Você está na página 1de 13

O cinema como objeto de pesquisa antropológica: um olhar para o

cinema de Bahman Ghobadi 1


Kelen Pessuto, doutoranda em Antropologia Social - USP/São Paulo

Resumo:

Nesta comunicação discuto o cinema ficcional como objeto de pesquisa na antropologia,


no qual as películas tornam-se o campo do pesquisador.
A análise fílmica é abordada como ferramenta metodológica nas pesquisas que
envolvem este tipo de objeto. Cada análise leva em conta o problema de pesquisa
imposto pelo pesquisador, pois a partir da pergunta que ele pretende responder, o olhar
sobre o filme varia, dando prioridade aos aspectos mais pertinentes a sua questão. Neste
caso tomo como exemplo os filmes Tempo de embebedar cavalos (2001) e Tartarugas
podem voar (2004), do cineasta curdo iraniano Bahman Ghobadi, levando em conta os
conceitos de alegoria e voz.
São três os caminhos percorridos nesta fala: um primeiro que traça as aproximações
entre o cinema de ficção e a antropologia; em seguida, atenho-me às questões
metodológicas que envolvem este estudo; e por último atenho-me ao filme citado para
refletir sobre a análise fílmica, o que é e como analisar.

Palavras-chave: Antropologia do cinema, análise fílmica, cinema iraniano

Introdução

São inúmeras as possibilidades de pesquisa que um antropólogo encontra diante


de um filme ou de um conjunto deles. A pergunta que o pesquisador faz é que determina
a metodologia a ser seguida e para quais aspectos ele deve se ater diante do filme,
durante sua análise.
Neste trabalho, apresento a metodologia utilizada na pesquisa “Etnoficção,
infância e resistência no cinema curdo-iraniano de Bahman Ghobadi” 2 , que tem como
objeto de pesquisa os filmes Tempo de embebedar cavalos (2001) e Tartarugas podem
voar (2004).
O problema de pesquisa desenvolvido a partir deste objeto é: Qual o lugar da
criança no cinema deste diretor? Optei por resolver esta questão através do debate sobre
a representação no campo da antropologia visual 3 , que contribui para enxergar qual o
lugar da criança neste cinema, pois o diretor curdo-iraniano se apropria dos modos de

1
Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
2
Pesquisa desenvolvida no Departamento de Antropologia da USP, com financiamento da FAPESP.
3
A partir das noções de mímesis, alegoria e voz, segundo Walter Benjamin (1984, 2012), Michel Taussig
(1993), James Clifford (2002), Stam e Shohat (2006) e da Poética de Aristóteles (edição brasileira de
1999).

1
produção cinematográficos de ficção para criar representações não convencionais da
criança e que ele mesmo denomina de etnografias. Minha hipótese é que esses filmes
são polifônicos e criam um espaço onde elas podem ser ouvidas para falar delas e dos
curdos em uma sociedade na qual eles não têm representatividade e na qual a criança
como narrativa é a única maneira possível de abordar a questão curda 4 .
Chamo de maneiras não convencionais alguns aspectos desses filmes, como a
pesquisa de campo realizada pelo diretor, a ausência de roteiro com diálogos prontos, o
uso de improvisação, o uso de crianças da própria comunidade retratada e suas próprias
histórias de vida, a criação em conjunto, entre outros. Aspectos que aproximam seu
cinema da etnoficção rouchiniana 5 e que serão levados em conta na hora de defender a
hipótese de que se tratam de filmes polifônicos, nos quais as crianças não são
meramente representadas (ideia de que algo está no lugar de outro), mas estão presentes
nos filmes, enquanto imagem e enquanto voz.
O foco principal desta comunicação é a análise fílmica como ferramenta
metodológica. Abordo aqui os principais pontos levados em conta na análise, para
responder ao problema proposto. O que interessa, principalmente, são as questões que
envolvem os personagens, a narrativa e os pontos de vista e escuta. A partir desses
motes, suas análises e interpretações, podemos perceber como a infância é construída
em seus filmes.

O cinema de ficção e a antropologia

O cinema de ficção enquanto objeto de pesquisa na antropologia é recorrente na


história da disciplina. Tanto o cinema quanto a antropologia nasceram praticamente na
mesma época e durante esse percurso, seus caminhos sempre se cruzaram, seja a partir
do uso do audiovisual enquanto material etnográfico, para documentar determinada
sociedade, seja na análise de filmes enquanto produto cultural da sociedade que o
produziu.
Rose Hikiji, em seu artigo Os antropólogos vão ao cinema (1998), traça um
interessante percurso do filme de ficção enquanto objeto antropológico, desde a criação
do cinema e da antropologia enquanto disciplina até os dias atuais. A partir de pesquisas

4
Anos depois da realização destes filmes, Ghobadi ousou tratar temas sociais sem o uso de alegorias ou
subterfúgios, utilizando inclusive adultos, mas seus filmes foram proibidos e ele foi exilado.
5
Neste trabalho não abordo a questão da etnoficção, pois já foi abordado em trabalhos anteriores (Cf.
PESSUTO, 2012; 2013).

2
já realizadas, elabora uma discussão em torno do objeto fílmico e aponta a importância
dos estudos nessa área. Passando por Flaherty, Rouch, Canevacci, a autora analisa os
principais trabalhos que têm os filmes de ficção como objeto antropológico. De acordo
com a autora, “(...) as ciências humanas – e, especialmente, a antropologia – revelam-se
nestes trabalhos, ‘lentes’ poderosas para o exercício do olhar” (p. 106).
Os trabalhos desenvolvidos pela Escola Culturalista norte-americana, onde o
foco está na identificação de padrões culturais (patterns of culture), que utiliza o método
comparativo e busca as relações entre a cultura e a personalidade, utilizava o cinema
como fonte de pesquisa. Na obra O crisântemo e a espada, publicada em 1946, Ruth
Benedict emprega a análise fílmica e discussão com os espectadores como método de
compreensão dos padrões de comportamento dos japoneses.
Weakland (1995), observa que durante a Segunda Guerra Mundial,
principalmente pela impossibilidade de se fazer pesquisa de campo nos países inimigos,
muito antropólogos norte-americanos passaram a utilizar os feature films para estudar os
padrões culturais dos japoneses e alemães (p. 50-1). Mesmo depois da guerra o interesse
nos filmes de ficção como material de estudo das nações modernas continuou,
principalmente pelo grupo Columbia University Research in Contemporary Cultures,
criado por Benedict e continuado por Mead (p.52).
A principal publicação desenvolvida por estes pesquisadores sobre os estudos do
cinema de ficção pela antropologia e suas relações com o estudo da cultura é The Study
of Culture at a Distance, organizada em 1953 6 por Margaret Mead e Rhoda Métraux. O
capítulo seis deste livro aborda aspectos importantes da análise fílmica, com artigos de
Martha Wolfenstein, Rhoda Métraux, Geoffrey Gorer, John Weakland, Vera Schwarz,
Margaret Mead e Gregory Baetson, sobre filmes franceses, italianos, cantoneses e
nazistas.
O autor assinala que através dos filmes não é possível apreender a totalidade dos
padrões culturais, assim como um antropólogo em campo, que recolhe apenas alguns
aspectos da cultura estudada (p. 50). Então se há um recorte nos filmes, há também na
pesquisa de campo e isso não torna o filme um recurso inferior ao da pesquisa
presencial.

6
A edição consultada por mim foi lançada em 2000.

3
Para ele, “feature films são documentos culturais por definição” (p. 46), assim
aponta a correspondência entre os mitos e os filmes, ao considerar a análise das
películas ficcionais um trabalho próximo ao da antropologia tradicional:
Ao projetar imagens estruturadas do comportamento humano, interação
social, e a natureza do mundo, filmes ficcionais nas sociedades
contemporâneas são análogos em natureza e significância cultural, às
histórias, mitos, rituais e cerimônias das sociedades primitivas que
antropólogos têm há muito tempo estudado. (WEAKLAND, 1995, p.
54)

Aqui no Brasil são cada vez mais numerosas e qualitativas as pesquisas no


campo da Antropologia Visual realizadas em torno do filme ficcional. Rose S. G. Hikiji
(1998, 2012), realizou uma análise antropológica de filmes de ficção para entender
como são construídos os discursos da violência no cinema; Edgar Teodoro da Cunha
(1999), analisa os filmes de ficção de temática indígena produzidos pelos não-índios e o
meio no qual foram feitos; Andrea Barbosa (2002), centra-se no trajeto entre imagem,
memória e experiência ao estudar os significados das imagens construídas sobre a
cidade de São Paulo nos filmes paulistas produzidos nos anos 80; Debora Breder
Barreto (2008), faz uma reflexão sobre o modo pelo qual as narrativas ocidentais
contemporâneas, incluindo o cinema, tratam os gêmeos; entre outros.
Piera (1994), aponta que pensar a produção audiovisual enquanto objeto de
pesquisa nas ciências sociais requer quatro níveis distintos de análise, sendo o primeiro
deles enquanto meios de comunicação, um sistema de transmissão de informações, no
qual o espectador “ao ver o filme ou o documentário, adquire certo conhecimento sobre
como são, como vivem e como pensam ou como se comportam outros seres humanos”
(p. 11). Um segundo que age como modo de representação, a forma como nos informa
sobre determinada sociedade. O terceiro deles utiliza o audiovisual como técnica de
investigação, como instrumento descritivo de análise do comportamento registrado. Um
quarto aspecto leva em conta o cinema enquanto processo social e como produto
cultural.
Os filmes de Ghobadi são importantes para se pensar a antropologia visual, pois
nos ajudam a refletir sobre a representação da criança através do audiovisual e a
produção de conhecimento sobre alteridade.

4
A voz da alteridade

Os anos 1980 foram marcados pela crise da representação. Tanto no campo da


antropologia, quanto do cinema o debate sobre como representar a alteridade foi
acirrado. Ella Shohat e Robert Stam, em Crítica da imagem eurocêntrica (2006),
discutem a representação da alteridade, principalmente no cinema ficcional, sob a
hegemonia eurocêntrica da cultura midiática. Para os autores, a representação é
governada pelo “princípio semiótico de que algo ‘está no lugar’ de uma outra coisa, ou
de alguém, ou algum grupo está falando em nome de outras pessoas ou grupos” (Idem,
p. 268).
O que eles denominam ‘fardo da representação’ é justamente a busca,
empreendida por alguns cineastas e críticos, por uma maior fidelidade nesta
representação da “realidade” contra as distorções e os estereótipos criados em relação a
grupos marginalizados (que não fazem parte do eurocentrismo) quando são retratados
na tela. Os autores distinguem dois tipos de realismo, o realismo como objetivo
brecthiniano, que desmascara o aparato (reflexivo) e o realismo como estilo, que produz
um “efeito de realidade” ilusionista (Idem, p. 264). O fardo da representação
corresponde a este “efeito de realidade” que alguns filmes procuram alcançar. Vale
deixar claro que os autores não defendem essa fidelidade, uma vez que o cinema
corresponde a uma visão mediatizada do mundo. O que eles reivindicam são
representações justas, que só são alcançadas quando os grupos marginalizados assumem
o controle de sua própria representação, pois “a falta de participação local na produção
leva a um retrato unidimensional dos colonizados, que são vistos como sombras vazias,
sem definição cultural” (Idem, p. 277). Mas a auto-representação não garante que ela
seja não-eurocêntrica, vai depender de como o cineasta a realiza e de como ele se
apropria dos meios de produção (Idem, p. 279). A “polifonia consiste na criação de um
arranjo textual onde a voz daquele grupo pode ser ouvida com força e ressonância”
(Idem, p. 312), assim a representação deixa de ser monofônica e passa a ser polifônica.
Prática que permite que o outro, não seja retratado através de estereótipos.
James Clifford (2002), sobre a autoridade etnográfica, aponta que “a escrita
etnográfica atual está procurando novos meios de representar adequadamente a
autoridade dos informantes” (Idem, p.48), aproximando de uma escrita dialógica, onde a
voz dos informantes rompe com a autoridade monofônica. Se pensarmos nos filmes de
Ghobadi, onde os atores participam intensamente do filme, seja improvisando ou

5
criando em cima de suas narrativas de vida, podemos pensar essa etnografia como
dialógica, apesar da interferência do diretor – a escolha dos planos, dos
enquadramentos, do que filmar, do que não filmar e da montagem - as vozes dos atores
se sobressaem nesses filmes.
Shohat e Stam (2012) propõem pensar no filme além de sua acuidade mimética,
dando uma atenção especial também às vozes; pensar na “voz social real ou figurativa
que fala ‘através’ da imagem” (p. 309), em um movimento dialético e diacrítico,
chamando atenção para o som, o silêncio, a voz, o diálogo e a língua. O conceito de voz
remete a um realismo “de delegação e interlocução, uma fala situada entre o ‘quem fala’
e para quem se fala’” (Idem, p. 310). Essa voz incorpora um discurso, mas não se
identifica exatamente com ele, pois enquanto o discurso é institucional e transpessoal, a
voz é personalizada: “uma voz individual é uma soma de discursos, uma polifonia de
vozes” (Idem, p. 311).
Assim, o lugar da criança nesta cinematografia é determinado não só como
representação pela imagem, mas também enquanto voz e autoridade. Esta pesquisa não
visa questionar o que é o “real” ou a autenticidade dentro dos filmes, mas sim qual o
lugar que a criança ocupa dentro deles. A partir da análise fílmica podemos identificar
as vozes das crianças nos filmes.

A análise fílmica

A análise fílmica corresponde à decomposição (como instrumento


metodológico) dos filmes em sequências, cenas e em alguns casos até planos, para então
estabelecer suas relações e interpretá-las.
Para responder ao problema de pesquisa elaborado pela minha pesquisa, ou seja,
para determinar o lugar da criança no cinema de Bahman Ghobadi, é preciso se ater a
alguns aspectos pontuais do filme. O principal deles é a personagem, seguido pelo ponto
de vista, ponto de escuta e narrativa. Outros elementos também nos ajudam nesta
questão, como cenário (locações), iluminação e figurino. A seguir, elenco cada um
desses pontos e sua importância para a pesquisa.
As crianças como personagens são construídas por seus objetivos, suas ações,
seu caráter, seu lugar dentro da fábula 7 e pela perspectiva pela qual são filmadas. Elas

7
Emprego o termo fábula tal como foi definido por Aristóteles (s/d) e David Bordwell (1996). Que vêem
a fábula como uma combinação dos atos, em uma cadeia de eventos cronológicos de causa e efeito, com
tempo e espaço definidos.

6
têm a mesma fórmula da personagem dramática, presente tanto na literatura quanto no
teatro ou no cinema.
A ação desses personagens está relacionada diretamente à ação dramática, que é
definida por Renata Pallotini como “um evoluir constante de acontecimentos, de
vontades, de sentimentos e emoções” (2013, p. 23), e ainda como um “movimento e
evolução que caminham para um fim, um alvo, uma meta, e que se caracterizam por
terem a sua caminhada pontilhada de colisões, obstáculos, conflitos” (Ibidem). Sendo a
personagem quem determina esta ação.
A grande diferença entre a ficção e o documentário (ou a etnoficção) está nesta
construção de personagem, no objetivo dado pelo diretor. Assim, é construída uma
trama que tem por meta o herói conseguir ou não realizar este objetivo imposto. A
narrativa fílmica é construída a partir deste objetivo da personagem. No caso do filme
Tempo de embebedar cavalos, por exemplo, o objetivo principal de Ayoub é conseguir
o dinheiro para pagar a cirurgia do irmão doente. Para atingir sua finalidade, o garoto se
arrisca nas gélidas e minadas montanhas curdas com sua mula, transportando cargas
através da fronteira entre o Irã e o Iraque 8 . É seu objetivo que determina a trama, onde
seu maior antagonista é o clima.
Para Aristóteles, a noção de mímesis está relacionada à ação dos personagens,
para ele os caracteres têm que ser: bons, o que significa serem bem construídos e não
necessariamente bondosos; apropriados, com um caráter conveniente às suas ações;
semelhantes, não cópias do real, mas sim imitação de seres melhores que nós, elevá-los
e permitir que sejam o que não o são; coerentes, mesmo que tais personagens sejam
incoerentes em suas ações, eles devem ser coerentes com a fábula; e suas falas e ações
devem ser necessárias ao ordenamento dos fatos (Aristóteles, 1999, p. 54-5). Em relação
à semelhança é necessário ressaltar que a verossimilhança deve estar presente tanto nos
personagens quanto na sequência de ações para o espectador reconhecer neles
semelhanças com o ser humano, ou então uma lógica, devendo assim parecer verdadeiro
para o público se identificar. Não se trata de uma relação de contiguidade com o mundo
empírico, mas de uma verdade interna à obra.
Renata Pallotini, em Dramaturgia: a construção da personagem (2013), elabora
alguns modelos de análise de personagens teatrais, que podem ser utilizados também

8
Vale ressaltar que os personagens do filme são crianças curdas, sobre as quais Ghobadi realizou também
o documentário Life in fog (1999). A grande diferença deste documentário para a ficção em questão é
justamente a trama construída, o objetivo de Ayoub, que não estava presente no documentário e que
proporciona ao filme seu caráter ficcional.

7
para a análise fílmica. Para responder ao problema proposto por mim na pesquisa, o
foco da análise se concentra em algumas questões, como: indicar o grau de liberdade ou
determinação dos personagens, estudar os conflitos, verificar suas evoluções, indicar as
vontades e objetivos das principais personagens e os obstáculos que encontram, apontar
os conflitos internos, estudar a ação dramática e as funções dramatúrgicas (p. 190-1).
Outro foco importante a se ater na análise é o ponto de vista no cinema. Vanoye
e Goliot-Lété (2013) identificam algumas maneiras de compreendê-lo: no sentido
visual, as perguntas que pretendemos fazer é: “de onde se vê aquilo que se vê? De onde
é tomada a imagem? Onde esta situada a câmera?” No sentido narrativo, as indagações
que devem ser feitas em relação a este sentido são: “quem conta a história? Do ponto de
vista de quem a história é contada? Esse ponto de vista é detectável ou não?” (p. 48).
Temos ainda um outro ponto de vista a identificar, para situar as crianças nos filmes,
que é o ideológico, que visa identificar a opinião, o “olhar” do filme (do autor) sobre os
personagens e a história contada e como se manifesta.
De acordo com Michel Chion (1993), o ‘ponto de vista’ no cinema opera em duas
instâncias diferentes: a primeira diz respeito ao lugar de onde o espectador vê, ao ponto
no espaço no qual a cena é considerada; a outra instância, subjetiva, está relacionada ao
personagem, se ele vê o que o espectador vê, pois os pontos de vista da câmera
raramente correspondem aos dos personagens.
Diferentemente com o que acontece na sequência inicial de Tempo de embebedar
cavalos. A câmera que Ghobadi usa na maioria dos 44 planos desta sequência é uma
câmera baixa, geralmente na perspectiva dessas crianças. O ‘ponto de vista’ do
espectador começa a ser construído de acordo com o ponto de vista dos personagens. Os
adultos passam por essas crianças e vemos deles apenas o que elas, com suas alturas
baixas enxergariam: dos joelhos para baixo. Elas são mostradas pequenas diante deles,
como se fossem serem invisíveis. Ao posicionar a câmera o diretor escolhe como quer
que o espectador enxergue o personagem que ele retrata. Portanto, perceber os
posicionamentos de câmera e suas denotações é essencial na análise fílmica.
Como estamos falando de vozes, além de imagens, outro foco importante está no
‘ponto de escuta’ (CHION, 1993), que tem relação direta com os sons do filme e a voz
dos personagens. Este ponto também opera nas duas instâncias, a espacial e a subjetiva.
A primeira tem a ver com o lugar espacial de escuta, de onde o espectador ouve; já a
segunda instância está diretamente ligada à representação visual de um personagem,
quando se associa a escuta de um som ao personagem mostrado (p. 75-77).

8
O que visamos identificar neste caso é: As vozes dos personagens são ouvidas com
clareza ou como ruídos? A criança fala muito ou pouco? A voz dela se sobressai a dos
adultos? Sua maneira de falar provoca empatia ou rejeição do público? Qual idioma ela
fala 9 ? Essa voz é diegética ou extra-diegética? Qual o estatuto dessas vozes? O ponto de
escuta é coerente com o ponto de vista (visual)? A música é representacional ou
somente estimula a interpretação da narrativa? Tais perguntas desenvolvidas durante a
análise nos permite compreender o lugar da criança neste cinema enquanto imagem e
enquanto som.
Em relação à narração, outro aspecto importante, atemos à David Bordwell
(1993). Para ele, a narração no filme de ficção “é o processo pelo qual a trama e o estilo
do filme interagem na ação de indicar e canalizar a construção da fábula pelo
espectador” (p. 53). Sendo assim, o filme narra quando a trama organiza as informações
da fábula. No cinema, as decisões sobre o que filmar (tema), como filmar
(enquadramentos, duração dos planos) e a montagem (como os planos são ordenados a
fim de contar uma história) formam a estrutura narrativa dos filmes.
Bordwell (1993) classificou cinco diferentes modos de narração, dentre eles, o
modo mais próximo do cinema de Ghobadi é o do neorrealismo italiano, no qual a
narração possui um conhecimento restrito, a auto-consciência é mais elevada do que no
filme clássico, apresenta um narrador em primeiro plano, o autor é presente, a narração
é construída a partir de situações limites e o final geralmente é aberto. Este tipo de filme
possui um ou mais protagonistas, este protagonista é guiado por um objetivo único e
não pelo desejo, movimenta-se passivamente, traçando um itinerário de situações
sociais. Nos filmes de Ghobadi o meio age como o grande antagonista, os personagens
acabam se tornando mais testemunhas e vítimas deste meio do que conseguem interferir
para mudá-lo.
A narrativa é uma representação, no sentido aristotélico, “é evidente que não
compete ao poeta narrar exatamente o que aconteceu; mas sim o que poderia ter
acontecido, o possível, segundo a verossimilhança ou a necessidade” (Aristóteles, s/d).
Ghobadi não filma a realidade dessas crianças, mas cria histórias que possuem suas
verdades internas.

9
Nos filmes citados há uma mistura de curdo, árabe e farsi. A importância de se identificar esses idiomas
se dá pelos curdos não poderem usar sua língua materna nos países pelos quais são colonizados, então
quando Ghobadi opta por realizar Tempo de embebedar cavalos em farsi (com algumas expressões e
músicas curdas) e Tartarugas podem voar em curdo e árabe, ele faz uma opção política.

9
O figurino é analisado sob duas perspectivas, primeiro enquanto vestimenta
feminina islâmica, onde analiso se o diretor obedece aos códigos islâmicos de
vestimenta assim como estabelecido para a censura dos filmes produzidos no país. A
segunda perspectiva, é distinguir se se trata de um figurino criado exclusivamente para o
filme ou de roupas dos próprios atores. Isso interfere no quanto desses atores está
presente no filme.
Outro ponto importante é em relação ao cenário. Ghobadi utiliza somente locações
reais, que mostram o contexto no qual a personagem está realmente inserida. “O acesso
à psicologia dessas personagens é possível principalmente através do exame do seu
ambiente externo” (SAEED-VAFA, ROSENBAUM, 2003, p. 202).
Em Tartarugas podem voar o campo de refugiados, os escombros e as casas locais
serviram de locação para o filme. As pessoas foram filmadas em seus próprios
ambientes, nos quais as personagens interagem e que funciona também como um
complemento de sua personalidade. Em Tempo de embebedar cavalos, as montanhas
cobertas de neve, a escola, a casa das crianças, todos os espaços que aparecem no filme
são vivenciados cotidianamente por elas.
Em ambos os filmes podemos perceber que a iluminação é toda natural. O diretor
não utiliza iluminação artificial, por isso são raras as cenas filmadas no período noturno.
Isso interessa a partir do momento que abordo seu trabalho como um cinema de
resistência, que foge das normas convencionais de se fazer cinema.
O material extra fílmico, como documentários, making ofs e entrevistas, também
dão suporte para a pesquisa. Neste caso em questão, onde abordo também o modo de
produção do filme, os materiais behind scenes, garantem um bom suporte de análise.

Conclusão

Diante de inúmeras opções de análise que o cinema ficcional oferece, escolhi o


caminho exposto nesta comunicação para trilhar minha pesquisa, apresentada aqui como
work in progress, que leva em conta tanto a análise fílmica quanto a documental.
Não me interessa buscar padrões de comportamento ou a relação que o filme tem
com o universo empírico, mas sim como Ghobadi constrói a infância em seus filmes, se
estamos falando de estereótipos, de representações ou de filmes polifônicos, que fogem
da maneira convencional de se fazer cinema. Interessa trilhar o caminho feito por
Ghobadi na construção dessas crianças.

10
A análise fílmica é a ferramenta pela qual este caminho é trilhado. Um olhar
atento à construção de personagens, aos pontos de vista e de escuta, à narrativa e aos
detalhes técnicos, após a decupagem dos filmes em seqüências ou cenas, interpretando-
as e relacionando-os com a bibliografia de base, formam o corpo do trabalho.
Procurei demonstrar que este processo, do filme ficcional enquanto objeto de
pesquisa antropológico, tem sido abordado com recorrência durante a história da
disciplina. E que aqui no Brasil é cada vez maior o número de pesquisadores que se
debruçam sobre este tema. A pesquisa sobre Ghobadi se soma ao trabalho desses
pesquisadores citados, ao trabalhar sob a perspectiva antropológica, que investiga como
a alteridade (criança) é construída nesses filmes.

Referências

ARISTÓTELES. Poética. In: Aristóteles - Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova


Cultural, 1999.
_____. Arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro, [s./d.]. Disponível em:
<http://www.culturabrasil.org/poetica/artepoetica_aristoteles.htm> Acesso em: dez,
2013.
BARBOSA, Andréa. São Paulo: Cidade Azul. Imagens da cidade construídas pelo
cinema paulista dos anos 80. Tese de doutoramento em Antropologia social da
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2002.
BARRETO, Debora Breder. Do mito ao... cinema: a incestuosa gemeidade (um close
sobre a figura dos gêmeos nas narrativas contemporâneas). Tese de doutorado em
Antropologia. Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro, 2008.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense,
1984.
_____. “A doutrina das semelhanças”. In: Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense,
2012a.
_____. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras escolhidas I.
São Paulo: Brasiliense, 2012b.
BORDWELL, David. La narración en el cine de ficción. Barcelona: Paidós, 1996.
CHION, Michel. La audiovisión. Barcelona: Paidós, 1993.
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século
XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

11
CUNHA, Edgar Teodoro. Cinema e imaginação. A imagem do índio no cinema
brasileiro dos anos 70. Dissertação de mestrado em Antropologia social da Universidade
de São Paulo. São Paulo, 1999.
FERREIRA, Francirosy C. B. Abelhas, aranhas e pássaros – imagens islâmicas em
movimento. In: BARBOSA, A.; CUNHA, E. T.; HIKIJI, R. S. (Orgs). Imagem-
conhecimento: antropologia, cinema e outros diálogos. São Paulo: Papirus, 2009, pp.
199-226.
HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Imagem-violência: etnografia de um cinema provocador.
São Paulo: Terceiro nome, 2012.
_____. “Os antropólogos vão ao cinema”. In: Cadernos de Campo, São Paulo, V. 7, n°
7, pp. 91-112, 1998.
MEAD, Margaret; MÉTRAUX, Rhoda. The Study of Culture at a Distance. Oxford:
Berghahn Books, 2000.
PALLOTINI, Renata. Dramaturgia: a construção da personagem. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
PESSUTO, Kelen. A representação da criança no cinema de Bahman Ghobadi.
Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os
dias 02 e 05 de julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil.

_____. A etnoficção no cinema iraniano. Trabalho apresentado na X Reunião de


Antropologia do Mercosul, realizada entre os dias 10 a 13 de julho de 2013, Córdoba,
Argentina.

PIERA, Elisenda Ardévol. La mirada antropológica o la antropología de la mirada.


Tese de doutorado apresentada na Universidad Autónoma de Barcelona. Barcelona:
1994.
SAEED-VAFA, M.; ROSENBAUM, J. Abbas Kiarostami. Illinois: University of
Illinois Press, 2003.
SHOHAT, Ella; STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica: Multiculturalismo
e Representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.
TAUSSIG, Michael. Mimesis and alterity. New York: Routledge, 1993.
VANOYE, Francis; GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas:
Papirus, 2013.
WEAKLAND, John. “Feature Films as Cultural Documents”. In: HOCKINGS, Paul
(Org) Principles of Visual Anthropology. New York: Mouton, 1995.

Filmografia
TARTARUGAS PODEM VOAR. Direção: Bahman Ghobadi. Irã/França/Iraque: 2004,
DVD (95 min).

12
TEMPO DE EMBEBEDAR CAVALOS. Direção: Bahman Ghobadi. Irã: 2000, DVD
(80 min).

13

Você também pode gostar