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da margem ao centro: estudo sobre

o controle punItIVo dos grafIsmos


urbanos em santa marIa/rs
from tHe margIn to tHe center: a study on tHe punItIVe
control of urban grapHIcs In santa marIa/rs
l uiza d aMião w eber *
M árcia s aMuel K essler **
s alo de c arValho ***

RESUMO: Este trabalho procura mapear os discursos e os processos


de criminalização do grafismo urbano na Cidade de Santa Maria/RS.
Com o objetivo de apresentar as distintas vozes dos atores envol-
vidos com o grafismo e o controle punitivo da sua prática, foram
realizadas entrevistas semiestruturadas e análise de documentos e
técnicas metodológicas que permitiram problematizar o material bi-
bliográfico selecionado sobre grafite e pixação. A perspectiva crítica
da criminologia cultural forneceu as chaves interpretativas para a
análise do tema, inclusive no que tange às suas projeções em sentido
político-criminal.
PALAVRAS-CHAVE: Grafismo urbano; pixação; grafite; criminolo-
gia cultural; criminologia crítica.
ABSTRACT: This paper seeks to investigate the speeches and the
criminalization processes of urban graphics in the city of Santa
Maria/RS. With the purpose of presenting the different voices of
the actors involved in graphics movements and the punitive control
of their practices, semi-structured interviews and document analy-
sis were carried out – methodological techniques that allowed the
discussion of the selected literature on graffiti and graffiti tag-
ging. The cultural criminology’s critical perspective provided the
framework for the analysis of the subject, including its projections in
the criminological field.

*
Mestranda do PPG em Direito da UFSM.
**
Mestranda do PPG em Direito da UFSM, Bolsista Capes.
***
Professor Adjunto da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ, Professor Colaborador do PPG
em Direito da UFSM.

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Revista de estudos CRiminais 58
doutRina naCional
Julho/setembRo 2015

KEYWORDS: Urban graphics; graffiti; graffiti writing; cultural cri-


minology; critical criminology.
SUMÁRIO: Introdução: o problema de pesquisa; 1 A pixação e as
agências de controle punitivo na Cidade de Santa Maria: o local e a
escolha dos entrevistados; 2 A pixação como desvio e a inquirição
sobre as suas “causas”; 3 Pixação e direito à cidade: desvio e arte;
4 Estilo e crime: os “crimes de estilo”; Problematizações finais: “Pi-
xação é crime, grafite é arte” (ou não); Referências.

E o que é a cidade? É um caderno, para escrever, para desenhar.


(Vico Pax)

A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva de um direito à


cidade. (Márcia Tiburi)

IntroduçÃo: o problema de pesQuIsa


O interesse pelo estudo dos grafismos urbanos1 surgiu a partir de duas
ações policiais, amplamente divulgadas pela mídia local, realizadas na Ci-
dade de Santa Maria, centro geográfico do Rio Grande do Sul. Na Operação
Cidade Limpa e na Operação Rabisco, a Polícia Civil gaúcha cumpriu mandados
de buscas e apreensões nas residências de pessoas identificadas e acusadas
de praticar o crime de pixação2.
A Operação Cidade Limpa foi deflagrada no dia 27 de junho de 2012, a
partir do cumprimento de 35 mandados de busca e apreensão. O resultado
foi a apreensão de sprays, facas e um revólver calibre 32. Após cinco meses
de investigações, foram identificados, segundo a Polícia Civil, 20 grupos e 36
pessoas envolvidas diretamente com pixação na cidade3.

1 O termo grafismos urbanos, inicialmente utilizado por Pennachin (2003), busca denominar
a prática híbrida da grafitagem e da pixação, denotando uma inter-relação entre as duas
atividades. Utiliza-se o termo devido à dificuldade de se entender ambas as práticas com
determinação específica.
2 Por uma opção estética e política, a grafia do termo, no texto, será aquela usada pelos
pixadores, com “x” ao invés de “ch”, marcando um ato de subversão linguística.
3 No relato de Miotto, jornalista de um veículo da mídia alternativa de Santa Maria, na
“Operação Cidade Limpa”, “a Polícia Civil mobilizou o contingente de 108 agentes, 12
delegados e 36 viaturas para realizar mandados de busca e apreensão contra 36 supostos
pixadores, que na divulgação prévia da ação na mídia local já figuravam como supostos
envolvidos também em roubos e furtos [...]. Nas moradias, foram apreendidos diversos
materiais que seriam indícios de prática criminosa: sprays, tintas, cadernos de desenhos
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A Operação Rabisco consistiu em uma ação conjunta entre a 1ª Delegacia


de Polícia Civil (1ª DP) e Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente
(DPCA). Em 31 de julho de 2013, foram cumpridos 30 mandados de busca
e apreensão na residência de 14 adolescentes e 16 adultos, nas Cidades de
Santa Maria, Alvorada e Viamão, todas no Rio Grande do Sul. Foram apre-
endidos 30 tubos de sprays, quatro placas de sinalização de trânsito, cinco
computadores, três notebooks, maconha e um revólver. Durante a investiga-
ção, que durou cerca de dois meses, foi identificado o grupo “Urbanos”, que
estaria realizando pixações desde o começo do ano de 2013, principalmente
na região central de Santa Maria.

(“Operação Rabisco”. Foto: Jean Pimentel/Agência RBS. Fonte: www.clicrbs.com.br)

Dado o aspecto histórico e cultural que envolve a pixação como forma de


expressão e de liberdade artística, cumpre questionar de que forma essa ativi-
dade se desenvolve no meio urbano e como se relaciona com a ideia de desvio.
A partir desses questionamentos, o estudo foi realizado com base no seguinte
problema: Quais os discursos dos atores sociais e institucionais que se relacio-
nam com a prática e a repressão do grafismo urbano em Santa Maria/RS.
Com a finalidade de responder a este questionamento, a pesquisa op-
tou por uma abordagem qualitativa a partir da técnica da análise de discurso.
Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, no período de 18 de março de

com traços ‘suspeitos’, computadores pessoais e até portas de roupeiros figuraram lado a
lado com um revólver de calibre 32 carregado e garrafas de bebida alcoólica, aparentemente
efetivando a suposta ligação entre a violência e os pixadores. Sprays, cadernos e diversos
materiais com tags (nome dado às assinaturas feitas por grafiteiros e pixadores) ou traços
‘suspeitos’ ocuparam na mídia local o mesmo espaço que se costuma dar aos quilos de
drogas, lotes de produtos contrabandeados ou arsenais bélicos apreendidos em operações
policiais convencionais” (Miotto, 2012:[s.p.]).
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2014 a 22 de abril de 20144, com um designer/grafiteiro5, um psicólogo e pro-


fissionais ligados direta ou indiretamente às agências de controle e repressão
aos grafismos urbanos na Cidade de Santa Maria. Em paralelo, a análise te-
órica abarcou a revisão bibliográfica dos estudos que envolvem o grafite e a
pixação como fenômenos criminológico (desvio) e jurídico-penal (crime).

1 a pIXaçÃo e as agêncIas de controle punItIVo na


cIdade de santa marIa: o local e a escolHa dos
entreVIstados
Santa Maria é uma cidade localizada na região central do Rio Grande
do Sul, com população total de 261.031 pessoas e área da sede equivalente a
121,84km². A cidade se caracteriza pela constante presença de jovens prove-
nientes de outras regiões do sul do país, muitos deles atraídos pela Universi-
dade Federal de Santa Maria, instituição que possui quase 30.000 estudantes.
Nos termos propostos por Maffesoli, a concentração de jovens na ci-
dade facilita “[...] a constituição dos microgrupos, das tribos que pontuam a
espacialidade se faz a partir do sentimento de pertença, em função de uma
ética específica e no quadro de uma rede de comunicação” (1998:194). Assim,
a partir desta concepção de tribos, estruturadas em redes de pertencimentos
e sociabilidade, é possível analisar a formação de grupos de grafiteiros/pixa-
dores que interagem na urbe santa-mariense.

(Grafismos Urbanos em imóveis particulares, no Centro de Santa Maria. Fonte: Arquivo


pessoal Márcia Samuel Kessler)

4 Apesar de a escolha dos entrevistados ter ocorrido devido à atividade artística ou à profissão
exercida junto aos Poderes Públicos (Executivo, Legislativo ou Judiciário), as suas opiniões
pessoais não refletem um posicionamento institucional.
5 Grafiteiro, pintor, artista gráfico e artista de rua. Diversas são as definições para os agentes
das intervenções urbanas; entretanto, algumas delas são criminalizadas e outras não. A
questão da consensualidade e a divergente noção de “valorização” do espaço são as que
mais pesam em relação ao julgamento dessas práticas.
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Em um primeiro momento, analisa-se o discurso de pessoas que pos-


suem relação direta ou indireta com os grafismos urbanos. Posteriormente,
com o intuito de compreender a pluralidade dos discursos que envolvem o
problema de pesquisa, optou-se por entrevistar profissionais que atuam na
rede dos Poderes Públicos envolvidos com a repressão ou o controle do meio
ambiente da cidade: Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

(Grafismos Urbanos em imóvel particular e imóvel público, em Santa Maria. Fonte: Arqui-
vo pessoal Márcia Samuel Kessler)

O “Entrevistado 1” é magistrado de carreira, vinculado ao Tribunal de


Justiça do Rio Grande do Sul. O “Entrevistado 2” é responsável pela Secreta-
ria que coordena as atividades da guarda municipal – criada com a finalidade
de auxiliar na segurança dos espaços públicos, conforme a Lei Complemen-
tar nº 85/2011 (Lei Municipal). O “Entrevistado 3” é membro da Assembleia
Legislativa e foi o relator da legislação relativa ao grafismo urbano que esta-
belece a atual política municipal antipixação (Lei Ordinária nº 5.794/2013). O
“Entrevistado 4” é um reconhecido artista gráfico local que realiza interven-
ções urbanas. O “Entrevistado 5” é um psicólogo que pesquisa, em nível de
pós-graduação, as intervenções urbanas de grafitagem e pixação.

2 a pIXaçÃo como desVIo e a InQuIrIçÃo sobre as suas


“causas”
Uns acham que é aventura, né. Outros pra marcar território. Eu acho que
eles têm um problema psicológico, né. Eles não conseguem se inserir na
sociedade como pessoa e procuram fora da sociedade algo que os traz de
volta à sociedade cometendo esse tipo de vandalismo, no caso, que é se
aventurar no alto dos prédios ou pintar prédio público ou privado. Eu acho
que isso aí é uma questão social e psicológica também da inserção do jovem
quando ele não consegue estar inserido na sociedade. (Entrevistado 2).

Tem várias coisas simbólicas que estão atrás do fundo do debate. Não é só
a questão do risco do menino, do jovem, do adolescente, rebelde. Não, não,
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não é só isso. Aí tem problemas psicológicos também. Aí tem consequên-


cias também psicológicas, não é. Uma cidade, quando enfrenta o vandalis-
mo pela pichação, porque na minha concepção é um ato de vandalismo, até
porque a arte tem outras expressões muito melhores [...]. (Entrevistado 3)

Uma das questões que apareceram de forma recorrente nas entrevistas


foi a do possível desvio de ordem psicológica que marcaria os sujeitos envol-
vidos com pixações. O “Entrevistado 2” direciona a sua análise em dois sen-
tidos: primeiro, destaca o caráter de aventura da prática da pixação como ne-
cessidade de delimitação territorial; segundo, frisa o “problema psicológico”,
identificando na pixação dificuldades de inserção social. O “Entrevistado 3”,
embora aponte questões relacionadas ao aspecto etário, igualmente enfatiza
os “problemas psicológicos” daqueles sujeitos que usam a pixação como uma
expressão desviante (não artística).

(Grafismos Urbanos em imóveis particulares, em Santa Maria. Fonte: Arquivo pessoal


Márcia Samuel Kessler)

Segundo Velho (1985), no nível do senso comum o problema do desvio


normalmente é remetido a uma perspectiva de patologia, e os órgãos de co-
municação de massa encarregam-se de divulgar e de enfatizar esta perspectiva
psicologizante. No entanto, lembra Sposito (2000) que a percepção da grafita-
gem/pixação centrada na “rebeldia” ou no “problema psicológico” dificulta a
compreensão da realidade social na qual esses jovens estão inseridos:
Fenômenos como o rap, o funk, e a prática da pichação ou do grafite algumas
vezes podem ser expressões da violência ou da delinquência juvenil e da au-
sência de movimentos coletivos como, também podem, em outras situações
desvelar o seu contrário, ou seja, a formação de novos atores coletivos. Por
essas razões, qualquer aproximação generalizante, para afirmar que todas as
práticas envolvidas nesses fenômenos coletivos juvenis seriam expressões
ou da anomia social, ou sinais do potencial contestador e rebelde do jovem
na esfera pública, cria mais dificuldades do que auxilia na compreensão de
realidades e conjunturas sociais complexas. (Sposito, 2000:81)
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O posicionamento do “Entrevistado 5”, único com formação na área


da psicologia, contrasta com o dos demais, pois diz que a motivação desses
jovens não possui necessariamente uma “natureza psicológica”, podendo ser
questões socioculturais que envolvem a necessidade de expressão:
Se sabe que em São Paulo a questão que fica muito clara é que os picha-
dores vêm a maioria das vezes de periferias, né. Então o que que eles ar-
gumentam, que eles querem se expressar de alguma forma e eles te dizem
inclusive que essa é uma possibilidade. Subir no vigésimo andar e colocar
seu nome é uma forma de se colocar no mundo. Eu vejo essa perspectiva
do que eu chamo de visibilidade não assistida, não olhada. Porque o nome
está lá, tu não sabes quem fez, mas ahm... aliás, tu vês que o nome está lá,
mas tu não conheces a pessoa, tu não assiste ela, tu não sabe o que ela está
querendo dizer. (Entrevistado 5)

A fala do entrevistado permite perceber que há um espaço de inviabi-


lidade social que procura ser rompido a partir do momento em que o jovem
busca visibilidade com as pixações, sobretudo aquelas em lugares mais altos.
A pixação serve ao indivíduo como uma forma de se colocar no mundo e de
se apresentar (tornar-se visível) por meio de grafismos que marcam a sua
presença (assinatura), mesmo que de forma efêmera, nas construções urba-
nas. Essas mensagens muitas vezes podem não fazer qualquer sentido para
quem as lê (“tu não sabe o que ela está querendo dizer”), mas são formas
reais de visibilidade que atualmente são criminalizadas.
A criminalização, de acordo com Becker (2009), ocorre como resulta-
do de um processo interativo no qual as pessoas que impõem as regras de
conduta (empresários morais) definem as fronteiras da licitude e da ilicitude,
do normal e do anormal. A conduta desviante não representa, pois, o refle-
xo de uma natureza patológica que diferencia os anormais das pessoas co-
muns. O desvio não é uma qualidade do ato ou do seu ator (outsider), mas a
consequência da aplicação de um rótulo arbitrariamente criado.

(Grafismos Urbanos em Santa Maria. No muro de um condomínio privado, a mensagem:


“Um bom lugar se constrói com humildade”. Fonte: Arquivo pessoal Márcia Samuel
Kessler)
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Assim, ao ser criminalizada a conduta, o pixador passa a carregar con-


sigo o estigma criado em torno da sua figura outsider, tendo em suas atitudes
a representação social do desvio. Ao senso comum – inclusive as noções que
envolvem e são reproduzidas pelos agentes públicos responsáveis pelo contro-
le social –, a forma mais simples de compreender o “problema” é por meio da
leitura patologizante (“problemas psicológicos”). Estas pessoas, que se distin-
guiriam do padrão de comportamento normal, “[...] apresentariam caracterís-
ticas de comportamentos ‘anormais’, sintomas ou expressão de desequilíbrios
e doença. Tratar-se-ia, então, de diagnosticar o mal e tratá-lo” (Velho, 1985:13).
No entanto, esclarece Baratta (2011) que a partir das teorias da reação
social e do etiquetamento (labelling approach), baseadas na perspectiva do in-
teracionismo simbólico, restou demonstrado que o desvio é uma “realidade
construída”. O desvio não antecede as definições formais e as reações sociais
de controle impostos ao ilícito. Pelo contrário, o ato adquire a qualidade de
desviante ou de criminoso exatamente em razão das respostas formais e in-
formais deflagradas pelas incriminações.
A criminalidade, pois, acaba sendo um status social atribuído por meio
de processos de definição e de mecanismos de reação. Nos termos do autor,
a criminalidade é “um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme
a hierarquia dos interesses fixada no sistema socioeconômico e conforme a
desigualdade social dos indivíduos” (Baratta, 2011:161).

3 pIXaçÃo e dIreIto à cIdade: desVIo e arte


Eles sabem que existe uma operação [policial]. Que não só uma: foram duas
ou três no decorrer dos anos. Eles sabem que tem uma operação e uma caça
às bruxas contra eles e que são colocadas percepções jurídicas. Querem co-
locar em formação de quadrilha, corrupção de menores, querem colocar um
monte de outras coisas, porque sabem que só por pichação não conseguiriam
prender eles. E eles sabem que a polícia tá batendo e invadindo a casa deles.
Mas eles não veem isso acontecer quando acontecem tragédias na cidade.
Isso é uma percepção. Por que alguns preferem assim “Não, eu vou ser pre-
so, mas eu não quero as algemas”. E eles não têm essa opção [...].
Nós temos mil outros problemas. Mil outras percepções mafiosas na Cida-
de de Santa Maria. Tem realmente outras. Só que é muito mais fácil você
montar um circo pra coibir esse tipo de coisa [a pichação]. É muito mais
fácil atacar aquilo [aquele] que não anda armado. (Entrevistado 4)

O contraste apontado pelo “Entrevistado 4” entre a criminalização da


juventude da periferia que realiza intervenções gráficas na cidade (“a polícia
tá batendo e tá invadindo a casa deles”) e a “impunidade” de pessoas política
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ou economicamente privilegiadas (“não veem isso acontecer quando aconte-


cem as grandes tragédias na cidade”) é um diagnóstico relativamente intui-
tivo da seletividade operada pelo sistema penal, denunciada desde a década
de 1960 pela criminologia crítica.
É importante lembrar que o discurso do “Entrevistado 4” está inserido
em um ambiente que se relaciona ao episódio da “Boate Kiss”, incêndio que
provocou a morte de 242 jovens na cidade, em janeiro de 2012. A referência,
portanto, é decorrente da percepção dos jovens acerca da alta repressão aos
pixadores (prisões e busca e apreensões) em contraste com a ausência de res-
ponsabilização de alguns sujeitos, sobretudo agentes políticos, pelo acidente
que marcou profundamente a comunidade santa-mariense.

(Fachada da “Boate Kiss”. Fonte: www.folhapress.com.br e www.g1.globo.com)

Além disso, o discurso estabelece uma tensão na percepção do grafis-


mo urbano como crime (pixação) ou expressão artística (grafite), e estas fron-
teiras não são facilmente identificáveis sob o ponto de vista artístico, jurídico
ou social.
Assim, o discurso do “Entrevistado 4” pode ser tomado como uma fala
de resistência ou de revolta contra um duplo processo de desigualdade: a de-
sigualdade no tratamento dos sujeitos que praticam distintas condutas crimi-
nalizadas (jovem da periferia e autoridades públicas); e a desigualdade na di-
ferenciação do grafismo em dois âmbitos: jurídico e artístico (pixação-crime e
grafite-arte), que, na realidade das intervenções, inexiste. Trata-se, portanto,
de uma denúncia contra dois processos arbitrários de rotulação de condutas.
Para o “Entrevistado 5”, psicólogo e pesquisador, o grafismo urbano é
uma forma de expressão do jovem: “Eu acho que, de certo modo, a primeira
via é a da expressão artística. Eu não consigo dissociar nenhuma forma de ex-
pressão em si, de uma expressão artística. Pensar a vida como uma obra de
arte, assim, nesse sentido”. Se a rua é um local de passagem, o muro e a parede
são fronteiras entre o privado e o público. No entanto, são fronteiras de fácil
acesso e tocar o muro pode ser percebido como tocar o outro, tocar o seu espa-
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ço. Deixar uma mensagem por meio da pixação pode significar a oportunidade
de concretizar um diálogo que não foi possibilitado no ambiente da urbe.

(Grafismos Urbanos em Santa Maria. No alto do prédio, a mensagem: “242 Justiça. A


impunidade toma conta da cidade! Paz”. Fontes: www.subsoloart.com e www.arazao.
com.br)

Da mesma forma como o grafismo ultrapassa a fronteira entre o públi-


co e o privado, o deslocamento dos jovens das margens/periferias ao centro
da cidade possui, igualmente, um significado de transposição de limites, para
além da visibilidade que os símbolos e as palavras permitem. Possibilita, in-
clusive, uma forma de ressignificação do espaço urbano e a reivindicação do
direito à cidade. Nas palavras de Tiburi:
Não é possível negar o direito ao muro branco ou liso em uma sociedade
democrática, na qual está sempre em jogo a convivência das diferenças. O
direito ao muro branco é efeito da democracia. Mas a questão é bem mais
séria do que a sustentação de uma aparência ou de um padrão do gosto. A
pixação é também um efeito da democracia, mas apenas no momento a ela
inerente em que ela nega a si mesma. Ela é efeito do mutismo nascido no
cerne da democracia e por ela negado ao fingir a inexistência de combates
intestinos e velados. A pixação é, neste sentido, a assinatura compulsiva
de um direito à cidade. Um abaixo-assinado, às vezes surdo, às vezes cego,
pleno de erros, analfabeto, precário em sua retórica, mas que, em sua forma
e conteúdo, sinaliza um retrato em negativo da verdade quanto ao espaço –
e nosso modo de percebê-lo – nas sociedades urbanas. Espaço atravessado,
estraçalhado, pela exclusão social. (Tiburi, 2010:[s.p.])

Conforme ensina Becker (1994), em questões que envolvem crime/des-


vio, a pergunta não deve ser “por quê?”, mas “como?”. Isso porque a redução
da explicação ao causalismo é normalmente simplificadora, quando, em ter-
mos de conduta humana (desviante), as circunstâncias do ato tendem a ser
extremamente complexas. Assim, as questões relativas aos fatores (causais)
que levam o indivíduo a ter um comportamento desviante não são apenas
distintas, como, em vários casos, são inatingíveis. Ademais, é fundamental
frisar que o sujeito não possui uma natureza desviante, ou seja, não é des-
viante o tempo todo. Neste sentido, Gilberto Velho assinala:
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O desviante, dentro da minha perspectiva, é um indivíduo que não está


fora de sua cultura, mas que faz uma “leitura” divergente. Ele poderá estar
sozinho (um desviante secreto?) ou fazer parte de uma minoria organiza-
da. Ele não será sempre desviante. Existem áreas de comportamento em
que agirá como qualquer cidadão “normal”. Mas em outras áreas divergi-
rá, com seu comportamento, dos valores dominantes. (Velho, 1985:32-33)

Desta forma, é possível imaginar como os jovens da periferia de Santa


Maria, que realizam intervenções gráficas no centro da cidade, percebem a
complexidade das relações sociais e a sua vulnerabilidade em relação aos pro-
cessos de criminalização. O desvio, portanto, não é apenas um mecanismo de
visibilidade, mas um dispositivo de resistência. Pereira (2010) narra que muitos
grupos pretendem protestar por meio desta escrita, demonstrando, por meio
da pixação, que a sociedade não garante aos jovens da periferia condições bá-
sicas de vida. Na fala de Vico Pax, grafiteiro santa-mariense, o desejo de livre
manifestação do pensamento aparece de forma marcante: “A pixação faz parte
da nossa cultura também. Entra muito também da questão da sociedade que a
gente vive hoje em dia, tão individualista, consumista, que as pessoas sentem
necessidade de se expressarem, gritarem, demarcarem para essa cidade: estou
aqui, existo, tenho uma mensagem para passar. E o que é a cidade? É um ca-
derno, para escrever, para desenhar” (Miotto, 2012:[s.p.]).
Santos (2002), invertendo os padrões entre o normal e o patológico, en-
tende que a infração (desvio) passa a ser o comportamento normal dos jovens
que vivem em condições sociais de vulnerabilidade. No entanto, apesar de
não serem apenas os jovens das periferias que realizam as pixações, é este o
sujeito que será rotulado como criminoso e que será capturado pelo sistema
de controle punitivo (Santos, 2002:119).

(Grafismos Urbanos em Santa Maria. Em um muro público, a mensagem “Faça a sua par-
te”. Em um prédio particular, a mensagem: “2,60 é roubo”, referindo-se ao preço das pas-
sagens urbanas na cidade. Fonte: Arquivo pessoal Márcia Samuel Kessler)

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Outrossim, Velho (1985) explica que em um mesmo âmbito podem


existir várias expressões de cultura, ou seja, aquilo que representa a norma
para alguns, pode representar o desvio para outros:
Com um conceito de cultura menos rígido, pode-se verificar que não é que
o inadaptado ‘veja o mundo essencialmente sem significado’, mas sim que
veja nele um significado diferente do que é captado pelos indivíduos ‘ajus-
tados’. O indivíduo, então, não é, necessariamente, em termos psicológicos,
um ‘deslocado’ e a cultura não é tão ‘esmagadora’ como possa parecer para
certos estudiosos. Assim a leitura diferente de um código sociocultural não
indica apenas a existência de ‘desvios’ mas, sobretudo, o caráter multiface-
tado, dinâmico e, muitas vezes ambíguo da vida cultural. (Velho, 1985:25)

4 estIlo e crIme: os “crImes de estIlo”


[...] pichação é uma riscalhada, na verdade. (Entrevistado 3)

Não tem nada de forma artística. Isso nada mais é do que um estragar [...]
quando é privado ainda perde a pessoa que tem o bem. Quando é público,
perde toda a comunidade. (Entrevistado 2)

Nos discursos dos agentes públicos, notadamente nos do Executivo e


nos do Legislativo, é nítida a incorporação de uma ideia de política ambiental
orientada pelas noções de limpeza (pureza) e homogeneidade estética que é
avessa à “desordem” da “riscalhada”, da pluralidade de cores sem um pa-
drão facilmente consumível. A pixação, alienada do seu caráter de resistência
estética e manifestação artística, existe, nestes discursos, apenas como uma
conduta estereotipada como desvio e criminalização pelo dano ao patrimô-
nio público e privado.

(Fachada do Colégio Olavo Bilac, em Santa Maria. Fonte: www.subsoloart.com)

Ocorre que, no campo das artes gráficas (e da arte em geral), é a per-


cepção individual, decorrente das experiências vividas, que dará significado
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ao objeto interpretado. A “arte” e a “rabiscalhada” não estão (ou não podem


estar) submetidas a um código binário do lícito-ilícito, como o são os códigos
jurídicos. Aliás, é próprio da arte ultrapassar e borrar as fronteiras do normal
e do patológico. Exatamente por isso as pessoas sentem de forma distinta
as experiências artísticas, aceitam com maior ou menor naturalidade uma
determinada obra de arte. Conforme Bordieu, “[...] duas pessoas dotadas de
habitus diferentes que não estão expostas à mesma situação nem aos mesmos
estímulos, porque os constroem de outra maneira, não ouvem as mesmas
músicas nem veem os mesmos quadros e, por esse facto, não podem formar
o mesmo juízo de valor” (Bordieu, 2007:295).
Como as formas geométricas e a linguagem plástica de um determina-
do artista podem não parecer obras de arte para alguns, para outros repre-
sentam uma nova forma de se expressar. O mesmo em relação à pixação: para
uns consiste em meros rabiscos; para outros, possui um profundo significado
existencial. A dificuldade e a complexidade da questão são assumidas pelo
“Entrevistado 1”: “Eu não consigo definir o que é grafite e o que é pichação.
Dizem, um é um escrito. O outro é um desenho. Eu não consigo verificar essa
diferença tão clara”.
A indeterminação da fronteira entre arte e crime exposta na contrapo-
sição pixação e grafite revela a impropriedade da intervenção proposta pelos
Poderes Públicos que acaba por realizar, de forma arbitrária, uma análise
criminalizadora do conteúdo estético de uma intervenção urbana. Trata-se,
portanto, de uma regra que proíbe e pune uma divergência estética, para
além dos eventuais danos patrimoniais.

(Estêncil de 242 “corpos” em frente à “Boate Kiss”, Santa Maria. Fonte: noticias.uol.com.br)
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(Intervenção realizada em frente à Prefeitura de Santa Maria foi considerada irregular


por alterar a sinalização viária. A Prefeitura determinou que os “corpos” fossem apagados.
Fonte: globo.com)

A intervenção punitiva contra as transgressões urbanas de ordem grá-


fica é definida por Ferrel como “criminalização do estilo”. Ao investigar as
práticas de grafitagem em Denver (EUA), Ferrel afirma que o grafite “na qua-
lidade de crime de estilo, colide com a estética das autoridades políticas e
econômicas que atuam como empresários morais objetivando criminalizar e
reprimir a grafitagem” (Ferrell, 1996:187).
Se, conforme o “Entrevistado 1”, “o aspecto estético da cidade inclui
as pichações”, as condutas dos jovens que participam do movimento estão
inseridas na cultura urbana, sendo, pois, a criminalização uma imposição es-
tética arbitrária. As inúmeras formas de comunicação visual são elementos
presentes no cotidiano das cidades (publicidade, por exemplo) e representam
modos de compartilhamento, integração, reforço e transmissão de ideias.
O grafite e a pixação são ferramentas utilizadas pela juventude urba-
na para comunicar algo que, muitas vezes, é uma sensação de desconforto.
Exatamente por isso se transformam em um instrumento/dispositivo de re-
sistência. Mas são uma forma de manifestação radicalmente distinta daquela
imposta diariamente pela publicidade, muitas vezes opressiva, dos conglo-
merados econômicos. Assim, “o grafiteiro e o pichador fazem apenas repro-
duzir os mesmos modelos de comunicação nos quais foram educados. Os
painéis escritos publicitários, que reluzem marcas e produtos, quando cria-
dos pela tribo urbana, que pinta a cidade, passam a refletir nomes e marcas
pessoais” (Spinelli, 2007:117).
Ao fim, a questão passa a ser definida pela instrumentalidade econô-
mica que a arte pode ter, conforme analisa o artista gráfico Braziliano: “Se
você botar a mesma pixação num outdoor, ninguém vai ser contra, porque

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você pagou por aquilo, porque você tem autorização para estar lá. Então, essa
balela de cidade limpa, de poluição visual, é mentira” (Miotto, 2012:[s.p.]).
Segundo Miotto, é fundamental lembrar que o espaço negado aos pi-
xadores é aquele ocupado pelos anúncios publicitários: “O fato de anúncios
publicitários serem pagos e, por isso, terem o respaldo da lei não anula o
espaço visual que ocupam, nem os fazem mais agradáveis ao olhar imediato:
podemos naturalizá-los, do mesmo modo que podemos naturalizar a convi-
vência com a miséria, a pobreza e a violência; apesar de banais, contudo, elas
continuam existindo” (Miotto, 2012:[s.p.]).

(Placas Publicitárias em Santa Maria. Fonte: Arquivo pessoal Márcia Samuel Kessler)

Lembra o “Entrevistado 4”, por exemplo, que a Cidade de Santa


Maria não apresenta qualquer planejamento visual em sua estrutura urbana.
Os componentes visuais da cidade não se harmonizam: as lixeiras são de
cores e tamanhos diferentes; os contêineres de lixo e as paradas de ônibus
possuem padrões diversos; não há regulamentação da publicidade, inclusive
sonora. Então por que a pixação afeta tanto a sensibilidade estética quando
não há harmonia entre os elementos que compõem o visual da urbe?

(Diferentes padrões estéticos das paradas de ônibus, no Centro de Santa Maria. Fonte:
Arquivo pessoal Márcia Samuel Kessler)

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O discurso do padrão estético parece ser, portanto, apenas uma justifi-


cativa aparente ou uma falácia meramente retórica, visto as irregularidades e
as descontinuidades que emergem no cenário urbano. O central nos proces-
sos de criminalização, conforme os elementos colhidos, é o da tutela penal da
propriedade e o da utilidade comercial e mercadológica do grafismo.
Neste aspecto, o estudo de Miotto é conclusivo, pois recupera e pro-
blematiza a justificativa do autor da Lei nº 12.408/2011, Deputado Federal
Geraldo Magela (PT-DF), que diferencia grafite e pixação:
“A lei [atual] fala explicitamente em pichação, mas o grafite, oficialmente,
não existe. A pichação, que é disputa de gangues ou competição de quem
picha mais alto, é vandalismo. Grafite é arte”. E como se define arte, então?
A lei é clara: arte é só quando “realizada com o objetivo de valorizar o
patrimônio público ou privado mediante manifestação artística, desde que
consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou arrendatá-
rio do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização do órgão
competente”. (Miotto, 2012:[s.p.])

problematIZaçÕes fInaIs: “pIXaçÃo É crIme, grafIte É


arte” (ou nÃo)
Essa diferenciação a lei não traz em nenhum momento. Ela só fala em picha-
ção e grafite. Não diz o que é um e o que é o outro. Cabe ao intérprete usar
uma situação ou outra. Entender o que é uma situação ou outra. Quando na
verdade, tecnicamente, penso eu, não existe diferença. Eu acho que a grande
diferença está em autorizar ou não. Uma vez autorizado, em nenhuma hipó-
tese pode haver crime, em especial, se tratando de esfera privada. Porque o
indivíduo está dispondo do patrimônio que é dele. (Entrevistado 1)

O controle penal da pixação era realizado a partir da noção de dano


patrimonial, conforme a previsão do art. 163 do Código Penal. Com a Lei
nº 9.605/1998 (Lei dos Crimes Ambientais), as intervenções gráficas adquiri-
ram autonomia, e a pixação e o grafite passaram a ter regulamentação própria:
Pichar, grafitar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento
urbano:
Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.
Parágrafo único. Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada
em virtude do seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de
seis meses a um ano de detenção, e multa. (Art. 65 da Lei nº 9.605/1998)

Entretanto, a partir da Lei nº 12.408/2011 houve uma alteração na es-


trutura do tipo legal incriminador, sendo excluído o núcleo “grafitar”:
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Pichar ou por outro meio conspurcar edificação ou monumento urbano:


Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa.
§ 1º Se o ato for realizado em monumento ou coisa tombada em virtude do
seu valor artístico, arqueológico ou histórico, a pena é de 6 (seis) meses a 1
(um) ano de detenção e multa.
§ 2 Não constitui crime a prática de grafite realizada com o objetivo de va-
lorizar o patrimônio público ou privado mediante manifestação artística,
desde que consentida pelo proprietário e, quando couber, pelo locatário ou
arrendatário do bem privado e, no caso de bem público, com a autorização
do órgão competente e a observância das posturas municipais e das nor-
mas editadas pelos órgãos governamentais responsáveis pela preservação
e conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. (Art. 65 da Lei
nº 9.605/1998, com a redação da Lei nº 12.408/2011)

A descriminalização da prática de grafite passa a ser, portanto, condicio-


nada (a) ao objetivo comercial de valorização do patrimônio; (b) ao consenti-
mento ou à autorização do proprietário, locatário, arrendatário ou órgão com-
petente; e (c) à obediência às posturas municipais e a normas de preservação e
conservação do patrimônio histórico e artístico nacional. Como visto anterior-
mente, a questão é reduzida, quase exclusivamente, ao valor que o grafismo
(des)agrega ao bem, motivo pelo qual é falaciosa a pretensa tutela ambiental: a
finalidade última da incriminação é a tutela estatal do patrimônio.

(Adolescentes cumprindo medida socioeducativa: reparação de prédios públicos pixados.


Fonte: www.santamaria.rs.gov.br)

Ademais, a distinção legal entre grafitagem e pixação não encontra uma


precisão entre os próprios artistas gráficos, tratando-se de uma falsa dicoto-
mia. Não existe uma definição que delimite o estilo do grafite e o da pixação.
Lembre-se, inclusive, que esta distinção só é realizada no Brasil, pois nos de-
mais países o conceito geral é o do grafite, que inclui as “pichações” e o “gra-
fite em sentido estrito”, independente do que estas categorias dúbias possam
significar. O “Entrevistado 1” deixa transparecer esta dúvida. A propósito,
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na linguagem dos artistas urbanos fala-se, inclusive, em uma modalidade


intermediária, conhecida como “grapixo”.
Cruz e Costa propõem alguns traços distintivos:
O grafite pode ser encontrado no traçado de linhas simples, algumas vezes
registrando uma escrita ligeira, outras se apresentando com formas colo-
ridas e muito bem elaboradas, cujo significado nem sempre é aparente e
pode servir de código cifrado e secreto entre os participantes do movimen-
to, como fazendo parte de um jogo.

Na pichação onde a escrita alfabética nem sempre se faz presente, podemos


encontrar tanto letras hipoicônicas bem elaboradas, quanto traçados con-
siderados rabiscos, escolhendo-se como suporte monumentos, igrejas, pré-
dios, e o próprio grafite bem elaborado como cenário preferencial. (Cruz e
Costa, 2008:100)

Em princípio, as diferenças estariam ligadas à escolha do tipo de ma-


terial e, sobretudo, pelo fato de a pixação ser caracterizada pela grafia em
preto. O grafite apresentaria uma técnica mais refinada, com o emprego de
recursos mais sofisticados. Embora permaneça dúbio o critério do refinamen-
to técnico, a forma legal de (i)licitide da conduta parece estar ligada, fun-
damentalmente, à autorização da intervenção pelo proprietário do imóvel,
independente do estilo.
Além das questões relativas à tipicidade penal do art. 65, é interessante
problematizar esta inserção na Lei dos Crimes Ambientais, a partir da inda-
gação acerca do bem jurídico tutelado. O art. 65 da Lei nº 9.605/1998 integra o
conjunto “dos crimes contra o ordenamento urbano e o patrimônio cultural”.
O bem jurídico tutelado seria o patrimônio cultural brasileiro, valor de natu-
reza material e imaterial previsto no art. 216 da Constituição Federal. Além
do patrimônio cultural, o tipo penal do art. 65 estaria igualmente voltado
para a proteção da estética urbana, assegurando, via reflexa, a qualidade de
vida das pessoas.
Todavia, conforme destacou o “Entrevistado 4”, no caso de Santa
Maria – assim como a imensa maioria das cidades brasileiras – inexiste pla-
nejamento estético e a poluição visual é, invariavelmente, promovida pelo
marketing das corporações econômicas (banners, placas, outdoors). Neste as-
pecto, a pixação constitui apenas uma parte, muitas vezes insignificante, de
um todo esteticamente caótico. Nesse sentido o “Entrevistado 1”:
Eu acho que a pichação está muito ligada à nossa realidade e ela não vem
de hoje, ela vem de algum tempo [...]. Hoje, nós sequer enxergamos essa pi-
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chação, esse desenho. Então, eu acho que essa característica está tão arrai-
gada no nosso dia a dia que no meu ponto de vista isso não pode mais ser
considerado. Não tem embasamento nenhum, sob qualquer aspecto que se
analise para se considerar como uma forma de poluição. (Entrevistado 1)

Para o “Entrevistado 1”, membro do Poder Judiciário, a previsão do


crime de pixação na Lei Ambiental, para a tutela do patrimônio cultural, se-
ria descabida, pois normalmente o grafismo criminalizado provoca um dano
direto à propriedade privada ou ao patrimônio público, em caso de prédios
oficiais ou monumentos históricos. Ademais, a regra da regulação estética da
propriedade privada é a da ampla liberdade. Assim, segundo o entrevistado,
os atos de pixação que envolvem sobretudo prédios privados, mas também
os públicos, poderiam restar regulados na esfera cível ou administrativa, fora
da órbita criminal.
Nesse caso da pichação me parece que o bem jurídico a ser tutelado na ver-
dade... Afora, não vamos entrar nesse mérito, pois senão entramos numa
seara muito complicada de dano ao patrimônio cultural e dano ao patri-
mônio histórico, vamos deixar isso de fora... Vamos só pensar em prédios
privados e prédios públicos. Me parece que isso poderia ser resolvido na
esfera indenizatória. Eu acho que o Direito Penal não se presta a resolver
esse tipo de dano [...].

A pichação, com a devida vênia dos que pensam em contrário, a mim me


parece um exercício legítimo, ético e que não seria merecedor de censura
alguma. Então, depende muito da circunstância em que essa pichação é
praticada. (Entrevistado 1)

A posição do entrevistado fornece importantes elementos argumenta-


tivos para que possam ser pensadas alternativas de responsabilização não penal
da prática do grafismo urbano, retirando o peso do estigma criminal de atos
que, em sua grande maioria, têm significados fundamentais de exposição das
condições de vulnerabilidade da juventude marginalizada.
A possibilidade de utilização de outros meios que não a esfera penal
busca primar pela composição entre as partes, evitando a criminalização e
identificando novas alternativas e percepções. Mediante um novo olhar sobre
os grafismos urbanos, é possível que se passe a focalizar nos aspectos mais
importantes sobre o tema, trazendo-o das margens ao centro das discussões.

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