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As faces da depressao ESPECIALISTAS DEFENDEM QUE, EM MUITOS CASOS, © REBAIXAMENTO DO HUMOR PODE SER UMA ADAPTACAO MENTAL NECESSARIA, E ATE SAUDAVEL, PARA QUE TENHAMOS MELHORES CONDICOES DE RESOLVER PROBLEMAS COMPLEXOS Por Paul W. Andrews e J. Anderson Thomson, Jr. (OS AUTORES 20 | mente | Quando ocbebo ea ment sdoscem as préximas duas décadas a depressao deverd afetar mais pessoas que cAncer ou as doencas cardiacas, constituindo a maior causa de afas- tamentos do trabalho, segundo estimativas da Organizagao Mundial da Satide (OMS). Atualmente, cerca de 17 milhdes sofrem com o problema sé no Brasil. Essa revaléncia incrivelmente alta — em comparagzio com outros distarbios mentais que afetan apenas cerca de 1% ou 2%da Populacao, como a esquizofrenia e o transtorno obsessivo ‘compulsivo ~ parece representar um paradoxo evolutivo. O cérebro desempenha fungdes cruciais para a sobrevivéncia e a reprodusio, portanto as exigéncias da evoluggo deveriam ter tornado o érgio tao complexo mais resistente.E, em geral, 05 transtornos mentais sdo raros. Mas por que isso no se aplica a depressao? paradoxo poderia ser solucionado se o problema fosse decorrente do envelhecimento ou uma consequéncia do estilo de vida modemo. O avanco da idade, porém, nao funciona como explicaglo, pois 05 primeiros episédios depressivos ‘tendem a se manifestar na adolescéncia ou no inicio da vida adulta. Assim, a semelhanca da obesidade, a \depressio talvez sea um problema que surge devido as enormes diferencas entreas condicbes da vida moderna e as de nossos ancestrais. ‘Mas essa explicacao também nao ¢ satisfatoria, Os sintorias da depressao sto encontrados em todas as culturas jd exami: rradas em profundidade, como a dos aché, no Paraguai, e @ dos !kung, no sul da Aftica: sociedades nas quais as pessoas vivem em ambientes similares aos que existiam em nosso passado evolutivo. Existe outra possibilidade: talvez, na maloria dos casos, 2 depressto no deva absolutamente ser considerada um distarbio. Acreditamos que esta seja, na verdade, uma adaptacio, um estado mental que sem duivida traz um 6nus real, mas que também produz beneficios concretos. Na depressio, a mente se torna mais analitica e concentrada~ uma reacio util para a resolucao de problemas complexos que provavelmente esto na base dos primeiros fatores a desencadeé-la, Se os profissionais de sade mental a enxer- garem sob este prisma, estardo mais bem preparados para aliviar a dor e o sofrimento que acompanham o quadro. ‘Ao longo de sua histéria, a psiquiatria se esforcou por defnir 0 conceito de doenca mental. Estaia correta nossa in- terpretacdo moderna? Os crtérios diagnésticos atuais exigem a presenga de “softimento ou incapacitac2o clinicamente sig- nificante” para que uma condigao psicoldgica sea vista coro um transtorno. Mas um trago seria bastante para representar tum distirbio? Consideremos 0 fato de que uma pessoa com febre alta parece experimentar sofrimento e incapacitagdo. Sua capac dade de trabalhar e pensaré prejudicada e, muitas vezes, essa pessoa sente fortes dores, além de mal-estar generalizedo. ais sintomas no sao, porém, suficientes para garantir que a {ebre seja considerada um transtorno. Trata-se,&claro, de urna reacio que desenvolvemos contra as infeccées. Ela encaminha as células de defesa aos tecidos que tém maior risco de estar infectados e regula a produgio de substancias necessérias & agdo imune, mas que poderiam causar graves danos a0 orga- nismo se produzidas todas a0 mesmo tempo. Essa sofisticada “coordenagao” € um forte indicio de {que a febre ¢ adaptativa:trata-se de um trago moldado pela selegao natural ao longo do tempo para curnprir uma fungao Util, De fato, diversos estudos envolvendo humanos e outros animais demonstraram que suprimir a febre com aspitina ou ‘outro medicamento tende a protongar a doenca e que a febre aumenta as chances de sobrevivéncia em casos de infecres ‘graves. Esse crtério do "sofrimento e incapacitagao” adotado a ; pela psiquiatria leva a conclustes equivocadas Tentativas de escapar Sobre os transtoros ~ a febre nto resuita do funcionamento deficiente do corpo; o que ocorre do sofrimento éexatamente contro Na depressao também surgem sofrimento Muitos experimentos mostram que a terapia cognitivo-comportamental __incapacitagdo, Trata-se de uma condico emacio- (TCO) é eficaz em casos de depressio; contudo, essa abordagem tera- _nal dolorosaeos individuos deprimidos ter, com péutica apresenta diversos components. Tentar mudar a maneira como _frequéncia, diftculdade para exercer suas ativida- 08 individuos deprimidos pensam sobre seus problemas é somente des cotidianas. Nao conseguem se concentrar no um deles— portanto, em principio, é possivel que este componente ngo trabalho enos estudos, costumam se isolarsocial- produza bereeficios terapéuticos permanentes. Em 1996, uma pesquisa __mente,ficarn letérgicos e, muitas vezes, perdema do psicélogo Neil Jacobson, da Universidade de Washington, estudou _—_capacidade de extrair prazer de atividades como detalhadamente a TCC endo encontrou evidéncias de que as tentativas _aalimentacdo eo sexo. Isto, porém, nao significa de mudar a maneira de pensar dos deprimidos fossem terapéuticas {que um episédio depressivo seja umn transtorno Por outro lado, encontrou indicios de que outro elemento, denorinado __mental, assim como os sintomas dolorosos da ativagZo comportamental (que busca manter o individuo deprimido febre nao configuram, por sisés, uma doenga. ervolvido em seu ambiente social), seria © componente benéfico. Nesse ‘Ainda que seja falha a definigao psiquidtrica sentido, pensando em uma abordagem mais profunda, que busque as __ dos transtornos mentais, porém, sao necessérios ralzes do problema, podemos considerar a teoria psicanaltica mais elementos para que possamos suspeitar que Uma das criticas mais comuns a essa técnica, porém, & que 0 tra- um estado mental to debiltante seja adaptative tamento, até que se chegue as reais causas dos problemas, pode durar _e no disfuncional. Uma das razBes para acre- vrios meses. Nao se pode esquecer, no entanto, que'mesmo quando _—_ditar que a depressio pode ser util é fornecida rndo hd a cura completa -e a alta —o paciente pode, ao longo do trata pelas pesquisas sobre uma molécula cerebral mento, desfrutar de formas mais aprofundadas de ver asi mesmoesua _conhecida como receptor SHT1A. Ela se liga a0 relacdo com o mundo, rneurotransmissor serotonina, outra molécula do E compreensivel, porém, que, diante do softimento, as pessoas _—_cérebro profundamente envolvida nos mecanis tentem lidar com a depressio empregando estratégias para simples- mos quedesencadeiam a depressio e visada pela mente interromper as rurninacdes (dlcoo!, distracdes, supressio de maior parte dos medicamentos antidepressivos pensamentos) em vez de se voltar a elas e buscar sentidos nessa disponiveis. Roedores desprovidos desse receptor repeticio. Cada vez mais hd indicios de que antidepressivos tém cexibem menos sintomas depressivos em resposta efeitos negativos a longo prazo. Embora aliviem os sintomas en- a0 estresse, 0 que indica que o SHTIA esta, de {quanto esto sendo usados, uma vez descontinuado 0 uso 0 risco de —_algum modo, envolvido na origem da depressio. recalda 6 alto, Isso talvez se deva & interferéncia dessas drogas nas Ao comparar a composigao da parte funcional ruminagdes depressivas, que torna dificil pensarem solucbes para _—_do receptor SHTTA dos ratos & dos homens, problemas complexos, jf que muitos antidepressivos costumam notou-se uma similaridade de 99%, indicando dificultar a concentragao em tarefas que exigem atencao. que a molécula é to vital que a selecdo natural a preservou por milhares de anos desde o tempo fem que viveu nosso ancestral comum. Assim, a capacidade de “acionar” a depressao parece ser algo importante ~e niio mero acidente evolutivo ‘ou resultado de uma disfuncdo cerebral. Mas, afinal, 0 que poderia haver de tZo Util na depressdo? Os deprimidos costumam pensar intensamente em seus problemas. Tais pensamentos sao chamados de ruminacdes obsessivas; trata-se de ideias persistentes que tomam conta da mente e tornam dificil racioci nar sobre qualquer outra coisa. Virios estudos [EM SYLVIA, PADAO ALEM DAS PALAVRAS (2003) Gwyneth Patrow interpreta a poatisa que atormentada, sucka jd mostraram que, ruitas vezes, esse modo de pensar é extremiamente analtico. Nesse estado, a pessoa se debruca sobre um problema com- plexo, dividindo-o em componentes menores, examinando-os detalhadamente, um de cada vez Essa maneira analitica de pensar pode ser al tarmente produtiva, Cada uima das partes, quando isolada, nao oferece tanta dificuldade, de modo que 0 problema torna-se mais manejivel. Na verdade, diante de uma situagao dificil, entrar em estado depressive (ainda que provisoriamente) 6, nfo raro, uma reaclo que ajuda a resolver 0 problema. Em algumas de nossas pesquisas, encontramos indicios de que, em testes de inteligéncia, as pessoas que mais se deprimem a0 lidar com proposigdes complexas so as que ‘obtémm pontuacdo mais alta Aandlise exige boa dose de pensamento inin- terrupto ea depressio propicia muitas mudancas corporais que nos ajudam a avaliar varios aspec- tos sem nos dispersar. Para que uma pessoa nio se desvie do objetivo preciso que os neurénios do cértex pré-frontal ventrolateral (CPFVL) sejam continuamente ativados. Isso, porém, acarreta grande gasto energético no cérebro, da mesma forma que subir uma montanha faz com que o motor de um automével gaste muito combust- vel. Além disso, a excitagzo continua pode levar 20 colapso dos neur6nios, assim como o motor de um automével tem maior probabilidade de Quebrar quando forcado. Estudos sobre depres- so em ratos mostram que o receptor SHTIA est4 envolvido no fornecimento aos neurénios do combustivel necessario a0 funcionamento e 4 protecio contra o risco de colapso, Esses pro- essos permite a continuidade ininterrupta das ruminagdes, minimizando os danos neuronais,o que pode explicar a grande importancia evolutiva dessa molécula. SABIAS DECISOES (Odesejode isolamento social, porexemplo, ajuda © deprimido a evitar situagdes que o obrigariam a pensar em outros assuntos. Da mesma forma, a incapacidade de obter prazer com 0 sexo ou ‘outras atividades evita que ele se envolva em algo. que 0 distrairia do problema, Pensando assim, fazem sentido todas as metaforas e obras de arte ue representa esse quadro como uma espécie de prisdo. Até a perda de apetite, comumente observada na depressao, pode ser vista como um estimulo aos pensamentos obsessivos, pois a mastigac0.e outras atividades orais interferer na capacidade do cérebro de processar informacBes. A tuminacao € tao resistente as distracoes ‘que as pessoas deprimidas geralmente tém Pontuagdes menores do que aquelas que nao se tencontram nesse estado em avaliages cogniti- vas e testes de interpretacdo de texto. Hé uma abundancia de dados indicando que elas fazem INDIOs KuNc, Do suL DA AFRICA: antopologia mostra que sintomae epressivossurgem em sociedades nat quai as pessoas ainda vivem em ambientes similares sos de sno Até que ponto é saudavel? ‘Se uma pessoa estiver sentido cinco dos sintomas abaixo por duas semanas ou mais, incluindo no minimo um dos dois primeiros, ela satisfaz 0s critérios diagnésticos do transtomo depressive maior: Humor deprimido ‘+ Menor interesse ou prazer nas atividades normais + Perda ou ganho de peso ou de apetite + InsOnia ou sono excessivo + Fadiga ou perda de energia «+ Sentimentos de inutilidade, ou de culpa excessiva ou inadequada + Indecisa0 ou capacidade reduzida de se concentrar + Movimento agitado (como retorcer ammao) ou desaceleracio fsica + Pensamentos recorrentes de morte ou suicidio Esses critérios,introduzidos na terceira edigao do Manual diagnéstico e estatistco de transtornos mentais (DSWI)), da Associagao Americana de Psiquiatrfa (APA, ia sigia inglés), em 1980, mudararn a definicao de de- pressio de algo que dependia do contexto e das circuns- tancias de vida do individuo para urna lista mais objetiva de sintomas, Existe uma cldusula notavel: de acordo com ‘0s critérios do manual, se a pessoa apresentar esses sin- tomas depois da morte de um ente amado, no ser considerado que esteja deprimida, mas que sofra uma reago normal e esperada de Tuto. Alguns, entretanto, acreditam que essa no ¢a tinica situagao de pesar que deveria set deixada de fora do diagnéstico de depresszo. Jerome Wakefield diz que outras perdas, como divercio, doenga ou uma situacao de desemptego, também deve- riam eximir as pessoas de um diagnéstico de depressi0. porque tais eventos, embora comuns, podem desenica- dear sintomas similares. “E realmente preocupante per sar que qualquer emocao negativa (exceto 0 pesar do luto) que perturbe 0 humor possa ser classificada como, um transtorno’, diz ele. Em um estudo publicado em 2007, a equipe de Wakefield fez ur relato sobre mais de mil pacientes que satisfizeram os crtérios de transtorno depressivo maior: alguns softeram episédios desencade- ados por um luto “padrao”, e outros tiveram depressdo deflagrada por perdas de tipos variados. A equipe des- cobriu que 0 quadro, porém, era bastante semelhante. “sto sugeriu que 25% das pessoas da comunidade {que receberiam o diagn6stico de depressio esto, de fato, provavelmente sofrendo de reacbes normais e até necessérias”, observa Wakefield. Em sua opinizo, isso 24 A mentee I Quando cri 03 mene adoecem significa que outras formas de tristeza deveriam ser eximi- das dos critérios do DSM. Alguns pesquisadores, porém, defendem o oposto: que, longe de ser excluldo, qualquer recurso que crie sintomas depressivos — inclusive luto ~ deveria fazer parte do diagndstico de depressao clinica, € ‘9 paciente receber tratamento adequado. Ken Kendler, da Universidade Comunitéria de Virginia em Richmond, por exemplo, realizou um estudo semelhiante ao de Wakefield, ‘mas chegou a conclusdo oposta. Ele comparou individuos com depressio relacionada ao luto com aqueles deprimi- dos por causa de outros eventos estressantes e veriicou que existe poucas diferengas nos sintomas entre os grupos. “A manifestacdo relacionada ao luto ¢ recorrente, geneticamente influenciada, prejudicial, e responde ao tra- tamento e no simplesmente algo pelo qual todo mundo passa”, escreveu em The American Journal of Psychiatry. ara alguns, porém,o problema nao tem a ver apenas comas isengées, estd relacionado também a lites, frouxos dermais. Para o psiquiatra Gordon Parker, ditetor- -executivo do Instituto Black Dog, em Sydney, tornar um diagnéstico de depressio “mais fail” por si sb nizo tem utilidade, Em sua opinido, de nada adianta ter uma defini- sao de depressio que seja ampla e destituida de contexto. QUIMICA CEREBRAL [REDUGOES NAS ATIVIDADES DOS CIRCUITOS que usam ‘serotoinae nradrenalina aparentemente contrbuem para &

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