha Fragoso

3. Respondendo à pergunta de Simon de Vries sobre a necessidade da experiência


para verificar se a definição de um atributo é verdadeira, Spinoza responde “[...] nós
não necessitamos nunca da experiência, exceto para aquelas coisas que não se podem
deduzir da definição da coisa, como por exemplo, a existência dos modos, já que esta
não se pode derivar da definição da coisa. [...] já que a experiência não nos ensina a
essência de nenhuma coisa; [...]”. (Spinoza 2, Carta X, p. 122).
4. Neste parágrafo fundamentamo-nos em Gilles Deleuze (Deleuze 4, p. 76-77).
5. Neste parágrafo fundamentamo-nos em Victor Delbos (Delbos 6, p. 84-85) e Gilles
Deleuze (Deleuze 4, p. 73-74).
6. Neste parágrafo e no seguinte, estamos nos baseando e citando Gilles Deleuze:
(Deleuze 4, p. 74-75 e Deleuze 7, p. 100). Deleuze interpreta o termo “indivíduo”
como significando “a unidade de uma ideia e de seu objeto”, baseado no escólio da
proposição 21, da Parte 2 da Ética (Deleuze 7, Nota 3, p. 100).

95
A PRESENÇA DO MÉTODO NAS DEFINIÇÕES INICIAIS DA
PARTE II DA ÉTICA DE ESPINOSA

Sérgio Luís Persch*

Resumo: Espinosa começa a sua Ética com uma série de definições, em virtude
do modelo geométrico de raciocínio que ele incorpora sistematicamente à filosofia.
Assim, os comentadores analisam minuciosamente o conjunto das definições que
abrem a Primeira Parte, mostrando que elas cumprem de maneira exemplar a exigência
do método. Já na Segunda Parte da Ética, os mesmos comentadores manifestam
dificuldade em reconhecer fidelidade irrestrita ao método. Porém, trata-se de uma
dificuldade aparente. Este artigo enfoca as definições iniciais da parte II da Ética,
tendo por objetivo explicitar que elas se relacionam entre si de acordo com uma
disposição formal precisa. Portanto, elas são escritas conforme o modelo matemático
de raciocínio que Espinosa segue desde o começo da Ética.
Palavras-chave: Espinosa, Ética, definições, corpo, mente.

1) Introdução: o recurso do raciocínio matemático

Grande parte dos estudos relativos à obra de Espinosa


procura explicitar a sistematicidade, que é uma das suas características
proeminentes, devida ao modelo matemático seguido na elaboração dos
textos. A realização mais perfeita desse empreendimento metodológico é
a Ética. Seu caráter sistemático pode ser logo notado tendo-se em vista a
maneira como é escrita: consiste num longo encadeado de proposições que
se demonstram umas pelas outras, com base num conjunto de definições

* Professor da UFPB

96
Sérgio Luís Persch

iniciais e de axiomas. Porém, mesmo notando desde logo essa peculiaridade


ao primeiro contato com a obra, o leitor não apreenderá tão facilmente o
efeito de conjunto causado pelo método. Por isso, o exame minucioso da
maneira como o texto se articula exige um longo estudo, que pode ser feito
tendo em vista a obra em seu todo ou, pelo menos, uma de suas partes na
íntegra. O exemplo mais conhecido desse tipo de trabalho certamente é o
de Guéroult. Resultado indiscutível da análise de Guéroult é a constatação
de que precisamos fazer uma leitura estritamente sistemática das grandes
obras do racionalismo, tomando uma medida disciplinar rigorosa que exige
assiduidade e a total entrega do leitor ao texto investigado (GUÉROULT
5, p.9-16). Mas é improvável que todos os leitores, em qualquer momento,
disponham de condições adequadas para tal trabalho de fôlego. Por isso,
gostaríamos de encontrar, dentro do grande sistema de demonstrações da
Ética, passagens pontuais em que, de maneira simples e como que intuitiva,
apareça determinada operação racional que caracterize precisamente a
maneira como Espinosa raciocina, utilizando recursos provenientes das
matemáticas. Pensamos ser possível focar um ponto específico, explicitar
um caso determinado de articulação do texto. Tais enfoques se mostram
interessantes, na medida em que são capazes de tornar mais claras certas
passagens da obra que um estudo abrangente, por mais minucioso que seja,
passa por alto.
Inicialmente, faremos um breve contexto no qual a questão emerge,
baseando-nos em dois intérpretes referenciais de Espinosa: Martial Guéroult
e Marilena Chaui.1 Ambos desenvolveram estudos amplos e profundos
da Ética. Instruem o leitor no que diz respeito ao caráter sistemático da
obra, fazem análises densas das partes I e II. No caso da primeira parte,
Guéroult cuida de explicitar a orientação metódica das definições iniciais,
que reconhece evidentes por si mesmas (nota per se), exceto a definição
VI – do ente absolutamente infinito – a qual demandaria de uma posterior

97
Cadernos Espinosanos XXI

demonstração. Marilena Chaui aborda criticamente a interpretação de


Guéroult, mostrando que há uma unidade mais coesa, a partir da qual o
conjunto de definições concorre para uma só definição: justamente, a do
ente absolutamente infinito, causa de si e de todas as coisas.
No que concerne à segunda parte da Ética, Guéroult começa
expondo as dificuldades de se perceber, no enunciado das definições,
uma coesão e fidelidade ao método que se verifica na primeira parte
e se torna exigência fundamental da obra. Em resposta às objeções
enumeradas inicialmente, ele procura razões no desenvolvimento das
partes I e II, considerando inclusive que motivações subjetivas podem ter
concorrido para a enumeração aparentemente aleatória das definições. Em
contrapartida, Marilena Chaui novamente mostra que há uma ordem mais
rigorosa no enunciado das definições, perfeitamente justificável, tendo-se
em vista o que foi desenvolvido na primeira parte e o que virá à frente, na
parte II. Embora as duas interpretações sejam distintas e Marilena Chaui
afirme uma unidade mais rigorosa tanto nas definições da primeira quanto
nas da segunda parte da Ética, ambos recorrem a motivos externos aos
enunciados mesmos das definições que abrem a parte II para justificá-
las, após mostrarem que a unidade das definições da primeira parte se
compreende por elas mesmas.
Nós queremos apontar um elemento de articulação que se
encontra sob o texto das quatro definições iniciais da parte II, até agora
ainda despercebido. Assim, não pretendemos chegar a um resultado
fundamentalmente distinto, mas pensamos tornar mais palpável um
motivo metodológico rigoroso no começo da segunda parte, que ajudará
a compreender melhor tanto a articulação dela com a parte I, quanto
o ordenamento metódico dessas quatro definições. Queremos mostrar
que as quatro definições se ordenam conforme um esquema muito caro
a Espinosa, o mesmo utilizado na matemática para definir determinado

98
Sérgio Luís Persch

valor mediante a regra da proporcionalidade.


Há uma passagem importante no Tratado da emenda do intelecto,
na qual Espinosa lança mão desse recurso metodológico, explicando
também o seu funcionamento. Logo após expor os quatro modos de
percepção, ele explica cada um em separado subscrevendo-lhe exemplos,
mas em seguida explica como os quatro modos ocorrem a partir de um
só problema, qual seja: “dados três números, pergunta-se por um quarto
número que esteja para o terceiro como o segundo está para o primeiro”
(SPINOZA 7, TIE §23, G II 11)2. Esse problema matemático pode ser
percebido por quaisquer dos modos: ouvir dizer, experiência vaga, razão
e intuição. Todos eles conduzem ao mesmo resultado correto. Porém,
a qualidade do pensamento muda quando são diferentes os modos de
pensar e, claro, trata-se também de um pensamento distinto quando
somos capazes de perceber a mesma solução pelos quatro modos.
Seria difícil exagerar no dizer da importância desse exemplo
matemático apresentado como que no núcleo do Tratado da emenda
do intelecto. Já dispomos de muitos comentários sobre o assunto. Para
o nosso propósito, basta indicá-lo e, em seguida, o que pretendemos é
chamar atenção para o uso constante desse recurso em vários outros
momentos em que, no entanto, Espinosa mantém o procedimento oculto
sob a aparição explícita dos termos que são colocados em relação.
Faremo-lo apresentando um exemplo só, que poderá contribuir para a
interpretação deste momento difícil da Ética: a aparente descontinuidade
do plano da obra, de feição matemática, no começo da parte II. Antes
disso, é importante ressaltar a importância das definições que abrem a
primeira parte da Ética, pelas quais se reconhece imediatamente o modelo
matemático de raciocínio.

99
Cadernos Espinosanos XXI

2) A parte I da Ética, uma exposição metódica exemplar

As definições que abrem a parte I constituem um traçado geral,


esboço ao qual se segue a construção more geometrico do sistema. Devido,
em parte, à sua importância na economia geral do sistema, mas também
devido ao seu caráter radicalmente distinto do que geralmente até então
havia sido aceito com relação às coisas definidas, essas definições deram
ensejo a infindáveis debates. Elas compreendem os principais problemas
do espinosismo, tais como a noção de causa sui, o uso não convencional de
categorias fundamentais como substância e atributo, a definição de Deus
e a identificação da liberdade com a necessidade. Mas, apesar de haver
interpretações divergentes, os comentadores são praticamente unânimes
em aceitar a importância primordial das definições e, no que diz respeito
ao método, do seu ordenamento.
A primeira definição é a da causa de si, a segunda é a de coisa finita.
Em seguida, lemos as definições de substância, atributo e modo. A sexta
definição é a de Deus. A sétima, da liberdade e a oitava, da eternidade.
Se, em termos de conteúdo e do emprego inusitado de noções
de metafísicas consagradas pela tradição, as definições parecem
desconcertantes, a lista no entanto parecerá “natural, porque ela é comandada
pelo método” (GUÉROULT 5, p.20). O modelo provém da geometria. As
definições são “explicações bem curtas de termos e de nomes pelos quais
serão designados os objetos de que será tratado” (SPINOZA 7, PPC, G I
128). Entretanto, elas não somente se referem aos elementos simples, mas
constituem como que os ângulos com os quais se desenha o esboço do
assunto que se desdobrará no corpo do texto. Isso fica subentendido, por
exemplo, na leitura de Guéroult, quando ele afirma que as cinco definições
iniciais consistem num esboço das diferentes etapas da gênese da idéia
de Deus. A principal definição – a 6º, de Deus – não seria nota per se, tal

100
Sérgio Luís Persch

como as outras. Por isso, ela precisaria de uma subseqüente demonstração


(dada na proposição11). Mas cabe perguntar se a articulação das diversas
definições não basta para que o conjunto (portanto, também a 6ª definição)
seja evidente por si mesmo.
Um estudo sumário e bastante esclarecedor acerca da unidade das
definições que abrem a parte I da Ética é o de Marilena Chaui (CHAUI
2, p.7-28). Ao mostrar que o conjunto das definições “constituem uma
só definição real” (CHAUI 2, p.20), ela insiste na importância de se
compreender essa unidade das várias definições. No caso, a definição de
Deus é “geometricamente construída com os elementos fornecidos pelas
sete outras, todas elas dependentes da definição de causa de si e articuladas
internamente a ela” (CHAUI 2, p.17). Tomadas em conjunto, as definições
oferecem “a idéia complexa do absoluto” (CHAUI 2, p.13). Justamente
por isso, é fundamental perceber a sua articulação interna, donde resulta
o conjunto, ou melhor, a definição única do ser real. Com efeito, se
tomássemos as definições em separado, cada uma seria meramente relativa,
em particular a definição de Deus, antecedida por cinco outras, das quais
então dependeria. Em vez disso, a percepção do conjunto uno intuitu
(CHAUI 2, p.20) proporcionaria desde já um conhecimento intuitivo que
se desdobrará nas proposições e respectivas demonstrações que perfazem
a parte I.
Embora Marilena Chaui mostre a articulação interna das definições
lançando mão do conteúdo que cada uma exprime e pelo qual remete a
outras, é importante ressaltar que ela também chama atenção para o efeito
da mera disposição formal do texto. As definições combinam-se umas
com as outras de acordo com as leis da dióptrica familiares a Espinosa.3
Outra referência importante, no que diz respeito à disposição formal do
texto, é a doutrina dos modos de pensar: percebendo-se a mesma coisa
pelos diversos modos, devidamente relacionados entre si, obtém-se o

101
Cadernos Espinosanos XXI

conhecimento intuitivo dela.4


O modelo matemático é uma exigência observada com grande
rigor ao longo de toda a primeira parte da Ética, que, nesse sentido,
pode ser considerada uma exposição exemplar. Ao longo da parte I da
Ética, Espinosa deduz a natureza e as propriedades da substância única
constituída de atributos infinitos. Cada atributo é infinito em seu gênero e,
inclusive, deve ser concebido por si mesmo, na medida em que o intelecto
os percebe como constituindo a essência da substância. Dessa forma, os
atributos são concebidos como realmente distintos uns dos outros, sem
no entanto constituírem a essência de substâncias diferentes. É que, no
caso, uma e a mesma substância se exprime seja mediante um atributo, seja
mediante outro. Cada atributo exprime, à sua maneira, o ser da substância.
Tanto quanto o pensamento, a extensão é um atributo da substância única
e infinita. A extensão é infinita em seu gênero e, nesse sentido, ela não é
limitada pelo pensamento ou por qualquer outro atributo. Após demonstrar
que Deus é a substância única, na proposição 15 ele afirma: “Tudo o que
existe, existe em Deus, e sem Deus, nada pode existir nem ser concebido”
(SPINOZA 7, G II 56). A proposição se refere também a todas as coisas
extensas. Espinosa concorda que seria um absurdo atribuir a Deus um corpo
e uma alma, à semelhança do homem. No entanto, ele discorda daqueles
que procuram remover completamente a extensão da natureza divina.
Pois, considerada em si mesma, a extensão é infinita, não carecendo das
limitações que os corpos particulares e finitos possuem. A extensão é um
dos infinitos atributos de Deus.
A definição de modo será fundamental para explicar a maneira
como as coisas particulares são produzidas, enquanto modificações da
substância. Nenhuma coisa particular existe por si, tampouco é concebida
por si mesma, pois neste caso ela seria uma substância. Todas as coisas
particulares são partes da substância única. Com base na proposição

102
Sérgio Luís Persch

15 e também na definição de modo, citada acima, Espinosa escreve no


corolário da proposição 25 que “As coisas particulares nada mais são que
afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos pelos quais os atributos
de Deus se exprimem de maneira certa e determinada” (Id., ibid., p.68).
E assim, até o final da primeira parte, fica demonstrada a maneira como
o ser absolutamente infinito, na medida em que é causa de si, é também
causa de todas as coisas particulares segundo uma ordem necessária, pelo
que se conclui serem todas as coisas determinadas pelas leis necessárias
da Natureza. No plano estritamente metafísico, a exposição sistemática da
idéia do ser absolutamente infinito, causa de si e de todas as coisas, já é
completamente desenvolvida na primeira parte da Ética.

3) Sobre a articulação duvidosa das definições que abrem a parte II

Nas outras partes da Ética (exceto a última, que já não traz definições
no começo), pode-se supor que as definições também se relacionam umas
com as outras de maneira precisa e, tomados em conjunto, formam um
todo. Somente notando esse seu caráter sistemático é que percebemos a
importância do papel delas no desenvolvimento das respectivas partes
de que constituem o começo. Porém, às vezes parece que Espinosa não
está muito preocupado em conferir tal unidade às definições. Na segunda
parte, por exemplo, o esboço inicial traçado pelo conjunto de definições
parece não ser tão rigoroso pelo ponto de vista metodológico, e também
não tão importante em termos de conteúdo. O leitor pode encontrar boas
justificativas para essa descontinuidade, se tiver em conta o conteúdo
particular que Espinosa submete a exame na parte II. Todavia, semelhantes
justificativas também podem obstruir a descoberta de uma conexão mais

103
Cadernos Espinosanos XXI

rigorosa da segunda parte com a primeira, supondo precipitadamente


uma insuficiência do método, uma incompatibilidade entre a exposição
“metafísica” da primeira parte e essa espécie de “tratado” sobre as
coisas práticas ou empíricas, que é a segunda parte. Vejamos algumas
peculiaridades gerais da segunda parte, pelas quais possamos identificar as
diferenças com relação à primeira.
Qual seria propriamente a inflexão da parte II no sistema da Ética?
Tentaremos mostrar que nela Espinosa passa a considerar as coisas finitas
em sua existência efetiva, isto é, tais como existem na prática, ou então,
como nos são dadas na experiência. Assim, a parte I será invocada para
garantir um conjunto de pressupostos axiomáticos, de leis necessárias
segundo as quais a existência das coisas finitas e, especificamente, do ser
humano, é definida. Porém, a entrada em cena das coisas finitas e do homem
se afirma por simples constatações de fato. Isso obviamente acarretará uma
série de características curiosas, como por exemplo, a de que os axiomas
da parte II não são axiomas no sentido convencional, mas sim, “verdades
de fato” ou “ensinamentos da experiência” (conforme as expressões de
GUÉROULT 6, p.31). Mas a experiência admitida inicialmente como
um dado será metodicamente explicada pelo processo demonstrativo que
garante a continuidade entre as partes I e II da Ética.
A parte II inicia com um pequeno prefácio, que lembra a maneira
como Espinosa introduz os assuntos nos Tratados que escreveu. Diz que
vai explicar aquelas coisas que seguem necessariamente da essência de
Deus e, em particular, “aquelas que possam nos conduzir, como que pela
mão, ao conhecimento da mente humana”. Trata-se, pois, de explicar a
mente humana como uma coisa singular. Ela terá que ser explicada,
então, como idéia particular de um corpo particular existente em ato e,
ao mesmo tempo, como modificação das substância única, ou seja, ela é
uma idéia singular e determinada de Deus. A experiência imediata que a

104
Sérgio Luís Persch

mente humana possui de si própria não compreende a idéia de que ela é


uma modificação determinada da substância única. Percebendo-se isolada,
ela tem um conhecimento mutilado de si mesma. Mas essa inadequação
não se deve ao fato de ela estar ligada ao corpo. Pelo contrário, é por
meio da explicação de que a mente humana é idéia do corpo que Espinosa
a demonstra como parte da Natureza, modificação da substância única.
Para tanto, é preciso explicar de que maneira a mente particular de um
ser humano é a idéia do corpo humano, e de que maneira ela exprime a
essência do corpo. Essa é a principal tarefa da parte II da Ética.
O pensamento e a extensão são atributos de Deus, ou seja, Deus
é uma coisa pensante e uma coisa extensa. É o que consta nas duas
primeiras proposições, demonstradas com base na parte I da Ética: tanto os
pensamentos quanto as coisas extensas são modos que exprimem a natureza
divina de uma certa maneira e, enquanto tais, envolvem respectivamente
os atributos pensamento e extensão. Não há qualquer primazia de um
atributo sobre o outro. Ambos igualmente exprimem a essência divina, cada
atributo à sua maneira. Na proposição 6 lemos que “Os modos de qualquer
atributo têm Deus por causa, enquanto ele é considerado exclusivamente
sob o atributo do qual eles são modos e não enquanto é considerado sob
algum outro atributo” (SPINOZA 7, E, G II 89). Na proposição 7, por
sua vez, encontramos o fundamento da famosa doutrina do paralelismo:
“A ordem e a conexão das idéias é a mesma que a ordem e a conexão
das coisas” (Id., ibid.). Pois a potência de pensar de Deus é igual à sua
potência de agir. Num escólio, Espinosa afirma que “a substância pensante
e a substância extensa são uma só e a mesma substância, compreendida
ora sob um atributo, ora sob outro” (Id., p.90). Assim, também um modo
da extensão e a idéia desse modo são uma só e a mesma coisa, mas que se
exprime de duas maneiras distintas. Por isso há uma e a mesma conexão
de todas as coisas. Na totalidade da extensão, há um encadeamento causal

105
Cadernos Espinosanos XXI

que corresponde precisamente ao encadeamento de idéias que constitui a


totalidade do pensamento. A unidade de ambos é garantida pela substância
única. Mas não há qualquer relação causal entre as coisas extensas e as
idéias, uma vez que a causa de qualquer coisa extensa há que ser outra
coisa extensa, e a causa de uma idéia particular há de ser outra idéia. Nesse
sentido, Espinosa é mais radical que Descartes quanto à impossibilidade
de uma relação causal entre extensão e pensamento, corpo e mente. Tese
que se sustenta com base naquelas coisas universais que foram deduzidas
acerca da causalidade imanente da Substância, na primeira parte. Agora,
em meio a essas leis que perpassam a natureza toda, tanto na ordem do
pensamento quanto na ordem da extensão, há que se tratar da natureza
humana em particular e de maneira palpável. Essa é a tarefa específica
da parte II, da qual não poderia ter dado conta a metafísica da Substância
única desenvolvida na parte I. Veremos que as definições circunscrevem
esse espaço em que se configura a existência do ser humano, constituído de
corpo e mente. A maior dificuldade está em compreender como Espinosa,
partindo da Substância única e infinita, chega à determinação efetiva da
existência dos modos finitos, em particular do homem.
À primeira vista, Espinosa tem dificuldades no articular as partes
I e II da Ética. O próprio texto, desde o começo da segunda parte, parece
trair os pressupostos metodológicos seguidos com rigor na primeira
parte. Já nas definições encontramos dificuldades, que cumpre anotar
inicialmente. Todavia, cabe perguntar se não há uma ordem rigorosa que
preside as definições da parte II. Tentaremos responder afirmativamente a
essa questão.
As quatro definições iniciais da parte II são as seguintes:

I. Por corpo entendo um modo que exprime, de maneira certa


e determinada, a essência de Deus, enquanto considerada
como coisa extensa. Veja-se o corol. da prop.25 da parte I.

106
Sérgio Luís Persch

II. Digo pertencer à essência de certa coisa aquilo que, se


dado, a coisa é necessariamente posta e que, se retirado, a
coisa é necessariamente retirada; em outras palavras, aquilo
sem o qual a coisa não pode existir nem ser concebida e vice
versa, isto é, aquilo que sem a coisa não pode existir nem
ser concebido.
III. Por idéia entendo um conceito da mente, que a mente
forma porque é uma coisa pensante.
Explicação. Digo conceito e não percepção, porque a palavra
percepção parece indicar que a mente é passiva com relação
ao objeto, enquanto conceito parece exprimir uma ação da
mente.
IV. Por idéia adequada entendo uma idéia que, enquanto
considerada em si mesma, sem relação com o objeto, tem
todas as propriedades ou denominações intrínsecas de uma
idéia verdadeira.
Explicação: Digo intrínsecas, para excluir a propriedade
extrínseca, a saber, a que se refere à concordância da idéia
com o seu ideado (SPINOZA, 7, E, G II 84-5)

Além dessas, lemos ainda a definição de duração, de realidade e de


coisa singular. Porém, vamos nos ater às quatro definições iniciais, pois é a
partir delas que identificaremos a ordem que preside o texto de Espinosa.
Podemos recorrer novamente a Guéroult, que nos indica os
diversos problemas que saltam à vista numa primeira leitura e que
dificultam reconhecer o procedimento irrestritamente sistemático utilizado
no começo da segunda parte da Ética. Algumas das definições não são
invocadas em toda a parte II. Outras parecem supérfluas, como, no caso, a
definição de essência. Com efeito, na primeira parte Espinosa fala muito
dela sem que precisasse defini-la previamente. Também ficou omitida a
definição que pareceria a principal, qual seja, a definição de Mente. Outra
parece muito estreita: a da idéia, definida simplesmente como algo que

107
Cadernos Espinosanos XXI

a mente forma. Aparentemente, elas não são enumeradas segundo uma


ordem, pois, questiona Guéroult: “não se percebe à primeira vista por que
o corpo deve ser definido antes da essência, a essência antes da idéia”
(GUÉROULT, 6, p.26). O comentador procura justificar cada um desses
problemas recorrendo ao que foi ou será desenvolvido, ou atribuindo as
particularidades à intenção do autor, em torno da qual só podemos fazer
algumas conjeturas. Embora as observações em torno de cada problema
indicado sejam muito minuciosas e, quiçá, certeiras, gostaríamos de
encontrar uma justificativa mais rigorosa para o ordenamento das definições,
que satisfaça as exigências do modelo matemático, sem o qual a obra de
Espinosa não se sustentaria.
Marilena Chaui também se ocupa com a “anomalia” que
encontramos no começo da parte II: “ainda uma vez seremos surpreendidos
com uma anomalia. Assim como o De Deus parecia não começar com a
definição de Deus, o Da mente começa com a definição do corpo e nem
mesmo traz uma definição da mente humana” (CHAUI 1, p.752). Para
solucionar o problema, ela confronta sistematicamente o conjunto de
definições das partes I e II, as da primeira dedicados ao ser absoluto e, da
segunda, às coisas singulares.
Assim como a definição de corpo remete à parte I, Marilena Chaui
mostra que as definições de idéia e idéia adequada também estão vinculadas
ao desenvolvimento da primeira parte. Elas são modos do atributo
pensamento, assim como os corpos são modos do atributo extensão. Dessa
forma, “Espinosa oferece a ratio entre as definições de causa de si e de
Deus e a definição dos seus efeitos modais como coisas singulares – com
essa ratio evidencia-se a proporção entre o ser absolutamente infinito e as
coisas singulares” (Id., p.755). Resta, pois, a “anomalia” relativa à falta
de uma definição da mente e, não obstante isso, Espinosa vincula a idéia
à mente, dizendo-as propriedades de uma coisa pensante que, no caso,

108
Sérgio Luís Persch

não é definida. Ao subscrever as possíveis razões pelas quais não há essa


definição de mente, Marilena Chaui apresenta a noção de coisa pensante
ou mente humana como uma espécie de inflexão que ocorre na parte II
da Ética, para que seja atingido seu escopo: a dedução da natureza e da
origem da mente humana. Eis, em suma, as quatro razões: logicamente,
a definição paralela à de corpo é a definição de idéia; ontologicamente,
todo modo finito da extensão é um corpo, mas nem todo modo infinito do
pensamento é uma mente (pois a mente se define a partir da complexidade
das operações e afecções de um corpo); corpo e mente humanos têm que
ser deduzidos na parte II, pois são modos determinados específicos dos
atributos pensamento e extensão; há um propósito polêmico de fazer frente
à perspectiva cartesiana, que supõe o conhecimento da mente anterior e
independente do corpo. Essas razões, Marilena Chaui as obtém pela
interpretação do desenvolvimento da parte II (Id, p.757). Perguntamo-nos
se a disposição formal das quatro definições iniciais já não oferece o esboço
desse desenvolvimento, garantindo a elas então uma unidade tão coesa
quanto a das definições da primeira parte, as quais, juntas, concorrem para
uma única definição (conforme vimos acima).

4) A disposição formal das quatro definições iniciais da parte II

Voltemos nossa atenção exclusivamente para as quatro definições


iniciais e vejamos se não é possível depreender do texto uma razão precisa
que justifique a ordem pela qual estão dispostas e, no caso, qual seria o efeito
desse ordenamento racional na compreensão do significado de cada um
dos termos definidos ou então, simplesmente, utilizados nas definições.

109
Cadernos Espinosanos XXI

Quanto à primeira definição, é interessante notar atentamente a


remissão feita ao corolário da proposição 25 da parte I. Citamos acima o
corolário da proposição 25, no qual se conclui que as coisas particulares
nada mais são do que afecções dos atributos de Deus, já que pela proposição
15, tudo existe em Deus e é por ele concebido. Note-se, pois, que a definição
de corpo mais parece uma proposição demonstrada na seqüência da parte
I da Ética. Todavia, enquanto definição, ela exprime de modo positivo
aquilo que, no começo da parte I, foi descrito simplesmente de maneira
negativa: finita é uma coisa que se limita por outra da mesma natureza –
por exemplo, um corpo é limitado por outro corpo; o modo é em outro, pelo
qual também é concebido (definições 2 e 5 da primeira parte). “Assim, o
que é enfatizado agora é a natureza expressiva do modo (...) Na Parte I, a
definição I,5 sublinha o modo como o estar em outro e ser concebido por
outro, portanto, o modo no seio do absoluto; na parte II, a definição I, 1
sublinha o modo finito pelo exprimir a essência do ser absoluto de maneira
certa e determinada, portanto, sua singularidade” (CHAUI 1, p.754). Vale
ressaltar esse caráter positivo da definição de corpo enquanto modo certo e
determinado da essência divina.
A segunda definição traz à tona um dos problemas cruciais do
espinosismo, qual seja: a essência de cada coisa particular é, também,
absolutamente singular. Pois assim como a supressão da essência suprime
a coisa, assim também a coisa tem que estar dada para que seja dada a
respectiva essência. Essa definição ou descrição da essência se apóia na
definição de corpo. Pois cada corpo (mais simples ou mais complexo) tem
um lugar certo e determinado (único) no encadeamento causal de todas as
coisas. Portanto, uma essência jamais exprime um gênero ou espécie de
corpos, e também não é através desses conceitos gerais que conhecemos a
essência de um corpo particular. O conhecimento da essência de uma coisa
determinada depende do conhecimento da sua causa, ou do encadeamento

110
Sérgio Luís Persch

causal que a produz. As definições de corpo e de essência são, portanto,


definições de coisas singulares.
À terceira definição, Espinosa acrescenta uma explicação. Há
certas controvérsias quanto ao modo como devemos compreender essa
explicação. Trata-se de saber se essa disponibilidade de ação que tem a
mente para formar conceitos diz respeito àquela capacidade que ela possui
de conhecer adequadamente as coisas – um conhecimento livre de paixões
– ou se a ação da mente aqui definida é relativa a qualquer modo natural
de formar conceitos, conforme os diferentes modos de percepção pelos
quais ela conhece as coisas de maneira inadequada ou adequada. Não
abordaremos nenhuma interpretação que já se fez em torno dessa questão,
mas pretendemos sugerir que se trata do segundo caso. Ou seja: a ação pela
qual a mente se move, conforme pressuposta na definição 3, refere-se a
qualquer tipo de conhecimento, tanto o inadequado quanto o adequado.5
A quarta definição também é acrescida de uma breve explicação,
visando esclarecer melhor o critério de verdade que está sendo definido. Ele
não se depreende da relação entre a idéia e o objeto conhecido. Não quer
dizer que a adequação entre a idéia e o ideado esteja sendo questionada. Mas
esta é, como diz Espinosa, algo extrínseco ao conhecimento em si mesmo. A
adequação da idéia com o objeto é um resultado do conhecimento adequado.
Pois conhecer adequadamente é ter uma idéia da qual conhecemos a causa,
ou seja, sabemos como ela se produz no pensamento.
A figura que se delineia pelas quatro definições é aquele quadro de
relações que Espinosa utiliza várias vezes nos seus argumentos. O exemplo
que Espinosa oferece no Tratado da emenda do intelecto é o do cálculo
da quarta proporcional: dois está para quatro assim como três está para
seis. É claro que essa expressão matemática, quando aplicada a palavras
ou imagens, jamais nos coloca diante de um problema de fácil solução,
como é o das relações algébricas entre números. Todavia, a estrutura

111
Cadernos Espinosanos XXI

formal do raciocínio tem um efeito preciso sobre os termos envolvidos.


Referimo-nos, acima, ao modo como Espinosa apresenta os quatro modos
de percepção: o ouvir dizer, a experiência vaga, o conhecimento racional
e o conhecimento intuitivo. Este último é o conhecimento perfeito e, por
isso, mesmo, mais difícil de ser explicado. Contudo, obtemos uma noção
do que seja o conhecimento intuitivo na medida em que entendemos a sua
posição relativamente aos outros modos de percepção. Da mesma forma,
a noção precisa de mente se depreende do conjunto das quatro definições
iniciais da parte II da Ética.
Relacionemos, portanto, as quatro definições entre si.
A primeira definição é a de corpo. Caso tivéssemos em vista a coisa
definida, seria deveras complicado entender por que tal definição ocupa
esse lugar primeiro. Mas não nos deixemos ofuscar por uma noção prévia
da coisa definida, pois temos que ficar atentos unicamente à definição e ao
lugar que ela ocupa. Na definição mesma, Espinosa remete o leitor a uma
passagem da parte I. Essa remissão à parte I não nos parece simplesmente
indicar uma referência para se compreender melhor o teor da definição. Ela,
na verdade, relaciona a primeira definição com o corolário da definição 25
da parte I, para estabelecer um ponto preciso de articulação entre as duas
partes. O corolário nos diz, baseado numa cadeia de proposições, que as
coisas particulares são afecções dos atributos de Deus, modos pelos quais
os atributos de Deus se exprimem de maneira certa e determinada. Toda
essa teoria é recolhida pela definição de corpo, sendo, pois, a partir desta
que Espinosa explicará como, em particular, as coisas finitas seguem da
essência infinita.
A par dessa articulação precisa da primeira definição com o
encadeamento demonstrativo da parte I, pode-se notar que a segunda
definição também se apóia na parte I da Ética e se enuncia como uma
consequência direta da primeira definição. Pois é na proposição 25 da

112
Sérgio Luís Persch

parte I, justamente, que Espinosa demonstra ser Deus a causa eficiente não
apenas da existência das coisas, mas também de sua essência. Com efeito,
se todas as coisas particulares são modificações da substância única, elas o
são enquanto existência e essência particulares. Um corpo é uma essência
singular expressiva.
Na terceira definição parece que Espinosa adota uma perspectiva
inversa, numa espécie de oposição dualista entre corpo e mente. Pois, se
a noção de essência se segue à definição de corpo, a definição de idéia se
segue da noção de mente, a qual, por sua vez, não é definida. A mente,
não sendo propriamente definida, aparece como “sujeito que tem idéias”.
Pela terceira definição só, não se percebe como a mente estaria articulada
no processo contínuo de causalidade das coisas finitas a partir do ser
infinito, como é o caso da definição de corpo. Deveras, não há de ser
apropriado dar uma definição particular de mente, devido ao fato de se
correr o risco de supô-la como um sujeito isolado e, assim, separada do
mundo e livre das afecções corpóreas, tê-la como capaz de formar as idéias
adequadas.6 Mas, conforme a nossa sugestão de leitura, a terceira definição
de maneira alguma deve ser considerada à parte, e sim, articula-se com
as demais. A mente não é definida porque, no delineamento matemático
das quatro definições, ela é como que o termo incógnito – x – que se
deduz a partir das relações de proporcionalidade entre os outros termos
definidos. A mente não tem uma definição. Ela figura imediatamente no
conjunto de definições, de modo que se precise deduzir delas isso o que a
mente efetivamente é. Por motivos idênticos, o axioma “o homem pensa”
aparece como uma verdade de fato ou um ensinamento da experiência (cf.
o comentário de GUÉROULT 2, p.31 acerca do segundo axioma da parte
II da Ética). É com ela que o homem aparece como dado na existência.
Assumi-la como um primeiro princípio para, a partir dele, deduzir outras
verdades implicaria em fazer dela uma hipóstase e, consequentemente,

113
Cadernos Espinosanos XXI

cair no erro do antropomorfismo. Em vez disso, e enquanto axioma, o


“ser pensante” se explica como modificação da substância que se exprime
enquanto extensão e pensamento. No caso das definições em questão ele
afirma a identidade entre essência e existência com base na definição de
corpo, articulada com as demonstrações da causalidade substancial da
parte I da Ética, e relaciona a essência singular com a idéia adequada.
Remove-se o erro quando se sabe que são inadequadas muitas idéias que
por natureza a mente possui. A verdade se alcança na medida em que se sabe
distinguir as idéias adequadas e as ideais inadequadas (isto é, mutiladas
e confusas). É pela definição 4 que chegamos a saber no que consiste o
conhecimento adequado. Notemos que, nela, já não há qualquer referência
à ação da mente. Pois o conhecimento verdadeiro consiste numa percepção
adequada da idéia, considerada nela mesma.7 Uma idéia que se conhece
como verdadeira por força das suas propriedades intrínsecas equivale
àquela unidade entre essência e existência resultante das definições 1 e 2.
A idéia adequada exprime verdadeiramente a essência de uma coisa.
Observando, finalmente, o conjunto de definições em exame,
podemos notar que, por um lado, a noção de essência está estreitamente
vinculada com a definição de corpo e, por outro lado, a definição de idéia
está relacionada com a noção de mente. Porém, no caso da terceira definição,
há provisoriamente uma desproporção entre as idéias, enquanto conceitos
que a mente forma para reter e explicar as coisas, e as próprias coisas,
na medida em que as idéias assim concebidas podem ser inadequadas.
Desproporção tanto mais evidente pelo fato de que a mente não é
definida, mas aparece como um termo cujo sentido se define pelo papel
que esse termo desempenha na definição. Porém, com a quarta definição
se estabelece uma perfeita unidade entre o corpo enquanto expressão
particular da essência divina, a essência particular de uma coisa dada,
a idéia adequada por força das determinações intrínsecas que a tornam

114
Sérgio Luís Persch

verdadeira e a mente que assim a percebe. Não havendo para a mente uma
definição particular, ela figura como um t ermo que se define perfeitamente
no quadro de relações que as definições constituem em conjunto. Portanto,
também ali se reconhece o modelo matemático de que Espinosa se utiliza
para conduzir ao conhecimento da mente humana.

Referências bibliográficas:

1. CHAUI, Marilena. A nervura do real. Imanência e liberdade em Espinosa. São


Paulo: Companhia das Letras, 1999.
2. __________. “A definição real na abertura da Ética I de Espinosa”. In. Cadernos
de História e Filosofia da Ciência, série 3, vol. 11. Campinas: UNICAMP,
2001.
3. ESPINOSA, Baruch de. Obras escolhidas. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
4. __________. Obras. Introducción, traducción, notas e indices de Atilano Domínguez.
Madrid: Alianza, 1986.
5. GUÉROULT, Martial. Spinoza I: Dieu (Éthique, 1). Paris: Aubier-Montaigne,
1967.
6. __________. Spinoza II: l’Âme (Éthique, 2). Paris: Aubier-Montaigne, 1972.
7. SPINOZA. Opera. Im Auftrag der Heidelberger Akademie der Wissenschaften.
Herausgegeben von Carl Gebhardt. Heidelberg: Carl Winter, 1925; 2.
Auflage, 1972, 4bd.
8. SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007

The presence of the method in the initial definitions of part II of Spinoza’s Ethics

Abstract: Spinoza begins his Ethics with a series of definitions, because of the
geometrical model of reasoning, which he incorporates systematically to the philosophy.
So, the commentators analyze meticulously the assembly of definitions that open the
First Part, showing that they fulfill exemplary the demand of the method. In the
Second Part of the Ethics, on the contrary, the same commentators manifest difficulty

115
Cadernos Espinosanos XXI

in recognizing limitless fidelity to the method. However, it is an apparent difficulty.


This paper focuses the initial definitions of the Second Part of the Ethics, having for
goal to seat out that they are related among themselves according to a precise formal
arrangement. Therefore, they are written in agreement to the mathematical model of
reasoning that Spinoza follows since the beginning of the Ethics.
Keywords: Spinoza, Ethics, definitions, body, mind.

NOTAS:

1. Temos em vista os dois volumes que Gueroult escreveu sobre as partes I e II da


Ética de Espinosa, respectivamente, e de Marilena Chaui, as passagens da Nervura do
real que tratam do assunto e um artigo sobre “A definição real na abertura da Ética I
de Espinosa” (cf. as referências bibliográficas no final do artigo).
2. Abreviamos os títulos das obras de Espinosa citadas, com as inicias: TIE – Tractatus
de intellectus emendatione; PPC – Renati Des Cartes Principiorum Philosophiae; E
– Ethica; KV – Korte Verhandeling; CM – Cogitata Metahpysica. A letra “G” se refere
à edição de Gebhardt, “II” se refere ao respectivo volume e o número “11”, à página
do texto.
3. Ele as discute numa carta a Jelles, a Epistula 39 (CHAUI 2, p.17).
4. Como já observamos acima, reencontraremos esse esquema nas quatro definições
iniciais da parte II da Ética. A disposição formal do texto revela uma articulação que
pelo conteúdo não parece óbvia.
5. Vale a pena notar uma passagem do Tratado breve, que, num enunciado muito
parecido, diz outra coisa. Para se entender de que modo as afirmações da mente,
quando ela conhece adequadamente, concordam de todo com a natureza da coisa
conhecida, Espinosa afirma que “o entender... é um puro e simples padecer, ou seja,
nossa mente é modificada de forma que recebe outros modos de pensar que não tinha
anteriormente” (SPINOZA, KV parte II cap.16, G, I 83) O padecer não significa
aqueles excessos passionais que mantêm a mente na ignorância. E, pelo contrário,
a mente ativa pressuposta na definição 3 não se refere exclusivamente às ações da
mente autônoma que conhece, mas a todo o modo natural de conhecimento.
6. A definição 3 permite considerar que os conceitos que a mente forma são modos de
pensar que não correspondem a quaisquer entes verdadeiros (conforme as expressões
utilizadas por Espinosa nos Pensamentos metafísicos). Os conceitos de gênero e

116
Sérgio Luís Persch

espécie, de número e medida, as noções de término ou extremidade são modos de


pensar utilizados pela mente para reter, explicar e imaginar as coisas (CM, I, 1; G-I,
p.234).
7. É nesse sentido que Espinosa afirma, no Tratado breve, que o entender é um puro
padecer, transformando-se a mente por força da idéia verdadeira, ao invés de essa se
dobrar à vontade e ação da mente.

117
O TEMPO DAS PARTES. TEMPORALIDADE E
PERSPECTIVA EM ESPINOSA

Mariana de Gainza*

Resumo: A filosofia espinosista foi freqüentemente associada com a imagem do


círculo, como metáfora alusiva a um ser atemporal e a um saber eterno. Concretamente,
Hegel utilizou essa associação para celebrar a concepção do infinito em ato de
Espinosa; e interpretou a ilustração geométrica da Carta 12 nos termos dessa conexão
entre infinitude verdadeira e circularidade.   No presente trabalho, questionamos
essa leitura, e utilizamos o exemplo espinosano dos círculos não concêntricos para
tematizar a singular concepção espinosana da determinação e do limite. Graças à
compreensão das coisas finitas como durações singulares é possível entender em que
sentido o “tempo” é, para Espinosa, uma realidade imaginária que, enquanto tal, tem
sua própria efetividade.
Palavras-chave: finitude positiva, determinação, limite, duração, tempo.

Na história da filosofia surgiram recorrentemente, alimentando


diversas reflexões sobre o tempo, duas imagens: a figura do círculo e a
figura da reta, capitalizadas para a construção das noções alternativas de
uma temporalidade cíclica e repetitiva e de um tempo linear e progressivo.
A filosofia espinosana não foi imune à associação com esses tipos de
figuras. E, especialmente, a leitura hegeliana de Espinosa promoveu uma
interpretação circular do espinosismo. Uma interpretação que encontramos
definitivamente consagrada, no século XX, nas Lições de Alexandre Kojève
sobre a Fenomenologia do Espírito. Ali, para ilustrar o sistema espinosista,
usa-se a imagem do círculo como metáfora de um saber total, fechado
sobre si, acabado, expressão da existência atemporal ou eterna da verdade
em sua necessidade.

* Doutora em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da USP.

118
Mariana de Gainza

O elogio que Hegel faz do conceito espinosano de infinito acha-


se, sem dúvida, na base dessa associação kojeviana entre espinosismo e
circularidade. Se lembrarmos os termos com os quais Hegel, nas Lições
sobre a história da filosofia, celebrou a concepção do infinito como infinito
atual, vemos que a remissão é explícita:

“O infinito não deve interpretar-se – diz Hegel – no sentido


de uma multiplicidade indeterminada, mas sim de um modo
positivo, como um círculo que encerra dentro de si uma
infinitude perfeita” (Hegel, p.289).

A imagem de um infinito circular se vincula, desta maneira, com


a idéia de uma perfeição acabada, positivamente posta; e se vincula,
também, com os rasgos concomitantes de imanência e presencialidade,
como continuamos lendo nas Lições: “A infinitude absoluta é o positivo
que aperfeiçoa dentro de si, em presente, uma pluralidade absoluta sem
para além.” (Idem ibidem). Assim, a afirmação da presença do totalizado
ao interior da circunferência envolve conseqüências precisas em relação à
temporalidade dessa existência infinita, que deve conceber-se então como
a existência simultânea num tempo presente.
Ora bem, pretendemos aqui mostrar uma série de equívocos que
subjazem à identificação hegeliana da filosofia de Espinosa com a figura
do círculo, equívocos que tem sentido esclarecer quando se trata de pensar
o estatuto da temporalidade na ontologia espinosana.

A substituição, a inversão e a omissão hegelianas

“Espinosa – diz Hegel – recorre a figuras geométricas para


ilustrar o conceito de infinito. Em suas obras (…), encontramo-nos com
dois círculos inscritos um no outro, mas não concêntricos.” (Hegel 1,

119
Cadernos Espinosanos XXI

p.289). Hegel se refere ao conhecido exemplo geométrico da Carta 12, onde


Espinosa, procurando dar força a seu argumento relativo à inadequação do
número para a determinação das coisas, vale-se de um caso matemático:
é por sua natureza própria que o espaço interposto entre dois círculos
não concêntricos e de diâmetros diferentes, o menor inscrito no maior,
apesar de ser um espaço limitado não é numericamente determinável,
pois as desigualdades das distâncias contidas nesse espaço e as variações
do movimento que deveria sofrer a matéria que se mover em dito espaço
superam todo número. Como Hegel lê este exemplo?

“As distâncias desiguais do espaço entre AB e CD ultrapassam


todo número, apesar de que o espaço intermediário não é tão
grande”. Com efeito, se quiser as determinar todas, teria que
proceder numa série infinita. Mas este proceder seria sempre
defeituoso, envolveria uma negação; e, entretanto, este mau
infinito é algo terminado, limitado, algo afirmativo, real e
presente naquele plano como um espaço perfeito entre os
dois círculos. Ou também, uma linha limitada está formada
por uma quantidade infinita de pontos: trata-se de algo
presente e limitado; o para além dessa quantidade infinita
de pontos, não consumados, acha-se consumado nela e já
retornou para a unidade.”(Hegel 1, p.288-289)

Na própria apresentação hegeliana do caso localiza-se o primeiro


e fundamental erro de interpretação. O exemplo, diz Hegel, serve para
ilustrar o conceito de infinito. Mas, em verdade, o exemplo é mobilizado
por Espinosa para demonstrar que o número é inadequado para conceber a
determinação de um espaço limitado, quer dizer, finito. A primeira precisão
fundamental a ser introduzida, então, é esta: Espinosa não se serve de
círculos para pensar o infinito positivo, quer dizer, aquilo que é infinito
em virtude de sua própria natureza; pelo contrário, é a realidade do finito

120
Mariana de Gainza

o que está em questão no famoso exemplo; quer dizer, o problema não


refere ao Todo substancial como realidade infinita, mas às “partes” desse
todo, enquanto coisas finitas e limitadas. A operação hegeliana de leitura
consiste aqui em substituir a parte pelo Todo.
Em segundo lugar, aquilo que era, em palavras de Espinosa,
uma infinidade de desigualdades de distâncias não suscetíveis de ser
numeradas, transforma-se na leitura hegeliana em distâncias desiguais
que não podem ser numeradas porque constituem uma série infinita. Hegel
inverte aqui o substantivo e o adjetivo: transfigura as “desigualdades de
distância” em “distâncias desiguais”. E isto que, para uma abordagem
apressada, poderia parecer um simples matiz na enunciação, modifica
completamente o sentido do exemplo, que tem de nos permitir agora
conceber adequadamente as partes da parte, isto é, os constituintes dessa
realidade finita e limitada que se ilustra aludindo ao espaço compreendido
entre dois círculos não concêntricos. As hegelianas “distâncias desiguais”
se identificam diretamente com os infinitos segmentos desiguais que podem
ser traçados entre os dois círculos, enquanto as espinosanas “desigualdades
de distância” são, de outra maneira, as diferenças entre esses infinitos
segmentos desiguais. No primeiro caso, as partes identificadas com os
segmentos podem ser positivamente assinaladas como partes discretas; no
segundo caso, cada parte é uma diferença entre dois segmentos, a diferença
entre as distâncias que cada um desses segmentos assinala positivamente.
Em terceiro lugar, desta forma de compreender as partes desse
espaço finito como diferenças entre distâncias desiguais deriva a necessidade
de conceber, cada uma delas, como uma passagem. Assim, o caráter
necessariamente dinâmico da existência conjunta das infinitas partes dessa
realidade circunscrita explica que Espinosa fale da variação do movimento
da matéria circulando por esse espaço. Desta sorte, as desigualdades do
espaço compreendido entre dois círculos não concêntricos constituem o

121
Cadernos Espinosanos XXI

conjunto não numerável das diferenças entre suas distâncias desiguais


(quer dizer, as desigualdades de distância) ou, o que é o mesmo, a variação
sem fim constituída por uma infinidade de passagens ou transições. Em que
consiste a distorção hegeliana em relação a este aspecto contido no exemplo?
O movimento da matéria simplesmente desaparece de sua consideração:
Hegel omite a alusão espinosana à matéria e ao movimento.
É porque não considera no exemplo, precisamente, o fundamental,
que Hegel pode enfatizar os rasgos de “completitude” ou “perfeição atual,
no presente” que, para ele, qualquer figura exibe em seu desenho de maneira
imediata: um espaço perfeitamente delimitado, que contém dentro de si
uma infinidade (traduzida por Hegel, muito rapidamente, como “infinito
positivo”) deve encontrar-se em toda figura geométrica, que admite infinitos
traços suscetíveis de ser delineados em seu interior respeitando as leis de
sua constituição; isso explica a homologação hegeliana da infinidade a que
refere o exemplo de Espinosa com uma “linha limitada” que contém uma
infinidade de pontos. E é por não considerar o fundamental do exemplo
que Hegel pode desconsiderar a perpétua variação no interior de algo finito
e limitado, que é precisamente o que interessa a Espinosa. O que Hegel
perde de vista é, então, a própria particularidade da ilustração espinosana:
não compreende que a não-concentricidade dos círculos exige conceber
o que acontece ao interior desse máximo e esse mínimo em termos de
movimento; não compreende que, por isso, as “partes” que constituem
essa certa “interioridade” delimitada não são partes discretas, mas partes
diferenciais; tampouco tem em conta, então, que há outra noção de limite
em jogo, diferente daquele limite que a circunscrição fixa de um espaço
estabelece, porque o máximo e o mínimo são, eles próprios, relações entre
distâncias desiguais.

122
Mariana de Gainza

O limite como determinação positiva

O que resulta fundamental aqui é que a noção de limite que aparece


no exemplo da Carta 12 não é a mesma presente naquela outra carta famosa
(que também Hegel contribuiu a popularizar), a Carta 50 a Jarig Jelles:

“Quem diz que percebe uma figura indica somente que


concebe uma coisa determinada e de que maneira ela o é.
Esta determinação, portanto, não pertence ao ser da coisa,
mas indica o seu não-ser. Portanto, a figura é apenas a
determinação e a determinação é negação e, assim, ela não
pode ser algo, mas só uma negação.” (Espinosa 3, p.398-
399)

A figura não é, então, algo positivo, mas o não-ser da coisa que


delimita, pois graças à figura se realiza a determinação de um conteúdo,
sim, mas da perspectiva de outro externo que o circunscreve pondo-lhe
um término espacial. A determinação é negação neste sentido preciso, e
a determinação enquanto negação constitui um limite necessariamente
conectado com nossa percepção dos corpos finitos (“pois quem diz que
percebe uma figura, não indica outra coisa senão que concebe uma coisa
determinada e como está determinada”, embora “esta determinação não
pertença à coisa segundo seu ser”).
O exemplo geométrico da Carta 12 serve então para que
consideremos – frente à noção da figura que implica a idéia da determinação
como negação (que nos levava a considerar a coisa segundo seu “não-
ser”) – a outra cara da determinação, enquanto afirmação (que nos permite
considerar a coisa segundo seu “ser”). E se a Carta 12 nos incita a pensar
de outra forma a determinação, isso é assim porque o que Espinosa
tematiza lá de maneira diferente é a noção de limite. A determinação como

123
Cadernos Espinosanos XXI

negação constitui a idéia de limite não só como determinação externa, mas


também como ser de razão, e é nesse sentido que equivale a conceber
uma coisa segundo seu não-ser. Mas acontece que se nos restringíssemos a
esta noção de limite – como Hegel faz –, seria lícito dizer que, em última
instância, o finito na filosofia espinosana não tem nenhuma realidade: os
limites não são reais, mas meros entes de razão e, por isso, não são nada
que realmente exista na natureza. E se o limite nada é, o que supomos
limitado, quer dizer, finito, tampouco é nada: a única realidade é, desta
maneira, a substância absolutamente infinita, que não permite pensar em
seu interior nenhuma determinação, pois toda determinação não é mais
que algo imaginário e subjetivo, que se dissolve assim que nos situamos na
perspectiva verdadeira da substância eterna.
Frente a esta leitura não é suficiente enfatizar que a determinação
externa é real e efetiva, mas é necessário reconsiderar a noção de limite.
Por isso, o exemplo geométrico da Carta 12 deve ser lido em relação a
essa emenda da disposição imediata a conceber o limite só como uma
determinação externa e as coisas reais como se fossem figuras: o que está
implícito no caso dos dois círculos não concêntricos é outra concepção
do limite, que lhe restitui sua realidade, e o associa à própria consistência
positiva e ao ser relacional dos seres finitos.
Se quisermos encontrar no exemplo o limite como negação tal
como se descreve na Carta 50, temos que prestar atenção à delimitação
desse espaço pelas circunferências do círculo maior e o círculo menor.
Esse espaço está perfeitamente delimitado e são as circunferências que
fazem dele isso que existe entre outras coisas ou corpos que o determinam
externamente; por isso, as circunferências são o “não-ser” do espaço
interposto, tanto no sentido de que, para além delas, ele deixa de ser esse
espaço, como no sentido de que ele próprio, enquanto é esse espaço, quer
dizer, segundo seu “ser”, não é uma circunferência. O que é, então, esse

124
Mariana de Gainza

espaço interposto entre os dois círculos?


É um espaço definido, ou seja, “limitado dentro de si ao levar em si
a finitude de sua definição” que, por fazer dele o que ele é, exclui o que ele
não é. A não- concentricidade dos círculos (derivada da relação específica
que liga as circunferências) é a que define de certa e determinada maneira
a constituição singular desse conteúdo espacial diferente de outros, ao qual
incumbe um “máximo” e um “mínimo” que lhe são próprios: pertencem-
lhe no sentido preciso de que constituem esse conteúdo, compartilhando
a mesma natureza que o resto de seus constituintes (são diferenças entre
distâncias como todas as outras “partes”). Por isso, estão necessariamente
imbricados com as outras relações diferenciais que compõem esse espaço
e, também por isso, o limite concebido desta forma não é separável do
“corpo” da coisa: é interno. Assim, pode dizer-se que, para além do limite,
a existência da coisa continua: a matéria que se move ao interior do espaço
interposto aumenta ao máximo e diminui ao mínimo sua velocidade quando
atravessa as partes limites em que a distância diferencial é a menor ou a
maior; mas, depois de aumentar ao máximo e de diminuir ao mínimo, o
movimento prossegue ao interior do mesmo espaço. A matéria móvel que
constitui a “interioridade” concreta desse espaço se define, desta maneira,
pela proporção variável de movimento e de repouso em que consiste sua
existência.
Enfim, sabemos que para Espinosa a duração explica a existência
das coisas finitas, segundo sua natureza interna, como uma continuação
indefinida na existência. Esse existir fluente, feito de infinitas transições ou
passagens, não admite ser “dividido” em partes autônomas ou fragmentado
em instantes, e, nesse sentido, a existência das coisas finitas coincide com
a essência dessas mesmas coisas: a essência se define como potência ou
esforço (“que não envolve um tempo finito, mas indefinido”) por perseverar
na existência; a existência é a duração contínua que resulta ou coincide

125
Cadernos Espinosanos XXI

com a afirmação dessa essência como esforço de perseverança. Por isso, o


exemplo geométrico ilustra a forma em que a existência de algo limitado
coincide com o ser atual de uma essência que consiste no esforço variável,
mas contínuo, para permanecer durando, ou seja, existindo. É assim que
a Carta 12 nos permite conceber a determinação ontológica positiva das
coisas finitas enquanto durações singulares.
Mas o que acontece com o “tempo”, considerado agora em sua
acepção espinosana precisa? Sabemos – e lemos na mesma Carta 12 –
que o tempo serve para medir a duração, introduzindo separações e
descontinuidades arbitrárias em seu fluir. A duração temporalmente
quantificada é, desta forma, uma duração abstrata, que se divide – agora
sim – em “partes” discretas, que são seus momentos individualizados e
homologados segundo certa medida referencial. Por isso, o tempo abstrato
considerado como medida corresponde à sucessão descontínua dos
segmentos identificados por Hegel em nosso exemplo.
Cabe, então, fazermos uma última pergunta: esse tempo abstrato é
o único que a filosofia de Espinosa permite pensar? O realismo da duração
(que nos conduz a restituir à perspectiva espinosana o movimento e a
“inquietação” que sua leitura em termos de imobilidade eleata expropriou-
lhe) implicaria prescindir de toda temporalidade como mera ilusão vazia?
Certamente, não.
O tempo, diz Espinosa, é um modo de imaginar, associado à
forma em que são percebidos o movimento e o repouso das coisas1 (seus
ritmos) por um ser que tem consciência dos estados que o constituem. O
tempo das partes, por isso, deve ser pensado incorporando a perspectiva
imaginária necessariamente associada a uma determinação finita, quando
esta é caracterizada, por exemplo, à maneira do verme habitante do sangue
da Carta 32 a Oldenburg. Esse vermezinho, “dotado de uma vista capaz
de discernir as partículas do sangue, da linfa etc., e dotado de razão para

126
Mariana de Gainza

observar como cada partícula, frente ao choque com outra, a repele ou


lhe comunica uma parte de seu movimento” é um ser apto para imaginar
o tempo. Assim, podemos supor que suas percepções se estabilizam e
certos hábitos se constituem graças à identificação da aparição sucessiva
e regular, em seu horizonte de visibilidade, de três partículas: na hora da
aparição da partícula A, seguirá a “hora” da partícula B e, logo, a de C;
seqüência que determinará que o momento da aparição de B implique
a associação de A com a imagem de um tempo passado, e a expectativa
da aparição de C num tempo posterior. Esta organização imaginária da
duração (estabilizada de forma mais ou menos arbitrária em virtude da
instituição de descontinuidades seqüencialmente dispostas) é, finalmente,
estritamente necessária para a vida dos homens, esses seres particulares
cuja essência se chama “desejo” e que, como diz Espinosa, vivem em cada
parte deste planeta como o verme no sangue.
Podemos agora, como conclusão, precisar melhor o sentido desta
polêmica mantida com a interpretação hegeliana. Primeiro, o deslocamento
do âmbito de incumbência do exemplo geométrico do “todo” para as
“partes”, permitiu-nos ver que com ele não se pretendia ilustrar a presença
simultânea e acabada de uma realidade infinita, senão, de maneira muito
diferente, ilustrar o movimento e as variações inerentes a uma realidade
limitada. A duração que explica uma existência finita deve conceber-se,
então, não como presença simultânea, mas sim como articulação – noção
habilitada pela ênfase no ser diferencial dos componentes – de presenças
e ausências (pois a atualidade de um estado existencial implica a ausência
de outros que, entretanto, pertencem à essência ou definição da coisa). Do
mesmo modo, contra a noção de uma totalização acabada, a consideração
de um limite interno, também entendido como relação, nos afasta da
tentação de supor um dinamismo circunscrito no interior de fronteiras
fixas, inamovíveis: o limite é dinâmico e não separa, mas conecta um

127
Cadernos Espinosanos XXI

interior definido e seu exterior. Logo, a incorporação da dimensão concreta


do tempo, da mão do vermezinho da Carta 32, permitiu-nos indicar
que tampouco é lícito privilegiar a instância do presente, pois passado,
presente e futuro se ligam, tecendo a consistência imaginária da existência
comum.
Por fim, é preciso dizer: se o realismo da duração deve conceber-
se em contraponto com um realismo do tempo (apoiado na constatação
da existência efetiva de uma experiência imaginária real dessa duração
como tempo), não tem que perder-se de vista, entretanto, a ordem das
causas. É a duração a que explica o tempo, e não à inversa2. Por aí deve
passar a reversão crítica que uma concepção espinosana da temporalidade,
sustentada numa abordagem ontológica, há de permitir-nos realizar da
totalização hegeliana do tempo.

Referências bibliográficas:

1. HEGEL, G.W.F. : Lecciones sobre la historia de la filosofía, México, Fondo de


Cultura Económica, 1979.
2. ESPINOSA, B. : Ética Demonstrada em Ordem Geométrica, tradução em andamento
pelo Grupo de Estudos Espinosanos, USP, São Paulo.
3. ESPINOSA, B. : Correspondência, col. Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural,
1979.

The time of the parts. Temporality and perspective in Spinoza

Abstract: Spinozism has been frequently associated with the image of the circle, as
an allusive metaphor of an atemporal being and an eternal knowledge. Concretely,
Hegel used this association to celebrate Spinoza’s conception of infinity in act; and
he interpreted the geometric illustration of Letter 12 in the terms of that connection
between true infinity and circularity. In the present work, we question that reading,

128
Mariana de Gainza

and we use Spinoza’s example of the non-concentric circles to thematize his special
conception of determination and limit. Through the ontological comprehension of
finite things as singular durations, it is possible to understand in what sense “time” is,
for Spinoza, an imaginary reality which has its own effectiveness.
Keywords: positive finite – determination – limit – duration – time

NOTAS:

1. “Ninguém duvida que imaginemos também o tempo a partir do fato de imaginarmos\


que os corpos se movem uns mais lentamente que outros, ou mais rapidamente, ou
com igual rapidez.” (Espinosa 2, E II, P 44, esc.).
2. Enquanto no exemplo dos círculos a possibilidade de identificar os segmentos
descontínuos dependia da existência daquele espaço como um espaço definido de
certa maneira, no caso do vermezinho a existência de certos encontros freqüentes
explica que uma ordenação temporária surja como efeito deles, dando consistência
imaginária a uma experiência espaço-temporal.

129
HEIDEGGER E LEIBNIZ: A ABERTURA DO CONCEITO DE
MÔNADA

Cristiano Bonneau*

Resumo: Este texto trata da reflexão heideggeriana sobre o conceito de mônada em


Leibniz e suas determinações. Os apontamentos de Heidegger sobre o ser a partir do
pensamento leibniziano promovem uma abertura fundamental da mônada, trazendo
entre outras conseqüências, o perspectivismo e a idéia do ente enquanto pulsão. A
limitação ontológica da mônada e sua capacidade de movimentar-se a partir de si
mesma resultam em uma noção de representação e delineiam os contornos do ente.
Esta discussão intenta demonstrar as possibilidades de compreensão do conceito de
mônada partindo das reflexões de Heidegger sobre A determinação do Ser do Ente
segundo Leibniz.
Palavras-chave: Heidegger. Leibniz. Mônada.

A mônada leibniziana aparece numa reflexão de Heidegger de 1928,


onde ele se propõe a discutir na filosofia de Leibniz, o tema referente ao ser.
A questão cara e essencial da metafísica surge no texto heideggeriano como
um diálogo com o filósofo alemão do século dezessete, colocando como
escopo de investigação geral a Mônada. Mas, por que Heidegger parte da
Mônada para discutir o tema mais central, difícil e denso da metafísica?
Qual é o propósito de invocar a monadologia para buscar novas luzes
sobre a questão que, de tão ampla e geral, traz para si todas as dificuldades
de escolher um método que ao mesmo tempo esclareça e não deforme o
objeto de análise, considerando que “(...) nós não nos relacionamos apenas
com o ente, somos ao mesmo tempo, nós mesmos ente.” (Heidegger 1,
p.221). O “Ser” é o conceito “mais universal” (Idem, p.28), é indefinível
(Idem, p.29), e ao mesmo tempo, é o conceito evidente por si mesmo (Idem

* Mestre em Filosofia – UFPB-PB e Professor Assistente de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.
Este texto teve sua apresentação na Jornada “Recepção pela contemporaneidade do pensamento do século
XVII”, em 26 e 27 de maio de 2009, na USP, promovido pelo Grupo de Estudos Espinosanos.

130
Cristiano Bonneau

ibidem). Nas primeiras páginas de Ser e Tempo o problema sobre a questão


e o sentido do ser aparecem, bem como os desafios de angariar um método
capaz de pelo menos, apreender a própria questão.
Estas dificuldades de análise, apreensão e compreensão dos
fenômenos e seus fundamentos, desvelam-se no paradoxo em que surge o
ser que: aparecendo se esconde; esclarecendo se obscurece; e compreendido
se torna indeterminado. “Nós nos relacionamos com o ente, a ele nos
reduzimos, nele nos perdemos, por ele somos dominados e possuídos.”
(Heidegger 1, p.221). Neste ambiente de demonstração de um problema da
filosofia, Heidegger mostra como Leibniz pensava a questão do ser, quais
os limites dos entes descritos e a forma de organização da compreensão
leibniziana sobre o problema.
Heidegger esclarece: “O que Leibniz entende por mônada engloba
como que em si todos os significados gregos fundamentais: a essência da
substância consiste no fato de que ela é mônada”. (Heidegger 1, p.217).
Este argumento revela que uma pesquisa pelo ente na sua substancialidade
e unidade ontológica tem em Leibniz toda a herança da reflexão filosófica
grega sobre a questão da essência e natureza das coisas. Assim Heidegger
comenta que “(...) mônada é o elemento unificador simplesmente
originário que previamente individualiza e separa.” (Heidegger 1, p.217).
Ou seja, corresponde ao cerne que deve ser investigado, tendo em vista
que o desenvolvimento do pensamento leibniziano tem em grande medida
seu substrato neste termo. Leibniz fundamenta desta forma, o conceito de
Mônada para credenciá-lo como capaz de demonstrar aquilo que o ser é,
garantir sua unicidade (princípio de identidade dos indiscerníveis) e seu
lugar no cosmos, tendo em vista a identidade e a diferença dos pontos
substanciais que compõem o mundo. A mônada “(...) é apenas uma
substância simples que entra nos compostos. Simples, quer dizer: sem
partes.” (Leibniz 3, §2).

131
Cadernos Espinosanos XXI

Esta atribuição à Mônada está na sua própria capacidade de


apresentar-se como alternativa a uma explicação puramente atômica dos
elementos que compõem o mundo, declarando os entes deste como pontos
metafísicos. Neste aspecto, o ser assume perspectivas para além de sua
materialidade composta e desdobra-se em especulações possíveis por esta
nova percepção dos entes. O que compõe o ser de Leibniz- a Mônada- e
o fundamenta na existência, não se resume a um modo empírico, mas vai
para além da pura condição apresentada pelas limitações da matéria e da
percepção. A Mônada aparece investida de uma riqueza conceitual digna
de ser investigada e lançando novas luzes para a compreensão dos seres.
Podemos pensar neste elemento componente da mônada que pode ser
explicado pela física, mas não se encerra nela; tem condições de ser situado
pela matemática, que também não basta para determinar a essência dos
seres. O elemento aqui determinado é a noção de força. Esta aparece como
fator exponencial, conjuntivo e ordenador dos seres que se movem num
movimento de dentro para fora, pela natureza hermética de sua natureza.
Este limite interno de cada ser que age à partir de sua condição substancial
é o que traça o seu movimento e atualiza constantemente a sua essência.
”Do que dissemos conclui-se que as mudanças naturais das
Mônadas procedem de um princípio interno, pois em seu íntimo não
poderá influir causa alguma externa.” (Leibniz 3, §11). Heidegger
acentua a noção de força no interior da Mônada e relata a transição
fundamental da substância que antes se manifestava como potentia activa
e agora fundamenta-se como vis activa. A diferença entre estes dois
termos aponta para a própria perspectiva leibniziana da Mônada- esta não
é o ser em potência, mas corresponde na única possibilidade do ser. O
ser é, na substancialidade de sua substância possibilidade. Não encerra-se
somente como a possibilidade de ser, mas, sobretudo como o próprio ser da
possibilidade. As conseqüências desta mudança apontam para a capacidade

132
Cristiano Bonneau

da Mônada leibniziana em conformar-se como um autômato, não apenas


material, mas espiritual.

“Poder-se-iam denominar enteléquias todas as substâncias


simples ou Mônadas criadas, pois contêm em si uma
certa perfeição (ékhousi tò entelés), e têm uma suficiência
(autárqueia) a torná-las fontes de suas ações internas e, por
assim dizer, Autômatos incorpóreos.” (Leibniz 3, §18)

A este movimento interno do ser que garante suas características


fundamentais, o assegurando ontologicamente e existencialmente,
Heidegger aponta como pulsão. A definição desta noção enquanto força
ergue-se naquilo “que leva a ação à si mesmo, a partir de si mesmo e isto,
na verdade, não ocasionalmente, mas por natureza.” (Heidegger 1, p.219).
A força deste termo apontado por Heidegger reflete-se no termo alemão
Drang que corresponde a impulso, ímpeto, desejo, ânsia, necessidade,
tendência. Enuncia-se pulsão enquanto capacidade interna e natural
do ser, que existindo se manifesta enquanto ele mesmo, a partir de suas
determinações internas na afirmação de sua identidade e sua existência. O
fechamento da Mônada e sua essência em um puro possível revelam uma
abertura no ser, não para o mundo, mas para ele mesmo. Daí podemos
inferir, que, estando a Mônada no mundo, quando ela afirma a si mesma,
no mesmo instante afirma a própria totalidade, ou seja, o mundo.
Ela se torna a única condição de possibilidade, mesmo em seu
hermetismo fundamental, do mundo se abrir. Eis a abertura do conceito de
Mônada. A reflexão de Heidegger parte para a questão sobre o fundamento
da Mônada enquanto essência mesma do ente e da substância que o compõe.
Esta questão lança-se em torna do elemento unificador da substância,
capaz de manter sua capacidade existencial de fazer-se parte da totalidade,
e compor as essências individuais dos entes? Para além da pulsão,

133
Cadernos Espinosanos XXI

Heidegger esclarece que o elemento MOI, o ego ou o eu é aquele que tem


a potencialidade de promover esta síntese, que por sua vez corresponde à
forma como o Dasein lança-se para mundo enquanto transcendência do
ser-aí ek-stático.
Leibniz não tematiza em profundidade a natureza unificadora
da Mônada. A partir de suas reflexões sobre o tema, é possível haurir
das proposições do texto leibniziano, determinadas conseqüências. A
percepção dos entes do mundo torna-se um movimento possível pela
capacidade da Mônada em perceber a unidade nos compostos, que por
sua vez, é formado pela própria unidade. A mudança de relação entre as
unidades é acompanhada pela capacidade apetitiva da alma que marca as
mudanças de estados nas relações entre os compostos, percebendo sua
alteração. A morte, por exemplo, é a manifestação de outros arranjos entre
as composições de unidades que formavam os indivíduos, tendo em vista
que, o corpo, não estando mais em seu estado individual de corpo, torna-se
parte em outros compostos que continuam expressando-se em sua natureza
interna própria. O que não permanece nos compostos sucumbe e deixa de
existir. A imersão na universalidade aparece nesta capacidade contínua das
Mônadas em se tornarem entes, e arrumarem-se entre si, sempre em relação
a uma totalidade absoluta e numa ordem capaz de suportar o existir.
A questão da origem das Mônadas é atribuída a Deus, porém,
Leibniz não justifica a Mônada, mas, tão somente a descreve, como que,
explicando sua composição, seus atributos e sua forma de manifestar-se,
pela sua essência, na existência. Se foi um plano divino o ato da criação,
certamente para Leibniz, fora o melhor plano possível. Assim, é na finitude
da Mônada em que esta será fundamentada. Nem sua origem, nem seu
destino pós existentia, mas o que lhe compõe enquanto ser no mundo e
atrelado a capacidade de preencher as condições de se manter como um
ente possível e existente

134
Cristiano Bonneau

“Se antes pusemos de lado a conexão com a criação,


isto ocorreu porque no caso se trata apenas como uma
explicação dogmática. O sentido metafísico, entretanto, que
na caracterização da mônada como criada é expresso, é a
finitude.” (Heidegger 1, p.227).

Neste sentido, Heidegger demarca na filosofia leibniziana o terreno


de atuação das Mônadas, como a própria existência dos entes. A especulação
permanece sobre aquilo que a Mônada enquanto ‘pulsão’ pode, exprimindo-
se no espaço de fluxo e refluxo no qual a liberdade e sobretudo a noção
de possibilidade podem ser pensadas. A Mônada tem uma expressividade
universal, porém, presa às suas condições particulares de atuação. Essa
condicionalidade é o reflexo da essência do ser que enquanto ente, torna-se
capaz de refletir o mundo a partir de si mesmo. Esta expressão é a única
possível, dentro dos limites naturais da condição monádica. A Mônada é
o ser que representa de uma forma viva a totalidade, fazendo parte desta,
mas por sua vez, incapaz de hauri-la em sua plenitude.
Somente sua condição finita, limitada e possível lhe dá uma idéia
do todo, que se fragmenta de forma inevitável pela condição ontológica
constituinte dos seres. O fechamento substancial da Mônada, sua
capacidade de expressão do infinito pela sua finitude ontológica e o lançar-
se de maneira viva para o mundo, o colocam em condição de perspectiva
do universo. É o indivíduo que compartilha o mesmo mundo, porém com
impressões capazes de expressarem-se, mas impotentes no tocante a um
compartilhamento efetivo entre as partes. Isto não quer dizer que não haja
uma harmonia entre os arranjos. Os indivíduos só podem se dar enquanto
tal, mediante a sua capacidade plena de organizar-se em suas partes. Esta
ordem respeitada acarreta inevitavelmente na existência.
Cada parte experimenta o mundo à sua maneira, permanecendo

135
Cadernos Espinosanos XXI

isolada e solitária nesta ação inevitável enquanto capazes de se manterem


viventes no mundo. A unidade não é senão, uma capacidade plena de
apreender algum aspecto da totalidade de forma ordenada, por vezes distinta
e não confusa. Este aspecto da unidade e da ordem, Leibniz compreende
como enteléquias. A apercepção desta capacidade das enteléquias ele
nomeia como razão. O cerne que compõem o indivíduo e o torna apto
para a existência lhe dá acesso ao cosmos somente enquanto possibilidade
e perspectiva. Quanto mais abrangente for uma visão de mundo, maior
será o número de perspectivas que esta teve a capacidade de adotar. A
totalidade só pode ser representada nestas condições pela idéia de Deus,
que nada mais é, do que a soma de todas as perspectivas possíveis em
todos os tempos. A finitude da Mônada consiste em que ela, não podendo
ser Deus, torna-se somente partícula do mundo. O cosmos nada mais é
do que a pura expressão vivente e pulsante de suas partes. Desta forma,
Heidegger esclarece que “(...) na medida em que unifica- isto é sua
essência-, individua-se a Mônada. (...) unifica ela somente de acordo com
sua possibilidade o universo que de antemão é representado.” (Heidegger
1, p.227).
Heidegger salienta que para além da questão matemática, em
resposta a quantidade de vida e pontos de vista, o aspecto da unicidade
da pulsão e da expressividade da totalidade, desvelam as características
ontológicas dos entes e suas qualidades individuais. A idéia de uma
experiência única e da não repetição do tempo fundamenta uma forma
qualitativa de compreender a Mônada. Se o ser não se repete, ele é a
única possibilidade de, em sua existência, perceber, sentir, manifestar
uma existência única, autêntica e inviolável. Sua coerência reflete seu
ser e sua manifestação particular, suas qualidades. A alma significa uma
possibilidade mesma do universo e um ponto de vista qualitativo neste.
Heidegger esclarece esta questão quando define a alma não apenas como

136
Cristiano Bonneau

um atributo de determinadas mônadas, mas uma modificação destas


mesmas, demonstrando que o arranjo entre os agregados podem acarretar
desdobramentos imprevisíveis, porém possíveis. A alma representa um
ponto de vista não apenas pela sua finitude, mas pela sua capacidade
de expressividade enquanto alma. É o reflexo da totalidade e da vida,
representante do ser.

“Re-presentar não deve ser tomado aqui como faculdade


particular da alma, mas sob o ponto de vista ontológico
estrutural. Em conseqüência disso, a mônada não é alma
em sua essência metafísica, mas dá-se o contrário: alma é
uma possível modificação da Mônada. A pulsão não é um
acontecer que ocasionalmente também representa; ela é por
natureza representadora. A estrutura do próprio acontecer
pulsivo se caracteriza pelo abrir dimensões, é ekstática.”
(Heidegger 1, p.225)

A mônada se apresenta como pura possibilidade, capaz de dar conta


da infinidade de arranjos que compõem os indivíduos no mundo. Quando
o ser da mônada se agrega e coloca-se em estado de composição, o ente
aparece e mantém-se fundamentado por este pequeno universo que acaba
de constituí-lo. A criação dos agregados se dá na mesma medida de sua
existência e de sua expressividade do universal. Sua perspectiva inexorável
e imanente apontam para seus limites, mas também suas possibilidades.
A lógica da existência obedece a ordem de composição dos agregados
e aquilo que, enquanto existentes tiveram a possibilidade de manifestar.
Leibniz declara que: “(...) como todo o estado presente de uma substância
simples é uma continuação natural do seu estado passado, assim também
o presente está prenhe do futuro.” (Leibniz 3, §22). Desta forma, o filósofo
alemão do século XVII tem na Monadologia uma ontologia fundamental
para explicitar uma razão do mundo, uma fundamentação dos seres que o

137
Cadernos Espinosanos XXI

compõem e a defesa de uma identidade que expressa-se de forma única,


tendo em vista a infinitude de possibilidades que tornam-se efetivas na
existência dos seres. O ser é, enquanto um possível que viera e existir, a
própria coexistência com a totalidade de todos os vir-a-ser que poderiam
compô-lo. Reflete ao mesmo tempo, finito e infinito, possibilidade e
impossibilidade, fechamento e abertura.
A noção da mônada enquanto pulsão e possibilidade delimitam
conceitualmente suas atribuições, mas não determina em absoluto as
ações capazes dos seres. Apontam para o interior da mônada, onde surge
um cosmos, que por sua vez torna-se uma perspectiva e incapaz de ser
apreendido em sua plenitude. É assim que a mônada se abre e fecha ao
mesmo tempo, representando o ser em seus desdobramentos ontológicos,
em sua lógica e sua capacidade de exprimir a totalidade. A Mônada significa
um modelo exemplar que dá vazão a um ato descritivo do universo,
mostrando originariamente, a incapacidade de apreendê-lo.

“A Monadologia quer elucidar o ser do ente. Por isso, é


preciso adquirir, seja por que via for, uma idéia exemplar de
ser. Ela foi encontrada ali, onde algo semelhante ao ser se
manifesta imediatamente ao que questiona filosoficamente.”
(Heidegger 1, p.221).

138
Cristiano Bonneau

Referências bibliográficas:

1. HEIDEGGER, Martin. A determinação do ser do ente segundo Leibniz. Coleção


“Os Pensadores”, Tradução e Notas de Ernildo Stein. São Paulo, Editora
Abril cultural, 1979.pp.215-229.
2. ____________, Ser e Tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante, 3a Ed., Editora
Vozes, Petrópolis, 1997.p .325.
3. LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. A Monadologia. Tradução de Luís João Baraúna,
Editora Nova Cultural Ltda, Coleção Os pensadores, 2000. p. 61-73.

Heidegger and Leibniz- the openness of the concept of monad

Abstract: This paper handles the heideggerian reflection on the concept of monad in
Leibniz and its determinations. The comments that Heidegger does about the being
from the leibnizian thought promotes a fundamental openness of the monad, bringing
with it, among other consequences, the perspectivism and the idea of the beings as
pulsion. The monad’s ontological limitation and its capacity to move from itself result
in a notion of representation and delimitate the beings’s contours. The aim of this
discussion is to demonstrate the possibilities of comprehension of the conception of
monad taking as starting point Heidegger’s reflections in ‘From the last Marburg
lecture course’.
Keywords: Heidegger, Leibniz, Monad

139
O RACIONALISMO CARTESIANO POSTO EM QUESTÃO

Carlos Eduardo Pereira Oliveira*

Resumo: No cartesianismo contemporâneo, devido à retomada da teoria da livre


criação das verdades eternas, alguns intérpretes trazem ao debate internacional
um interessante viés interpretativo do pensamento de Descartes. Segundo eles, ao
apresentar a indiferença da vontade como atributo de Deus, Descartes instaura uma
concepção totalmente perigosa, da qual derivam a incompatibilidade entre a indiferença
divina e o sistema cartesiano, deflagrando, enfim, um irracionalismo radical.
Palavras-chave: Descartes. Liberdade. Indiferença Divina. Racionalismo.
Irracionalismo.

Considerações iniciais

As Cartas de Descartes, as Quintas e Sextas Respostas e as


Conversações com Burman tornaram pública uma polêmica tese acerca da
vontade divina. Nessas obras, é atribuído à vontade de Deus o atributo da
indiferença, considerado, contudo, pela Quarta Meditação, uma imperfeição
da vontade humana. Nada mais instigante e intrigante do que essa posição,
que, após alguns séculos de abandono, é novamente trazida para o centro
das discussões no cartesianismo.
Como outrora, à época de Descartes, também agora a tese em
questão, por envolver uma radicalidade profunda, é acusada de trazer
risco ao sistema racionalista por ele implantado. Estudiosos observam

* Doutorando do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo.


Texto inicialmente apresentado nas Jornadas Recepção pela Contemporaneidade do Pensamento do
Século XVII, promovidas pelo Grupo de Estudos Espinosanos.

140
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

que essa tese poderia tornar problemático este sistema, o qual, tal como
nos foi legado pela tradição moderna, parece incompatível com um Deus
indiferente.
Antes de analisarmos as questões referentes à indiferença, julgo
importante considerarmos inicialmente o seguinte:
a) O termo racionalismo alude a diferentes posições filosóficas.
Significando, em primeiro lugar, o primado da razão em relação ao
sentimento e à vontade, recebe o nome de intelectualismo, pressupondo
uma hierarquia de valores entre as faculdades psíquicas. Em segundo
lugar, racionalismo pode ser entendido como uma posição segundo a
qual somente a razão é capaz de propiciar o conhecimento adequado e
verdadeiro do real. Por último, pode significar uma posição que considera
a razão a essência do real.
b) Ao racionalismo de Descartes é fundamentalmente necessária
uma garantia transcendente, a fim de que não se instaure no interior do seu
sistema a dissociação entre a racionalidade humana e a estrutura última
da realidade. Todavia, se de um lado Deus é imprescindível à sustentação
deste racionalismo, de outro a concepção segundo a qual à ideia de Deus
convém o atributo da indiferença pode transformar Descartes num autor
irracionalista, destruindo em definitivo o sistema por ele construído. Isto
porque, como veremos adiante, a indiferença expressa que a ação divina
não é motivada por razões de verdade nem de finalidade à maneira da
ação humana, dando margem a uma cisão entre aquilo que a razão acredita
corresponder à realidade e aquilo que é efetivamente a realidade. Ora, se
de um lado é impossível retirar Deus da discussão, posto sua existência
ser necessária ao sistema como um todo, por outro, considerando que
o atributo da indiferença constitui a natureza ou essência divina, o
racionalismo claudica. Dessa maneira, assim como somos impedidos de
admitir Deus sem a indiferença para preservar o racionalismo, igualmente

141
Cadernos Espinosanos XXI

o somos de sustentar o racionalismo fundamentado na existência de um


Deus absolutamente indiferente, a menos que seja possível compatibilizar
a indiferença divina com as exigências de um sistema racionalista.

A indiferença divina

A noção de indiferença aparece na Quarta Meditação quando


da investigação da vontade humana. A indiferença humana possui dois
sentidos: negativamente, compreende um defeito no entendimento, sendo o
mais baixo grau de liberdade; positivamente, significa o poder de escolher
entre contrários; poder fazer ou não fazer algo.
As Cartas de 1630-1649, por sua vez, precisamente aquelas onde
é apresentada a teoria da livre criação das verdades eternas, defendem a
vontade divina como absolutamente indiferente e, conforme atestam as
Sextas Respostas, “uma inteira indiferença em Deus é uma prova muito
grande de sua onipotência” (Descartes 1, AT IX, p. 233). Isso nos induz
a supor que se trata da mesma indiferença aplicável à vontade divina e à
humana ou ainda, que devido ao aspecto negativo, que pode envolver a
indiferença da vontade humana, Descartes consideraria apenas o aspecto
positivo, ou seja, o livre-arbítrio, aplicando-o a Deus e ao homem.
Entretanto, uma análise mais acurada afasta tal suposição. Com
efeito, o aspecto negativo da indiferença é facilmente excluído da vontade
divina, por se tratar de um defeito ou imperfeição da vontade. Considerando
o aspecto positivo da indiferença da vontade humana, a indiferença divina
suprime definitivamente o livre-arbítrio.
Com efeito, Descartes, ao expor a simplicidade divina, afirma que
esta exige a absoluta unidade entre as faculdades, isto é, que em Deus

142
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

entendimento, vontade e ação são uma e a mesma coisa. Assim sendo,


não há qualquer possibilidade de distinguir Nele as faculdades nem de
se manter qualquer precedência do intelecto à vontade1. É assim que a
indiferença divina, suprimindo o livre-arbítrio do interior da vontade
divina, descarta qualquer possibilidade de identificação desta à indiferença
da vontade humana2.
Ademais, a indiferença é requerida como prova cabal da onipotência
divina:

“Para a dificuldade de conceber como foi livre e indiferente


a Deus fazer com que não fosse verdade que os três ângulos
de um triângulo fossem iguais a dois retos, ou geralmente
que os contraditórios não podem ser conjuntamente,
podemos facilmente suprimi-la considerando que a potência
divina não pode ter nenhum limite” (Descartes 1, AT IV, pp.
118-119).

De acordo com a passagem, a verdadeira noção de onipotência


exige a indiferença. A ação divina totalmente arbitrária, e livre, é também
onipotente, isto é, expressa o poder absoluto de estabelecer como verdade
o que para o intelecto finito é contraditório ou impossível. A razão disso
encontra-se nas Sextas Respostas, completando, finalmente, o significado
da indiferença divina:

“... não há ordem, nem lei, nem razão de bondade e de


verdade que não dependa dele; de outra maneira, [...] ele
não teria sido totalmente indiferente a criar as coisas que ele
criou” (Descartes 1, AT IX, p. 235)3.

A indiferença requer o entendimento de que a ação divina, em


considerando corretamente a ideia de Deus, por nada pode ser constrangida,

143
Cadernos Espinosanos XXI

precedida ou determinada. Trata-se de uma vontade totalmente arbitrária que


não age orientada por princípios lógicos, ou mais precisamente, em razão
de qualquer inteligibilidade, e tampouco em razão de qualquer finalidade.
Essa vontade não é motivada por qualquer consideração previamente
estabelecida pelo intelecto divino ou por algo externo a Deus; repudia toda
espécie de exigência, interna ou externa (do seu intelecto ou da essência
da coisa, respectivamente), ou toda espécie de ordem metafísica, lógica ou
moral que se imponha à ação criadora:

“Por exemplo, não é por ter visto que era melhor que o
mundo fosse criado no tempo que desde a eternidade, que
ele quis criá-lo no tempo; e ele não quis que os três ângulos
de um triângulo fossem iguais a dois retos, porque ele
conheceu que isto não se podia fazer de outra maneira, etc.”
(Descartes 1, AT IX, p. 233).

É a identidade entre intelecto e vontade em Deus que conduz


Descartes a assumir a liberdade divina como absolutamente indiferente
(Cf. H. Frankfurt, 5, p. 41). O que nos leva, consequentemente, a perguntar
pelo impacto da posição cartesiana, segundo a qual Deus não age motivado
por consideração prévia de qualquer ordem: como fica a veracidade divina,
se não há razão de verdade? Pode algo ser verdadeiro para Deus sem sê-lo
para a coisa pensante? E a situação da racionalidade humana e do próprio
racionalismo ante um Deus cujo poder, liberdade e ação são absolutamente
independentes das leis às quais a razão humana sempre esteve segura de
que toda a realidade obedece e está adequada?
Tais questionamentos deflagrarão uma interpretação do pensamento
cartesiano essencialmente irracionalista e, consequentemente, um novo
matiz interpretativo da necessidade, que explicita de modo incisivo o
enredamento da razão – para usar uma terminologia cara à modernidade.

144
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

Possibilismo cartesiano e enredamento da razão

O possibilismo é uma interpretação da concepção de Descartes


acerca da liberdade divina como absoluta indiferença.
Nas Cartas, todos os exemplos dados como provas da indiferença
divina são mostrados em desacordo com os princípios lógicos da razão,
isto é, tornando-se possível e verdadeiro àquilo que a razão repudia
como absurdo e falso. A indiferença divina se mostra totalmente alheia
a considerações valorativas (em razão do bem) ou racionais (em razão
da verdade) e inteiramente arbitrária. Se Deus poderia tornar possível o
impossível, por exemplo, a soma de dois e dois diferente de quatro, uma
circunferência de raios desiguais, um mundo onde o contraditório fosse
a regra, porque sua liberdade é indiferente; e se Ele não age em razão
de qualquer inteligibilidade nem de finalidade, então tudo leva a crer
que a essência do real, ao contrário do que apregoa o racionalismo, não é
racional, isto é, não existe nenhuma exigência de inteligibilidade nem de
necessidade para que o mundo seja regulado por leis necessárias inerentes
ao entendimento humano. Configura-se, portanto, um universo onde tudo
é possível ou onde nada é necessário.
Atrelada à onipotência, a indiferença da liberdade divina é
concebida por Descartes como o poder de instituir como verdade o que para
nós é absurdo. Isso significa que as consideradas realidades necessárias
poderiam ter sido falsas e que sua necessidade é contingente. Depois, a
carta de 2 de maio de 1644 afirma que nosso espírito finito e criado, por
natureza, só pode conceber as coisas possíveis, isto é, tudo o que esteja de
acordo com o princípio de inteligibilidade, não sendo capaz de conceber
como verdadeiras as coisas que para ele são impossíveis (Descartes 1, AT
IV, p. 118). Partindo desta passagem, pode-se argumentar que se algo era
possível a Deus, e sendo a vontade divina indiferente, nada nos garante que

145
Cadernos Espinosanos XXI

ele não o tenha feito:

“Digo somente que ele me deu um espírito de tal natureza


que eu não poderia conceber uma montanha sem vale, ou que
o agregado de um e dois não some três, etc. E digo somente
que tais coisas implicam contradição em minha concepção”
(Descartes 1, AT V, p. 224).

Já neste trecho é afirmado que a única razão para nos ser


impossível conceber a verdade das proposições contraditórias se deve
a uma característica contingente da razão humana, pois somente ela
está inserida no âmbito do logicamente necessário (Cf. Frankfurt 5, p.
44). Certamente, se fôssemos dotados por Deus de outro entendimento,
poderíamos compreender a verdade do que consideramos contraditório.
Explica Frankfurt que “Deus poderia nos ter dado mentes diferentes. Se
assim o fizesse, algumas proposições inconcebíveis seriam concebíveis e
outras concebíveis inconcebíveis” (H. Frankfurt, 5, p. 45).
Uma vez que é nossa mente que não pode conceber a verdade
das proposições contraditórias, somos naturalmente levados a afirmar
que todos os princípios que para nós regem o real são exclusivamente
válidos para o entendimento humano, não gozando de validade para as
coisas exteriores a ele. Desta maneira, não podemos presumir que o que
a mente humana determina como logicamente necessário coincida com as
condições últimas da realidade, ou seja, que o que é verdade para o intelecto
finito corresponda à natureza das coisas. Com efeito, a necessidade que
a razão descobre pertence somente à sua natureza contingente, assegura
Frankfurt.
Desponta, portanto, um novo matiz cartesiano acerca da
necessidade, o qual lhe confere um valor puramente epistêmico, abrindo,
por conseguinte, um possível abismo entre os juízos racionais, ou seja,

146
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

aqueles que obedecem à necessidade de não-contradição, e a realidade


extramental. Disso emerge a possibilidade de um radical desacordo entre
o conhecimento necessário e o conhecimento verdadeiro, de forma que a
razão deve conformar-se em saber que o que ela conhece segue apenas as leis
que lhe são inerentes, não podendo ter certeza de que o seu conhecimento
corresponda à realidade.
As análises de Frankfurt veem nitidamente em Descartes se oporem
racionalidade e verdade absoluta. Isso pode ser confirmado ainda levando-
se em conta as ideias claras e distintas. Com efeito, a carta a Regius, de
24 de maio de 1640, faz uma ressalva quanto ao poder que a percepção
clara e distinta exerce sobre a vontade: “nossa mente é de tal natureza que
não pode negar o assentimento ao que entende claramente” (Descartes 1,
AT III, p. 64). A vontade é determinada pela percepção clara e distinta, de
modo que o sujeito fica impossibilitado de recusar o assentimento. Dessa
maneira, Descartes estaria mostrando que a necessidade que julgamos
encontrar nas coisas se deve à experiência de não se poder recusar o
assentimento a estas ideias. Devido a essa experiência, construímos teorias
onde o necessário, o impossível, o concebível e o inconcebível para nós
são tomados como verdades acerca da realidade em si. O mundo pode
ser irracional, diz Frankfurt, mas nosso intelecto é incapaz de concebê-lo
assim (Cf. Frankfurt 5, p. 54).
Sob essa perspectiva, a obra de Descartes, ao contrário do que
sempre se pensou, estabelece as necessidades e os limites da própria razão;
estabelece aquilo de que para nós é impossível duvidar. Para citar um
exemplo: se recorrermos, nas Meditações, à demonstração da veracidade
divina, que refuta a hipótese do Deus enganador, notaremos que se trata
tão-somente de uma demonstração racional, isto é, coerente com os
princípios inatos à razão humana, não possuindo qualquer estatuto superior
de verdade absoluta. Explica Frankfurt:

147
Cadernos Espinosanos XXI

“A prova de que Deus não é enganador, enquanto


demonstração racional, estabelece apenas que sua conclusão
é requerida pelos princípios da razão humana, demonstra que
um Deus enganador é logicamente incoerente” (Frankfurt 5,
p. 52).

É assim que as Meditações exploram os limites e as necessidades da


própria razão, servindo apenas para determinar o que é racional admitirmos,
isto é, o que seria irracional pôr em dúvida, não o que é verdade para Deus
ou para os anjos. Não parece muito estranho que a razão fique satisfeita
ante o fato de não poder conhecer senão a si própria?
Sob essa ótica, portanto, a tese da indiferença divina acarreta
profundos problemas ao racionalismo cartesiano. A razão já não pode
ter segurança nem certeza quanto à validade e legitimidade do seu
conhecimento e do acordo necessário entre ela e a realidade. O Deus alheio
à razão de verdade, de bondade e de finalidade põe sob suspeita a certeza
e o reconhecimento racional do próprio Deus como fundamento último da
eficácia da razão e, em última análise, a veracidade divina.
Se as coisas ocorrem realmente desse modo, então o racionalismo
sob o nome de intelectualismo, enquanto o primado da razão em relação
ao sentimento e à vontade, ou o racionalismo entendido como uma posição
segundo a qual somente a razão é capaz de propiciar o conhecimento
adequado e verdadeiro do real ou como uma posição que considera a
razão a essência do real parecem completamente destruídos pela tese da
indiferença divina. Autores há, todavia, que, levando em consideração
esta mesma tese, esforçam-se por demonstrar a compatibilidade entre a
indiferença divina e o sistema racionalista cartesiano4.

148
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

Indiferença divina e racionalismo cartesiano: o desafio da compatibilidade

De acordo com nossas investigações, a instauração da


compatibilidade entre indiferença divina e racionalismo cartesiano passa
necessariamente pela análise de alguns elementos do pensamento de
Descartes, que não foram devidamente notados, parece, pelos adversários
da interpretação irracionalista. Sendo assim, o desafio da compatibilidade
poderá ser melhor enfrentado mediante cuidadosa observação do conceito
de criação, desenvolvido na teoria da criação das verdades eternas,
na qual, aliás, Descartes elabora a indiferença divina; da exigência
inerente ao conceito de onipotência divina e, finalmente, do conceito de
incompreensibilidade divina.

A noção de criação em Descartes

Todas as análises filosóficas do surgimento e do desenvolvimento


do conceito de criação na tradição filosófica e teológica mostram seu
aparecimento no seio do cristianismo. As vertentes mais ortodoxas de
ambas as tradições sempre conceberam a criação como produção dos
seres finitos, criados mediante uma causalidade eficiente, ou seja, por
ação da vontade de Deus, que escolhe o que será criado. Dessa forma,
toda a criação é contingente: poderá ou não existir, ou ainda existe, mas
deixará de existir. Nessa concepção reside um pressuposto, a saber, que a
realidade decorrente da ação da vontade divina é marcada radicalmente
pela contingência ou finitude. As realidades eternas, por sua vez, eram
desvinculadas da ação da vontade divina, sendo, portanto, consideradas
incriadas. Havia uma relação necessária entre vontade divina, criação e

149
Cadernos Espinosanos XXI

existência finita. Dessa maneira, a vontade divina só poderia produzir a


realidade contingente.
Como nos anos de 1630-1649 Descartes afirmou a criação das
verdades eternas, ou seja, das realidades imutáveis e necessárias, muitos
cartesianos acreditam que ele entende criação como produção da realidade
finita. Ou pior do que isso, que a única concepção válida é aquela cunhada
pela tradição cristã. Assim, quando, por exemplo, na teoria da livre criação
das verdades eternas é afirmado que elas foram criadas pelo mesmo gênero
de causalidade pelo qual Deus produziu todas as coisas (Descartes 1, AT I,
pp. 151-152), isto é, por meio da causalidade eficiente, alguns intérpretes
do cartesianismo se permitem concluir apressadamente que o conceito
cartesiano de criação envolve necessariamente a contingência ou finitude
das realidades consideradas imutáveis e necessárias. Pois, levando-se
em conta a simplicidade divina, sustentar que as verdades eternas foram
criadas equivale a afirmar que foram produzidas pela vontade divina, a
qual institui necessariamente o contingente, conforme ensinou a tradição
medieval. Admitindo não ser possível outra concepção do conceito de
criação, conclui-se que Descartes reduz as realidades eternas e necessárias
à realidade contingente e finita.
Entretanto, há fortes indícios de que a concepção cartesiana de
criação diverge daquela transmitida pela ortodoxia medieval. Observemos
a seguinte passagem, encontrada nas Quartas Respostas:

“quando se pergunta se alguma coisa pode se dar o ser a


si mesma, quer-se saber apenas se a natureza ou essência
de alguma coisa pode ser tal que não tenha necessidade de
causa eficiente para ser ou existir”(Descartes 1, AT IX, p.
186).

A citação acima aproxima ao mesmo tempo em que distancia

150
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

Descartes dos filósofos medievais cristãos. A proximidade se dá na


concordância em que a criação é uma produção de seres mediante
causalidade eficiente, isto é, por meio da vontade. Eles, porém, se
distanciam ao descreverem o produto dessa causalidade: a maioria dos
medievais afirmava que a vontade divina (causa eficiente) é responsável
pela produção exclusiva das coisas existentes, da criação, ao passo que
para Descartes a mesma causalidade produz tanto as coisas existentes
quanto as realidades eternas e necessárias. A ação criadora em Descartes é
total e universal5.
Segundo a passagem das Quartas Respostas que acabamos de
citar, somente Deus possui uma natureza tal que dispensa uma causa
eficiente anterior para ser ou existir. O critério pelo qual se distingue o
criado e o incriado se encontra justamente na necessidade da causalidade
eficiente para sua produção, ou seja, tudo o que puder dar o ser ou a
existência a si mesmo pode ser considerado incriado, caso contrário é
criatura. Ora, a passagem supracitada coloca-nos ante um grave problema,
pois se afirmarmos que haveria algo cuja natureza pudesse dar a si o seu
próprio ser e sua própria existência, estaremos imediatamente inferindo
a existência de algo outro eterno e independente de Deus. Algo absurdo,
pois nos levaria a tomá-lo como mais perfeito do que o próprio Deus, em
razão da sua independência do ser divino. Descartes, portanto, propõe que
todas as coisas, exceto Deus, necessitam de uma causalidade eficiente para
ser ou existir. Isso nos permite por ora inferir que o conceito cartesiano de
criação envolve tanto as realidades finitas quanto as necessárias e eternas,
mas não que estas permaneçam eternas e necessárias em virtude de lhes
ser aplicado o conceito de criação. A certeza da necessidade e eternidade
dessas realidades produzidas pela ação criadora de Deus provém da análise
do conceito de onipotência divina.

151
Cadernos Espinosanos XXI

A onipotência divina

Quando se trata de analisar o conceito de onipotência em


Descartes, não se acha entre os autores unanimidade. Há quem defenda
que a onipotência significa – devido às teses da simplicidade divina e da
indiferença – o poder de instituir o que é contraditório. Para os partidários do
possibilismo, o raciocínio é o seguinte: se Deus é onipotente e indiferente,
então tudo é contingente. Defendem eles que tendo sido todas as coisas
criadas por meio da vontade divina, cuja onipotência é capaz de tornar
verdadeiro o que repugna à razão, nada mais é necessário. Esses autores
acreditam que o conceito cartesiano de criação é idêntico ao conceito
criado e lapidado pelos medievais.
Por outro lado, os textos cartesianos onde a onipotência divina
adquire altíssima relevância nos garantem que um Deus absolutamente
simples, indiferente e onipotente pode criar as coisas eternas, necessárias ou
imutáveis sem que sua criação envolva qualquer resquício de contingência.
Com efeito, entender que as realidades eternas, necessárias ou imutáveis
dispensam diretamente a vontade divina equivale a compreender que essa
vontade não pode criar tais realidades sem maculá-las com o caráter da
contingência. Criar o imutável é a mais excelente prova da onipotência,
conforme atestam as Quintas Respostas:

“Quanto ao que vós dizeis que ‘vos parece difícil ver


estabelecida alguma coisa de imutável e eterna outra que
Deus’, teríeis razão se se tratasse de uma coisa existente,
ou somente se eu estabelecesse alguma coisa de tal modo
imutável que sua imutabilidade mesma não dependesse de
Deus [...] Mas penso que, porque Deus assim o quis e assim
as dispôs, elas são imutáveis e eternas” (Descartes 1, AT
VII, p. 380).

152
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

A tese da onipotência divina em Descartes representa o fim das


concepções referentes a “realidades incriadas”, porque para ser ou existir
tudo depende de Deus, ut efficiens & totalis causa.
Além desta passagem – que não é, aliás, a única onde Descartes
afirma a necessidade da causalidade eficiente na instituição das realidades
outrora consideradas incriadas – existe outra na qual explicitamente
se afirma que a onipotência divina exige a imutabilidade das realidades
eternas e necessárias:

“dirão que, se Deus estabeleceu estas verdades, ele as


poderia mudar como um rei às suas leis; a que é preciso
responder que sim, se sua vontade pode mudar. – Mas eu
as compreendo como eternas e imutáveis. – E eu julgo o
mesmo de Deus. – Mas sua vontade é livre. – Sim, mas seu
poder é incompreensível” (Descartes 1, AT I, pp. 145-146).

Como se sabe, a imutabilidade da vontade divina não é algo


cartesiano. Descartes, por sua vez, a evoca como demonstração de que
nela é que se fundamenta a imutabilidade das realidades necessárias. Com
efeito, Deus, cuja vontade é imutável e onipotente, pode seguramente
estabelecer, por meio dela, tudo o que há de imutável e necessário, mesmo
que sua vontade seja considerada absolutamente livre. Ante a iminente
objeção segundo a qual de uma vontade livre, mesmo concebida como
imutável, não pode provir diretamente algo necessário, Descartes introduz
o conceito de incompreensibilidade divina.

A incompreensibilidade divina

Eis o que devemos entender por incompreensibilidade divina:

153
Cadernos Espinosanos XXI

“Sei que Deus é o autor de todas as coisas. Eu digo que sei,


e não que o concebo nem que o compreendo; pois se pode
saber que Deus é infinito e onipotente, embora nossa alma
finita não possa compreendê-lo nem concebê-lo [...] pois
compreender é abarcar pelo pensamento, mas para saber
uma coisa, é suficiente tocá-la pelo pensamento” (Descartes
1, AT I, p. 152)6.

A carta de agosto de 1641 esclarece:

“Pois como digo freqüentemente, na questão que diz respeito


a Deus, ou ao infinito, não é preciso considerar o que dele
podemos compreender (porque sabemos que não deve ser
compreendido por nós), mas somente o que dele podemos
conceber, ou entender por qualquer razão certa” (Descartes
1, AT III, p.430).

Inicialmente a incompreensibilidade é vista como um atributo


divino decorrente de seu ser infinito. Tal incompreensibilidade se impõe à
natureza humana, que, sendo finita, não pode compreender o infinito, pois
“é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não
possa compreendê-lo” (Descartes 1, AT IX, 37).
Entretanto, embora Deus seja incompreensível à natureza humana,
Descartes assegura que é possível saber algo acerca dele, por exemplo,
que é incompreensível, criador das essências e das existências, perfeito,
infinito, soberanamente bom, etc., e que, se por um lado devemos evitar
tentar compreendê-lo, por outro nos é possível conceber ou entender
algo acerca dele, isto é, podemos tocar com o pensamento esta realidade
incompreensível. Tocar com o pensamento significa precisamente saber de
modo certo, validando, portanto, a razão. Sabendo qual é o significado da
incompreensibilidade, tomemo-la no contexto da indiferença divina.

154
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

É perfeitamente aceitável e compreensível que uma vontade livre


produza atos contingentes, mesmo em se tratando da vontade divina, que
é considerada imutável, devido à analogia estabelecida entre a vontade
divina e a humana. Nisto insistiu toda a tradição medieval cristã.
Descartes, porém, não admite uma concepção analógica de ambas
as vontades, o que pôde ser claramente percebido quando da investigação
sobre o tema da indiferença. A vontade divina representa uma negação
radical do livre-arbítrio, por causa da indiferença, posto não lhe ser
possível escolher entre alternativas nem agir determinada por qualquer
espécie de consideração lógica, física, metafísica e moral. Donde resulta
que a compreensão de nossa vontade não nos autoriza estabelecer qualquer
analogia com a vontade divina, pois esta é incompreensível para uma
razão finita. Uma vez que a vontade divina não é como a humana, torna-se
impossível de fato ao intelecto finito compreender como ela cria realidades
eternas, necessárias e imutáveis sem lhes prejudicar minimamente a
necessidade, e ao mesmo tempo garante a eficácia da razão humana:

“Deus é uma causa cuja potência ultrapassa os limites do


entendimento humano, e a necessidade das verdades não
excede o nosso conhecimento, elas [verdades eternas]
são alguma coisa de inferior e sujeita a esta potência
incompreensível” (Descartes 1, AT I, 150).

Para uma interpretação irracionalista de Descartes a


incompreensibilidade divina representa definitivamente a anulação da
razão humana. Segundo a citação acima, porém, o necessário, instituído
por um Deus cuja potência ultrapassa o nosso entendimento, não excede
o nosso intelecto, ou seja, Ele os criou adequados um ao outro. Atentos,
pois, ao seu significado mais profundo, podemos ver claramente que a
tese da incompreensibilidade indica ser impossível para o intelecto finito

155
Cadernos Espinosanos XXI

compreender como a vontade divina, absolutamente livre e indiferente,


institui enquanto causa eficiente, ou seja, por criação, as realidades
necessárias ou a própria necessidade sem qualquer prejuízo à sua
imutabilidade, e sem diminuir ou invalidar o poder da razão.

Conclusão


Portanto, os argumentos utilizados pelos partidários de um suposto
irracionalismo cartesiano pressupõem equivocadamente uma identidade
entre o conceito cartesiano de criação e aquele cunhado pela filosofia
cristã. Daí considerarem a indiferença divina uma pedra de tropeço para
Descartes.
Apoiados, porém, em relevantes passagens da obra cartesiana,
mostramos que seu autor entende criação de modo diferente do da
tradição e que, levando-se em consideração os conceitos de onipotência
e incompreensibilidade, não apenas é descartado o irracionalismo, mas se
confere à razão toda a eficácia necessária, porquanto tudo o que ela conhece
depende necessariamente da ação divina, totalmente simples e pura. Tudo
indica que Descartes leva a garantia divina a um grau absoluto ao defender
a necessária dependência de todas as coisas do Deus “soberano, eterno,
infinito, imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as
coisas que estão fora dele” (Descartes 1, AT IX, p. 32).

156
Carlos Eduardo Pereira Oliveira

Referências bibliográficas:

Obras de Descartes:
1. Oeuvres de Descartes. Ed. de C. Adam e P. Tannery. XI vols. Paris: Vrin,
1996.
2 .Tutte le Lettere, 1619-1650. Testo francese, latino e olandese. Org. de Giulia
Belgioioso. Milão: Bompiani, 2005.
Demais obras:
3.BEYSSADE, J-M. Descartes au fil de l’Ordre. Paris: Puf, 2001.
4. CURLEY. E. M. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The
Philosophical Review, vol. XCIII, n. 4. October. New York: 1984.
5. FRANKFURT, H. Descartes on the Creation of the Eternal Truths. In The
Philosophical Review, vol. LXXXVI, n 1. January. New York: 1977.
6. GHISALBERTI, A. Guilherme de Ockham. Tradução de Luís A. De Boni. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1997.

The Descartes’s rationalism called into question

Abstract: Due to the resumption of the theory of the creation of the eternal truths,
some interpreters bring to the contemporary international debate a interesting bias
interpretative of Descartes’ thought. According to them, when Descartes presents
the indifference of the will as an attribute of God, he introduces a concept totally
dangerous, from which derives the incompatibility between the Cartesian system and
divine indifference, deflagrating, finally, a radical irrationalism.
Keywords: Descartes. Freedom. Divine Indiference. Racionalism. Irracionalism.

NOTAS:

1. Para a ortodoxia escolástica, Deus podia escolher e, de fato escolhia entre as


várias alternativas possíveis encontradas em seu intelecto. Aquelas escolhidas eram
atualizadas, ganhando existência efetiva. A indiferença divina, por sua vez, implica
que nada precede a ação pela qual Deus institui todas as coisas, ou seja, nenhuma ideia
exemplar, nenhum arquétipo, nenhuma essência possível. Como nada precede a ação

157
Cadernos Espinosanos XXI

divina, nenhuma escolha é feita por Deus. Por conseguinte, a indiferença da vontade
divina exclui o livre-arbítrio.
2. A posição cartesiana acerca da vontade divina pode ser compreendida graças à
supressão desde Ockham dos arquétipos no entendimento divino, conforme os quais
seriam criados os existentes. Tal supressão veio a significar o fim da distinção ou
hierarquia entre as faculdades divinas, surgindo, por conta disso, a tese da unidade
absoluta entre essas faculdades. A Ockham coube pôr um fim definitivo à questão dos
arquétipos, reduzindo-os a entes de razão, não podendo gozar jamais de existência
extramental. Existem apenas as substâncias singulares e criadas imediatamente pela
onipotência divina. Deus as conhece enquanto singulares. A realidade existencial
do singular consiste na existência exterior ao pensamento; coisas como universais,
gêneros e espécies, ideias, essências são reduzidas a nomes. No intelecto humano,
elas existem como conhecimento abstraído de nossa experiência dos particulares.
Desaparecendo as ideias do intelecto divino e os universais nas coisas, desaparece
igualmente a precedência do intelecto à vontade. Ora, se se pensava na conformidade
da vontade ao intelecto, porque neste residiriam as essências exemplares segundo
as quais somente as coisas existentes seriam criadas, agora, com o fim das ideias
arquetípicas e concebida somente a existência real dos indivíduos, Ockham abre um
universo em que nenhuma necessidade inteligível se interpõe, mesmo em Deus, entre
sua essência e suas obras. (Ver Alessandro Ghisalberti, 6 , capítulos III e VII).
3. Cabe ressaltar que depender de Deus é o mesmo que ter sido criado por ele.
Essa é uma observação importante, pois a noção tradicional de criação envolve
necessariamente a contingência, finitude ou cessação da coisa criada. Uma vez que
Descartes coloca o necessário como dependente de Deus, pode-se inferir que tudo é
contingente. Consequentemente, a razão, enquanto conhecedora do necessário, fica
em uma situação um tanto desagradável.
4. Por Exemplo, Curley e Beyssade. Não desenvolveremos a solução apresentada por
esses célebres autores, mas cuidaremos de apresentar uma alternativa à solução do
problema, tendo como núcleo o conceito cartesiano de criação.
5. “Vós me perguntais in quo genere causae Deus disposuit aeternas veritatis [em
que gênero de causa Deus dispôs as verdades eternas]? Eu vos respondo que in eodem
genere causae [pelo mesmo gênero de causalidade] que ele criou todas as coisas, ou
seja, ut efficiens & totalis causa [como causa eficiente e total]” (Descartes 1, AT I,
pp. 151-152).
6. Ver também a carta a Clerselier (Descartes 1, AT IX, pp. 210-211).

158
ESPINOSA: UM PENSAMENTO DA ATUALIDADE E DA
CRÍTICA À UTOPIA POLÍTICA

Daniel Santos da Silva*

Resumo: Este artigo tenta localizar alguns pontos nos quais pode se embasar a crítica
de Espinosa à filosofia política utópica, esta muitas vezes baseada em uma noção
transcendente de poder. Fazemos isso dando relevo a algumas noções, como a de
experiência e a de indivíduo, além de focalizarmos a importância da noção de conatus
no estabelecimento de uma ontologia da atualidade da natureza humana, na qual,
do ponto de vista cognitivo, conhecimento imaginativo e racional afirmam ambos
a atualidade dessa natureza humana e permitem a proposição de regimes políticos
baseados em tal atualidade.
Palavras-chaves: Política, experiência, utopia, indivíduo, conatus.

Nos parágrafos iniciais do Tratado Político, Espinosa demarca


o terreno de sua investigação em pelo menos dois pontos: 1) um
metodológico, que assim chamamos baseados em sua crítica ao modo
como fizeram ou tentaram fazer política os filósofos até sua época além
da diretiva do quarto parágrafo que traça um paralelo epistêmico entre as
paixões humanas e os fenômenos físicos da atmosfera; 2)um ontológico,
que assim chamamos tendo em vista os alicerces da passibilidade humana,
ou seja, a condição do homem de pars natura – fator este sustentado mais
especificamente na Ética. Na chave que usamos para essa investigação,
percebemos como a primeira demarcação está envolvida na segunda e
vice-versa, num movimento de mútua determinação. Em outras palavras,
a política se constitui por homens atravessados por paixões – afetos que

* Doutorando do Departamento de Filosofia da USP.

159
Cadernos Espinosanos XXI

não se explicam somente pela natureza do indivíduo - e a apreensão de


suas leis fundamentais pelo pensamento requer a ciência dessas condições.
Assim também, na análise espinosana, qualquer corpo cívico – quando
indivíduo, por definição - apenas pode ser pensado de maneira rigorosa
caso se admita de saída que ele é necessariamente atravessado por paixões,
determinações exteriores – pelo menos em parte - a esse corpo constituído
pelos cidadãos; veremos que todo o movimento concernente às esferas
epistêmica, ontológica e ética que fornecem à política e sua ciência suas
determinações se nos aparecem às vezes sob alguns aparentes – apenas
aparentes - paradoxos: ciência política enquanto afirmação do critério da
atualidade e crítica fundada da atualidade. Em primeiro lugar, a atualidade
é a condição, para Espinosa, de qualquer filosofia política não utópica.
Então, por que Espinosa, nessa mesma obra, trabalha com a
análise de regimes políticos que de fato não existem? Qual a relação entre a
experiência evocada no terceiro parágrafo do Tratado Político (TP) e essa
análise, ou seja, entre história e filosofia (ciência) política? Um dos meios
de se pensar tal relação passa pela regulação racional1; para entendermos
melhor, passemos rapidamente pelo prefácio da quarta parte da Ética (Da
servidão humana e da força dos afetos) e nos localizemos diante de dois
pontos: por um lado, o agir em função de um fim e de um modelo criado
“mais por preconceito do que por um verdadeiro conhecimento delas (das
coisas naturais)”, por outro lado, o modelo de homem forjado por Espinosa
para pensar a perfeição e a imperfeição, o bem e o mal. Já está presente
nessas poucas palavras a principal distinção entre essas duas espécies de
modelos: o passional, forjado por comparação e pela crença na existência
de fins reais, e o racional, forjado para que se possa regular noções úteis
ao sistema, como bem e mal, perfeito e imperfeito. Transpondo para o
caso do TP, poderíamos dizer que os regimes como são descritos aí são
modelos regulados pela razão – pensados a partir do que a razão apreende

160
Daniel Santos da Silva

da condição política humana -, e então a crítica à idealidade política poderia


se dar por consumada. Mas realizar essa transposição modelo ético/modelo
político, embora possível, não revela o cerne da questão, pois ainda nada
diz de substancial. Por mais que isso trace algo da esfera da experiência –
como o agir e ajuizar por comparação – distinto da esfera do conhecimento
verdadeiro, não é a esse papel que é reduzida a amplitude da experiência
nesse terceiro parágrafo do TP, e a relação entre essas esferas tampouco
deve ser concebida por oposição, como o verdadeiro e o falso.
A experientia comparece também nas primeiras linhas de outro
Tratado de Espinosa, o TIE (Tratado da Emenda do Intelecto), e chama a
atenção do filósofo para a qualidade dos bens aos quais ele tinha apego;
trata-se, antes de tudo, de conseguir enxergar o quanto é “vão e fútil
tudo o que costuma acontecer na vida cotidiana...”, (Espinosa 2, p.107)
e que qualquer pretensão mais radical de mudança exige mais do que
uma simples deliberação, exige uma emenda, que, enquanto intelectual,
é simultaneamente afetiva. Apresentado resumidamente esse contexto,
tentamos então, a princípio, extrair algo mais da experientia, entender
melhor sua força na formulação de uma sciencia politica.
É de extrema importância, em primeiro lugar, anular qualquer
dicotomia referente aos gêneros de conhecimento – apresentados sob
essa nomenclatura na Ética no segundo escólio da proposição 40 – mais
especificamente entre experientia e razão: mesmo que ajam de forma
diferente (e neste caso conhecer é agir enquanto atividade de uma mente
singular, mesmo que apenas parcialmente autodeterminada), essas duas
formas de conhecimento são menos eficazes e podemos até afirmar
perigosas se são tomadas como espécies de absolutos, no sentido de agirem
somente fechadas em si mesmas. Mesmo que seja possível concebê-las
independentes uma da outra, pois são intrinsecamente distintas, deixamos
essa possibilidade para a estrutura expositiva do texto de Espinosa, e

161
Cadernos Espinosanos XXI

guardamos conosco que, na medida em que são formas de conhecer


existentes em um mesmo indivíduo, esse indivíduo necessita de ambas – não
mencionamos aqui a ciência intuitiva –, experiência e razão, para afirmar
o máximo possível sua realidade individual. Em outras palavras, o homem
que, no início do TIE evoca a experiência para situar um determinado
problema – a qualidade dos bens aos quais se apega – nada poderia fazer
se não tivesse algum apoio do procedimento característico da razão. De
fato, a busca por um “bem verdadeiro e capaz de comunicar-se” passa
necessariamente pelo conhecimento que, posteriormente, ainda nessa obra,
ele chamará de terceiro modo de percepção e na Ética de segundo gênero
de conhecimento, que seja, o conhecimento racional. Resumidamente, o
que a experiência constatou, aqui, na formulação de uma ciência política,
a razão irá confirmar e localizar de forma adequada. Por isso é permitido
a Espinosa, no prefácio à quarta parte da Ética, evocar um modelo ético
e a partir daí operar com as noções de bem e mal, que a essa altura já são
colocados adequadamente ao redor da noção de utilidade. Aquilo que não
tem uma existência ontológica – a não ser, claro, que tomemos estas coisas
enquanto essências formais de ideias mutiladas e confusas -, como no caso
o bem e o mal, quando recolocado da perspectiva ética do útil e do nocivo,
ganha toda a força epistêmica que permite a um indivíduo singular ter o
verdadeiro conhecimento do bem e do mal. Dessa forma, outra dicotomia
se torna nula: bem e mal não podem ser pensados enquanto entes, senão
enquanto entes de razão, operados conforme a dispositio de cada conatus
singular. O preâmbulo do TIE – um preâmbulo ético – marca, pois, mesmo
que implicitamente, uma forma de relacionamento fundamental entre a
experiência e a razão no que concerne à ética; tal marcação serve igualmente
para que possamos compreender de maneira mais clara a necessidade de
se entender não apenas a Ética como obra política, mas também as obras
políticas de Espinosa como obras éticas. No fundo da constituição da

162
Daniel Santos da Silva

ciência política, a necessidade que tudo perpassa conhecida pelo intelecto


e exposta geometricamente na Ética.
E é na Ética que encontramos um aparente paradoxo, de viés
ontológico: da realidade do ser absolutamente infinito chegaremos à
realidade dos seres singulares e, mais especificamente, à realidade do
indivíduo. Essa transição, assim como os demais movimentos desse livro,
segue a ordem dedutiva necessária à própria autoprodução da realidade, e a
aparição dos seres singulares – dos quais o conhecimento das propriedades
permite especificar a gênese necessária da política – se dará de forma que,
a nosso ver, a relação uno-múltiplo ganha a imagem da reversibilidade
– não lógica, pois Deus não precisa de nenhum outro conceito para ser
concebido -, ou seja, sob o risco de se tornar uma reflexão abstrata, a
eternidade do ser uno tem de ser pensada juntamente à existência temporal
de suas modificações atuais.
A noção de indivíduo, em Espinosa, traz em seu bojo uma
estrutura de mundo na qual o concurso é concretamente avivado, ou seja,
essa noção, da forma como ela se constitui, revela-nos a importância da
interdependência entre corpos não só no processo de construção da vida
afetiva de uma pessoa, mas também na geração de um corpo político
e na interdependência desse corpo em relação a seu meio e seu tempo.
Podemos localizar, no TTP, a formação do estado hebraico como uma
localização histórico-filosófica das premissas ontológicas de sua filosofia,
e, acompanhando esse processo, percebemos que a possibilidade de sucesso
dessa formação política está submetida à dominação que se pode incutir
nas mentes e corpos dos indivíduos que compõem tal Estado; independente
da relação específica entre as partes e o todo que poderia caracterizar tal
Estado como teocrático, monárquico, aristocrático ou democrático, o mais
relevante aqui é o fato de que reconhecemos pelo menos duas esferas de
alcance do conceito de indivíduo nessa formação: na primeira, o encaramos

163
Cadernos Espinosanos XXI

a partir do ponto de vista do singular que “participa” dessa gênese, e


de quanto sua potência pode ser mais ou menos ativa antes e depois do
momento de instauração do pacto; na segunda, o encaramos a partir do
ponto de vista do indivíduo que é o conjunto de corpos individuais mais
simples que agem juntos em vistas de um mesmo efeito, enfim, o próprio
Estado.2 Nesse contexto, a formação de um corpo político é natural,
completamente natural, o que implica que não há transição de nenhuma
espécie em seu início. A relevância disso está na natureza da causa que
age no e a partir do indivíduo: o movimento originário que determina
ontologicamente o ser indivíduo, que é o conatus, envolve em si toda a
complexidade necessária para que do começo ao fim se trate sempre o
que age sobre ele ou a partir dele como causalidade puramente eficiente,
abrangendo até todas as determinações racionais presentes em uma certa
ação. Enquanto o conceito de indivíduo já nos permite localizar o homem
e seu concurso político – a união que fundamenta o Estado – no plano da
atualidade de pura imanência, o conceito de conatus dá a essa localização
seu direcionamento eficiente, ou seja, sem nenhum resquício teleológico,
o ser do conatus determina a direção que o indivíduo deve tomar para sua
realização; seja por meios imaginários, advindos de uma relação sensível
com o que o cerca, seja por meios e ditames racionais, estes advindos da
percepção sub specie aeternitatis do que é comum entre as partes e entre
as partes e o todo, o indivíduo busca sempre aumentar sua potência de
agir e de existir, sempre ama a si mesmo (de variadas maneiras) e sempre
reconhece sua dependência em relação a outros. Além desse direcionamento
da atividade individual, o conceito de conatus espinosano propicia uma
unidade individual – que decorre mesmo, certamente de maneira mais
complexa, do que afirmamos agora – que cimenta qualquer possibilidade
transitiva na causalidade política. Vejamos isso cotejando o que está sendo
dito com o conceito hobbesiano de conatus.

164
Daniel Santos da Silva

No Leviatã, capítulo VI, o esforço é apresentado como movimento


(Hobbes 5, p.32).3 Com isso, ao desenvolver sua teoria política, Hobbes
se põe contra uma tradição que defende a existência de um direito natural
objetivo, cujas leis seriam decretos de um Deus onipotente e voluntarioso.
De certa forma, esse é apenas um dos aspectos abarcados pela crítica
hobbesiana, mas nos diz muito a respeito da natureza das causas do agir
humano. Desde o instante em que se posiciona contra a existência de uma
ordem jurídica objetiva – e, principalmente, tributária da existência real de
valores nas coisas – independente do estado civil, o autor inglês rechaça
a tese de que há, ou na natureza ou no agir humano, a concorrência de
uma finalidade real e de uma tendência moral intrínseca à produção de
efeitos pelo homem. Isso o aproxima de Espinosa, sem dúvida, por isso,
para ambos, o direito natural de cada um equivale a seu poder sobre as
coisas e pessoas (Hobbes 5, p.78). Pela mesma razão, a reflexão acerca
do que possibilita a vida política envolve a dimensão da vida individual
independente da vida social (mesmo que não haja fato correspondente a
essa abstração), seja na gênese dessa vida política, seja na análise de qual
regime propicia mais elementos para a consecução ou melhor efetivação
dos objetivos visados nessa gênese.4 Apesar disso, o fato de que os alvos
de crítica de Hobbes e Espinosa sejam em grande parte os mesmos e em
grande parte com bases semelhantes implica menos uma proximidade do
que um distanciamento entre os cernes das duas teorias.
Pela definição hobbesiana, já se entrevê como o esforço é uma
realidade senão estrita, pelo menos predominantemente físico-biológica.
Caso se possa reduzir o conatus a uma simplicidade de movimento quase
inercial,5 ou seja, a uma realidade que não abrange a composição – que, para
Espinosa, pode ser infinita – de movimento pelo concurso na formação de
uma singularidade que pode ser cada vez mais complexa, então poderemos
mostrar como ao fim existe uma espécie de “cisão” no interior da realidade

165
Cadernos Espinosanos XXI

individual, e, posteriormente, uma “cisão” no corpo político constituído


em Hobbes – o Leviatã pode ter a imagem de um homem, mas não a de um
indivíduo. Dessa forma, qualitativamente o indivíduo não é requerido de
igual maneira na explicação da gênese do corpo político e na qualidade de
sua integração, não em relação a Espinosa.
Enquanto força expansiva, o conatus hobbesiano é o apetite ou
desejo pelo qual o homem é determinado a agir, e desse suporte é extraído
o quadro das paixões humanas. Como em Espinosa, o campo passional
fornece as bases para que se compreenda a realidade do político, mas,
diferentemente deste, a causalidade envolvida na passagem do direito
natural ao direito civil é transitiva, ou seja, o direito de natureza não
persiste no estado civil, a não ser em alguns aspectos pontuais.6 O que está
por trás dessa divergência, pelo menos no que concerne ao conceito de
indivíduo, é o fato de que este, para Espinosa, indica que a possibilidade
do pacto sociabilizante não está no cálculo racional que acaba por sugerir
“adequadas normas de paz, em torno das quais o homem pode chegar a
um acordo” (Hobbes 5, p.77), e sim num movimento imanente em que
diversas potências singulares concorrem para a produção de um mesmo
fim, um estado de paz e segurança, segundo uma determinada proporção de
movimento e de repouso entre seus constituintes; o pacto, pois, não exige
transitividade, pois é na imanência e sempre atualmente que a natureza
produz as singularidades complexas que são os indivíduos.
Assim, queremos mostrar que não há descontinuidade – pelo
tratamento que Espinosa dispensa ao conceito de indivíduo - entre o
movimento originário do indivíduo (o conatus para Hobbes) e a razão
humana. Não há um momento, mesmo que hipotético, no qual a razão
assevere a sociabilidade como “solução” para a condição natural do
homem. A formação do corpo político para Espinosa corresponde,
guardada sua devida complexidade, à ação concursiva e simultânea de seus

166
Daniel Santos da Silva

vários componentes dentro de uma proporção específica. Esse concurso


é tão natural quanto a formação de um indivíduo humano, não implica a
atividade racional “por sobre” o conatus. O indivíduo não é “cindido”,
e sua realidade é toda requerida, simultaneamente, para a formação e
conservação do campo político, pois a potência que é o conatus constitui
a realidade do indivíduo. Isso concorda, cremos – e talvez até a aprofunde
-, com a afirmação de Espinosa de que a natureza não cria povos, sim
indivíduos
Temos, pois, um ser determinado, o indivíduo, cuja definição
envolve a necessidade dos seres singulares, pois ele é distinguido por
uma proporção definida (certa quadam ratione), certa, proporção que
o constitui. São as propriedades decorrentes dessa definição, que é uma
maneira específica já de reconhecer o homem como pars natura, que
colocarão na mesa as cartas da formação política. Porque embora o
indivíduo deva ser concebido, concretamente, como algo atualmente
existente, resumidamente, como conatus, as leis que proporcionarão seu
terreno de atividade – a passividade aí inclusa – são dadas eternamente
pela realidade infinita da substância. A existência necessária do indivíduo
é uma tensão ontológica porque põe a centelha da eternidade na essência
desse ser ao mesmo tempo que, indiretamente, põe a necessidade de sua
finitude e sua condição - não essencial - de perecível. Só que essa tensão é
específica já que se trata, no caso da singularidade existente, de um Deus
quatenus, de Deus enquanto afetado por tal modificação determinada,
trata-se, de outra forma, de Deus expresso no finito.
Deus expresso no finito. O conceito de afecção divina traz consigo
a marca dessa tensão – longe de ser um paradoxo de fato – e acaba por
nos lançar naquilo que condiciona a vida política: como ressalta EIP28,
qualquer coisa finita apenas existe e age se determinado por algo exterior,
ao infinito; demarcação da passibilidade humana, o que, agora, aponta

167
Cadernos Espinosanos XXI

outra tensão, a ética.


Pois um ser finito, cuja potência atual (conatus) é uma parte da
potência infinita da substância, está entre infinitos outros seres finitos,
numa interdependência – física, primeiramente – que mostra o quão
impossível é, para o homem e para qualquer corpo cívico determinado, que
sua vida seja sempre produto de uma atividade autodeterminada, atividade
agora pensada conforme a definição 2 da terceira parte da Ética, “digo
que agimos quando, em nós ou fora de nós, sucede algo de que somos a
causa adequada – definição 1 da mesma parte -, isto é, quando de nossa
natureza se segue, em nós ou fora de nós, algo que pode ser compreendido
clara e distintamente por ela só...”. Então, posta a necessidade com que se
autoproduz a substância, vê-se ainda o homem imerso na contingência,
o mesmo é dizer, para Espinosa, na ignorância de suas determinações e
das determinações de seu meio. Sempre capaz de conhecer as coisas de
modo verdadeiro, racional, mesmo assim o homem, em sua maioria e
na maior parte do tempo, ignora a causa real das coisas como elas são e
dos seus próprios apetites; nesse patamar, pode crer numa vontade livre
e num Deus igualmente voluntarioso, cuja predisposição de humor pode
determinar para o bem e para o mal nossa fortuna. A princípio, como
ressalta o próprio Espinosa, ninguém nasce conhecedor das causas, e,
eticamente, isso implica uma grande parcela de passividade frente ao
real. Contudo, mais uma vez, lembramos que qualquer dicotomia deve ser
posta de lado nessa análise: do ponto de vista ético, o agir determinado por
causas externas, mais que uma condição – plástica, ou seja, se é mais ou
menos passivo – é um modo também de afirmação da essência atual de um
indivíduo, e a política, suas instituições e seus meios, fazem parte dessa
afirmação que é sem finalidade e sempre atual. Por ser ignorante de muitas
coisas, organizamos a realidade “pelo corpo”, rearranjamos a contingência
tendo em vistas a estabilidade do cotidiano e de seus afetos. Escapando

168
Daniel Santos da Silva

da dicotomia imaginação (experiência)/razão, bem/mal, percebemos que


é no equilíbrio dessas esferas que o homem se vê político. Não é nem o
ignorante em estado bruto nem o sábio plenamente ativo (abstrações) que
engendrarão o campo político, antes temos de pensar numa determinada
tensão que requer a realidade “unificada” do conatus – que se expressa
tanto na imaginação como na razão – para ser compreendida. A tensão
ontológica do indivíduo se transforma na tensão ética de um ser que pode
ter mais de uma relação epistêmica e afetiva com o mesmo “objeto”, ou
seja, que pode desejar e repudiar o mesmo objeto conforme sua dispositio
atual.
É esse ser tensionado que “percebe” a necessidade de organizar
sua relação com o outro – meio ambiente e indivíduo - na medida em
que suas paixões vão tomando determinadas formas e conforme a razão
consegue operar, mesmo que demasiadamente limitada. Não quer dizer que
um Estado funcione com homens racionais, quer dizer que, quanto mais
próximas as leis de um Estado estão do que dita a razão, mais duradouro e
seguro ele será, mais as paixões serão tornadas comuns e menos motivos
para cisões internas.
Politicamente, a tensão é o próprio movimento que garante a
continuidade do direito natural – o direito de um indivíduo se estende
tanto quanto este pode, até onde vai sua potência – no direito civil.
Porque justamente não se sai da atualidade. Se Espinosa pensa modelos
de Estados monárquicos, aristocráticos e democráticos – este inacabado
-, o faz levando em conta todo o suporte ontológico fornecido pela Ética,
o que inclui a caracterização da realidade do conatus e de sua potência.
Escreve Espinosa: “Quer seja sábio ou insensato, o homem é sempre parte
da natureza, e tudo aquilo através do qual é determinado a agir deve ser
relacionado com o poder da Natureza, tal como este pode ser definido pela
natureza deste ou daquele homem.” (Espinosa 3, p.433). A potência interna

169
Cadernos Espinosanos XXI

que define o direito natural de cada um, contudo, não escapa a uma outra
tensão, pois essa potência individual é sempre relacional, está em contato
com miríades de outras potências, e o ser sui juris do estado de natureza
passa a ser encarado como sendo “na realidade inexistente” (TPII,15). Por
esse prisma, a regulação racional no que concerne à gênese e manutenção
política passa pela compreensão da interdependência necessária entre
homens guiados hegemonicamente por paixões, principalmente a do
medo.
Temer o quê? A morte, a força do outro e a solidão. Não é senão
pelo próprio mecanismo passional que pode surgir daí um equilíbrio
- melhor formatado, cremos, na democracia – entre as paixões de cada
singular envolvido numa gênese política. Se chamamos a atenção, por
um instante, para a “unidade” do conatus – não é essa unidade em si que
importa, senão o que decorre daí, que seja, a causalidade eficiente que
determina o homem a agir – é porque escolhemos a chave do movimento: a
razão não vai nem dominar nem anular as paixões, não vai ser um ideal de
conquista comum a todos os cidadãos, apenas vai imprimir uma mudança
qualitativa na dinâmica passional, propiciando o concurso entre vários
singulares na formação de uma individualidade específica, o Estado. No
Estado, o medo da morte se ameniza, a desconfiança do outro diminui e
até pode desaparecer e a solidão é extirpada, isso dentro de uma dinâmica
que torna comum as paixões mais determinantes. A interdependência, em
tese, deixa de ser problema e se transforma em solução, porém ainda sem
escapar à tensão passional que pode empurrar cada indivíduo contra o outro
ao mesmo tempo em que os aproxima por meio de paixões e vontades
comuns.
Retornando ao primeiro momento deste texto, a evocação que
Espinosa faz da experiência não serve, em hipótese alguma, para fazer
dela a fonte de cânones políticos, pelo contrário, ela aponta para um

170
Daniel Santos da Silva

conhecimento outro que o da experiência, já que assentado em propriedades


comuns da natureza humana. Tanto é que a existência histórica de um pacto
sociabilizante é secundária nessa análise, já que não é por acúmulo de
conhecimento ou por deliberação racional que os homens acordam viver
em comum, sim pela necessidade imanente de sua natureza. Novamente,
a política da Ética tem seu retorno na ética do TP e do TTP (Tratado
Teológico-Político).
Entre conceber um modelo político que parte da atualidade e da
crítica às utopias políticas e conceber um modelo político que explicita um
dever ser extrínseco à natureza humana e advindo de algo transcendente –
essa transcendência assume variadas formas, Deus pessoal, Rei divino, leis
divinas – há um abismo imenso e intransponível, não apenas metodológico,
mas ontológico mesmo – as leis que regem ontologicamente a formação
política são imanentes a essa formação. As leis, em vez de estabelecerem a
dinâmica do político, são a própria dinâmica na medida em que surgem de
uma tensão necessária do ser homem. Singular em toda sua história afetiva,
a passio individual pressupõe todo um meio existente e determinante, além
de uma realidade única, e isso permite uma comunidade, e essa comunidade
possibilita a coexistência política.
Por não ser um ponto histórico preciso, a formação do campo político
deve ser pensada sempre como um movimento da atualidade imanente a
si mesma, movimento cotidiano às relações políticas, tendo o homem sua
posição ontológica específica de pars natura e conseqüentemente de modo
de ser passional. Círculos viciosos como os que alimentam as superstições,
as ideologias, a vontade de dominação, podem ser redimensionados na
política e podem engendrar círculos virtuosos, como a divisão de trabalho,
a criação de uma noção comum de justiça, e, num plano último, em parte,
a certeza de que a verdade de um corpo político é sempre o movimento
de autorrealização, sem fim e extremamente complexo. Espinosa retém

171
Cadernos Espinosanos XXI

toda essa realidade natural e põe em movimento aquilo que não poderia
ser pensado senão como fluxo, paixões sobre paixões, como podemos
apreender do fato de que seus modelos de Estado têm como princípio a
atualidade do ser homem, descartando qualquer exemplaridade de cunho
moral e teológico, em suma, descartando, da sciencia politica, qualquer
resquício de transcendentalidade.
O que pode vir a ser um ótimo regime, seja qual sua modalidade,
só o pode a partir daquilo que é, não do que não foi e deveria ser. A própria
pretensão crítica a modos e viveres políticos podem ser bastante enfraquecidos
diante de uma apreensão do que é a partir do que deveria ser, lugar este que
hospeda não uma perspectiva apenas, mas tem em comum a cristalização do
certo e do errado a partir de princípios que não são os da natureza humana
entendida em sua atualidade, antes são o de uma natureza humana idealizada,
que produz homens que deveriam agir e ser de outra forma, que deveriam
conviver e dividir de outra forma. O querer fazer de outra forma, aspecto
tão presente a quem se propõe a desenvolver uma política em Espinosa,
parte sempre da necessidade de sabermos o que somos, conseqüentemente
entender o que queremos, conhecer as determinações de nossos apetites –
e de seu meio – e formular questões e soluções baseadas nessa esfera de
realidade. Por mais que toda vontade de mudança tenha em comum a crítica
ao atual, nem sempre essa noção é unívoca e a rede afetiva que compõe
nossas ações em torno dessa mudança é que pode realmente variar conforme
se parta do que se espera ou do que se sabe. É assim que podemos pensar a
crítica espinosana aos moralistas e utopistas como um plano de tensão, em
cujo solo imanente o “melhor modelo”exige o fim absoluto das dicotomias
relacionadas acima e a compreensão da realidade flexível do homem em
sua veia passional. Não deixa de existir, aqui, a possibilidade da crítica à
atualidade como ela está, justamente porque sabemos, mesmo que de formas
múltiplas e às vezes contraditórias, que o que é é o que permite o que será.

172
Daniel Santos da Silva

Referências bibliográficas:

1. CHAUI, M. Política em Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.


2. ESPINOSA,B.. Tratado da correção do intelecto. Tradução e notas de Carlos Lopes
de Matos. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
3. ESPINOSA, B.. Tratado Político. Tradução de Manuel de Castro. São Paulo: Nova
Cultural, 1997.
4. ESPINOSA, B. Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e notas de Diogo
Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003.
5. HOBBES, T. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil.
Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril
Cultural, 1979.
6. MATHERON, A. Individu et communauté chez Spinoza. Paris: Ed. De Minuit,
1988.
7. SPINOZA, B.. Opera. Im Auftrag der Heidelberger Akademie der Wissenschaften
hrs. Von Carl Gebhardt. Heidelberg: C. Winter, 1972.
8. SPINOZA,B.. Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

Spinoza: a think about the actuality and the criticism of the utopian politics

Abstract: This article tries to locate some points in which the Spinoza’s criticism of
the philosophy of utopian politics can be found, philosophy which is very often based
on a transcendent notion of power. We do that giving relief to some notions, like that
of experience and that of individual, besides focusing the importance of the notion of
conatus in the establishment of an ontology of the actuality of the human nature, in
which, from the cognitive point of view, imaginative and rational knowledge affirm
the actuality of this human nature and allow the proposition of political regimes based
on such actuality.
Keywords: Politics, experience, Utopia, individual, conatus

173
Cadernos Espinosanos XXI

NOTAS:

1. Conceito central na filosofia política da Kant, a regulação racional, aqui, soa de


forma anacrônica, mas temos em vista o primeiro parágrafo do capítulo V do TP: “...
demonstramos que um homem é senhor de si próprio sobretudo quanto mais vive sob
a conduta da Razão, e consequentemente é mais poderosa e senhora de si a cidade
fundada e governada segundo a Razão” A ciência política trabalha racionalmente, e, no
campo político propriamente dito, a razão pode intervir mais ou menos – possivelmente
nem intervir -, e a qualidade do sistema formado pela união de pessoas com paixões
comuns que formam uma cidade pode ser pensada a partir da racionalidade presente,
e de sua forma de exercício, ou seja, em se tratando de “viver segundo os preceitos da
razão”, se o fazem por vontade própria ou por força. Cf. também o terceiro parágrafo
do capítulo VI do TP.
2. EIIL7esc após P13 nos apresenta a estrutura de formação de individualidades mais
complexas a partir de individualidades mais simples.
3. “Estes pequenos inícios de movimento, no interior do corpo do homem, antes
de manifestarem-se no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se
geralmente esforço”. Uma das principais análises que estará implicada em nossa
argumentação é a de Matheron, Individu et communauté chez Spinoza, p.88ss, onde
ele tece uma crítica dedicada ao conatus hobbesiano.
4. Objetivos semelhantes em ambos os autores, como o desejo de paz e segurança;
contudo, é na diferença de como esse desejo opera na realidade política – e justamente
isso que faz Espinosa defender a democracia, e não a monarquia, como o faz Hobbes
– que encontramos as matrizes conceituais para “atribuir” a devida importância que
a realidade do indivíduo tem em cada uma das filosofias. A escolha por Hobbes nesse
debate se assenta no momento em que esta pesquisa se encontra.
5. Nesse sentido, o registro dessa nomenclatura é amparado principalmente por
Marilena Chauí, A política em Espinosa, a partir da p. 303 e Matheron, Individu et
communauté chez Spinoza, p.28ss.
6. Marilena Chaui, A política em Espinosa, p.302 para a transitividade da causa em
Hobbes; p.296ss para a análise de como o direito natural permanece no estado civil
em Hobbes.

174
NOTÍCIAS

DEFESAS DE DOUTORADO
Marcos Ferreira de Paula
Alegria e felicidade. A experiência do processo liberador em Espinosa
Orientador: Profa. Dra. Marilena de Souza Chaui
Data: 28.08.2009

Resumo: A Ética de Espinosa é uma ontologia do necessário, da qual


se pode deduzir uma ontologia da alegria. Por isso mesmo, na experiência
humana dos afetos, o processo liberador que leva à felicidade é determinado pela
experiência da alegria. Tudo começa no campo mesmo das alegrias passivas,
campo no qual a tristeza também marca a sua presença. Presença negativa, de
um lado, na medida em que implica diminuição de nossa capacidade de agir
e pensar; de outro lado, presença positiva, enquanto experiência docente: a
tristeza, não por si mesma, mas por sua relação específica com a alegria, ensina
o corpo e a mente a lidar melhor com as alegrias a que somos desde sempre
determinados a buscar, nas suas mais diversas formas. Da contrariedade
afetiva envolvida na experiência das alegrias e tristezas pode nascer um desejo
de verdadeira felicidade. Mas o processo liberador é marcado igualmente pela
presença de um certo tipo de alegria: a hilaritas, um contentamento muito
particular, uma alegria equilibrada que concorda por excelência com a razão,
cujo trabalho abre diante de nós as trilhas que levam à felicidade. A razão,
porém, só pode realizá-lo enquanto afeto de alegria ela mesma. Neste caso,
inicia-se o percurso liberador.
Palvras-chave: felicidade, alegria, paixões, experiência, razão,
ontologia

175
INSTRUÇÕES PARA OS AUTORES

:::: Os textos devem ser inéditos e ter de preferência até 40 laudas


(30 linhas de 70 toques).
:::: O arquivo, que deve ser enviado por e-mail , deve conter o
nome do autor, a instituição a que está vinculado, o endereço eletrônico ou
o telefone. (E-mail: cadernos.espinosanos@gmail.com).
:::: Os artigos devem vir acompanhados de um resumo e um
abstract de 80 a 150 palavras cada um, cinco palavras-chave e keywords.
:::: As notas de rodapé devem ser digitadas no final do artigo,
utilizando-se o recurso automático de criação de notas de rodapé dos
programas de edição.
:::: As referências bibliográficas devem ser listadas e numeradas
no final do texto, em ordem alfabética e obedecendo a data de publicação.
:::: As citações devem ser feitas no correr do texto de acordo com
as normas técnicas da ABNT, seguindo-se a numeração das referências
bibliográficas; por exemplo, (Descartes 1, p.10) ou (Descartes 1, §8,
p.10).

176
CONTENTS

The secularization of the religious affects in Spinoza’s


works: hope and fear, love and generosity
Gábor Boros...............................................................................11

Hermeneutics and subjective pluralism: The foundation of


freedom in Spinoza’s thought
Victor-Manuel Pineda Santoyo...................................................41

The conception of human nature in Benedictus Spinoza


Emanuel Angelo da Rocha Fragoso............................................83

The presence of the method in the initial definitions of part II


of Spinoza’s Ethics
Sérgio Luís Persch......................................................................96

The time of the parts. Temporality and perspective in Spinoza


Mariana de Gainza...................................................................118

Heidegger and Leibniz- the openness of the concept of monad


Cristiano Bonneau....................................................................130

The Descartes’s rationalism called into question


Carlos Eduardo Pereira Oliveira................................................140

177
Spinoza: a think about the actuality and the criticism of the
utopian politics
Daniel Santos da Silva...............................................................159

INSTRUCTIONS......................................................................................176

178

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