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CONSTRUÇÃO NACIONAL E CIDADANIA

ESTUDOS DE NOSSA ORDEM SOCIAL EM MUDANÇA

REINHARD BENDIX

Tradução
Mary Amazonas Leite de Barros

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*» lote W3ri i Sccs. kc.
ip: Szudics cf otir ChaRzixt SOOSL. O^èer
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Bendix, Reinhard
Construção Nacional e Cidadania / Reinhard Bendix ; tradu-
ção Mary Amazonas Leite de Barros. - São Paulo: Editora da Uni-
versidade de São Paulo, 1996. — (Clássicos ; 5)
ISBN: 85-314-0331-6
1. Cidadania 2. Estado Nacional 3. Mudança Social
4. Sociologia Histórica I. Título. II. Série.
96-0119 CDD-320.1
índices para catálogo sistemático:
1. Estado nacional : Construção : Ciência política 320.1
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Printed in Brazil 1996
Foi feito o depósito legal
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES


EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

Tocqueville transporta sua análise para o início da "era da igualdade". Ele


caracteriza o impacto das ideias igualitárias nas relações entre patrões e emprega-
dos e analisa a crise resultante nas relações humanas. Escrevendo nos anos de 1830,
faz especulações sobre o futuro, especialmente na sua brilhante comparação entre
as estáveis condições de igualdade na América e as inseguras condições na França.
Hoje, podemos olhar para essas especulações, bem como para as de Karl Marx, a
partir do ponto de vista vantajoso de uma época posterior. Sem o esforço desses
homens em discernir os esboços do futuro, careceríamos de parâmetros para uma
análise crítica.
Vimos que a vida política medieval depende da ligação entre a posição
hereditária ou espiritual na sociedade, o controle sobre a terra como o principal
recurso económico, e o exercício da autoridade pública. Todos aqueles cuj a posição
ou status os exclui do acesso ao controle sobre a terra são desse modo excluídos
de qualquer participação direta nos negócios públicos. Os direitos e liberdades são
estendidos mais a grupos, corporações e classes do que a sujeitos individuais; a
representação nos corpos judiciários e legislativos é canalizada através de Estados
tradicionalmente privilegiados. Nessa estrutura, nenhum direito imediato é conce-
dido a súditos em posição de dependência económica, tais como arrendatários,
artífices, trabalhadores e criados: na melhor das hipóteses, eles são classificados
sob a casa de seu amo ou representados por ele e por sua propriedade. Esse sistema
é rompido pelas revoluções gémeas do Ocidente - a política e a industrial -, que

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REINHARD BENDIX
levaram ao reconhecimento final dos direitos de cidadania de todos os adultos,
incluindo aqueles em posições de dependência económica.
A análise seguinte começa com a crise no "governo doméstico" analisada por
Tocqueville. Emerge dessa crise um novo padrão de relações de classe, substituindo
a antiga relação tradicional por uma relação de autoridade individualista. Novas
formas de agitação emergem desse novo padrão de relações de classe, envolvendo
a ideia de direitos iguais para todos os cidadãos. Faz-se uma tentativa de reinterpretar
a radicalização das classes mais baixas no decorrer da industrialização inglesa.
Contra esse pano de fundo, o processo de construção da nação é examinado em
termos de uma análise comparativa dos direitos da cidadania. Nos Estados-nações
emergentes da Europa ocidental, o problema político crítico era se, e em que
extensão, o protesto social se ajustaria a toda a cidadania das classes mais baixas.
Relações de Classe numa Era de Contrato
Relações de autoridade individualistas
A reciprocidade das relações sociais está dentro de padrões porque os homens
se orientam pela expectativa dos outros, e toda ação do "outro" limita o âmbito das
respostas possíveis. Autoridade significa que os poucos no comando têm uma
ampla escolha de opções. Inversamente, subordinação significa que os muitos que
cumprem as ordens têm seu âmbito de escolha reduzido. Mas as opções dos poucos
são limitadas, mesmo quando o poder no comando é opressivo. Um desses limites
é que, mesmo a mais drástica subordinação, deixa algumas escolhas àqueles que
obedecem. A não-cooperação tácita pode ser variada, sutil, e mais importante do
que o protesto manifesto. Os subordinados fazem julgamentos, conduzindo a graus
de cooperação ou não-cooperação que são variáveis importantes em cada padrão
de autoridade estabelecido.
A ideologia tradicional que defende os privilégios da aristocracia em nome
de suas responsabilidades deve ser vista por esse prisma. Tocqueville enfatiza os
aspectos positivos das relações sociais que correspondem à sua visão do mundo.
Por mais voluntariosos e evasivos que sejam os senhores individualmente, é
razoável presumir que, por algum tempo, o senso e a prática da responsabilidade
aristocrática por seus inferiores eram relativamente elevados, assim como eram
genuínas a lealdade e obediência dos subordinados. De fato, sem alguma respon-
sabilidade de um lado e alguma lealdade de outro, não teria sentido dizer que as
relações de autoridade tradicionais foram rompidas. É melhor considerar o padrão
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVI11

tradicional como parcialmente um padrão de comportamento e parcialmente um


ideal, em virtude dos violentos conflitos que também caracterizam a sociedade
medieval. Ideais são essenciais nessa conexão, porque eles afetam a orientação
mesmo daqueles que não conseguem viver de acordo com eles. As relações de
autoridade tradicionais permanecem intactas, enquanto as ações e crenças que
fogem desse padrão, bem como aquelas que o sustentam, não solapam a recipro-
cidade de expectativas básica.
Dizer que uma crise de transição se estabelece quando os homens questionam
conscientemente os acordos e convenções previamente aceitos não nos ajuda a
distinguir esse questionamento dos contínuos ajustes de direitos e obrigações que
ocorrem enquanto as relações de autoridade tradicionais permanecem "intactas".
Tais ajustes envolvem modificações de detalhe, que se transformam num questio-
namento de presunções básicas apenas quando elas se acumulam. Usualmente, o
observador contemporâneo é impedido de reconhecer essa distinção. Ele pode ver
uma crise (não existe época sem suas Cassandras), mas ele não consegue dizer se
ela é a crise e aonde ela conduzirá. Em sua análise das relações de autoridade
tradicionais, Tocqueville observa que os senhores fogem cada vez mais de sua
responsabilidade de "proteger e remunerar", mas mantêm seus privilégios de
costume como um direito inalienável. Esse processo se estende séculos a fio,
durante os quais a real rejeição de responsabilidade é completamente obscurecida
pela ideologia tradicional. Quando essa discrepância entre os direitos e responsa-
bilidades dos senhores se torna manifesta?
As ideias referentes à posição do pobre não fornecem a melhor chave a esse
respeito. Ao longo dos séculos, o pobre aprendeu o dever ao trabalho e a virtude
de se satisfazer com o lugar que Deus escolheu para ele. A condenação de sua
indolência e dissipação são um tema constante, mas esses defeitos são considerados
inextirpáveis — um símbolo da classe social inferior. Acredita-se que a qualidade
humana e a responsabilidade social se harmonizam. A baixa posição social e a
condição inferior do pobre também os isentam de responsabilidade; não se pode
exigir muito deles. Por outro lado, a classe alta também significa grande respon-
sabilidade. Mesmo onde as práticas tradicionais são abandonadas, é fácil preservar
o conveniente pretexto de que o rico e poderoso trata o pobre como os pais a seus
filhos. Durante a maior parte do século XIX, o paternalismo sustenta seu apelo;
uma opinião profundamente arraigada não é destruída prontamente. É, contudo,
muito mais impressionante que, na fase inicial da industrialização inglesa, a
responsabilidade de proteger o pobre contra os riscos da vida seja explicitamente
rejeitada. O contraste com o paternalismo torna essa rejeição da responsabilidade
da classe superior um fenómeno evidentemente novo.
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Durante a segunda metade do século XVIII, alguns padres, escritores e
economistas políticos começam a rejeitar a "responsabilidade do rico" como uma
fraude piedosa. As deslocações da Revolução Industrial com seus efeitos cruéis
sobre as massas conduziram ou exigiram novas interpretações da causa da pobreza.
Três dessas interpretações são aqui citadas. Embora intimamente ligadas uma à
outra, elas representam mais ou menos temas separáveis do pensamento social
inglês, quando, nos anos finais do século XVIII, a caridade tradicional e a antiga
legislação de assistência ao pobre como um meio de ajudar o indigente se tornaram
questões controvertidas1.
Uma abordagem vê a causa da pobreza no próprio esforço para minorar a
miséria. O pobre não se inclina a se empenhar; falta-lhe o orgulho, a honra e a
ambição de seus superiores. Antes, essa observação sustentava a opinião de que
o pobre deve ser guiado; agora, sustenta a opinião de que a caridade apenas
destrói o incentivo e, portanto, intensifica a pobreza. A indolência aumenta
quando se tomam providências para socorrer o pobre; a horrível necessidade é
o motivo mais natural do trabalho, pois exerce incessante pressão sobre o pobre.
"O escravo deve ser compelido a trabalhar; mas o homem livre deve ficar
entregue a seu próprio julgamento e critério"2. Aqui a ênfase recai na suposição
de que o rico não pode ajudar o pobre, mesmo que o queira, e ainda de que as
ordens inferiores devem depender de si mesmas. A rejeição da responsabilidade
da classe superior caminha de mãos dadas com a pretensão de que o pobre deve
ser autodependente.
Na segunda abordagem, os esforços perniciosos de caridade estão ligados à
teoria de mercado de trabalho. Deve-se permitir à fome produzir seu efeito, para
que os trabalhadores sejam compelidos a se empenhar. Caso contrário, eles redu-
zirão seus esforços e destruirão sua única salvaguarda contra a fome. Aqui a
mão-de-obra é encarada como uma comodidade como outra qualquer, seu salário
sendo determinado pela demanda por essa comodidade mais do que pela necessi-
dade do trabalhador ou sua habilidade para sobreviver. A única questão relevante
é qual mão-de-obra é preferida pelo empregador. Pois o patrão está sujeito às
mesmas necessidades de oferta e procura que o trabalhador. Isso significa, a longo
prazo, que ele não pode pagar-lhe mais do que ele oferece sem pôr em risco sua
empresa, e, por conseguinte, que os interesses do capital e do trabalho são idênticos.
A teoria de mercado significa que o empregador não pode agir irresponsavelmente
1. Os detalhes não precisarão nos preocupar aqui. Para uma discussão e citações mais amplas, ver meu
estudo Work and Aulhority in Industry, New York, John Wiley & Sons, 1956, pp. 73 e ss.
2. Declaração do reverendo Townsend, op. cit., p. 74.
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

sem prejudicar seu próprio interesse e que o trabalhador não tem outra salvaguarda
senão o empenho e nenhuma garantia contra a fome.
A terceira abordagem, especificamente identificada com a obra de Malthus,
relaciona essa teoria de mercado do trabalho com a teoria da população. Em vez
de afirmar a harmonia de interesse entre ricos e pobres, Malthus reconhece a
inevitabilidade de desgraças periódicas e agudas. Ele atribui esse fenómeno à
tendência da população a aumentar mais rapidamente do que os meios de subsis-
tência, uma lei da natureza que as classes superiores não têm poder para alterar.
Malthus afirma que a pobreza é inevitável e um estímulo necessário ao trabalho,
que a caridade e a ajuda ao pobre apenas aumentam a indolência e a imprevidência,
que as classes superiores não são e não podem ser responsáveis pelo destino do
pobre. Mas, em termos do presente contexto, ele também contribui com uma
importante ideia. Se é uma lei da natureza que os pobres aumentem seu número
além do suprimento de alimento disponível, é responsabilidade das classes mais
altas entender essa lei e instruir as classes inferiores de acordo com ela. A
imprevidência pode ser uma tendência natural, mas também resulta da ignorância
e da falta de restrição moral, e essas falhas podem ser combatidas pela educação.
A educação, portanto, é a tónica da nova ideologia empresarial, uma vez que
os empregadores já não possuem a abrangente autoridade pessoal do senhor
aristocrático. Tem-se muita confiança em forças impessoais como a necessidade
económica e a pressão da população sobre os recursos — muito mais confiança do
que ocorria quando o senhor exercia um domínio inteiramente pessoal sobre sua
propriedade. Mesmo assim, os empregadores devem lidar com a administração de
homens, e no início do século XIX ouviam-se queixas em relação à crescente
distância pessoal que tornava tal administração difícil, especialmente na velha base
paternalista. Com a divulgação das ideias igualitárias declina a ênfase no nível
social; o abismo entre as classes se alarga, como observa Tocqueville, e a influência
pessoal dos empregadores diminui. Conseqúentemente, a confiança é depositada
não apenas nas forças económicas impessoais, mas também na influência impes-
soal das ideias e da educação. É nesse contexto que os propagandistas autónomos
como Samuel Smiles formulam a nova ideologia empresarial, com sua ênfase na
"imensa quantidade de influência" que os empregadores possuem, se se aproxima-
rem de seus trabalhadores "com simpatia e confiança" e "ajudarem[-nos] ativa-
mente na formação de hábitos prudentes"3. Daí em diante, as ideologias
empresariais consistem em combinações temáticas dos três elementos seguintes:
1. o elemento paternalista, modelado segundo a propriedade tradicional, na qual a

3. Op. cit., p. 112.

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dominação pessoal do senhor sobre sua família e serviçais é a tónica; 2. o elemento
impessoal, modelado segundo a concepção de mercado dos economistas clássicos,
em que a pressão anónima da oferta e da procura, da luta pela sobrevivência, força
os trabalhadores a fazer o que seus empregadores mandam, e J. o elemento
educacional, modelado segundo a sala de aula, o laboratório psicológico, ou a
sessão de terapia, nos quais a instrução, os incentivos e as penalidades, ou as
persuasões motivacionais indiretas, são usados para disciplinar os trabalhadores e
impeli-los a intensificar seus esforços.
No decorrer da industrialização na Europa ocidental, podemos postular uma
sequência que conduz primeiramente a um declínio do paternalismo e ao surgimen-
to do elemento impessoal e, subsequentemente, a uma confiança declinante nas
forças de mercado e a uma crescente confiança no modelo educacional. A sequên-
cia aplica-se mais intimamente ao desenvolvimento inglês e americano, embora
mesmo nesse caso seja uma aproximação grosseira. Como o paternalismo sempre
inclui um elemento educacional, a confiança nas forças do mercado foi muitas
vezes obscurecida numa maneira paternalista, e a dimensão educacional é compa-
tível com uma abordagem impessoal e também pessoal. Os antecedentes culturais
diferentes, bem como a estrutura organizacional inconstante dos empreendimentos
económicos, têm muito que ver com as diversas ênfases entre as ideologias
empresariais, tais como as dos Estados Unidos, Alemanha e Japão4.
A dimensão política dessas ideologias é, contudo, de especial importância.
Num Estado-nação emergente que destruiu a antiga fragmentação da autoridade
pública, as agências do governo nacional permitem aos empregadores de mão-de-
obra proteção legal para seus direitos de propriedade. Esses direitos fazem parte
de uma ampla tendência igualitária, que também se expressa no elogio a hábitos
frugais e trabalho árduo, qualidades que habilitam todos os homens a adquirirem
propriedade e status. Ao nível impessoal de apelos ideológicos, essa abordagem
produz certos paradoxos típicos, de importância política.
As interpretações individualistas da relação de autoridade não permanecem
limitadas à empresa. A ideia de um mercado impessoal, que induzirá os trabalha-
dores a oferecer seus serviços e trabalhar diligentemente, demanda políticas que
facilitem a operação desse mercado. Além disso, o recurso a apelos ideológicos e
a métodos educacionais sugere que os incentivos impessoais são insuficientes. Os
empresários também procuram inculcar os hábitos e motivos desejados. Mas,
4. Op. cit., cap. 5; Heinz Hartmann, Authority and Organization m Gcrman Management, Princeton,
University Press, 1959, passim; e James G. Abegglen, TheJapaneseFactory, Glencoe, The Free Press,
1958.
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encorajando a autodependência dos trabalhadores, eles correm o risco de que tal


individualismo termine em protesto político e social, mais do que em cooperação
e submissão.
Pois o elogio a bons hábitos e ao trabalho árduo conduz por si mesmo a
julgamentos hostis de um teor muito provocativo. O trabalhador bom e honesto é
um modelo a ser seguido como distinto do trabalhador preguiçoso e imprevidente,
cujas deficiências são difundidas pelo rádio, em benefício de todos os que o
ouvirem e como um aviso que provoca desprezo e condenação. A maneira pública
pela qual esses "atributos coletivos" são discutidos transforma-os em questão
política. A divisão moral das classes baixas em pobres diligentes e pobres
imprevidentes não só desafia a complacência do indolente, mas também prejudica
o auto-respeito daqueles que permanecem pobres apesar dos mais ativos esforços.
O auto-respeito é ainda mais prejudicado quando o sucesso económico é interpre-
tado como sinónimo de virtude e o fracasso como um sinal de depravação moral.
Num contexto de agitação crescente, tais julgamentos ajudam a transformar a
posição cívica das classes mais baixas numa questão político-nacional. A inter-
pretação individualista das relações de autoridade na indústria aparece, desse
ponto de vista, como um esforço para negar os direitos de cidadania àqueles que
são malsucedidos economicamente, uma abordagem que pode despertar um novo
sentido do direito por parte das classes inferiores e conduzir a esforços tateantes
para definir a posição dessas classes na comunidade política nacional. Do mesmo
modo que Tocqueville focaliza a atenção numa transição nas relações domésticas,
marcadas por uma mudança nos termos de comandos e obediência, assim também
a discussão que se segue focalizará a atenção numa transição em relações de grupo
no nível nacional, marcada por mudanças de ideias concernentes a direitos e
obrigações das classes baixas.

O mal-estar da classe baixa torna-se político: Inglaterra

Quando as transformações políticas são atribuídas a determinantes económi-


cos, a mudança de posição das classes inferiores e a emergência da cidadania
nacional aparecem como subprodutos da industrialização. Essa linha de interpre-
tação desenvolve-se no fim do século XVIII. Parece plausível no sentido de que as
revoluções nos Estados Unidos e na França "refletem o crescimento da burguesia",
enquanto a Revolução Industrial na Inglaterra leva à mobilização política de uma
força de trabalho industrial emergente. Ainda que muito simplificadas, essas
afirmações referem-se a fenómenos históricos mais do que a princípios gerais.
Todavia, é à luz desses fenómenos históricos que todos os eventos políticos foram
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REINHARD BENDIX
de início construídos como subprodutos mais ou menos diretos de processos sociais
e económicos5. Atualmente, sabemos que, em outras partes, as revoluções políticas
ocorreram na ausência de uma classe média economicamente forte e politicamente
articulada, ou talvez por causa dessa ausência, como na Rússia e no Japão.
Novamente, a mobilização política das classes baixas ocorreu como um prelúdio
da industrialização, mais do que como um resultado dela, como, por exemplo, nos
Estados Unidos. Portanto, não teremos muita ajuda se tacitamente aceitarmos a
Europa ocidental e especialmente a Inglaterra como nosso modelo. É verdade que
ali as ideias democráticas se originaram em circunstâncias nas quais as mudanças
socioeconômicas tinham um impacto maciço na estrutura política, mas essas ideias
espalharam-se por todo o mundo, mesmo na ausência de circunstâncias semelhan-
tes. A cidadania nacional e o industrialismo moderno combinaram-se com uma
variedade de estruturas sociais; portanto, devemos reconhecer a democratização e
a industrialização como dois processos, um distinto do outro, por mais intimamente
que, vez por outra, estivessem ligados.
Os dois processos estiveram estritamente ligados na Inglaterra. Por um longo
tempo, o desenvolvimento inglês serviu como modelo para a compreensão do
crescimento económico em relação à modernização política- talvez simplesmente
porque a Inglaterra era o primeiro país a desenvolver uma indústria moderna.
Apenas por essas razões, talvez seja conveniente mostrar que, mesmo na Inglaterra,
é possível distinguir o elemento político em meio à mudança económica. Vimos
que, antes do século XVIII, as classes baixas podiam tentar arrancar à força
concessões dos poderes governantes por uma postura "legitimista" mesclada com
violência; ou que podiam compensar sua exclusão do exercício de direitos públicos
por fantasias milenaristas e banditismo. Formas diferentes de protesto da classe
inferior tornaram-se possíveis, contudo, depois que o despotismo esclarecido e os
filósofos do Iluminismo formularam o princípio de direitos iguais para todos os
homens. A disseminação dessa ideia era certamente facilitada pela industrializa-
ção, um fato que logo foi reconhecido:
Sobre os homens trabalhadores, pelo menos nos países mais avançados da Europa, pode
ser considerado certo que o sistema de governo patriarcal ou paternalista é algo a que não se
submeterão de novo. Esta questão foi decidida, quando aprenderam a ler e tiveram acesso aos
jornais e aos panfletos políticos; quando se permitiu que pregadores dissidentes a eles se
misturassem, e apelassem para suas faculdades e sentimentos, em oposição aos credos profes-
5. Até certo ponto, as teorias sociais e económicas modernas ainda refletem a situação histórica na qual
elas se desenvolveram inicialmente, mas um século e meio depois deve ser possível salvaguardar-se
contra tais preconceitos.
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sados e apoiados por seus superiores; quando foram reunidos em grande número para trabalhar
socialmente sob o mesmo teto; quando as estradas de ferro possibilitaram-lhes mudar de um
lugar para outro, e mudar seus patrões e empregadores tão facilmente como de casacos; quando
foram encorajados a buscar participação no governo, mediante o direito de voto eleitoral r '.

Nessa declaração, Mill descreve um país relativamente industrializado, e suas


referências a pregadores dissidentes e ao direito eleitoral assinalam condições que
são mais ou menos próprias da Inglaterra daquela época. Mas ele também nota
vários fatos que foram quase sempre associados com o recrutamento de uma força
de trabalho industrial: a alfabetização dos trabalhadores, a divulgação de material
impresso entre eles, a concentração física do trabalho, a maior mobilidade geográ-
fica, e a despersonalização do relacionamento no emprego. A descrição de Mill
pode ser considerada equivalente à afirmação de Mannheim de que a "sociedade
industrial moderna" - por mobilizar física e intelectualmente o povo - "incita à
ação as classes que antigamente só desempenhavam um papel passivo na vida
política"7.
Falando em termos gerais, sob a influência de ideias de igualdade, essa
mobilização do protesto da classe baixa passou a orientar-se para a realização de
uma participação completa na comunidade política existente ou para o estabeleci-
mento de uma comunidade política nacional na qual essa participação fosse
possível. Essa consideração pode ser estendida inicialmente a alguns dos distúrbios
populares no início do século XIX na Inglaterra. Para Marx, esses distúrbios são
similares às rebeliões esporádicas nas quais, por vários séculos, camponeses e
artesãos destruíram máquinas como os instrumentos mais imediatos de sua opres-
são*. Escritores posteriores mostraram que essa violência era dirigida contra
banqueiros ou prestamistas assim como contra máquinas, e que, apesar de sua óbvia
agitação, os trabalhadores do início do século XIX na Inglaterra mostram um
surpreendente respeito pela propriedade não diretamente ligada à sua desgraça.

6. John Stuart Mill. Principies ofPoliiicalEconomy. II. pp. 322-323. A afirmação de Mill é aqui cilada
como uma formulação excepcionalmente dará do que era aparentemente um tópico comum de
conversação. Ver o levantamento esclarecedor da crescente consciência das relações de classe de Asa
Briggs, "The Languageof'Class" inEarty Nineleenth Centniy England". em AsaBriggse JohnSaville
(eds.), Essays in Labour History in memory ofG. D. H. Cole, London. Macmillan, 1960, pp. 43-73.
7. Esta é a definição de Karl Mannheim da "democratização fundamental", que é compatível com
diferentes formas de governo, não só com a "democracia". A definição é útil. todavia, porque realça a
emergência de uma comunidade política nacional, na qual todos os adultos, independentemente de
classe, são cidadãos e, portanto, participantes. Ver Karl Mannheim- Man and Socicty in an Age of
Rcconstruction, New York, Hareourt, Brace, 1941, p. 44.
8. Ver Karl Marx, Capital, New York, Modern Library, 1936, pp. 466-478, a respeito de seu levantamento
e interpretação dessas rebeliões.

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RE1NHARD BENDIX
Distinguindo na prática a destruição saqueadora de propriedade daquela "justifi-
cada", pode-se considerar que os trabalhadores se engajaram numa "negociação
coletiva pelo distúrbio" numa época em que as reuniões eram proibidas por leic).
Essa prova é compatível com a ideia de que os operários que se engajam na
violência desejam ao mesmo tempo demonstrar sua respeitabilidade. Estão face a
face com uma iniquidade legal manifesta; são proibidos de se reunirem para a
negociação coletiva pacífica, enquanto as reuniões dos empregadores são toleradas
ou até encorajadas. Portanto, a "negociação coletiva pelo distúrbio" acompanha
facilmente a exigência de direitos civis que foram negados, apesar da aceitação da
igualdade formal perante a lei1".
Embora muito desarticulado a princípio, o apelo contra as iniqiiidades legais
envolve uma nova dimensão do distúrbio social. Para captar a relativa novidade
dessa experiência, temos de confiar na prova circunstancial do período. No fim do
século XVIII e através do século XVIII, a posição cívica do homem comum
tornou-se um tema de debate nacional na Europa. Durante décadas, os debates
sobre a educação básica e o direito ao voto questionam se uni aumento na
alfabetização ou nos direitos de voto entre o povo funcionaria como um antídoto
à propaganda revolucionária ou como um perigoso incentivo à insubordinação11.
É difícil saber quais sentimentos esses debates suscitam entre as próprias pessoas.
Confrontadas com a iniquidade de sua posição legal e um debate público acima de
sua confiança cívica, há naturalmente muita vacilação. O povo parece alternar entre
a insistência nos direitos antigos e as violentas revoltas contra as causas mais
9. A frase foi cunhada por E. J. Hobsbawm, "The Machine Breakers", Past and Prescnt, l, 1952, pp.
57-70. A prova referente à distinção entre saque e tais agitações, como os famosos distúrbios dos
ludditas, é analisada em Frank O. Darvall, Popular Disturbances and Public Ordcr inRegencyEngland,
London, Oxford University Press, 1934, pp. 314-315 e passim.
10. Observe-se a esse respeito a ênfase de Marx no modo pelo qual as reuniões de trabalhadores e
empregadores estimulam um ao outro e a referência no texto abaixo à consciência dessa iniquidade
entre os magistrados ingleses. Um estudo das disputas industriais e agrárias no Japão sugere que quase
o mesmo mecanismo opera num cenário cultural muito diferente. Ver o comentário de que "um número
crescente de fazendeiros arrendatários convenceram-se da necessidade da ação política, quando
souberam com que frequência os veredictos dos tribunais, que se baseavam nas leis vigentes, foram
contra eles", em George O. Totten, "Labor and Agrarian Disputes in Japan Following World War I",
Economic Development and Cultural Changc, IX, out. 1960, pt. II, p. 194.
11. Questões semelhantes foram levantadas com respeito à conscrição universal, uma vez que armas nas
mãos do povo comum eram consideradas uma ameaça revolucionária. Um estudo de caso da questão
do alistamento e seu significado para o desenvolvimento das relações de classe na Alemanha é o de
Gerhard Ritter, Staatskunst und Kricgshandwerk, Munich, R. Oldenbourg, 1954, pp. 60-158 e passim.
Ver também a referida discussão em Katherine Chorley, Armies and thc Art of Rcvolution, London,
Faber & Faber, 1943, pp. 87-107, 160-183. Os referidos debates sobre a alfabetização são analisados
em detalhe com referência à experiência inglesa, em M. G. Jones, Thc Charity School Movcment,
Cambridge, Cambridge University Press, 1938, passim.
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TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

evidentes de opressão; protestos de respeitabilidade e brados por revolução san-


grenta; propostas de reformas específicas e esquemas utópicos de variedade des-
concertante. Mas tal diversidade de manifestações pode ter um denominador
comum na experiência transitória que Tocqueville caracteriza:

[...] há quase sempre uma época em que as mentes dos homens flutuam entre a noção
aristocrática de sujeição e a noção democrática de obediência. A obediência perde então sua
importância moral aos olhos daquele que obedece; ele não mais a considera como uma espécie
de obrigação divina, e ainda não a vê sob seus aspectos puramente humanos; ela não tem para
ele nenhum caráter de santidade ou justiça, e ele se submete a ela como a uma condição
degradante mas proveitosa1-.

Na Inglaterra, em nível político, essa ambivalência é resolvida à medida que


a ideia de que os direitos das pessoas como cidadãos foram negados injustamente
ganha aceitação, porque como pessoas trabalhadoras elas têm direitos, em virtude
de sua contribuição à riqueza da nação.
Há muitas razões para aceitar a plausibilidade dessa interpretação, mesmo
que seja impossível prová-la. Uma das razões é que a iniquidade legal e o debate
público acima da insegurança cívica do povo representam uma negação cumulativa
de sua respeitabilidade, que ocorre justamente quando a industrialização e a
disseminação das ideias igualitárias incitam "à ação as classes que antigamente
desempenhavam apenas um papel passivo na vida política" (Mannheim). Ocasio-
nalmente, essa negação de respeitabilidade é equivalente à negação do direito à
existência, como nesta passagem de Thomas Malthus, que se tornou objeto notório
dos ataques socialistas:

Um homem que nasceu num mundo que já tem donos, se não puder obter subsistência de
seus pais, em relação aos quais ele tem uma justa exigência, e se a sociedade não quer o seu
trabalho, não tem direito de reclamar a mínima parcela de alimento, e, de fato, não tem direito
de estar onde está. No vigoroso festim da Natureza, não há abrigo desocupado para ele. Ela lhe
diz para ir embora, e executará rapidamente suas próprias ordens13.

Declarações extremas como esta ou a referência de Burke à "multidão suína"


foram feitas por intelectuais, e talvez não tenham sido muito conhecidas. Contudo,
a arrogância e o medo eram muito difundidos nos círculos de classe média, e é

12. Tocqueville, Dcmocracy in America, II, pp. 194-195.


13. Thomas Malthus, An Essay on the Principie of Population, 2. ed.. London. J. Johnson, 1803, p. 531.
Esta passagem foi modificada em edições posteriores ao Ensaio.

101
REINHARD BEND1X
razoável esperar uma crescente sensibilidade entre o povo, embora inarticulada,
em resposta a esse questionamento público de sua respeitabilidade.
Os observadores contemporâneos frequentemente comentavam a reação po-
pular. Esses observadores estão com frequência distantes da vida da classe traba-
lhadora, e são partidários no debate concernente às "classes inferiores", e divididos
entre eles mesmos. Seus preconceitos são muitos, mas o sectarismo pode não
apenas sensibilizar como também distorcer o entendimento. Na Inglaterra, obser-
vadores tão diferentes como Thomas Carlyle, William Cobbett, Benjamin Disraeli
e Harriett Martineau comentam o sentimento de injustiça entre os trabalhadores,
sua perda de auto-respeito, o abuso pessoal que os dirigentes da sociedade cumulam
sobre eles, o movimento cartista como a expressão de ultraje da gente do povo à
negação de seus direitos civis, e o sentimento dos trabalhadores de serem uma
"classe proscrita" em seu próprio país'4. Tal desafeição cívica do povo era encarada
com grave preocupação por eminentes oradores em muitas sociedades europeias.
Em retrospecto, essa preocupação parece justificada no sentido de que a posição
do "povo" como cidadãos estava efetivamente em questão15.
A negação implícita ou explícita da respeitabilidade cívica do povo é contra-
riada com certa naturalidade por uma insistência nos direitos do povo que não deve
ser anulada. Essa insistência fundamenta-se primeiro em um sentimento de justa
indignação diante da ideia de que o trabalho, que é "a pedra angular sobre a qual
a sociedade civilizada é construída", é "oferecido menos [...] do que suportará a
família de um homem ordeiro e sóbrio em decência e conforto"16. Essa concepção
14. Ver o capítulo "Rights and Mights", em Thomas Carlyle, Chartism, Chicago, Belford, Clarke, 1890,
pp. 30-39; G. D. H. e Margaret Cole (eds.), The Opinions of William Cobbett, London, Cobbett, 1944,
pp. 86-87,123-124,207, epassim; Hansard's Parliamentary Debates, vol. XLIX, 1839, cols. 246-247;
e R. K. Webb, ThcBritish WorkingClassRcader, London, Allen& Unwin, 1955, p. 96, sobre as fontes
dessas declarações. Também é relevante aqui o famoso símile das "duas nações entre as quais não há
nenhuma comunicação nem simpatia; que são tão ignorantes dos hábitos, pensamentos e sentimentos
uma da outra como se morassem em regiões diferentes, ou como se fossem habitantes de planetas
diferentes, formados por uma raça diferente, alimentados por uma comida diferente, ordenados de
maneiras diferentes, e não fossem governados pelas mesmas leis". Esta passagem ocorre no romance
de Benjamin Disraeli, Sybil, Baltimore, Penguin Books, 1954, p. 73.
15. Para uma visão geral dos esforços propagandísticos para contrabalançar essa "desafeição cívica" na
Inglaterra, ver R. K. Webb, op. cit., passim, e Reinhard Bendix, Work andAuthority in Industry, pp.
60-73.
16. A frase citada é de um folheto de Manchester de 1818, reeditado em J. L. e Barbara Hammond, The
TownLabourer, London, Longmans, Green, 1925, pp. 306-308. No paradigma de Tocqueville, pode-se
dizer que essa ideia fica a meio caminho entre a crença nos "antigos direitos" que foram erroneamente
abolidos e a pretensão de que os próprios servos devem ser os senhores. Notar também a análise de
Von Stein, que afirma que o antagonismo entre os trabalhadores e os empregadores "origina-se na
crença nos direitos e no valor dos trabalhadores individuais, por um lado, e no conhecimento de que,
ais condições presentes da produção mecanizada, os salários do operário não serão proporcionais a
702
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO X\'III

de um "direito de subsistência", com seus tradicionais exageros, a ideia do "direito


do trabalho a toda a produção" e a crença de que cada trabalhador saudável tem
"direito ao trabalho" são os três direitos inerentes ou naturais que se opõem aos
direitos adquiridos contratualmente, os únicos que são reconhecidos pelo sistema
legal prevalecente17. Embora as elaborações teóricas desses conceitos na literatura
socialista não revelem o pensamento do homem comum, é plausível presumir que
o tema comum dessas teorias expressa os esforços do operário num Estado-nação18.
Na Inglaterra, os protestos das classes inferiores parecem objetivar o estabe-
lecimento da cidadania dos trabalhadores. Aqueles que contribuem para a riqueza
e o bem-estar de seu país têm o direito de serem ouvidos em seus conselhos
nacionais, e estão habilitados a uma posição que imponha respeito. Na Inglaterra,
essas demandas nunca alcançam a culminância revolucionária que se desenvolve
mais frequentemente no continente europeu, embora ocasionalmente violentas
explosões também irrompam na sociedade inglesa. Se, apesar de todos os seus
conflitos, a modernização política da Inglaterra ocorreu de uma maneira relativa-
mente contínua e pacífica, isto talvez se deva a que, durante quase todo o século
XIX, a Inglaterra era líder na industrialização e na expansão ultramarina. Os
operários ingleses podiam exigir seu justo lugar na comunidade política da princi-
pal nação do mundo1''. Nesse contexto favorável, o debate nacional concernente ao
status apropriado das classes baixas desenvolve-se na tradicional linguagem da
religião. Certamente, os operários ingleses estão muito desiludidos com a Igreja

aias pretensões como indivíduo". Ver Lorenz von Stein, "Der Begriff der Arbeit und die Prinzipien
áes Aibeitslotines in ihrem Verhàltnisse zum Sozialismus und Communismus", Zeitschrift fur dle
facsmicSzzxs»issaucfiaft. III. 1846. p. 263.
1~. Sobre «ira exposição detalhada dessas concepções de direitos naturais no pensamento socialista e de
sma •ampaubdidadc a» a lei de propriedade, ver Anton Menger, The Right Io lhe Wholc Producc
ofLebonr, Loodon. MacauUa*. 1899. passim.
18. Possjvelmenie. o uso por Man da teoria do valor do trabalho teve seu grande impacto moral na base
dessas concepções de "direitos •atarais*, como é analisado por Menger.
19. Engels considerava os dois fcnôincBos caisalmente ligados, como em seu comentário a Marx
de que o "aburguesamento do proletariado inglês" era em certo sentido "muito natural numa
nação que explorava o inundo todo". Ver s*a cana a Marx. de 7 de outubro de 1858, em Karl
Marx e Friedricn Engels, Ausgewãhlic Briefc, Bcrlin, Dietz Verlag, 1953. pp. 131-132. Todavia,
sua interpretação ignora as heranças históricas q»e incitam «ma "reciprocidade nacional de
direitos e obrigações", apesar da ameaça das ideias revolucionárias e dos esforços para uma
mudança económica rápida. A coincidência entre a posição preferida pela Inglaterra e seus
legados favoráveis à efetivação dessa "incorporação" política do "quito Estado" foi discutida
até agora apenas em trechos e partes de obras. Ver ]. L Hammond. The Industrial Revolution
and Discontent", The Economic History Rcview, II, 1930, pp. 227-228; Henri de Man, The
Psychology of Socialism, New York, Henry Holt, 1927, pp. 39-41, com respeito ao papel do
auto-respeito ofendido no protesto radical inglês; e Selig Perlman, A Theory of lhe Labor
Movcment, New York, Augustus Kelley, 1949, p. 291, que enfatiza o significado especial da
questão do direito de voto.

103
RE1NHARD BEND1X
estabelecida e com os apelos religiosos, que com muita frequência são apologias
mal disfarçadas em favor da ordem estabelecida. Contudo, o ateísmo doutrinário
é raro, e os líderes da classe trabalhadora inglesa muitas vezes fundamentam suas
demandas numa linguagem bíblica ou quase bíblica20. Portanto, a proeminência da
Inglaterra como uma potência mundial e uma prática religiosa comum podem ter
facilitado a incorporação cívica dos trabalhadores, mesmo que o novo equilíbrio
nacional de direitos e deveres não se realizasse facilmente.
Um exemplo extraído do campo das relações industriais ilustra as sutilezas
dessa transição inglesa para uma comunidade política moderna. À primeira vista,
a proibição legal dos sindicatos no início do século XIX parece uma brutal
repressão. Dizia-se que as "reuniões de trabalhadores" reduziam os direitos legais
formais do empregador assim como os do trabalhador. Contudo, em seu exame do
sindicalismo primitivo, os Webbs concluem que a organização ineficiente da
polícia, a ausência de instauração de processo público efetivo e a inércia dos
empregadores eram responsáveis pela ampla ocorrência de reuniões ilegais, apesar
de sua inequívoca proibição21.
Mais recentemente, uma publicação de documentos sobre os antigos sindi-
catos revelou que nem os empregadores nem os funcionários do governo recorriam
a todos os remédios legais que lhes eram franqueados. Aparentemente, os empre-
gadores desejavam que o governo instituísse medidas judiciais contra reuniões
ilegais. Um parecer do promotor-geral, enviado à Secretaria de Negócios Internos,
em 1804, é de especial interesse a esse respeito. O parecer apresenta detalhes do
grande mal das reuniões entre os trabalhadores por todo o país, reuniões conside-
radas claramente ilegais e passíveis de processo. Mas se o governo tivesse de
20. Indícios da relação entre o renascimento religioso e o protesto da classe trabalhadora são discutidos
em Work and Authority in Industry, pp. 60-73, de minha autoria, mas a questão é controvertida. Em
sua obra Social Bandits and Primitive Rebels, pp. 126-149, Hobsbawm questiona que os movimentos
religiosos entre os operários diminuíram seu radicalismo. Em Churches andthe Working Classes in
Victorian England, London, Routledge & Kegan Paul, 1963, K. S. Inglis reúne grande quantidade de
provas que sugerem que os operários ingleses eram marcadamente indiferentes em relação às obser-
vâncias religiosas durante todo o século XIX. Mas mesmo Inglis admite (idem, pp. 329-332) que o
ateísmo era raro entre os operários ingleses (embora pronunciado entre seus colegas do continente
europeu), e que um grande número de crianças da classe operária frequentavam as escolas dominicais.
Tal admissão pode muito bem ser perigosa, contudo, uma vez que a questão não é se os operários
ingleses eram realmente crentes, mas se continuavam a usar ideias religiosas em sua "busca da
respeitabilidade". As ideias religiosas não são necessariamente menos importantes quando se associam
às preocupações seculares. Ver a análise de secularidade e religião no contexto americano de S. M.
Lipset, The First New Nation, New York, Basic Books, 1963, pp. 151-159, e da exacerbação das
relações de classe na ausência de uma linguagem religiosa viável de Guenther Roth, The Social
Dcmocrats in Imperial Germany, New York, The Bedminster Press, 1963,passim.
21. Sidney e Beatrice Webb, The History ofTrade Unionism, New York, Longmans, Green & Co., 1926,
p. 74.
104
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

instaurar processo no caso examinado, poder-se-iam esperar requerimentos de


ações semelhantes por parte do governo a partir de todos os outros sindicatos, uma
vez que "as reuniões existem em quase todos os sindicatos no reino".

Ele conduzirá à opinião de que não cabe aos patrões do sindicato que se sentem
prejudicados instaurar processo, mas sim ao governo. [...] Efetivamente, é preciso admitir que
a ofensa aumentou num grau e numa extensão tais que se tornou muito desencorajador a todos
os indivíduos instaurar um processo, pois as pessoas que ele processaria seriam sustentadas em
seu julgamento e durante sua prisão pelas contribuições de seus confederados, e seu próprio
negócio provavelmente seria abandonado por seus funcionários. Mas então ê claro que é devido
à inércia e à timidez dos patrões que a conspiração chegou a esse ponto, e é de se recear que
essa inércia, com a interferência do governo, em vez de diminuir, aumentará. [...] Uma vez que
julgaram que a punição de tais ofensas cabia ao governo, eles também pensarão caber ao governo
o ónus da prova, e não a eles, de modo que a futura detecção e instauração de processo contra
essas ofensas provavelmente serão mais difíceis. Ademais, [...] a imparcialidade do governo
ficaria numa situação complicada se, depois de instaurar um processo, por instância dos patrões,
contra a conspiração dos artífices, os artífices recorressem a eles para processar os mesmos
patrões por uma conspiração contra seus homens22.

Esta opinião é instrutiva, ainda que seu discernimento não possa ser consi-
derado representativo.
Seja qual for sua parcialidade em relação aos empregadores, os magistrados
são responsáveis pela manutenção da lei e da ordem. Essa tarefa é complicada
frequentemente pela relutância dos empregadores em recorrer à lei de proibição
das reuniões, por suas repetidas tentativas de induzir o governo a fazê-lo por eles,
por sua tendência a serem coniventes com essas reuniões quando lhes é convenien-
te, e finalmente por sua tendência a rejeitar toda responsabilidade pelas consequên-
cias de suas próprias ações, na crença de que no final o governo manterá a lei e a
ordem e protegerá seus interesses. Não é de surpreender que os magistrados sejam
muitas vezes muito críticos em relação aos empregadores, sustentando que estes
agem com pouco critério, que eles podem perfeitamente arcar com o pagamento
de salários mais elevados, e que as queixas dos trabalhadores são justificadas,
mesmo que suas reuniões sejam ilegais. Algumas vezes, os magistrados até agem
como mediadores informais em disputas entre empregadores e seus operários, no
interesse da manutenção da paz23. Portanto, nem a parcialidade dos magistrados,
nem o princípio da política de não-interferência, nem o evidente oportunismo dos

22. A. Aspinall (ed.), The Early English Tradc Unions, Documents from thc Home Office Papcrs in thc
Public Rccord Office, London, Batchworth Press, 1949, pp. 90-92.
23. Para exemplos desses vários aspectos, op. cit., pp. 116, 126,168-169, 192-103,216-219,229, 234-235?
237-238, 242, 259-260, 272, 283, e assim por diante.

705
REINHARD BEND1X
empregadores é equivalente à repressão, embora, na prática, pouco se faça para
atender às queixas dos trabalhadores, exceto em termos calculados para prejudicar
sua posição de membros respeitáveis da comunidade.
Nesse período de transição, Tocqueville vê uma importante ameaça revolu-
cionária. O patrão continua a esperar servilismo, mas rejeita a responsabilidade
sobre seus serviçais, enquanto estes exigem direitos iguais e se tornam intratáveis.
No nível societário, o caso inglês se aproxima desse modelo. Muitos empreende-
dores ingleses antigos certamente rejeitam qualquer responsabilidade sobre seus
empregados, embora esperem que eles obedeçam; recusam qualquer interferência
governamental na administração, embora procurem transferir ao governo a respon-
sabilidade por todas as. consequências públicas adversas de seus próprios atos24.
Funcionários do governo apoiavam os empresários em muitos casos, porque
estavam profundamente preocupados com a agitação e a truculência. Dito isto,
várias reservas devem ser acrescentadas. Há alguns fabricantes que reconhecem as
obrigações tradicionais da classe dirigente. Entre alguns magistrados, o princípio
de não-interferência pelo governo é apoiado por uma atitude desprendida e crítica,
mesmo nas primeiras décadas do século XIX. Finalmente, a demanda de igualdade
da classe trabalhadora emergente funde-se num molde mais ou menos conservador
no sentido de que na balança é acrescentada uma busca de aceitação pública de
cidadania igualitária. Em outras palavras, a sociedade inglesa provou ser capaz de
apaziguar a classe baixa como uma participante igual na comunidade política
nacional, embora mesmo na Inglaterra esse desenvolvimento tenha envolvido uma
luta prolongada, e todas as implicações de igualdade como as entendemos atual-
mente só tenham evoluído gradualmente.
Implicações teóricas
A discussão precedente limita-se aos desenvolvimentos na Inglaterra. A
industrialização pode ser iniciada apenas uma vez; depois disso, suas técnicas são
tomadas de empréstimo; nenhum outro país que desde então embarcou no processo
pode começar de onde a Inglaterra começou no século XVIII. A Inglaterra é a
exceção mais do que o modelo. Por algum tempo, a Inglaterra possuía quase o
monopólio nas mais avançadas técnicas da produção industrial, e outros países
24. Com base nisso, mesmo porta-vozes fiéis à ideologia do laissez-faire, empenhavam-se ativamente na
extensão dos controles governamentais. Sobre detalhes a esse respeito, ver Marion Bowley, Nassau
Sénior and Classical Economics, London, Allen & Unwin, 1937, pp. 237-281; S. E. Finer, The Life
and Times of Edwin Chadwick, London, Methuen, 1952, passim; J. B. Brebner, "Laissez-faire and State
Intervention in 19thCentury Britain", Journal ofEconomicHistory, VIII, Supplement 1948, pp. 59-73.
706
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

emprestavam-nas dela. Na maior parte do século XIX, a Inglaterra permaneceu na


vanguarda, combinando a primazia industrial com a política. Retrospectivamente,
sabemos que, como resultado dessas e das condições a elas relacionadas, ela
possuía uma comunidade política nacional, na qual finalmente foi permitido ao
crescente "quarto Estado" participar, por meio de uma redefinição gradual de
direitos e obrigações, mais do que como consequência de guerra ou revolução. Mas
uma compreensão de um caso tão singular como esse é importante no estudo
comparativo da mudança social e política, pois indiretamente ele pode apontar o
que muitos dos outros "casos" têm em comum.
Quando comparamos os industriais retardatários com a Inglaterra e os demo-
cratas retardatários com a França, perguntamos: O que acontece quando um país
não possui uma comunidade política viável, ou quando a comunidade que a possui
está tão "atrasada" em comparação com países democrática e industrialmente
adiantados que deve ser reconstituída antes que a demanda por "cidadania plena"
se torne de algum modo significativa? Não é uma ideia nova sugerir que o protesto
da classe baixa pode progredir de uma demanda por cidadania plena dentro da
comunidade política prevalecente para uma demanda por uma mudança dessa
comunidade, a fim de tornar possível a plena cidadania. Mas, embora essa ideia
seja compatível com a teoria de Marx relativa a um avanço da parada da máquina
para uma ação política, deve-se notar que eu enfatizo a alienação da comunidade
política mais do que a alienação que resulta de "insatisfações criativas", como faz
Marx. Essa mudança de ênfase nos ajuda a ver ao mesmo tempo dois movimentos
de massa do século XIX — o socialismo e o nacionalismo —, em contraste com Marx,
que explica o primeiro enquanto ignora o segundo. Há uma conexão muito estreita
entre agitação nacionalista e socialista, no sentido de que ambas visam de maneiras
diferentes à integração política das massas anteriormente excluídas da participa-
ção. Essa conexão é obscurecida pela separação marxista desses movimentos e pelo
fato de que a primazia da Inglaterra como potência mundial tornou desnecessária
à classe inferior inglesa a pretensão de pertencer, em matéria de auto-respeito, a
uma comunidade política nacional25. Contudo, o excepcional desenvolvimento da

25. Ver a seguinte declaração, extraída de um discurso do líder cartista Hartwell, proferido em 1837:
"Parece-me uma anomalia que, num país em que as artes e as ciências alcançaram tal nível, especial-
mente pela diligência, habilidade e esforços do artesão... apenas um adulto masculino em sete deva ter
um voto, que em tal país as classes trabalhadoras devam ser excluídas do seio da vida política". Citado
em M. Beer, A History ofBritish Socialism, London, Allen & Unwin, 1948, II, pp. 25-26. É instrutivo
contrastar essa declaração com a do líder nacionalista italiano Mazzini: "Sem País, não se tem nome,
símbolo, voz, nem direitos. [...] Não se iludam com a esperança de emancipação das condições sociais
injustas se não conquistarem primeiro um País para vocês. [...] Não se deixem levar pela ideia de
melhorar suas condições materiais sem primeiro resolver a questão nacional. [...] Hoje [...] vocês não

107
RE1NHARD BENDIX
Inglaterra serviu aos teóricos sociais durante um século como modelo que os outros
países presumivelmente seguiam.
A abordagem aqui proposta não é uma mera inversão da teoria marxista. Mane
considera os movimentos sociais do século XIX como protestos contra privações
psíquicas e materiais que se acumularam como resultado do processo capitalista;
ele vê nas massas um anseio fundamental por satisfações criativas numa boa
sociedade. Interpreto esses movimentos de protesto como políticos, e defino seu
caráter em termos do contraste entre uma comunidade política pré-moderna e uma
comunidade política moderna. Quando se assume esta opinião, o século XVIII
aparece como um importante hiato na história da Europa ocidental. Antes dessa
época, as massas populares eram inteiramente excluídas do exercício dos direitos
públicos; desde então, elas se tornaram cidadãos, e nesse sentido participantes na
comunidade política. A "era da revolução democrática" estende-se dessa época ao
presente. Durante esse período, algumas sociedades universalizaram pacificamente
a cidadania, enquanto outras foram incapazes de fazê-lo e, consequentemente,
sofreram vários tipos de levantes revolucionários. Assim concebido, o problema
das classes inferiores num Estado-nação moderno consiste nos processos políticos
através dos quais, ao nível da comunidade nacional, a reciprocidade de direitos e
deveres é gradualmente estendida e redefinida. É bem verdade que esse processo
foi afetado a todo momento por forças que emanavam da estrutura da sociedade.
Mas mantenho que a distribuição e redistribuição de direitos e deveres não são
meros subprodutos de tais forças, que elas são vitalmente afetadas pela posição
internacional do país, pelas concepções sobre o que a distribuição adequada na
comunidade nacional deveria ser, e pelo "toma-lá-dá-cá" na luta política26.
Minha tese está de acordo com a ênfase dada por Tocqueville à reciprocidade
dê direitos e obrigações como uma marca da comunidade política. Na Europa, a
crescente consciência da classe trabalhadora expressa acima de tudo uma experiên-
cia de alienação política, isto é, um senso de não ter uma posição reconhecida na
são a classe trabalhadora da Itália; são apenas frações dessa classe. [...] Sua emancipação não pode ter
nenhum começo prático até que o Governo Nacional [seja fundado]". Ver Joseph Mazzini, The Dutics
ofMan and Otlicr Essays, New York, E. P. Dutton, 1912, pp. 53-54.
26. Esta abordagem difere do marxismo, que trata a política e o governo como variáveis dependentes da
mudança da organização de produção, sem enfrentar a relativa autonomia das ações governamentais
nem a existência contínua das comunidades políticas nacionais. Ela também difere da abordagem
sociológica da política e das instituições formais, que constrói a primeira como meros subprodutos de
interações entre indivíduos e as segundas como uma "carapaça superficial", dentro da qual essas
interações fornecem a chave para uma compreensão realista da vida social. Ver uma análise crítica
desse reducionismo em Wolin, op. cit., caps. 9 e 10. Uma abordagem alternativa que enfatiza a
autonomia parcial, bem como a interdependência do governo e da sociedade está contida na obra de
Max Weber, como é discutida acima, nas pp. 47-50.
108
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

comunidade cívica, ou de não ter uma comunidade cívica na qual participar. Pelo
fato de a participação política popular ter-se tornado possível pela primeira vez na
história europeia, o protesto da classe baixa contra a ordem social confia (pelo
menos no início) em códigos de comportamento prevalecentes e, portanto, reflete
uma mentalidade conservadora, mesmo onde conduz à violência contra pessoas e
propriedade27. Mais do que comprometer-se com uma busca de uma nova ordem
social, as massas recentemente politizadas protestam contra sua cidadania de
segunda classe, exigindo o direito de participação em termos de igualdade na
comunidade política do Estado-nação21*. Se esta é uma avaliação correta dos
mal-articulados impulsos e anseios característicos de muitas agitações populares
entre as classes baixas na Europa ocidental, temos então uma chave para o declínio
do socialismo. Pois a posição cívica dessas classes não é mais uma questão
preeminente em sociedades nas quais a igualdade de cidadania foi institucionali-
zada com êxito.
A seção seguinte deste capítulo analisa essa institucionalização numa base
comparativa.

A Extensão da Cidadania às Classes Inferiores2'

Elementos de cidadania

No Estado-nação cada cidadão encontra-se numa relação direta com a auto-


ridade soberana do país, em contraste com o Estado medieval, no qual essa relação

27. Ver nessa conexão a expressão de aborrecimento de Engels em relação à arraigada "respeitabilidade"
dos trabalhadores ingleses e seus líderes, em sua carta a Sorge, de 7 de dezembro de 1889, em
Ausgewáhltc Briefe, p. 495.
28. A perspectiva apresentada acima foi desenvolvida por alguns de meus antigos alunos. O estudo de
Guenther Roth do "Isolamento da Classe Trabalhadora e a Integração Nacional" na Alemanha imperial
foi citado anteriormente. Ver também GastonRimlinger, "The Legitímationof Protest: A Comparative
Study in Labor History", Comparative Studics in Socicty andHistory, II, abril 1960, pp. 329-343, do
mesmo autor, "Social Security, Incentives and Controls in the U.S. and the U.S.S.R.", loc. cit., IV, nov.
1961, pp. 104-124, e Samuel Surace, The Status Evolution of Italian Workers, 1860-1914, tese de
doutorado, Department of Sociology, University of Califórnia, Berkeley, 1962.
29. A seção subsequente foi escrita juntamente com o Dr. Stein Rokkan, do Christian Michelsen Institute,
Bergen, Noruega. Adaptei o ensaio original mantendo-o de acordo com os propósitos deste volume.
As formulações subsequentes enfatizarão o sentido classificatório no qual o termo "classes inferiores"
é usado. A questão de quais setores das "classes inferiores" desenvolvem a capacidade para a ação
conjunta e sob que circunstâncias isso ocorre permanece em aberto. Embora, até certo ponto, uma
resposta ao protesto ou o resultado do protesto antecipado, a extensão de cidadania ocorreu com
referência a grupos ampla e abstratamente definidos, como todos os adultos acima de 21 anos, ou
mulheres ou adultos que tivessem posses especificadas, que preenchessem certos requisitos residenciais

709
REI.\'HARD BESDIX
direta é desfrutada apenas pelos grandes homens do reino. Por conseguinte, um
elemento essencial da construção da nação é a codificação dos direitos e deveres
de todos os adultos que são classificados como cidadãos. A questão é o quão
exclusiva ou inclusivamente o cidadão é definido. À parte algumas excecões
notáveis, a cidadania a princípio exclui todas as pessoas social e economicamente
dependentes. Durante o século XIX, essa restrição maciça é gradualmente reduzida
até, finalmente, todos os adultos serem classificados como cidadãos. Na Europa
ocidental, essa extensão da cidadania nacional é mantida isolada do resto do mundo
pelas tradições comuns do Stãndestaat™. A integração gradual da comunidade
nacional desde a Revolução Francesa reflete essas tradições sempre que a extensão
da cidadania é discutida em termos do "quarto Estado", isto é, em termos de
extensão do princípio de representação funcional àqueles previamente excluídos
da cidadania. Por outro lado, a Revolução Francesa também fez avançar o princípio
plebiscitário. De acordo com esse princípio, todos os poderes que intervêm entre
o indivíduo e o Estado devem ser destruídos (como Estados, corporações etc.), de
modo que todos os cidadãos como indivíduos possuem direitos iguais perante o
soberano, autoridade nacional31.
Cabe acrescentar uma palavra a respeito dos dois adjetivos "funcional" e
"plebiscitário". A expressão "representação funcional" deriva da estrutura política
medieval, na qual se considera apropriado, por exemplo, que os anciãos ou o grande
mestre de uma guilda a representem numa assembleia municipal. Aqui a função
refere-se genericamente a todo tipo de atividade considerada apropriada ao Estado.
Usado de maneira mais ampla, o termo "função" designa atividades ou direitos e
deveres específicos de grupos. Como tal, ele abrange ambas as coisas, observações
de comportamento e mandatos éticos daquilo que é considerado apropriado. O
primeiro, contudo, implica teorias muito diferentes de sociedade. Na sociedade
medieval, a posição e as funções apropriadas dos grupos constituintes são fixadas
etc. Tais grupos abrangem muitas pessoas além daquelas que têm poucas posses, renda baixa, pouco
prestígio, e que por causa dessas incapacidades são convencionalmente consideradas "pertencentes"
às classes interiores. A referência aqui é ao grupo classificatório maior de todos aqueles (incluindo as
"classes baixas") que foram excluídos de qualquer participação direta ou indireta nos processos de
tomada de decisão política da comunidade.
30. A tal ponto que o historiador Otto Hintze nega o desenvolvimento nativo do constitucionalismo em
qualquer outro lugar. Ver "Weltgeschichtliche Vorbedingungen der Reprasentativverfassung", em
Staat und Vcrfassung, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962, pp. 140-185.
31. Esses dois modelos foram analisados em termos da distinção entre o princípio representativo e o
plebiscitário por Ernst Fraenkel, Dic rcprâscntativc und dic plebiszitãrc Komponcntc im dcmokratis-
chen Vcrfassungsstaat, Cadernos 219-220 de Rccht und Staat; Tubingen, J. C. B. Mohr, 1958. A
ideologia do plebiscitarianismo é documentada em J. L. Talmon, The Origins of Totalitarian Dcmo-
cracy, New York, Frederick A. Praeger, 1960.
110
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

numa ordem hierárquica. Nas sociedades ocidentais modernas, essa visão antiga
foi substituída por conceitos de função de grupo que pressupõem o ideal de
igualdade, exceto nos casos em que conotações medievais subsistem. O termo
"plebiscito" refere-se ao voto direto numa questão pública importante por todos
os eleitores qualificados de uma comunidade. Quanto maior a comunidade, tanto
menores as qualificações estipuladas para os eleitores e, portanto, quanto maior o
número de pessoas que se encontram numa relação direta com a autoridade pública,
tanto maior será o conflito entre o princípio plebiscitário e o funcional. O sentido
específico de ambos os princípios varia naturalmente com as definições de ativi-
dades específicas de grupo e a extensão e qualificações de membro da comunidade.
Várias acomodações entre o princípio funcional e plebiscitário caracteriza-
ram a sequência de decretos-leis e codificações por meio dos quais a cidadania se
tornou nacional em muitos países da Europa ocidental. A fim de examinar esse
desenvolvimento comparativamente, os vários direitos de cidadania devem ser
distinguidos e analisados. Em seu estudo Citizenship and Social Class, T. H.
Marshall formula uma tipologia de direitos tripartite:

• Direitos civis como "liberdade pessoal, liberdade de palavra, pensamento e fé, o direito à
propriedade e a concluir contratos válidos, e o direito à justiça".
• Direitos políticos tais como o direito de voto e o direito ao acesso a cargo público.
• Direitos sociais que vão do "direito ao bem-estar económico e à segurança mínimos ao direito
de participar inteiramente na herança social e a viver a vida de um ser civilizado, de acordo
com os padrões prevalecentes na sociedade"32.

Quatro grupos de instituições públicas correspondem a esses três tipos de


direitos:
r\ •

• Os tribunais, para a salvaguarda dos direitos civis e, especificamente, para a proteção de todos
os direitos extensivos aos membros menos articulados da comunidade nacional.
• Os corpos representativos locais e nacionais como vias de acesso à participação na tomada
de decisão e na legislação.
• Os serviços sociais, para garantir um mínimo de proteção contra a pobreza, a doença, e outros
infortúnios; e as escolas, para possibilitar a todos os membros da comunidade receberem pelo
menos os elementos básicos de uma educação.

32. O ensaio referido foi reeditado em T. H. Marshall, Class, Citizenship and Social Dcvclopmcnt, Garden
City, New York, Doubleday & Co., Inc., 1964, pp. 71-72. A discussão que se segue deve muito à análise
do professor Marshall.

111
REINHARD BENDIX
Inicialmente, tais direitos de cidadania emergem com o estabelecimento de
direitos iguais perante a lei. O indivíduo é livre para concluir contratos válidos,
adquirir e dispor da propriedade. A igualdade legal avança à custa da protecão legal
de privilégios herdados. Cada homem possui agora o direito de agir como uma
unidade independente; contudo, a lei apenas define sua capacidade legal, silencian-
do sobre sua habilidade de usá-la. Ademais, os direitos civis são estendidos aos
filhos ilegítimos, estrangeiros e judeus; o princípio de igualdade legal ajuda a
eliminar a servidão hereditária, iguala a posição de marido e mulher, circunscreve
a extensão do direito dos pais, facilita o divórcio e legaliza o casamento civil33.
Consequentemente, a extensão dos direitos civis beneficia os setores inarticulados
da população, dando um significado libertário positivo ao reconhecimento legal da
individualidade.
Entretanto, esse ganho de igualdade legal subsiste ao lado da desigualdade
social e económica. Tocqueville e outros apontam que na sociedade medieval
muitas pessoas dependentes eram protegidas de alguma maneira contra as dificul-
dades da vida pelo costume e pela benevolência paternal, embora às custas da
subserviência pessoal. A nova liberdade do contrato salarial destruiu rapidamente
toda e qualquer protecão desse tipo que existia anteriormente34. Pelo menos durante
algum tempo, nenhuma nova protecão foi instituída no lugar das antigas; conse-
qiientemente, o preconceito de classe e as desigualdades económicas prontamente
excluem a grande maioria da classe baixa do gozo de seus direitos legais. O direito
do indivíduo de afirmar e defender suas liberdades civis básicas em termos de
igualdade com os outros e pelo devido processo legal é formal, no sentido de que
os poderes legais estão garantidos, na ausência de qualquer tentativa de assistir o
indivíduo em seu uso desses poderes. Como observou Anton Menger, em 1899:
"Nossos códigos de lei privada não contêm uma única cláusula que atribua ao
indivíduo mesmo aqueles benefícios e serviços que são indispensáveis à manuten-
ção de sua existência"35. Nesse sentido, a igualdade da cidadania e as desigualdades
de classe social desenvolvem-se juntas.
33. Ver R. H. Graveson, Status in thc Common Law, London, The Athlone Press, 1953, pp. 14-32. Sobre
detalhes desses desenvolvimentos legais na Alemanha, Áustria, Suíça e França, ver J. W. Hedemann,
Die Fortschrittc dês Zivilrcchts im 19. Jahrhundcrt, Berlin, Cari Heymanns Verlag, 1910 e 1935, 2
vols. Um breve apanhado do pano de fundo e da extensão desses desenvolvimentos na Europa
encontra-se em Hans Thieme, Das Naturrccht und die europàischc Privatrechtsgeschichte, Basel,
Halbing & Lichtenhahn, 1954. Um tratamento mais abrangente encontra-se em Franz Wieacker,
Privatrechtsgeschichte der Nèuzeit, Gõttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1952, esp. pp. 197-216 e
passim.
34. Alexis de Tocqueville, Democracy in America, New York, Vintage Books, 1954, II, pp. 187-190.
35- Anlon Menger, Thc Right to thc Whole Producí of Labor, London, Macmillan and Co., 1899, pp. 3-4.
772
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

A justaposição da igualdade legal e das desigualdades sociais e económicas


inspiraram os grandes debates políticos que acompanham a construção da nação
da Europa no século XIX. Esses debates giram em torno dos tipos e graus de
desigualdade ou insegurança que podem ser considerados intoleráveis e os métodos
que devem ser usados para aliviá-los. Os porta-vozes de uma posição de laissez-
faire consistente procuram responder a essa questão dentro da estrutura dos direitos
civis formais. Tendo obtido reconhecimento legal para o exercício de direitos
individuais, eles insistem que, para permanecer legítimo, o governo deve ser fiel à
ordem jurídica. É coerente com essa posição que, na maioria dos países europeus,
as primeiras leis de segurança dos operários procurem proteger mulheres e crian-
ças, que na época não são considerados cidadãos no sentido da igualdade legal36.
Pelo mesmo critério, todos os adultos do sexo masculino são cidadãos porque têm
o poder de engajar-se no esforço económico e cuidar de si mesmos. Conseqúente-
mente, são excluídos de qualquer pretensão legítima à proteção. Desse modo,
direitos formalmente garantidos beneficiam o afortunado e, mais esporadicamente,
aqueles que são definidos legalmente como desiguais, enquanto toda uma carga de
rápida mudança económica cai sobre o "pobre trabalhador", fornecendo, desse
modo, uma base para a agitação, muito em breve.
Essa agitação é política desde o início. Um dos primeiros resultados da
proteção legislativa da liberdade de contrato é a proibição legislativa dos sindica-
tos. Porém, onde os recursos legislativos são usados tanto para proteger a liberdade
do contrato individual como para negar às classes baixas os direitos de recorrer por
sua vez à mesma liberdade (isto é, o direito de associação), os ataques sobre a
desigualdade se ampliam necessariamente. A igualdade não é mais procurada por
meio da liberdade de contrato apenas, mas pelo estabelecimento dos direitos sociais
e políticos igualmente. Os Estados-nacões da Europa ocidental podem recordar
histórias mais longas ou mais curtas das acões legislativas e decisões administra-
tivas que aumentaram a igualdade dos súditos dos diferentes estratos da população

36. O igualitarismo ideológico, bem como um interesse em demolir restrições familiares na liberdade de
ação económica, foram presumivelmente a razão pela qual a proteção foi estendida primeiramente aos
setores mais desarticulados da "classe baixa". A respeito de uma análise crítica do Código Civil alemão
de 1888 —, exclusivamente em termos dos interesses económicos a qae serviriam suas disposições, ver
Anton Menger, Das búrgcrliche Rccht und dic besitzlosen VolksiiasseiL, Tubingen, H. Laupp'sche
Buchhandlung, 1908. O livro foi publicado originalmente ern 1890. Essa perspectiva omite o interesse
auto-sustentado na legalidade formal que é obra de profissionais legais, e conduz ao prolongado conflito
entre o positivismo legal e a doutrina da lei natural. Ver a esse respeito a análise de Max Weber, Law
in Economy and Socicty, Cambridge, Harvard University Press, 1954, pp. 284-321. Ver também a
esclarecedora discussão desse ponto em Fr. Darmstaedter, Dic Grenzen der Wirksamkeit dês Rcchts-
staates, Heidelberg, Cari Winter Universitãtsbuchhandlung, 1930, pp. 52-84.

113
REINHARD BESDIX
em termos de sua capacidade legal e de seu status legal5". Para cada Estado-nação
e para cada conjunto de instituições podemos apontar com exatidão cronologias
das medidas públicas tomadas e traçar as sequências de pressões e contrapressões,
negociações e manobras, por trás de cada extensão de direitos além dos estratos
dos privilegiados tradicionalmente. A extensão de vários direitos às classes baixas
constitui um desenvolvimento característico de cada país. Uma consideração
detalhada de cada um desses desenvolvimentos notaria o considerável grau com
que os decretos-leis são negados ou violados na prática. Ela sublinharia, portanto,
como a questão da posição cívica das classes baixas era enfrentada ou burlada em
cada país, quais alternativas políticas estavam em estudo, e quais os passos
sucessivos que conduziram finalmente à extensão dos direitos de cidadania. Uma
análise completa poderia esclarecer cada passo ao longo do caminho, mas também
obscureceria o processo global da construção da nação.
Pelo fato de serem considerados em conjunto, os desenvolvimentos dos
vários países europeus também constituem a transformação desde as sociedades
patrimoniais do século XVIII até o Estado de bem-estar do século XX. Um estudo
comparativo dessa transformação do ponto de vista da cidadania nacional parecerá
inevitavelmente abstrato se for justaposto à cronologia específica e à análise
detalhada dos sucessivos decretos legislativos em cada país. Contudo, esse estudo
terá a vantagem de enfatizar a verdade que, considerados cumulativamente e a
longo prazo, os decretos legislativos estenderam os direitos de cidadania às classes
baixas e, portanto, representam um processo genuinamente comparável na Europa
dos séculos XIX e XX.
A discussão que se segue limita-se a um aspecto da construção da nação
europeia ocidental: a entrada das classes inferiores na arena da política nacional.
São consideradas apenas as políticas que têm relevância imediata para os movi-
mentos das classes baixas que procuram ingressar na política nacional38. As
decisões sobre o direito de formar associações e sobre o direito de receber um
mínimo de educação formal são básicas, pois esses direitos estabelecem a plata-
37. Quando todos os cidadãos adultos são iguais perante a lei e livres para dar seu voto, o exercício desses
direitos depende da habilidade e disposição de uma pesssoa para usar os poderes legais a que tem direito.
Por outro lado, o status legal dos cidadãos envolve direitos e deveres que não podem ser voluntaria-
mente mudados sem a intervenção do Estado. Uma discussão da distinção conceituai entre a capacidade
como "o poder legal de fazer" e o status como "o estado legal de ser" encontra-se em Graveson, op.
aí., pp. 55-57.
38. Conseqiientemente, apenas uma consideração incidental é dada às fases inicial e final nesse processo
de mudança: o colapso das sociedades patrimoniais através da extensão dos direitos civis e a codificação
e implementação finais dos direitos ao bem-estar em nossas sociedades "de consumo de massa"
modernas.
114
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

forma para a entrada das classes baixas e condicionam as estratégias e atividades


dos movimentos das classes baixas, uma vez que são formalmente autorizadas a
participar na política. Em seguida, os direitos de participação reais são analisados
em termos da extensão do direito de voto e das disposições para o voto secreto. No
conjunto, a extensão desses direitos é indicativa do que se pode chamar de
incorporação cívica das classes baixas.

Um direito civil básico: o direito de associação e de reunião

Os direitos civis são essenciais a uma economia de mercado competitiva,


porque "dão a cada homem, como parte de seu status individual, o poder de se
engajar como uma unidade independente no esforço económico"3''. Mas, tomando
conhecimento apenas de pessoas que possuem os meios de proteger-se a si mesmas,
a lei efetivamente concede direitos civis àquelas que possuem propriedade ou que
asseguraram fontes de renda. Todas as outras permanecem condenadas por seu
fracasso no esforço económico, de acordo com as opiniões prevalecentes do início
do século XIX. O princípio abstraio de igualdade, que fundamenta o reconhecimen-
to legal e ideológico do indivíduo independente, é muitas vezes a causa direta das
acentuadas desigualdades. No presente contexto, a ilustração mais relevante dessa
consequência é a insistência da lei de que o contrato salarial é um contrato entre
iguais, que o empregador e o trabalhador são igualmente capazes de salvaguardar
seus interesses. Com base nessa igualdade legal formal, em muitos países europeus
negou-se aos trabalhadores o direito de reunião, por causa da negociação com seus
empregadores.
Contudo. a negação do direito de reunião deu origem a dificuldades concei-
tuais e políticas desde o início. Os direitos civis referem-se não só aos direitos de
propriedade e contrato, mas também à liberdade de palavra, pensamento, e confis-
são, que incluem a liberdade de juntar-se a outras pessoas na busca de legítimos
objetivos privados. Tais liberdades baseiam-se no direito de associação — um
princípio legal aceito em vários países europeus (França, Inglaterra, Bélgica,
Holanda), que resolveram, no entanto, proibir aos trabalhadores o direito de
reunião. Sustentava-se que as condições de trabalho devem ser fixadas por acordos
alcançados livremente entre um indivíduo e outro4". Essas proibições legais distin-

30. Marshall, op. cit., p. 87. Itálicos acrescentados por mim.


40. Ver a declaração de Lê Chapelier, autor da lei francesa qoe proibia os sindicatos, de julho de 1791,
como é citada no International Labour Office, Frccdom of Associarions, ILO Studies and Reports,
Series A., n. 28, London, P. S. King & Son, 1928, p. 11. Outras referências a essa obra de 5 volumes
serão dadas no formulário ILO Rcport, com o número e páginas citadas.

115
RE/NHARD BEND1X
guiam-se, entretanto, do direito de formar associações religiosas ou políticas na
medida em que as associações não especificamente proibidas por lei eram legais.
Consequentemente, os decretos particularizavam trabalhadores de várias condi-
ções, mediante regulamentos especiais a fim de "preservar" o princípio de igual-
dade formal perante a lei.
A distinção entre associação e reunião não era feita, contudo, em todos os
países. Para entender esse contraste, devemos recordar a abordagem tradicional do
relacionamento amo-servo, que era semelhante em muitos países europeus. Decre-
tos estatutários foram usados para regulamentar as relações entre amos e servos e
para controlar a tendência dos amos e artífices a se reunirem, no interesse dos
preços ou salários crescentes. Tal regulamentação ganhou importância à medida
que as organizações corporativas declinaram, embora as regulamentações gover-
namentais tivessem se tornado muitas vezes ineficazes pelos novos problemas que
se originaram no acelerado desenvolvimento económico. Os esforços para enfren-
tar esses novos problemas podiam tomar várias formas.
O governo podia tentar usar uma extensão dos dispositivos tradicionais. Essa
abordagem funcionou temporariamente na Inglaterra, mas diminuiu a distinção
entre associações, que eram permitidas, e reuniões de trabalhadores, que eram
proibidas. Nos países escandinavos e na Suíça, as políticas tradicionais tiveram
mais êxito. Esses países permaneceram predominantemente agrícolas até tarde no
século XIX. Eles experimentaram uma notável proliferação de associações religio-
sas, culturais, económicas e políticas que acompanharam o declínio da sociedade
de Estado. Excetuando-se alguns casos de conflitos violentos, seus governos pouco
ou nada fizeram para restringir nem para legalizar essas atividades. Havia diferen-
ças ali também nos vários esforços para enfrentar o crescente desgoverno dos
artífices e trabalhadores agrícolas. Mas nenhum desses países foi tão longe quanto
a Inglaterra na decretação de uma legislação proibitiva especial destinada a aniqui-
lar mais do que a moderar as reuniões dos trabalhadores. Nesse cenário tradicional,
com sua ideologia patrimonial, tal proibição teria violado o amplamente aceito
direito de associação.
Tais reservas não prevaleceram na Prússia e na Áustria, onde, no final do
século XVIII, os controles absolutistas tradicionais sobre as associações de artífices
foram estendidas a uma proibição geral de todas as "assembleias secretas", como
no Código Civil prussiano de 1794. Essa proibição era dirigida principalmente
contra os maçons livres e outras formas primitivas de organizações quase políticas,
que estavam florescendo em resposta às ideias e acontecimentos da Revolução
Francesa (tal legislação era usada contra as reuniões de trabalhadores igualmente).
Uma proibição específica da última ocorreu na Prússia apenas nos anos de 1840,
776
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

embora na Áustria já tivesse ocorrido em 1803. Essa abordagem absolutista pode


ser considerada junto com políticas análogas em outros lugares, que tiveram em
grande parte o mesmo efeito geral sobre as reuniões dos trabalhadores. Na Itália e
na Espanha, as restrições da atividade associativa eram tradicionais e locais, e
dificilmente requeriam dispositivos legislativos específicos para assegurar sua
implementação. Na França, por outro lado, a tradição plebiscitaria de relações
diretas entre Estado e cidadão levaram à promulgação da famosaLoi Lê Chapelier
em 1791, e essa tendência a restringir todas as associações foi fortalecida ainda
mais na época de Napoleão. Havia ali ampla evidência de que o governo absolutista
e o governo plebiscitário eram compatíveis entre si.
Finalmente, na Inglaterra, a manutenção a longo prazo da distinção hostil
entre associações e reuniões mostrou-se difícil. O direito de associação permitia a
agitação política, por meio da qual se podia resistir à proibição dos sindicatos.
Embora a Lei de 1824 que repelia as leis anti-reuniões não fosse efetiva, sua antiga
passagem é uma prova de oposição à desagradável continuação das reuniões de
trabalhadores. Vimos que essas medidas repressivas precisam ser comparadas com
aquelas outras nas quais as violações ficaram impunes, porque os empregadores
não apresentavam queixas e os magistrados não agiam na ausência de uma queixa.
Quando o declínio do sistema de guilda e o crescente progresso do desenvol-
vimento económico sugeriram a necessidade de novas regulamentações das rela-
ções patrão-empregado e das associações de artífices, os vários países da Europa
ocidental responderam com três tipos de políticas muito distintas. O tipo escandi-
navo e suíço continuou a tradicional organização dos ofícios no período moderno,
preservando o direito de associação, e ao mesmo tempo estendendo o regulamento
estatutário das relações entre patrão e empregado e das associações de artífices a
fim de enfrentar os novos problemas. Numa forma modificada, essa variante
representa o conceito medieval de liberdade como um privilégio, um conceito que
certamente contribui para um reforço estatutário dos arranjos existentes. O segundo
tipo, o absolutista, é exemplificado pela proibição prussiana primeiro das associações
de trabalhadores, depois de todas as assembleias secretas, e finalmente das recém-for-
madas reuniões de trabalhadores - mantendo a política do absolutismo esclarecido que
procura regular todas as fases da vida social e económica. Esse tipo representa uma
importante ruptura com a tradição de liberdade como um privilégio jurídico, na medida
em que o rei destrói todos os poderes que se interpõem entre ele mesmo e seus súditos,
embora essa destruição pudesse ser igualmente radical sob o patrocínio plebiscitário.
Finalmente, a política liberal exemplificada pela Inglaterra passou da antiga regula-
mentação das guildas e do relacionamento patrão-empregado para uma política que
combinava a proibição específica das reuniões dos trabalhadores com a preservação
777
REI.VHARD BESD1X
do direito de associação em outros aspectos. Assim, o liberalismo, com sua hostil
distinção entre associação e reunião, representa um limite na metade do caminho
entre a preservação do direito de associação (como era compreendido na estrutura
pré-moderna da Europa) e a negação completa do direito de associação, que era uma
excrescência do absolutismo e uma oposição plebiscitaria aos poderes inde-
pendentes dos Estados e corporações.
Países do primeiro tipo caracterizavam-se por histórias de repressão relati-
vamente insignificantes, enquanto os países dos outros dois tipos suprimiram as
reuniões dos trabalhadores por proibição expressa ou por severas regulamentações
estatutárias por períodos que vão de 75 a 120 anos. Podemos comparar os países
em termos desse intervalo entre as primeiras medidas decisivas, tomadas para
reprimir tendências às reuniões dos trabalhadores, e a decisão final de aceitar os
sindicatos. Na Dinamarca, por exemplo, esse intervalo compreendeu 49 anos, na
Inglaterra, 76 anos, e na Prússia/Alemanha, 105 ou 124 anos, conforme conside-
remos 1899 ou 1918 como a data mais apropriada para o reconhecimento legal dos
sindicatos. Mas a datação desses intervalos é problemática. Os primeiros atos de
repressão obscureceram inevitavelmente a distinção entre uma mera extensão de
regulamentos tradicionais e uma nova e mais severa proibição que individualizava
a classe trabalhadora recentemente emergente. É também difícil datar precisamente
a legislação final dos sindicatos, pois, na maioria dos casos, tal legislação ocorreu
gradualmente. Todavia, essas dificuldades de datação não invalidam a aproximada
tipologia tripartite das políticas que guiaram a extensão do direito de associação às
classes inferiores na Europa ocidental.
O direito legal de formar associações combina o princípio plebiscitário com
o funcional. Sempre que todos os cidadãos possuem esse direito, temos um
exemplo de plebiscitarianismo no sentido formal de que todos gozam da mesma
capacidade legal para agir. Contudo, na prática, apenas alguns grupos de cidadãos
usufruem essa vantagem, enquanto uma grande maioria permanece "desorganiza-
da". Portanto, nos Estados-nações em desenvolvimento da Europa ocidental, as
associações privadas exemplificam o princípio funcional de representação com
base nos interesses comuns, em contraste com os Estados medievais, que gozavam
coletivamente do privilégio de exercer certos direitos públicos em troca de uma
responsabilidade legal comum. Logo foi reconhecido que as organizações baseadas
em interesses económicos comuns perpetuariam ou restabeleceriam princípios
corporativos análogos àqueles do período medieval41. Em seu argumento contra as
41. Não aprofundaremos a questão da continuidade ou descontinuidade entre corporações medievais e
modernas, um problema tratado extensamente nos escritos de Figgis, Gierke, Maitland e outros.
118
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

sociedades de benefício mútuo, Lê Chapelier expressa essa opinião em seu discurso


de 1791 perante a Assembleia Constituinte, ao qual se fez referência anteriormente:

As corporações em questão têm o objetivo confesso de obter assistência para os trabalha-


dores na mesma ocupação onde adoecem ou ficam desempregados. Mas que não haja erro nessa
questão. É do interesse da nação e dos funcionários públicos fornecer trabalho aos que dele
necessitam para seu sustento e socorrer os doentes [...] Não se deve permitir que os cidadãos em
certas ocupações se reunam na defesa de seus pretensos interesses comuns. Não deve mais haver
guildas no Estado, mas apenas o interesse individual de cada cidadão e o interesse geral. Não
se permitirá a ninguém despertar em nenhum cidadão nenhuma espécie de interesse intermediá-
rio, nem apartá-lo do bem-estar público por intermédio de interesses corporativos42.

É difícil manter de modo coerente essa posição radicalmente plebiscitaria


que não tolera a organização de nenhum "interesse intermediário". Pois as tendên-
cias individualistas da esfera económica, que são parcialmente responsáveis por
essa posição, são igualmente responsáveis pelos desenvolvimentos legais que a
solapam. Uma crescente economia de câmbio, com sua rápida diversificação de
transações, dá origem à questão de como o significado legal de cada transação pode
ser determinado inequivocamente. Essa questão é parcialmente respondida atri-
buindo-sc "personalidade jurídica" a organizações como firmas comerciais e,
portanto, separando as esferas legais dos acionistas e funcionários da esfera legal
da própria organização43. A incorporação estabelece a responsabilidade legal
separada da organização, limitando assim a responsabilidade de seus membros ou
agentes individuais. Embora a "responsabilidade limitada" tenha sido denunciada
a certa altura como uma infracão da responsabilidade individual, interesses maci-

42. Citado em ILO Rcport. n. 29, p. 89. A declaração de Lê Chapelier reflete o princípio enunciado por
Rousseau: "Se. ao deliberar, as pessoas, suficientemente informadas, não tiverem mantido nenhuma
comunicação entre elas, a panir do grande total de diferenças superficiais, o [total] geral sempre dará
bom resultado, e suas resoluções serão sempre boas. Mas quando conluios e associações parciais são
formados às expensas da grande associação, a vontade de cada uma dessas associações, embora geral
cm relação a seus membros, é privada em relação ao Estado: não se pode mais dizer que há tantos
eleitores quantos forem os homens, mas apenas tantas quantas forem as associações. Desse modo, sendo
as diferenças menos numerosas, elas produzem um resultado menos geral. Finalmente, quando uma
dessas associações se torna tão grande que prevalece sobre todo o resto, não se tem mais a soma de
muitas opiniões que diferem até certo ponto umas das outras, mas um grande dissidente autoritário; a
partir desse momento, não há mais uma vontade geral, e a opinião predominante é apenas individual.
É, portanto, da maior importância, para obter a expressão da vontade geral, que nenhuma sociedade
parcial seja formada no Estado, e que cada cidadão expresse sua opinião inteiramente por si mesmo
[...]". Ver Jean-Jacques Rousseau, The Social Conlract, New York, Hafner Publishing Company, 1957,
pp. 26-27.
43. Webcr, Law in Economy andSociety, pp. 156-157 e ss. Os editores acrescentaram referências à extensa
literatura nesse campo.

119
REINHARD BEND1X
cos eram atendidos por esse novo artifício, e as objeções baseadas no conceito de
obrigação foram rapidamente superadas. A incorporação é a mais importante
brecha na posição estritamente plebiscitaria. Ela representa uma primeira limitação
daquele individualismo radical que apoia a igualdade estritamente formal perante
a lei e se opõe à formação de "interesses intermediários".
Marshall afirma que no campo dos direitos civis "o movimento foi [...] não
da representação de comunidades para a dos indivíduos [como na história do
Parlamento], mas da representação de indivíduos para a de comunidades"44. O
dispositivo da incorporação e o princípio afim da responsabilidade limitada possi-
bilitaram a uma empresa económica assumir riscos e maximizar ativos económicos
em nome e em benefício de acionistas individuais. Por intermédio de seus funcio-
nários, a empresa desempenha uma função representativa, no sentido de que toma
decisões e assume responsabilidades para a coletividade de seus investidores, que
é frequentemente composta por outros grupos incorporados bem como por indi-
víduos. Durante a maior parte do século XIX, essa função representativa da
corporação limitava-se a objetivos económicos. Contudo, conceitos como "cura-
doria incorporada", o desenvolvimento das relações públicas e a participação
política direta de muitas corporações grandes sugerem que, nas últimas décadas,
essa antiga restrição foi abandonada — um desenvolvimento cujo significado para
a cidadania ainda precisa ser explorado.
Essas considerações fornecem um fundamento útil para a compreensão da
posição especial dos sindicatos. Como Marshall observa, os sindicatos:
[...] não procuraram nem obtiveram a incorporação. Podem, portanto, exercer os direitos civis
vitais coletivamente em nome de seus membros, sem responsabilidade coletiva formal, enquanto
a responsabilidade individual dos trabalhadores em relação ao contrato é em larga medida
inexequível [...]45
Se tomarmos como ponto de partida a proibição ou a severa restrição de
reuniões, o desenvolvimento dos sindicatos também exemplifica o movimento dos
direitos civis que vai da representação de indivíduos para a de comunidades. Essa
representação coletiva dos interesses económicos dos membros surge da inabili-
dade dos trabalhadores de salvaguardar seus interesses individualmente. Os sindi-
catos procuram levantar a posição económica de seus membros. Os trabalhadores
organizam-se a fim de atingir o nível de recompensa económica ao qual sentem ter
44. Marshall, op. cit., p. 94.
45. Idcm, p. 93. A discussão seguinte baseia-se na análise de Marshall nas pp. 93-94, mas sua tónica difere
ligeiramente.
120
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

direito — um nível que na prática depende da capacidade de organizar e de negociar


"o que sustentará a negociação". Esses resultados práticos dos sindicatos têm um
efeito de longo alcance na posição dos trabalhadores como cidadãos. Pois, através
dos sindicatos e da negociação coletiva, o direito de reunião é usado para afirmar
"pretensões básicas aos elementos de justiça social"4'1. Desse modo, a extensão da
cidadania às classes baixas adquire o sentido especial de que, como cidadãos, os
membros dessas classes têm "direito" a certo padrão de bem-estar, em retribuição
ao qual são obrigados apenas a cumprir os deveres comuns de cidadania.
A legalização dos sindicatos é um exemplo da legislação habilitadora. Ela
permite aos membros das classes baixas se organizarem e, portanto, obterem uma
igualdade de poder de barganha que uma igualdade legal formal previamente
imposta lhes negara. Mas, para alcançar esse objetivo, torna-se necessário, como
vimos, arbitrar em favor de "reuniões", permitindo-lhes isenções legais sem as
quais os grupos em desvantagem são incapazes de se organizar efetivamente. Em
outras palavras, os direitos civis são aqui usados para habilitar as classes baixas a
participar mais efetivamente do que de outro modo aconteceria na luta económica
e política sobre a distribuição da renda nacional.
Contudo, muitos membros das classes baixas ou não se valem das oportuni-
dades que lhes são concedidas pela lei, ou são impedidos de fazê-lo pelos expe-
dientes exclusivistas ou neocorporativistas dos sindicatos estabelecidos. Por
conseguinte, com efeito, as oportunidades legais transformaram-se em privilégios
disponíveis aos trabalhadores que querem ou têm capacidade para organizar-se a
fim de aumentar seus interesses económicos. Tais privilégios são, por sua vez,
fortalecidos por expedientes legais, extralegais e ilegais para tornar a participação
no sindicato obrigatória ou a não-participação muito custosa. Assim, o direito de
reunião transforma-se num "privilégio daqueles organizados em sindicatos". Num
certo sentido, esta é uma medida da fraqueza das tendências corporativistas nas
sociedades ocidentais modernas, uma vez que o mesmo direito aplicado generica-
mente significaria que cada adulto pertence a uma organização representativa de
sua ocupação. Em vez disso, o direito de reunião deu origem a um "enclave
corporativista". A própria eficácia de práticas exclusivas pelos sindicatos torna a
filiação quase obrigatória, por mais vantajosa e involuntariamente ela esteja muitas
vezes relacionada com o fracasso de esforços para novos membros. Desse modo,
o direito de reunião pode ser usado para reforçar as pretensões a uma participação
na renda e nos benefícios às expensas do não-filiado e dos consumidores. Essa
posição excepcional de alguns sindicatos não alterou o princípio de que os direitos

46. Idcm, p. 94.

121
RE1NHARD BENDIX
civis são facultativos mais do que obrigatórios, embora se possa dizer que ela o
violou. Essa facultatividade dos direitos civis precisa de uma ênfase especial no
presente contexto, por causa do contraste com o segundo elemento da cidadania,
os direitos sociais, aos quais nos voltaremos agora.
Um direito social básico: o direito à educação básica
O direito à educação básica é semelhante ao "direito de reunião". Enquanto
um grande contingente da população é desprovido de educação básica, o acesso às
facilidades educacionais aparece como uma precondição sem a qual outros direitos
legais permanecem inacessíveis ao analfabeto. Fornecer os rudimentos de educa-
ção aos analfabetos aparece como um ato de liberação. Todavia, os direitos sociais
são distintivos pelo fato de, comumente, não permitirem ao indivíduo decidir se
deve ou não tirar proveito de suas vantagens. Como a regulamentação legislativa
das condições de trabalho para mulheres e crianças, o seguro compulsório contra
acidentes na indústria, e medidas de bem-estar semelhantes, o direito a uma
educação básica não se distingue do dever de frequentar a escola. Em todas as
sociedades ocidentais, a educação básica tornou-se um dever de cidadania, talvez
o mais antigo exemplo de um mínimo prescrito, reforçado por todos os poderes do
Estado moderno. Dois atributos da educação básica transformaram-na num ele-
mento da cidadania: o governo tem autoridade sobre ela, e os pais de todas as
crianças de um certo grupo etário (geralmente dos 6 aos 10 ou 12 anos) são
obrigados por lei a providenciar para que os filhos frequentem a escola.
Os direitos sociais como um atributo da cidadania podem ser considerados
benefícios que compensam o indivíduo por seu consentimento em ser governado
pelas leis e pelos agentes de sua comunidade política nacional47. É importante notar
o elemento de acordo ou consenso que está na raiz da relação direta entre os órgãos
centrais do Estado-nação e cada membro da comunidade. Mas voltando agora à
consideração dos direitos sociais, descobrimos que esse princípio de igualdade
plebiscitário antes do Estado-nação soberano envolve deveres, bem como direitos.
Cada indivíduo elegível é obrigado a participar nos serviços fornecidos pelo
Estado. É um tanto inadequado igualmente usar o termo "plebiscitário" para esse
aspecto obrigatório da cidadania. Todavia, há uma semelhança familiar entre o
direito de todos os cidadãos de participar (através do direito do voto) nos processos
decisórios do governo e o dever de todos os pais de providenciarem para que seus
47. Essa formulação deve-se à percepliva análise de Joseph Tussman, Obligalion and thc Body Politic,
New York, Oxford University Press, 1960, cap. II.
722
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

filhos na faixa etária estabelecida frequentem a escola. Num Estado de bem-estar


completamente desenvolvido, os cidadãos como eleitores decidem fornecer os
serviços nos quais os cidadãos como os pais das crianças em idade escolar são então
obrigados a participar. O direito a voto ó facultativo, enquanto os benefícios da
frequência à escola são obrigatórios. Mas ambos são princípios de igualdade que
estabelecem uma relação direta entre os órgãos centrais do Estado-nação e cada
membro da comunidade, e essa relação direta é o sentido específico da cidadania
nacional.
Pode ser útil reiterar as principais distinções nesse ponto. Há primeiramente
a distinção entre uma relação indireta e uma relação direta entre o Estado-nação e
o cidadão. Discutimos a relação indireta no capítulo precedente em conexão com
os direitos de associação e o direito de reunião. Embora esses direitos civis sejam
em princípio acessíveis a todos, na prática eles são exigidos por classes de pessoas
que partilham certos atributos sociais e económicos. Portanto, a representação de
grupo (ou funcional) é de importância contínua, mesmo depois de o antigo princí-
pio medieval de jurisdições privilegiadas ter sido substituído pela igualdade
perante a lei. Voltando agora à relação direta entre o Estado-nação e o cidadão,
consideremos os direitos sociais antes de voltarmos à discussão dos direitos
políticos. A extensão de direitos sociais com sua ênfase na obrigação pode deixar
intacto o privilégio e ampliar os deveres e benefícios do povo, sem encorajar,
necessariamente, sua mobilização social, considerando que a extensão do direito
de voto destrói inequivocamente o privilégio e aumenta a participação ativa do
povo nos negócios públicos.
Há uma clara indicação de que no continente europeu o princípio de uma
educação básica para as classes baixas emergiu como um subproduto do absolutismo
esclarecido. Na Dinamarca, por exemplo, Frederico IV estabeleceu escolas básicas
em seus próprios domínios já no ano de 1721, dotando-as com recursos suficientes
e um corpo docente fixo. Tentativas de dar sequência a essa política falharam, porque
os proprietários de terras furtaram-se a suas obrigações de empregar e remunerar os
professores, impondo encargos como os salários do professor aos camponeses, que
dificilmente podiam arcar com eles. Continuando as principais medidas para aliviar
as obrigações impostas aos camponeses (1787-88), Frederico VI agiu no sentido de
estabelecer uma nova organização de escolas básicas que permaneceu como a base
da educação nacional na Dinamarca desde 1814.
Esse desenvolvimento dinamarquês pode ser comparado com o correspon-
dente desenvolvimento na Prússia, onde o programa de um sistema de educação
nacional também se desenvolveu cedo. O propósito profundamente conservador
desse programa é indubitável. Em 1737, uma lei prussiana de escola básica foi
123
REINHARD BENDIX
editada com o comentário de que o rei ficara preocupado ao ver jovens vivendo e
crescendo nas trevas e, portanto, sofrendo danos tanto temporalmente como em
suas almas eternas. Nessa ocasião, o rei doou uma soma para facilitar o emprego
de professores capacitados, e, por várias décadas após isso, os reis prussianos e
seus funcionários promoveram o esquema com base nessas verbas incidentais. Em
1763, foi publicado um decreto regulamentando os negócios escolares para toda a
monarquia e incluindo disposições para medidas disciplinares contra professores
que negligenciavam seus deveres, encarando, desse modo, pelo menos uma admi-
nistração regular das escolas. Ao mesmo tempo, foram feitos esforços para aliviar
a carência de professores destinando-se fundos especiais para esse propósito. Essas
medidas enfrentaram dificuldades, porque os pais relutavam em enviar os filhos à
escola, e corporações locais não assumiam sua parte na responsabilidade financei-
ra. Em 1794, as escolas (junto com as universidades) foram declaradas instituições
do Estado, e, nos anos subsequentes, todo o sistema de educação nacional tornou-se
parte de um movimento de libertação nacional contra Napoleão. Embora alguns
oficiais expressassem publicamente suas dúvidas quanto à utilidade da alfabetiza-
ção para o homem comum, a derrota militar e o entusiasmo patriótico geralmente
removiam tais dúvidas. Declarações oficiais pediam que fosse dado a todos os
súditos sem exceção conhecimento útil; a educação nacional levantaria o espírito
moral, religioso e patriótico do povo48. Com toda probabilidade, a educação
nacional tornou-se aceitável para os governantes conservadores da Prússia porque
ajudava a instilar a lealdade ao rei e ao país na população. Cabe lembrar, entretanto,
que, no campo do recrutamento militar, o mesmo esforço para mobilizar o povo
nas guerras de libertação criou grandes controvérsias e provocou uma reação muito
forte entre os ultraconservadores, uma vez passado o perigo imediato4'1. Portanto,
o absolutismo esclarecido pode ser considerado o pioneiro relutante ou equívoco
na extensão dos direitos sociais ao povo. O governo absolutista endossava o
princípio de que nada devia intervir entre o rei e seu povo, e, por conseguinte, de
que o rei por sua livre vontade distribuísse benefícios entre ele. Mas o absolutismo
naturalmente insiste que o povo são os súditos do rei; ele rejeita a ideia de direitos
e deveres derivados da autoridade soberana do Estado-nação e devidos a ela5".
48. Os dois parágrafos precedentes baseiam-se na obra de A. Petersilie, Das óffcntliche Unterrichtswesen,
vol. III de H and- und Lchrbuch der Staatswissenschaftcn, Leipzig, C. L. Hirschfeld, 1897, I, pp.
158-166, 203-204, e passim.
49. Sobre detalhes ver o excelente estudo de Gerhard Ritter, Staatskunst und Kriegshandwcrk, Munich, R.
Oldenbourg, 1959,1, caps. 4 e 5.
50. O significado dos regimes absolutistas para a educação básica varia com as crenças religiosas
prevalecentes do país. Na Áustria, a educação básica era organizada pelo governo já em 1805, com o
dero agindo como agente supervisor do Estado. Nos países católicos com menor unidade religiosa que
124
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVlll

As ideias de cidadania nacional e de uma autoridade nacional soberana são


conceitos básicos do liberalismo. Elas têm relevância especial para a educação,
porque na Europa o ensino esteve nas mãos do clero durante séculos. Conseqiien-
temente, as escolas estavam mais sob a autoridade clerical do que política, de modo
que os alunos, para receber educação, são submetidos a essa jurisdição especial.
Esse controle clerical é destruído quando os dirigentes absolutistas ou o Estado-
nação adquire autoridade sobre as escolas. Na Prússia luterana, esse controle
secular sobre a educação podia ser imposto sem dificuldade. Quando os ministros
da Igreja, bem como os professores, são submetidos à autoridade soberana do rei,
é fácil recrutar os ministros para a profissão docente. Mas quando, como na França,
o clero católico está sob uma autoridade separada da do Estado, o estabelecimento
de um sistema nacional de educação e, portanto, de uma relação direta entre cada
cidadão e o governo torna-se incompatível com o sistema vigente. Em seu Essai
d'Éducation Nationale, publicado em 1763, La Chalotais opõe-se ao controle do
clero sobre a educação pleiteando que o ensino de letras e ciências devia ficar nas
mãos de uma profissão secular. Após observar que eminentes homens de letras são
leigos, mais do que clérigos, e que "padres desocupados" infestam as cidades
enquanto o país está desprovido de clero, La Chalotais continua:

Para ensinar letras e ciências, devemos ter pessoas que façam delas uma profissão. O clero
não pode levar a mal não incluirmos os eclesiásticos, de um modo geral, nessa classe. Não sou injusto
por excluí-los dela. Reconheço com prazer que há vários [...] que são muito instruídos e muito capazes
de ensinar [...] Mas protesto contra a exclusão dos leigos. Reclamo o direito de exigir para a Nação
uma educação que dependa apenas do Estado; porque ela pertence essencialmente a ele, porque cada
nação tem um inalienável e imprescritível direito de instruir seus membros, e finalmente porque as
crianças do Estado devem ser educadas por membros do Estado51.

Essa declaração assemelha-se ao princípio plebiscitário enunciado por Lê


Chapelier acima citado52. Enquanto Lê Chapelier argumentava contra as sociedades
de benefício mútuo, baseado em que não se deve permitir que nenhum "interesse

a Áustria, essa abordagem não se mostrou possível; na Franca, por exemplo, a tradicional pretensão
católica de supervisionar a educação foi desafiada no ano de 1760 pela supressão dos jesuítas e pelo
endosso de um sistema de educação leiga organizado nacionalmente (ver pp. 121 e s.). Ademais, em
países com Igrejas estatais protestantes (Prússia, Dinamarca, Noruega e Suécia), pouco ou nenhum
conflito foi verificado na medida em que a unidade de Igreja e Estado na pessoa do monarca concedia
ao último autoridade de governo sobre a educação básica, com ministros da Igreja agindo nesse campo
como agentes do monarca ou (depois) de um ministro da educação e negócios eclesiásticos.
51. Ver La Chalotais, "Essay on National Education", em F. de Ia Fontainerie (ed.), Frcnch Libcralism
and Education in thc Eightccnth Ccntury, New York, McGraw-HilI Book Company, 1932, pp. 52-53.
52. «em, p. 115, n. 42.

125
KEINHARD BENDIX
intermediário" separe nenhum cidadão do "bem-estar público através de interesses
corporativos", La Chalotais repete aqui a mesma ideia em seu argumento contra o
clero. Deve haver uma profissão de professores que esteja inteiramente à disposi-
ção do Estado, a fim de implementar um programa de instrução no qual nada
interfira entre as "crianças do Estado" e os professores, que são membros e
servidores do Estado.
Posteriormente, o princípio de um sistema nacional de educação básica
também se tornou aceitável à emergente força de trabalho industrial. Entre os
trabalhadores, o desejo de se educar era forte, em parte para aumentar as chances
na vida, em parte por ver que com ela os filhos tinham mais futuro que seus pais,
e em parte para dar mais peso às reivindicações políticas feitas em nome da classe
trabalhadora. Se esse desejo levou a esforços voluntários para fornecer oportuni-
dades educacionais aos trabalhadores, como ocorreu especialmente na Inglaterra e
na Alemanha, tal ação foi em grande parte uma resposta ao fato de oportunidades
de outro tipo não lhes serem acessíveis. Uma vez que tais oportunidades se
tornaram acessíveis, esforços voluntários no campo da educação dos trabalhadores
diminuíram (ainda que não tenham cessado inteiramente), outra indicação da
relativa fragilidade das tendências corporativistas.
E provável, portanto, que os sistemas de educação nacional tenham se
desenvolvido tanto pelo fato de a demanda por educação básica ter interceptado o
espectro das crenças políticas. Ele é sustentado por conservadores que temem o
inerente desgoverno do povo, que deve ser refreado pela instrução nos fundamentos
de religião e, assim, instilar a lealdade ao rei e ao país. Os liberais afirmam que o
Estado-nação requer cidadãos educados por órgãos do Estado. E os oradores
populistas protestam que as massas populares que ajudam a criar a riqueza do país
devem partilhar das amenidades da civilização.
Contudo, a educação básica compulsória torna-se uma importante c contro-
vertida questão quando a autoridade governamental nesse campo entra em conflito
com a religião organizada. Tradicionalmente, a Igreja católica encara o ensino
como um de seus poderes inerentes, sendo o trabalho de instrução conduzido por
ordens religiosas. Segundo essa opinião, o princípio corporativo é soberano, na
medida em que a Igreja administra o "estado espiritual" do homem c possui, nesse
domínio, o direito e o dever de representação exclusivos. Esse princípio foi
desafiado durante o século XVIII na França, e o conflito sobre o controle clerical
ou laico da educação durou até presentemente. Conflitos semelhantes também
persistiram nos países protestantes, nos quais a população está acentuadamente
dividida sobre as questões religiosas. Isto é, um sistema de educação básica
nacional se opôs onde quer que a Igreja ou várias congregações religiosas insisti-
726
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

ram em interpor suas próprias oportunidades educacionais entre seus adeptos e o


Estado. Assim, países como a Inglaterra, a Bélgica e a Holanda foram cenário de
prolongados debates sobre a questão de permitir-se ou não, e em que condições,
ao governo nacional dar assistência ou exercer autoridade no campo da educação
básica. Na Inglaterra, por exemplo, as contribuições voluntárias à educação perfa-
ziam, em 1858, o dobro da quantia do apoio fornecido pelo governo. Desde 1870,
desenvolveu-se um novo sistema de escolas estatais, não como um substituto para
as escolas baseadas nas contribuições voluntárias, mas como acréscimo a elas.
Desse modo, até bem tarde no período moderno, os esforços locais e voluntários
preservam elementos da "representação funcional", apesar do crescimento contí-
nuo de um sistema de educação nacional (plebiscitário)53. Talvez o exemplo mais
importante do princípio corporativo ou representativo na educação seja o fornecido
pela Holanda com seus três sistemas de escolas separadas: uma católica, uma
calvinista e uma secular-humanista. O fato significativo aqui é que os três sistemas
são financiados pelo governo, e os três baseiam-se no princípio de frequência
obrigatória, combinando portanto claramente o princípio plebiscitário nas finanças
com o princípio representativo no controle organizacional e substantivo sobre o
processo educacional.

Direitos políticos: o direito de voto e o voto secreto

Essa tensão entre a orientação estatal e a orientação nacional na determinação


da política é até mais evidente nos debates e decretos concernentes aos direitos de
participação política: o direito de servir como um representante, o direito de votar
através de representantes, e o direito de escolha independente entre alternativas.
A condição básica para o desenvolvimento rumo aos direitos universais de
participação era a unificação do sistema de representação nacional. No fim da
Idade Média, o princípio de representação territorial foi gradualmente substituído
no continente europeu por um sistema de representação por Estados: cada Estado
enviava seus representantes em separado para deliberar no centro da autoridade
territorial, e cada um possuía sua assembleia em separado54. Somente na Inglaterra
o sistema original de representação territorial foi mantido: a Câmara dos Comuns

53. Ver o histórico esboço do desenvolvimento educacional inglês em Ernest Barker. The Dcvclopmcnt of
thc Public Scniccs in Western Europc, New York, Oxford University Press, 1944, pp. 85-93, e a
avaliação comparativa de Robert Ulich. Thc Education of .\ations. Cambridge, Harvard University
Press, 196l,passim.
54. A principal autoridade em história dos Estados corporativos e sua representação é ainda Otto von
Gierke, Das dcuischc Gcnosscnschaftsrccht. Berlin. Weidmann, 1868. I, pp. 534-581.

727
RE1NHARD BENDIX
não era uma assembleia dos Estados burgueses, mas um corpo de legisladores que
representavam as localidades constituintes do reino, os condados e os burgos. A
grande abertura da sociedade inglesa possibilitou a manutenção dos canais de
representação territorial, e isso, por sua vez, criou condições para uma transição
mais suave para um regime unificado de democracia igualitária55.
Apesar do princípio de representação nesses anciens regimes, apenas os
chefes de famílias economicamente independentes podiam participar na vida
pública. Essa participação era um direito que lhes advinha não de sua qualidade de
membro de alguma comunidade nacional, mas de sua qualidade de proprietários
de território ou capital ou de seu status no interior de corporações funcionais
legalmente definidas como a nobreza, a Igreja, ou as guildas de comerciantes ou
artesãos. Não havia representação de indivíduos: os membros das assembleias
representavam interesses no sistema, quer na forma de proprietários de terra ou na
forma de privilégios profissionais.
A Revolução Francesa realizou uma mudança fundamental na concepção de
representação: a unidade básica não era mais a família, a propriedade, ou a
corporação, mas o cidadão individual; e a representação não era mais canalizada
através de corpos funcionais separados, mas através de uma assembleia nacional
unificada de legisladores. A lei de 11 de agosto de 1792 chegou a conceder direito
de voto a todos os franceses do sexo masculino com mais de 21 anos que não fossem
servos, indigentes, ou vagabonds, e a Constituição de 1793 sequer excluía os
indigentes, desde que tivessem residido mais de seis meses no canton. A Restau-
ração não trouxe de volta a representação por Estados: em vez do regime censitaire
introduziu um critério monetário abstraio que interceptava decisivamente o antigo
critério do status atribuído.
Uma nova fase nesse desenvolvimento inaugurou-se com a Revolução de
1848 e a rápida difusão de movimentos pela democracia representativa através
da maior parte da Europa. Napoleão III demonstrou as possibilidades do sistema
plebiscitário, e os líderes das elites estabelecidas tornaram-se cada vez mais
divididos entre seus medos das consequências das rápidas extensões do sufrágio
às classes baixas e seu fascínio pelas possibilidades do fortalecimento dos
poderes do Estado-nação pela mobilização da classe trabalhadora a seu servi-
55. Essa questão de representação territorial vcrsus representação funcional é o cerne do debate sobre as
razões da sobrevivência do Parlamento na época de absolutismo. Otto Hintze sublinhou as continuida-
des históricas entre as formas de representação medieval e moderna e argumentou que as formas de
governo bicameral além do alcance do Império carolíngio ofereciam base mais adequada ao desenvol-
vimento do governo pluralista parlamentar. Ver sua "Typologie der stãndischen Verfassungen dês
Abendlandes", em Staatund Verfassung, pp. 120-139.
128
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

ço56. Esses conflitos de estratégia produziram uma grande variedade de compromissos


transitórios nos diferentes países. Os pontos de partida para esses desenvolvimentos
eram as disposições do Stãndestaat e o regime censitaire pós-revolucionário, e os
pontos finais eram as promulgações do sufrágio universal adulto. Mas os passos dados
e os caminhos escolhidos de um ponto ao outro variaram marcantemente de país a país
e refletiram diferenças básicas nos valores e características dominantes de cada
estrutura social57.
Podemos distinguir convenientemente cinco principais séries de critérios
usados para limitar o direito de voto durante esse período de transição: 1. critérios
de Estado tradicionais: restrição do direito de voto aos chefes das famílias dentro
de cada um dos grupos de status estabelecidos como definidos por lei; 2. regime
censitaire: restrições baseadas no valor da terra ou capital ou das quantias de
impostos anuais sobre a propriedade e/ou renda; 3. regime capacitaire: restrições
por capacidade de ler e escrever, educação formal, ou indicação para o serviço
público; 4. critérios de responsabilidade familiar: restrições aos chefes de famílias
que ocupam residências próprias com um tamanho mínimo determinado ou aloja-
dos provisoriamente em propriedades por um aluguel mínimo determinado, e 5.
critérios de residência: restrições a cidadãos registrados como residentes seja na
comunidade local, o distrito eleitoral, seja no território nacional por um mínimo
determinado de meses ou anos.

A Constituição norueguesa de 1814 fornece um bom exemplo de um antigo


compromisso entre critérios de Estado, o regime censitaire e Q príncipe capacitai-
re. O direito de voto era dado para quatro categorias de cidadãos: duas das quais,
os burghers de cidades incorporadas e os aldeões (proprietários de propriedade
livre e alodial e arrendatários), correspondiam aos velhos Estados; uma terceira,
aplicável apenas nas cidades e vilas, era definida por posse de Estado real de um
valor mínimo determinado, e a quarta era simplesmente a reunião de todos os
funcionários do governo nacional. Esse sistema dava uma clara maioria numérica
aos fazendeiros, mas, por precaução política, os interesses dos burgueses e funcio-
nários eram protegidos através de desigualdade na distribuição de mandatos entre

56. Ver H. Goilwitzer, "Der Cãsarismus Napoleons III im Widerhall der óffentlichen Meinung Deutsch-
lands", Historischc Zcitschrift, vol. 152, 1952, 23-79. Em alguns países as pretensões ao sufrágio
masculino universal tornaram-se intimamente ligadas à necessidade da conscrição universal. Na
Suécia, o principal argumento para a dissolução do Riksdag de quatro Estados era a necessidade de um
fortalecimento da defesa nacional. Nos debates do sufrágio sueco, o slogan "um homem, um voto, uma
arma" reflete essa ligação entre o direito de voto e o recrutamento militar.
57. Os detalhes desses desenvolvimentos foram expostos em compêndios como o de Georg Meyer, Das
parlamcntarischc Wahlrccht, Berlin, Hacring. 1901. e o de Karl Braunias, Das parlamentarischc
Wahlrccht, Berlin, de Gruyter, 1932, vol. 2.

129
RE1SHARD BESD1X
distritos eleitorais rurais e urbanos58. A simplicidade da estrutura social deu ao
compromisso norueguês um caráter direto: a velha divisão entre os Estados rurais
e burgueses correspondia a uma divisão administrativa estabelecida em distritos
rurais e vilas privilegiadas com cartas patentes, e a única classe de eleitores
explicitamente colocados acima dessa divisão território-funcional era a dos fun-
cionários do rei, os efetivos governantes da nação por várias décadas futuras.
Compromissos muito mais complexos tinham de ser projetados em políticas
multinacionais como a Áustria. Nos velhos territórios dos Habsburgos, o Landtag
típico consistira em quatro curiae: os nobres, os cavaleiros, os prelados, e os
representantes de cidades e mercados. AFebruarpatent de 1861 manteve a divisão
em quatro curiae, mas transformou o critério de Estado em critério de repre-
sentação de interesse. Os nobres e os cavaleiros foram sucedidos pela cúria dos
maiores proprietários de terras. O Estado eclesiástico era estendido numa cúria de
Virilstimmen que representava as universidades, bem como as dioceses. O Estado
burguês não era mais representado exclusivamente por porta-vozes das cidades e
mercados, mas também através das câmaras de comércio e das profissões: este era
o primeiro reconhecimento de um princípio corporativista que viria a adquirir
importância central nos debates ideológicos na Áustria no século XX. A essas três
acrescentou-se uma divisão aldeã: isso era novo no sistema nacional; a repre-
sentação aldeã direta do tipo tão conhecido nos países nórdicos só existiram no
Tirol e em Voralberg. A característica mais interessante da sequência de compro-
missos austríacos era o controle das classes baixas, excluídas por tanto tempo da
participação na política da nação. Fiel à sua tradição de representação funcional,
os políticos austríacos não admitiam esses novos cidadãos no mesmo nível dos já
emancipados, mas colocavam-nos numa nova cúria, a quinta, die allgemeine
Wãhlerklasse. Isso, contudo, era apenas uma medida transitória: onze anos depois,
mesmo a Abgeordnetenhaus austríaca conformou-se à tendência à democracia
igualitária de massa e foi transformada numa assembleia nacional unificada basea-
da no sufrágio masculino universal59.
A ascensão do capitalismo comercial e industrial favoreceu a difusão do
regime censitaire. A base ideológica era o argumento de Benjamin Constant de
58. Ver Stein Rokkan, "Geography, Region and Social Class: Cross-Cutting Cleavages in Norwegian
Politics", em S. M. Lipset e Stein Rokkan (eds.), Party Systems and VotcrAlignments, New York, The
Free Press of Glencoe, no prelo.
59. Uma útil avaliação desses desenvolvimentos na Áustria encontra-se em Ludwig Boyer, Wahlrccht in
Õsterrcich, Vienna, 1961, pp. 80-85. É interessante comparar a mistura austríaca de orientação
medieval de Estado e o corporativismo moderno com as providências russas para a Duma em 1906;
ver a detalhada análise de Max Weber em "Russlands Úbergang zum Scheinkonstitutionalismus",
Gcsammeltcpolitische Schriftcn, Tiibingen, J. C. B. Mohr, 1958, pp. 66-126.
130
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

que os negócios da comunidade nacional devem ser deixados àqueles com "inte-
resses reais" neles, mediante a posse de terra ou de investimentos em negócios. O
príncipe capacitaire era essencialmente uma extensão desse critério: o direito de
voto era concedido não apenas àqueles que possuíam terras ou tinham investido
em negócios, mas àqueles que haviam adquirido um interesse direto na manutenção
do Estado através de seus investimentos em capacitações profissionais e de seu
compromisso com posições de crédito público. A noção implícita é que apenas
esses cidadãos podem fazer julgamentos racionais das políticas a serem seguidas
pelo governo. Uma autoridade norueguesa em lei constitucional relaciona esses
dois elementos em sua afirmação: "O sufrágio [...] deve ser reservado aos cidadãos
que possuem discernimento suficiente para julgar quais deverão ser os melhores
representantes, e independência suficiente para apoiar sua convicção nessa ques-
tão"60.
Essa questão de critérios de independência intelectual era o cerne das disputas
entre liberais e conservadores sobre a organização do sufrágio. Os liberais defen-
diam o regime censitaire e temiam as possibilidades da manipulação eleitoral
inerente à extensão do sufrágio ao cidadão economicamente dependente. Os
conservadores, uma vez que reconheciam a importância do voto como base do
poder local, tendiam a defender a emancipação das "ordens mais baixas": tinham
bons motivos para esperar que, ao menos nos Estados patriarcais na região rural,
aqueles que estivessem em posições de dependência votariam naturalmente nos
notáveis locais. Esse conflito alcançou o auge nas discussões na Assembleia
Nacional alemã, em Frankfurt em 1848-1849. A Comissão Constitucional reco-
mendara que o direito de voto se restringisse a todos os cidadãos independentes, e
esse termo foi a princípio interpretado como excludente de todos os servos e os
que viviam de salários. Essa interpretação esbarrou em violentos protestos na
Assembleia. Havia um acordo geral de que todos os súditos que recebiam assistên-
cia pública ou estavam falidos não eram independentes e deviam ser excluídos do
direito de voto, mas havia muita dissensão sobre os direitos dos servos e trabalha-
dores. A esquerda exigia direitos totais para as classes baixas e enfrentava oposição
apenas moderada dos conservadores. O resultado foi a promulgação do sufrágio
masculino universal. Apesar disso, a lei não pôde ser cumprida na época: passa-
ram-se outros dezessete anos até que Bismarck conseguisse transformá-la na base
da organização do Reichstag na Federação da Alemanha do Norte. O chanceler
prussiano já tivera a experiência de um sistema de sufrágio universal, mas um
sistema marcantemente desigual - o sistema prussiano de sufrágio de três classes

60. T. H. Aschehoug, Norgcs nuvcrcndc Statsforfatning. Chnstiania. Aschehoug, 1875, vol. I, p. 280.

131
REINHARD BEND1X
introduzido pelo decreto real em 1849. Sob esse sistema, as "ordens mais baixas"
receberam o direito de voto, mas o peso de seus votos era infinitesimal em
comparação com o das classes médias e dos proprietários de terras. Esse sistema
servira evidentemente para amortecer o poder do Gutsbesitzer, especialmente no
Leste do Elba: a lei simplesmente multiplicara por n o número de votos à sua
disposição, pois eles confiavam que seriam capazes de controlar sem muita
dificuldade o comportamento de seus dependentes e de seus trabalhadores nas
eleições61. Bismarck detestou o sistema de três classes, por sua ênfase no critério
monetário abstrato e suas inúmeras injustiças, mas estava convencido de que uma
mudança para o sufrágio igual para todos os homens não afetaria a estrutura de
poder na área rural: ao contrário, ela fortaleceria ainda mais os interesses territoriais
contra os financeiros. Geralmente, na área rural, as extensões do sufrágio tendiam
a fortalecer as forças conservadoras62.
Havia muito mais incerteza sobre as consequências de um sufrágio extensivo
à política nas áreas urbanas. A emergência e crescimento de uma classe de
assalariados fora da família imediata do empregador levantava novos problemas
para a definição da cidadania política. Na terminologia socioeconômica estabele-
cida, seu status era de dependência, mas não ficava claro se eles acompanhariam
inevitavelmente seus empregadores no campo político. As batalhas cruciais no
desenvolvimento para o sufrágio universal referiam-se ao status desses estratos
emergentes dentro da comunidade política. Uma grande variedade de compromis-
sos transitórios eram debatidos, e vários foram realmente postos à prova. A
estratégia básica era sublinhar as diferenciações estruturais no interior do estrato
de assalariados. Algumas variedades do regime censitaire admitiam de fato os
trabalhadores mais bem pagos, especialmente se possuíssem casas próprias63. O
direito de voto do chefe de família e do inquilino na Grã-Bretanha servia igual-
mente para integrar a classe trabalhadora mais bem situada dentro do sistema c
61. Sobre uma recente e detalhada avaliação, ver Th. Nipperdey, Dic Organisalion der dcutschcn Parteien
vor 1918, Diisseldorf, Droste, 1961, cap. V. Sobre um paralelo com as condições nas áreas rurais de
estruturas semelhantes, ver o capítulo de Emilio Willems, em Arnold Rose (ed.), The Institutions of
AdvancedSocietics, Minneapolis, University of Minnesota Press, 1958, p. 552: "As principais funções
ao sufrágio eram as de preservar a estrutura de poder existente. Dentro do padrão tradicional, o sufrágio
acrescentava oportunidades para demonstrar e reforçar a lealdade feudal. Ao mesmo tempo, reforçava
e legalizava o status político do proprietário de terra".
62. Ver D. C. Moore, "The Other Face of Reform", Victorian Studies, V, set. 1961, pp. 7-34 e G. Kitson
Clark, The Making of Victorian England, London, Methuen, 1962, especialmente o cap. VII.
63. Um recenseamento de tributo especial feito na Noruega em 1876 indica que mais de 1/4 dos
trabalhadores urbanos que estavam nos registros de imposto foram emancipados sob o sistema adotado
em 1814: em contraste, apenas 3% dos trabalhadores nas áreas rurais receberam direito de voto. Ver
Statistisk Centralbureau ser. C. n. 14, 1877, pp. 340-341.
132
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO X\'lll

deixar de fora apenas o "verdadeiro proletariado", migrantes e trabalhadores


marginais sem vínculos locais estabelecidos. A manutenção dos requisitos de
residência serviu a funções semelhantes, mesmo depois do desaparecimento de
todas as qualificações económicas para o sufrágio: essas restrições são apoiadas
mais obstinadamente nas disposições para as eleições locais.
Outra série de estratégias nessa luta para controlar a investida da democracia
de massa compreende as instituições do sufrágio ponderado e dos votos plurais.
Os exemplos mais crus são, sem dúvida, o Kurien austríaco e o sistema de três
classes prussiano: o sufrágio universal é garantido, mas os pesos dos votos dados
às classes mais baixas são infinitesimais em comparação com aqueles da elite
territorial ou financeira estabelecida. O sistema de voto plural mais inócuo é talvez
a disposição inglesa para votos extras para graduados em universidade e para os
donos de propriedades comerciais em distritos eleitorais diferentes. Sociologica-
mente, o mais interessante é o sistema belga de voto plural transmitido em 1893:
o sufrágio masculino universal é introduzido, mas os votos extras são dados não
só por critérios capacitaires, mas também a pères de famille que atingiram a
respeitável idade de 35 anos. O motivo básico é sublinhar claramente as diferen-
ciações estruturais dentro dos estratos mais baixos e excluir do sistema os elemen-
tos menos compromissados com a ordem social estabelecida.
Intimamente relacionada a essas estratégias é a obstinada resistência a mu-
danças na delimitação dos distritos eleitorais. A rápida urbanização produz eviden-
tes desigualdades, mesmo em condições de sufrágio universal formalmente iguais.
As injustiças dos dispositivos distritais prussianos foram, durante décadas, objeto
de amargos debates. A solução extrema adotada na República de Weimar - o
estabelecimento de um sistema unitário de representação proporcional para todo o
Reich - sem dúvida concede a cada eleitor a mesma oportunidade abstrata de
influenciar na distribuição das cadeiras, mas ao mesmo tempo antecipa as dificul-
dades inerentes dessa padronização por meio de localidades de estrutura muito
diferente. A continuada representação geral das áreas rurais nos Estados Unidos é
outro exemplo.
A entrada das classes baixas na arena política também levanta uma série de
problemas para a administração das eleições. Sociologicamente, a questão mais
interessante é a salvaguarda da independência da decisão eleitoral individual. Os
defensores das tradições estatais e do regime censitaire argumentam que os súditos
economicamente dependentes não podem esperar formar julgamentos políticos
independentes e, se emancipados, corromperiam o sistema pela venda de votos e
pela intimidação violenta. Práticas corruptas eram, naturalmente, muito difundidas
em muitos países, muito antes da extensão do sufrágio, mas a emancipação de
133
REINHARD BEND1X
grandes setores das classes baixas geralmente fornece um incentivo a reformas na
administração e ao controle das eleições. O segredo do voto é o problema central
nesse debate64.
A noção tradicional era que o voto era um ato público c só podia ser confiado
a homens que pudessem defender abertamente suas opiniões. O sistema prussiano
de voto oral era defendido nesses termos, mas foi mantido por tanto tempo em
grande parte porque provou ser uma maneira fácil de controlar os votos dos
trabalhadores agrícolas.
O voto secreto apela essencialmente à mentalidade urbana liberal: ele convém
como outro elemento na cultura privatizada anónima da cidade, descrita por Georg
Simmel. O fator decisivo, contudo, é a emergência do voto da classe baixa como
um fator na política nacional e na necessidade de neutralizar as ameaçadoras
organizações operárias: as disposições para o sigilo isolam o trabalhador depen-
dente não só de seus superiores mas também de seus pares. Dado o estado das
estatísticas eleitorais, é difícil determinar com alguma exatidão os efeitos do sigilo
no comportamento real dos trabalhadores nas eleições. Mas parece inerentemente
provável, dada uma quantidade mínima de comunicações interclasses, que o sigilo
ajude a reduzir a probabilidade de uma polarização da vida política na base da
classe social.
A esse respeito, o voto secreto representa o princípio nacional e plebiscitado
de integração cívica, em contraste com as organizações operárias, que exemplifi-
cam o princípio de representação funcional. Isto é, as reivindicações de sindicatos
e partidos que buscam o reconhecimento para o quarto Estado são contrabalança-
das pelas pretensões da comunidade nacional e seus porta-vozes. A disposição para
o voto secreto coloca o indivíduo diante de uma escolha pessoal e o torna pelo
menos temporariamente independente de seu ambiente imediato: na cabina de
votação, ele pode ser um cidadão nacional. As disposições para a votação secreta
possibilitaram à gente comum inarticulada escapar da pressão pela participação
política, e ao mesmo tempo colocar o ónus da visibilidade política sobre os ativistas
dentro do movimento da classe trabalhadora. Em termos sociológicos, podemos
dizer, portanto, que o sistema eleitoral nacional abre canais para a expressão de
lealdades secretas, enquanto a luta política torna necessário ao ativista do partido
declarar suas opiniões e expor-se à censura quando ele se desvia do establishment'*.
64. Uma recente análise do desenvolvimento dos padrões para o controle das eleições em uma nação é a
de Cornelius CTLeary, The Elimination of CorrupíPractices in British Elections, 1868-1911, Oxford,
Clarendon Press, 1962.
65. Alguns partidos socialistas tentaram contrabalançar esses efeitos do voto secreto estabelecendo
vínculos estreitos com os sindicatos. Notar a esse respeito a discussão da controvérsia sobre a
134
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

Considerações Finais

A extensão da cidadania às classes baixas da Europa ocidental pode ser vista


de vários pontos de vista complementares. Em termos da comparação entre a
estrutura política medieval e a moderna, a discussão exemplifica as tendências
simultâneas à igualdade e a uma autoridade governamental de âmbito nacional. A
constituição de um Estado-nação moderno é tipicamente a origem dos direitos de
cidadania, e esses direitos são um símbolo da igualdade de âmbito nacional. A
própria política tornou-se de âmbito nacional, e as "classes baixas" têm agora a
oportunidade de participação ativa.
A discussão precedente sublinhou a similaridade da experiência de toda a
Europa ocidental, que teve origem nos legados comuns do feudalismo europeu. As
assembleias e parlamentos de Estado do século XVIII forneceram o fundo imediato
para o desenvolvimento dos parlamentos modernos e para a concepção de um
direito de representação que foi gradualmente estendido a setores da população
previamente não representados. Essa extensão tem dois elementos, mais ou menos
diversos. De acordo com a ideia plebiscitaria, todos os indivíduos adultos devem
ter direitos iguais sob um governo nacional; de acordo com a ideia funcional, a
associação diferenciada dos indivíduos com outros é tida como certa, e alguma
forma de representação de grupo é aceita. As duas ideias refletem o hiato entre o
Estado e a sociedade numa era de igualdade. Quando a extensão dos direitos legais,
políticos e sociais se transforma num princípio de política estatal, o critério abstrato
deve ser usado para implementar esses direitos. Por conseguinte, há tentativas
recorrentes para definir em que aspectos todas as pessoas devem daí em diante ser
consideradas iguais. Contudo, a sociedade continua a ser marcada por grandes
desigualdades. Portanto, todos os adultos que pretenderem usufruir de seus direitos
legais, políticos e sociais se associarão naturalmente com outros, a fim de apresen-
tar suas reivindicações da forma mais efetiva possível, e tais associações refletem
(ou até intensificam) as desigualdades da estrutura social. A discussão precedente
mostrou que as relações entre as ideias plebiscitarias e funcionais são frequente-
mente paradoxais.
A igualdade formal perante a lei beneficia a princípio apenas aqueles cuja
independência social e económica os habilita a tirar proveito de seus direitos legais.

arrecadação paga por membros dos sindicatos ingleses em Martin Harrison, Tradc Unions and lhe
LabourParty since 1945, London, Allen & Unwín, 1960, cap. 1. Os membros do sindicato que desejam
ser isentos do pagamento assinam um formulário de "renúncia" ao secretário de sua seção, mas embora
o pagamento seja nominal e o procedimento simples, houve muita controvérsia, em parte porque a
"renúncia" é um ato público que indiretamente ameaça o sigilo do voto.

135
RE1NHARD BEND1X
Os esforços para corrigir essa desigualdade assumem várias formas, entre as quais
as regras que capacitam os membros das classes baixas a se valerem do direito de
associação para a representação de seus interesses económicos. Contudo, essas
regras por sua vez não atingem aqueles indivíduos ou grupos que não tiram ou não
podem tirar proveito do direito de associação. Conseqúentemente, a igualdade
perante a lei involuntariamente divide uma população de uma nova maneira. Outras
disposições legais tentam lidar com as desigualdades remanescentes ou enfrentar
as que surgiram recentemente; por exemplo, a instituição do defensor público
quando o advogado de defesa não for capaz de usar seu direito de deliberação, ou
os esforços para proteger os direitos dos acionistas incapacitados de fazê-lo sob a
legislação vigente. Ainda assim, há apenas debates concernentes aos melhores
modos de proteger os membros de sindicatos contra possíveis violações de seus
direitos individuais pela organização que representa seus interesses económicos.
O princípio de igualdade formal legal pode ser chamada de "plebiscitaria" no
sentido de que o Estado estabelece diretamente cada "capacidade legal" do indiví-
duo. Além disso, disposições especiais procuram reduzir de vários modos as
desigualdades das oportunidades concedidas aos indivíduos de usarem seus direi-
tos perante a lei. No último caso, as autoridades judiciais "representam" os
interesses daqueles que não usam ou não podem usar seus poderes legais.
O direito e o dever de receber uma educação básica podem ser considerados
outros modos de igualar a capacidade de todos os cidadãos de se utilizarem dos
direitos a que estão habilitados. Embora a educação básica forneça apenas uma
vantagem mínima nesse aspecto, ela é talvez a implementação universalmente mais
aproximada da cidadania nacional, tendo todos os outros direitos um caráter mais
facultativo ou mais seletivo. Como tal, a educação pública básica exemplifica o
componente plebíscitário do Estado-nação, uma vez que a frequência à escola não
só é obrigatória a todas as crianças de um certo grupo etário, mas também depende
de uma contribuição financeira de todos os contribuintes66. Mas, aqui também, as
igualdades formalmente instituídas dão origem ou dão azo a novos tipos de
desigualdades. Aqueles que se preocupam com o ensino e a organização das escolas
reúnem-se por causa de seus interesses profissionais e económicos comuns. Esses
especialistas em educação desenvolvem muitas vezes organizações com sólidas
opiniões referentes à educação. Assim, os professores como um grupo enfrentam
66. O número de crianças que frequentam a escola elementar é maior do que o dos contribuintes, uma vez
que a frequência não permite isenções do mesmo modo que o sistema tributário. Efelivamente, mesmo
os filhos de estrangeiros residentes estão sujeitos a essa exigência, mas isso pode ser considerado uma
conveniência administrativa, uma medida de bem-estar, uma preparação de cidadãos potenciais, e assim
por diante, mais do que um assunto concernente ao princípio de cidadania nacional.
136
TRANSFORMAÇÕES DAS SOCIEDADES EUROPEIAS OCIDENTAIS DESDE O SÉCULO XVIII

pais como indivíduos, do mesmo modo que enfrentam o Estado com a influência
de sua organização em todos os assuntos que afetam seus interesses. Mais
indiretamente, a educação pública básica ajuda a articular, embora inadvertida-
mente, as divisões residenciais existentes dentro da comunidade, uma vez que as
crianças se fixarão em escolas mais próximas a sua área de residência e a
população escolar refletirá as características sociais das áreas residenciais. Esfor-
ços para contrabalançar essas consequências do princípio funcional como as
associações de pais e mestres e a redistribuição das crianças entre as diferentes
escolas distritais, como nos Estados Unidos, são exemplos do plebiscitarianismo
dentro do sistema de educação pública. Além disso, há a prolongada resistência
de grupos congregacionais contra a educação pública como tal, aos quais nos
referimos anteriormente. O princípio plebiscitário encontra resistência desde que
as agências da Igreja ou as congregações, controlando o currículo, procuram
representar os interesses religiosos ou culturais específicos dos pais como mem-
bros de suas respectivas congregações. Grupos religiosos usam, assim, o direito
de associação para implementar suas preocupações especiais no campo da educa-
ção, embora difiram grandemente em relação a confiar ou não financeiramente, e
em que medida, na manutenção através de impostos ou nos lançamentos de
impostos de suas congregações.
Com relação ao direito de voto, os conflitos entre os princípios plebiscitário
e representativo podem ser divididos nas duas fases de um direito de voto diversa-
mente restrito ou universal. As restrições que revimos são geralmente critérios
administrativos aos quais o significado funcional é imputado. Quando o direito de
voto depende de um certo nível de renda, pagamento de imposto, posse de
propriedade, ou educação, presume-se que aqueles que satisfazem os padrões
mínimos nesses aspectos também compartilham opiniões sociais e políticas com-
patíveis com a ordem social estabelecida. Também se presume que os repre-
sentantes eleitos a partir desses estratos da população serão notáveis, capazes de
pensar e agir em termos de toda a comunidade. Esse reconhecimento legal do
princípio representativo é em larga medida abandonado quando o direito de voto
se torna universal. Contudo, o princípio plebiscitário do direito à participação direta
por todos os adultos como eleitores qualificados é bastante compatível com uma
aceitação de diferenças de grupo e várias formas indiretas de representação fun-
cional. O próprio processo eleitoral é grandemente influenciado pela diferenciação
social do público votante, e é suplementado em muitos pontos por outras influên-
cias sobre a formação política, muitas das quais dependentes de grupos de interesse
especiais. A diferenciação social e os grupos de interesse resultam em modificações
do princípio plebiscitário e em novas desigualdades, que podem por sua vez

137
RE1NHARD BESDIX
provocar contramedidas a fim de proteger o princípio de igualdade plebiscitado de
todos os adultos como eleitores qualificados.
Conseqúentemente, a extensão da cidadania às classes baixas envolve em
muitos níveis uma institucionalização do critério de igualdade abstraio que dá
origem tanto a novas desigualdades como a novas medidas para lidar com essas
consequências subordinadas. O sistema de instituições representativas, caracterís-
tico da tradição da Europa ocidental, permanece intacto na medida em que perdura
essa tensão entre a ideia plebiscitaria e a ideia de representação de grupo, na medida
em que a contradição entre critérios abstratos de igualdade e as velhas e as novas
desigualdades da condição social é mitigada por compromissos sempre novos e
sempre parciais. O sistema é destruído quando, como nos sistemas totalitários da
história recente, essas resoluções parciais são abandonadas no interesse de imple-
mentar apenas o princípio plebiscitário sob a égide de um Estado de partido único.
138
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO
ESTADO-NAÇÃO

A estrutura feudo-patrimonial da vida política medieval, a "grande transfor-


mação" da autoridade pública no período pré-moderno imediato, individualista
quando contrastado com as relações de autoridade tradicionais, o protesto social
no período moderno quando contrastado com o protesto no período medieval, os
elementos da cidadania nacional e sua extensão gradual a setores previamente
excluídos da população - todos esses são conceitos de aplicabilidade limitada. As
estruturas sociais e os padrões de comportamento aos quais elas se referem
prevalecem por um tempo que excede o período de vida dos indivíduos envolvidos.
Todavia, são de duração limitada, e isso implica um período de emergência e
declínio. Os conceitos apropriados a essas estruturas podem apenas designar o
conjunto de atributos pelos quais elas podem ser identificadas; tampouco podem
abranger o fluxo e refluxo desses atributos através do tempo.
O conceito de "Estado-nação" é outro caso em questão. Refere-se a atributos
da autoridade pública que são em sua maioria inequívocos quando contrastados
com os atributos da vida política medieval. Na concepção medieval, o rei não
apenas impera sobre um território como um domínio privado, mas também possui
as funções judiciárias e administrativas do governo e, portanto, dispõe delas como
se fossem peças da propriedade. Na teoria, o rei detém a máxima autoridade mesmo
sobre as terras, e direitos ao exercício da autoridade, que ele concedeu a um súdito
eternamente. A ficção da soberania real é mantida pelo governante através do
restabelecimento formal de sucessivos herdeiros nos títulos e direitos de seus

139
REI\HAKD BE\DIX
antepassados. Na prática, o vassalo muitas vezes trata as terras e direitos que lhe
são assegurados como se fossem uma propriedade sobre a qual sua família tem
direito hereditário. Assim, a autoridade governamental está tão ligada à família
quanto à propriedade. O governante e seus vassalos reivindicam um direito pres-
critivo ao exercício da autoridade, não para si mesmos como indivíduos, mas como
membros de famílias às quais aquele título pertence em virtude de linhagem real
ou aristocrática. A máxima de Edmund Burke referente à sociedade como parceria
aplica-se a esse contexto: "Como os objetivos dessa sociedade não podem ser
obtidos em muitas gerações, ela se torna uma sociedade não apenas entre os que
estão vivos, mas entre os que estão vivos, os que estão mortos, e os que estão por
nascer"1. Na concepção medieval, o "bloco de construção" da ordem social é a
família com privilégio hereditário, cuja estabilidade através do tempo é o funda-
mento do direito e da autoridade, enquanto a ordem de classificação da sociedade
e sua transformação através da herança regula as relações entre tais famílias, e entre
elas e o governante supremo.
O Estado-nação moderno pressupõe que esse vínculo entre a autoridade
governamental e o privilégio herdado nas mãos de famílias de notáveis está
quebrado. O acesso a postos políticos e administrativos importantes nos governos
dos Estados-nações pode ser facilitado pela riqueza e pela posição social elevada
através de seu efeito sobre os contatos sociais e as oportunidades educacionais.
Mas a facilidade de acesso não é como a prerrogativa que as famílias aristocráticas
na política medieval reivindicam em virtude de sua "antiguidade de sangue", para
usar a frase de Maquiavel. Pois o critério decisivo do Estado-nação ocidental é a
separação substancial entre a estrutura social e o exercício de funções judiciárias
e administrativas. As principais funções do governo, como a adjudicação de
disputas legais, a arrecadação de renda, o controle da moeda corrente, o recruta-
mento militar, a organização do sistema postal, a construção de obras públicas e
outras foram removidas da luta política, no sentido de que não podem, com base
na hereditariedade, ser apropriadas por Estados privilegiados, nem divididas entre
jurisdições concorrentes. A política deixa de ser uma luta acima da distribuição de
poderes soberanos onde quer que o domínio pacífico sobre um território e seus
habitantes é concebido como uma função de uma mesma comunidade — o Estado-
nação2. Em vez disso, a política torna-se uma luta acima da distribuição do produto
1. Edmund Burke, Rcflcctions on thc Rcvolulion in Franco, Gateway Editions, Inc., Chicago, Henry
Regnery Co., 1955, p. 140.
2. Ver Max Weber, Law in Economy andSocicty, trad. e ed. de Max Rheinstein & E. A. Shils, Cambridge,
Harvard University Press, 1954, p. 338 e passim. Ver também Max Weber, Thc Thcory of Social and
Economic Organization, New York, Oxford University Press, 1947, p. 156.
140
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

nacional e acima das políticas e da implementação administrativa que afetam essa


distribuição. Um corolário inquestionável dessa emergência do Estado-nação é o
desenvolvimento de um corpo de funcionários, cujo recrutamento e execução
política foram gradualmente separados do envolvimento previamente existente de
funcionários com lealdades por parentesco, privilégios hereditários e interesses de
propriedade3. A discussão seguinte examina esse processo de burocratização e se
transforma numa análise de aspectos selecionados da relação entre os administra-
dores e o público no Estado-nação moderno.

Burocratização

Um atributo de todo governo é a implementação de comandos através de um


quadro administrativo. A nomeação de funcionários e sua maneira de implementar
os comandos diferenciam um tipo de estrutura política de outro. Uma vez que a
questão básica da discussão precedente é a estrutura política medieval da Europa
ocidental, podemos caracterizar melhor o processo de burocratização por meio de
um contraste sistemático com o tipo de governo patrimonial.
O governante ou chefe patrimonial está relacionado com seus subordinados
e funcionários pessoais da seguinte maneira:
1. Através de decisões arbitrárias no momento em que o dirigente confere
poderes a seus funcionários, ou os comissiona para realizar determinadas tarefas;
em princípio, ele é livre para alterar esses poderes ou comissões segundo sua
conveniência.
2. "A questão de quem decidirá um assunto - qual de seus funcionários ou
o próprio chefe — [...] é tratada [...] [ou] tradicionalmente, com base na autoridade
de normas legais ou precedentes particulares recebidos, [ou] inteiramente com base
em decisões arbitrárias do chefe."
3. "[...] Funcionários e favoritos da família são com muita frequência recru-
tados numa base puramente patrimonial dentre os escravos ou servos de um chefe.
Se o recrutamento foi extrapatrimonial [i.e., fora do domínio familiar pessoal do
governante], eles tendiam a ser portadores de benefícios que lhes foram concedidos
como um ato de graça sem compromisso com nenhuma regra formal."

3. Um estudo comparativo da história administrativa, em que esse processo de separação é investigado


desde meados do século XVII, encontra-se em Emest Barker, The Dcvclopmcnt of Public Services in
Western Europc, 1660-1930, New York, Oxford University Press, 1944.

141
RE1NHARD BEND1X
4. A qualificação para o ofício depende inteiramente do juízo de valor
pessoal do governante entre seus funcionários domésticos, partidários ou favoritos.
5. "Funcionários e favoritos domésticos são geralmente sustentados e equi-
pados na casa do chefe e de seus armazéns pessoais. Geralmente, sua exclusão da
própria mesa do amo significa a criação de benefícios [...]" e portanto um enfra-
quecimento do regime patrimonial como é aqui definido.
6. Através de mudanças abruptas na nomeação e de uma série de outros atos
arbitrários, o governante faz todos os esforços para evitar a identificação de
qualquer funcionário ou favorito doméstico com o ofício que ele ocupa numa
determinada época.
7. O próprio governante ou seus funcionários e favoritos que agem em seu
nome conduzem os negócios do governo quando e se o consideram apropriado,
isto é, ou por pagamento de uma comissão ou por um ato de graça unilateral 4 .
O governo é considerado uma mera extensão do domínio privado do gover-
nante. Vimos que, sob o patrimonialismo, a regra pessoal arbitrária é considerada
legitimada com base na tradição imemorial e santificada. Repetidamente, o gover-
nante patrimonial enfrenta a tarefa de equilibrar um princípio com outro. Essa
consideração aplica-se a todas as condições acima enumeradas: a delegação de
autoridade, a base do recrutamento e remuneração, a qualificação para o ofício, a
obediência dos subordinados ao governante ou a independência relativa de sua
posição, e finalmente o grau com que o governante e funcionários tratam o negócio
oficial como uni ato de indulgência pessoal ou o desempenho daquele dever que a
tradição lhes dá como incumbência. Nesses aspectos, nem a arbitrariedade pessoal
nem a adesão ao precedente santificado podem ser dispensados. Pois se a arbitra-
riedade passa a prevalecer, o patrimonialismo dá margem à tirania; se direitos
estabelecidos eliminam a vontade arbitrária do governante, o patrimonialismo dá
margem ao feudalismo ou um grande domínio se desintegra em domínios patrimo-
niais menores. O regime patrimonial perdurará enquanto essas eventualidades
forem evitadas, mas é também verdade que, dentro dessa estrutura, o regime
arbitrário ou a adesão à tradição santificada pode se tornar dominante.
A caracterização do regime patrimonial de Weber presume uma grande
diversidade de eventos históricos, e os conceitos emparelhados de arbitrariedade
santificada e de precedente santificado fornecem um dispositivo interpretativo para
4. As passagens citadas são extraídas de Max Weber, The Thcory of Social anclEconomic Organization,
op. cit., pp. 343, 344 e 345. As características da regra patrimonial remanescentes são extraídas de Max
Weber, Wirtschaft und Gcsdlschaft, Túbingen, J. C. B. Mohr, 1925, II, pp. 679-723. As discussões
relacionadas são encontradas em Max Weber, Rcligion of China, Glencoe, The Free Press, 1951, pp.
33-104.
142
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇAO

uma análise da mudança social. Mas todo exercício concreto de autoridade por um
governante histórico é, justamente por isso, uma instância numa série de eventos
que revela um padrão apenas quando encarada em retrospecto e por um longo
prazo. Embora a conceitualização desse padrão capacite o analista a abordar todo
caso específico com um conhecimento dos "princípios de ação" que estão em
debate, aquele conhecimento é inevitavelmente afastado das ambiguidades e com-
promissos pelos quais os homens de ação abrem caminho entre princípios opostos.
É necessário, portanto, enfatizar os dilemas intrínsecos nos conceitos capitais como
a administração patrimonial, a fim de reduzir o desnível entre conceito e compor-
tamento. Por outro lado, assim como aprendemos a estimar o preço de cada linha
de ação, os prejuízos evitáveis e inevitáveis que ela provoca na consecução de seus
próprios objetivos, também reduzimos o desnível do lado da análise comportamen-
tal. Considerações paralelas aplicam-se ao sistema de administração sob o preceito
da lei.
No moderno Estado-nação do tipo ocidental a administração governamen-
tal é caracterizada por uma orientação dirigida para regulamentações legais e
administrativas. Uma vez que a definição de burocracia de Weber traça o
paralelo dos pontos apenas citados em relação à administração patrimonial,
repito-a aqui de forma abreviada. Uma burocracia tende a ser caracterizada por:
1. direitos e deveres definidos, que são prescritos em regulamentos escritos;
2. relações de autoridade entre posições que são ordenadas sistematicamente;
3. nomeação e promoção que são regulamentadas e baseadas em acordo contra-
tual; 4. treinamento técnico (ou experiência) como uma condição de emprego
formal; 5. salários monetários fixados; 6. estrita separação entre cargo e encar-
regado no sentido de que o empregado não possui os "meios de administração"
e não pode se apropriar da posição, e 7. trabalho administrativo como uma
ocupação de tempo integral5.
Cada uma dessas características representa uma condição de emprego na
administração do governo moderno. O processo de burocratização pode ser inter-
pretado como a multifacetada, cumulativa e mais ou menos bem-sucedida imposi-
ção dessas condições de emprego desde o século XIX. Os problemas de
gerenciamento que emergem desse processo podem ser caracterizados de uma
maneira geral pela comparação de cada condição de emprego burocrático com sua
contrapartida não-burocrática ou antiburocrática.

H. H. Gerth e C. W. Mills (eds.), From Meu Wcbcr: Essays in Sociolog); New York, Oxford University
Press, 1046, pp. 106-198. A discussão que se segue baseia-se em meu IÍSTO Work and Authority in
Industry, New York, John Wiley & Sons, 1956, pp. 244-248.

143
REINHARD BEND1X
O esforço para definir direitos e deveres de acordo com critérios formais
(impessoais) encontrará persistentes tentativas para interpretá-las de uma maneira
que o indivíduo interessado considera vantajosa para si mesmo.
A sistemática disposição das relações de autoridade serão opostas, embora
muitas vezes involuntariamente, por tentativas de sujeitar essas relações a uma
negociação informal usando favores de vários tipos.
Considerações pessoais semelhantes podem também afetar a nomeação e a
promoção de empregados, mesmo quando há uma evidente submissão às regras.
O treinamento técnico como uma condição de emprego está talvez menos
sujeito a tais práticas, embora, mesmo neste caso, as relações pessoais e as interpre-
tações subjetivas possam modificar o que de outra forma seria uma adesão pura-
mente formal a essa condição. Penso em fatores como a preferência pela contratação
de funcionários por candidatos que possuem certas caraterísticas pessoais, bem
como a competêricia técnica requerida. A avaliação subjetiva também entra na
avaliação da experiência, da situação profissional etc, de um candidato.
Considerações semelhantes aplicam-se aos salários monetários fixos. Embo-
ra as escalas de salário possam ser prontamente fixadas e administradas, a nomea-
ção e promoção estão sujeitas à negociação e à influência pessoal, como em todo
o sistema de classificação de trabalho sem o qual a escala de salário não tem sentido.
Além disso, há contínuos esforços para suplementar qualquer escala de salário
determinada por vários benefícios marginais que não são tão prontamente sistema-
tizados como a própria escala e, portanto, permitem a manipulação que a escala
procura eliminar.
A estrita separação entre funcionário e encarregado, entre o cargo e o
empregado, é uma condição ideal que raramente é atingida na prática, especial-
mente em relação a empregados assalariados e trabalhadores especializados. Os
encarregados dotam seu desempenho no trabalho com qualidades pessoais que vão
desde as idiossincrasias dispensáveis até habilidades intransferíveis e muitas vezes
indispensáveis, de modo que alguma medida de identificação do empregado com
essa posição é inevitável. Nas modernas condições de emprego, o indivíduo não
pode se apropriar de sua posição no sentido de que, digamos, no governo inglês
durante o século XVIII os cargos administrativos eram uma forma de propriedade
privada que uma família podia passar de uma geração à seguinte. Mas as salva-
guardas contra a demissão estabelecidas no governo moderno sob o slogan de
"estabilidade no emprego" dotaram o emprego de um caráter de quase propriedade
que é mais ou menos incompatível com a estrita separação entre o emprego e o
empregado.
144
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

Embora a ideia de trabalho como uma ocupação de tempo integral seja


geralmente aceita, a intensidade do trabalho está sujeita a disputas e interpretação.
A expressão "tempo integral" é inambígua quando contrastada com o trabalho
temporário ou secundário. Mas a quantidade de trabalho realizado numa ocupação
de tempo integral continua a ser uma condição de emprego muito controvertida,
que os empregadores procuram regularizar pelo uso de incentivos e penalidades e
que os trabalhadores interpretam a seu modo pela prática da restrição de produção.
Dessa maneira, a burocratização é um processo em andamento, no qual aqueles
que exercem autoridade sujeitam as condições de emprego a uma sistematização
impessoal, enquanto os empregados procuram modificar a implementação das
regras de uma maneira que consideram vantajosa a si mesmos. Podemos dizer que
os empregados continuam a "negociar" silenciosamente sobre as regras que gover-
nam seu emprego, muito depois de terem assinado o contrato que ostensivamente
impede tal "negociação" posterior. Por outro lado, os que representam a autoridade
esforçam-se por maximizar o desempenho previsível dos empregados pelo uso
estratégico de penalidades, incentivos e apelos ideológicos.
Dentro do contexto administrativo, essas estratégias conflitantes replicam o
que Weber considera as características básicas da dominação legal. Na medida em
que "amor, aversão, e todos os sentimentos [...] puramente pessoais [são excluídos]
da execução de tarefas oficiais", o governo moderno aproxima-se do tipo de
burocracia ideal sob o domínio legal6. Mas tal aproximação é uma realização
humana e, portanto, condicional. As tendências para uma administração impessoal
de regras emergem das crenças básicas de acordo com as quais as leis são
consideradas legítimas, se foram decretadas pelas autoridades próprias, com base
em procedimentos sancionados por lei. Na sociedade moderna, os legisladores,
advogados, juizes, tribunais administrativos e outros estão preocupados em produ-
zir leis e procedimentos que deverão governar as transações recorrentes entre
indivíduos e grupos. A administração impessoal fornece um suporte indispensável
de regularidade, imparcialidade, previsibilidade, e todos os outros atributos de
ordem positivos, mas esses ganhos estão inextricavelmente ligados a uma estudada
desconsideração pela pessoa e pela circunstância e, portanto, por considerações de
equidade.
Conseqiientemente, como Weber mostra em sua sociologia da lei, o avanço
na "racionalidade formal" foi e continua a ser circunscrito em muitos pontos pela
preocupação das partes interessadas, e na verdade dos próprios legisladores, com
princípios de equidade. Uma crença na legalidade significa sobretudo que certos

6. Ver essa formulação condicional em Weber, Law in Economy andSocicty, op. cit., p. 351.

145
REIKHARD BESDIX
procedimentos formais devem ser obedecidos se a decretação ou execução de uma
lei quiser ser considerada legal. Mas enquanto a legislação legal tende a eliminar
as idiossincrasias da lei pessoal, no interesse do desenvolvimento de um corpo de
leis coerente que seja o mesmo para todos, ela também milita contra o exercício
do julgamento no caso individual. Todavia, a atenção aos regulamentos pode, por
essas razões, engendrar um interesse no ato de legislar em causa própria - do
mesmo modo que uma preocupação exagerada com a equidade no caso individual
pode prejudicar a integridade do processo legiferante. Portanto, o Estado de direito
perdura na medida em que as soluções parciais desses imperativos conflitantes são
encontradas e que não se permite o predomínio da preocupação com a equidade
nem com os atributos formais de legislar. O básico e angustiante dilema de forma
e substância na lei pode ser aliviado, mas nunca resolvido, pois a estrutura do
domínio legal mantém suas características distintivas apenas na medida em que
esse dilema é perpetuado.
Os imperativos conflitantes da "racionalidade formal e substantiva" esten-
dem-se mesmo ao interior dos estatutos relativamente simples que governam a
administração pública, pois parece que a implementação de tais estatutos é assal-
tada por certas incompatibilidades inerentes à estrutura das organizações hierár-
quicas. O problema de comunicação é o caso em questão. A hierarquia de-postos,
indispensável em grandes organizações, envolve uma ordem de autoridade indis-
cutível. Todos os subordinados recebem suas ordens dos superiores, que por
definição conhecem mais sobre a política da organização e sua execução "apro-
priada" do que aqueles que eles comandam. Contudo, seu conhecimento superior
é limitado ou circunscrito pelo fato de que seu alto posto dentro da organização
afasta-o automaticamente da experiência do dia-a-dia com seus problemas opera-
cionais. Na terminologia da teoria da organização, isto é chamado o problema da
comunicação de mão dupla. Mas, como Florence observou, a informação, que deve
surgir da linha de autoridade a partir daqueles que estão em contato diário com
problemas operacionais, "tende a ser negligenciada pela simples razão de que ela
parte de um subordinado"7. Convém enfatizar que a razão para tal negligência não
é necessariamente a má vontade dos superiores ou a inaptidão dos subordinados.
Ela se deve, antes, ao fato de que a hierarquia de postos envolve diferentes níveis
de informação, de modo que os subordinados não estão em condições de julgar
quais os aspectos da operação do dia-a-dia são de interesse especial para seus
superiores. Tampouco é possível aos superiores explicá-lo com muitos detalhes,
7. P. Sargant Florence, The Logic ofBritish and American Industry, London, Routledge & Kegan Paul,
Ud., 1953, p. 153.
146
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

pois isso interferiria com a própria delegação de responsabilidade que as grandes


organizações tornam necessária. Portanto, cabe aos subordinados julgar em certa
medida o que seus superiores querem ou devem saber. Uma vez que o desempenho
dos subordinados é avaliado em parte por essa maneira de manter o superior
informado, a informação que ele fornece é passível de ser um amálgama do
necessário, do frívolo e do auto-interesse. Os superiores e subordinados lidam
diariamente com esse problema e com outros semelhantes, e os resolvem da melhor
forma que podem, à luz de circunstâncias e com as habilidades organizacionais à
disposição. O estudo e a pesquisa podem melhorar tais soluções, mas não podem,
parece-me, eliminar os dilemas inerentes ao comportamento de aceitação do
estatuto e das organizações hierárquicas8.
A discussão precedente da administração patrimonial e burocrática mostra
que os conceitos — marcos das estruturas sociais podem abranger um espaço da
experiência histórica. Um dado tipo de administração manterá seu caráter enquanto
os governantes e funcionários conseguirem um certo equilíbrio entre os tipos de
imperativos conflitantes. A tarefa analítica é identificar esses imperativos e,
portanto, as questões ou conflitos cujas repetidas resoluções definem e redefinem
os atributos do tipo. Para evitar a reificação do tipo, isto é, a falácia de atribuir a
uma estrutura social uma concretude que ela não possui, devemos ver esses
"atributos" como objetos de ação por grupos específicos.
A discussão também exemplifica uma abordagem da mudança social que
permite transformações de um tipo a outro. Por exemplo, a dependência de
funcionários patrimoniais em relação à casa do governante contrasta com a fixação
impessoal dos salários monetários dos funcionários burocráticos. Quando o domí-
nio do governante se toma mais amplo, o número de funcionários domésticos
cresce, assim como a dificuldade de mante-los na família. Conseqúentemente, os

Em seu \\vtoAdmimstrativeBchavior, New York, Macmillan Co., 1948, pp. 20-44, Simon mostrou de
que maneira tais dilemas conduziram a teorias administrativas que são tão contraditórias quanto os
provérbios. A eficiência administrativa requer especialização. Por outro lado, a especialização requer
critérios claros para uma divisão do trabalho, mas esses critérios coincidem ou colidem com outros e,
portanto, exigem coordenação, que é, muitas vezes, incompatível com a especialização. A alegação de
que laís dilemas são inevitáveis e de que, portanto, os julgamentos são indispensáveis, é inteiramente
compatível com o esforço para assentar a tomada de decisão gerencial numa base mais científica. A
substituição dos métodos mecânicos por operações manuais é obviamente um contínuo processo que
em larga medida reduziu algumas áreas de arbítrio, ainda que tais métodos também tenham criado
novas oportunidades para o julgamento discricionário. Mas, embora as mudanças organizacionais
(incluindo as baseadas em pesquisa anterior) reduzam e realoquem as áreas em que o arbítrio é possível
ou desejado, elas não podem, na minha opinião, eliminar o exercício do julgamento. De qualquer forma,
os contraditórios provérbios administrativos de Simon deverão continuar, enquanto a operação das
organizações hierárquicas requererem tais julgamentos.

147
REIXHARD BEfíDIX
benefícios e, portanto, a independência relativa em relação à família substituem
cada vez mais seu antigo arranjo. Os funcionários do governante procurarão tornar
seus benefícios hereditários, enquanto o governante tentará recuperar o benefício
como seu ao término do serviço ou pela morte do encarregado. Esse conflito será
resolvido pela luta em termos das arbitrariedades pessoais e do respeito pela
tradição que são característicos do governo patrimonial. Quando os funcionários
conseguem tornar-se independentes, dão o primeiro passo para se afastar da
completa identificação do governante e do governo. Note-se, porém, que esse
primeiro passo consiste na completa identificação do governo com muitos gover-
nantes; portanto, permanece bem no centro da estrutura do governo patrimonial.
Na Europa ocidental, essa estrutura prevaleceu por muitos séculos, mas foi aos
poucos internamente solapada, quando o desempenho das funções governamentais
perderam eficácia com a comercialização dos cargos.
Finalmente, a ideia do cargo do governo como um tipo de propriedade pessoal
herdada foi substituída pela completa separação entre o cargo e o encarregado, com
a remuneração tomando agora a forma de pagamentos de salários regulares em
lugar da antiga dependência do encarregado em relação à família do governante e
à renda proveniente do desempenho de funções oficiais. É verdade que esse novo
princípio, como o antigo, está sujeito a variáveis consideráveis. Embora as escalas
de salário sejam fixadas e os funcionários não possuam direitos de propriedade em
suas posições, essas condições do serviço administrativo estão sujeitas à negocia-
ção e à influência pessoal. Fatores como benefícios extras e estabilidade pessoal
podem muitas vezes modificar consideravelmente a escala salarial e a separação
do cargo e do encarregado. O saldo dependerá dos esforços conflitantes daqueles
que administram a escala salarial e supervisionam as condições de emprego, como
contra aqueles que usam a negociação e a influência para maximizar suas vanta-
gens. Se os primeiros obtivessem êxito completo, codificariam benefícios adicio-
nais e condições de emprego de modo suficientemente detalhado para minimizar
a negociação e a influência pessoal. Se os negociadores obtivessem êxito total,
anulariam as condições formais da moderna administração e restabeleceriam a
tomada de decisão pessoal em questões de remuneração e emprego. O grau em que
essa alternativa patrimonial se tornou impossível é uma verdadeira medida do grau
com que o tipo de administração burocrática se tornou o padrão predominante. Mas
a negociação e a influência continuam a afetar as condições do trabalho adminis-
trativo, e até este ponto o padrão burocrático predominante está sujeito a uma
alteração gradual. Se essas alterações são mutuamente compensatórias, e portanto
preservam a identidade da burocracia, se elas se acumulam em uma ou outra direção
e dão origem a padrões "neopatrimoniais" ou "neofeudais", ou se tipos inteiramen-
148
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

te novos de administração emergem - tudo isso está sujeito à investigação,


empírica. A discussão seguinte é relevante para essa investigação, na medida em
que relaciona o tipo ideal de organização burocrática de Weber a dois problemas
críticos da administração pública no Estado-nação ocidental.

Administração Pública e Estrutura Social

Na segunda parte do epílogo com o qual conclui seu romance Guerra e Paz,
Leon Tolstói descreve a metáfora da raiz das organizações hierárquicas. Quando
os homens se unem numa ação comum, a maior parte deles participa diretamente
na ação, enquanto um número menor tem uma participação direta menor. O
comandante-chefe nunca participa diretamente, mas em vez disso toma providên-
cias gerais para a ação combinada. Para Tolstói um cone delineado com perfeição
representa o modelo de todas as organizações hierarquizadas''.
Em seu tipo ideal de um quadro administrativo sob autoridade legal, Max
Weber refere-se ao mesmo modelo ao enfatizar o tipo monocrático no qual um
"chefe" exerce autoridade suprema sobre todo o quadro administrativo. Contudo,
em sua especificação dos atributos que distinguem a administração burocrática da
patrimonial, ele concentra maior atenção nas relações de autoridade intra-organi-
zacionais. Ordenando e facilitando a implementação fiel dos comandos, a autori-
dade isola os funcionários das influências que interfeririam nessa implementação.
Temos, portanto, duas variáveis críticas. Uma refere-se à natureza da autoridade
exercida sobre o quadro administrativo, a outra com o condicionamento e isola-
mento organizacional desse quadro que afeta sua implementação de comandos.
Ambos os aspectos são igualmente importantes no exercício do poder público no
Estado-nação ocidental, mas devo concentrar-me aqui no segundo.
Ao nível da política pessoal-pública, os funcionários do governo são agora
recrutados independentemente de suas lealdades de parentesco, enquanto os privi-
légios dos Estados hereditários não mais existirem. As salvaguardas contra a
apropriação completa e o envolvimento direto com os interesses da família e da
propriedade são suplementadas pelas várias condições do emprego público, nas
quais Weber vê as características distintivas de uma burocracia moderna. Reunidas,
essas condições devem garantir que nenhuma influência extra-organizacional
interfira na implementação de comandos à medida que esta percorre a hierarquia
desde o nível de tomada de decisão, no alto, até o funcionário executivo "na linha

9. Leon Tolstói, War and Pcace, New York, The Modern Library, s. d., pp. 1128-1129 epassim.

149
REINHARD BENDIX
de fogo". Desse modo, o exercício das funções administrativas deve ser efetiva-
mente isolada da estrutura social circundante. Tipicamente ideal, a hierarquia
burocrática é uma estrutura independente: decisões políticas básicas foram alcan-
çadas antes de sua implementação administrativa, da qual foram claramente dife-
renciadas; os funcionários são assim condicionados de modo a se confinar
voluntariamente e com competência técnica para essa implementação, e o público
concorda com os estatutos resultantes e não tenta influenciar em sua formulação
ou execução. Contudo, essas hipóteses só podem ser aproximativas10. Várias
condições influem na hierarquia como um todo: a estrutura da autoridade suprema
(que, como viu Weber, é frequentemente wão-monocrática), o padrão de cultura
burocrática que forma a atitude dominante dos funcionários públicos, e os contatos
entre administradores e o público".
Consequentemente, as hipóteses do modelo weberiano (mais do que os
atributos que formam o modelo) serão modificadas na discussão seguinte, que
pretende abordar uma compreensão mais completa da autoridade administrativa
no Estado-nação moderno. A discussão enfocará duas questões críticas: a posição
legal e política dos servidores civis, e certos problemas típicos na relação entre
administradores e público.
A autoridade e o padrão burocrático de cultura
A emergência do Estado-nação é acompanhada pelo crescimento de uma
estrutura governamental em larga escala, com um quadro de funcionários que, ao
ingressar no emprego público, deve aceitar as condições de emprego estipuladas
pela autoridade pública. Na ausência de privilégios hereditários, e com o declínio
dos grupos de parentesco extensos, os funcionários públicos aceitam essas condi-
ções com suficiente boa vontade. Mas com a universalização da cidadania, traçada
no capítulo anterior, surge uma pergunta: Devem os funcionários públicos manter
todos os direitos do cidadão privado, ou devem eles sujeitar-se a algumas restrições
especiais, tendo em vista suas responsabilidades e poderes como funcionários
públicos? Geralmente, três respostas foram dadas a essas perguntas. Num extremo,
10. O próprio Weber oferece uma análise comportamental em seus escritos políticos, especialmente em
sua análise do problema burocrático na Alemanha imperial no governo Bismarck. Ver seus Gcsammeltc
politische Schriften, Tiibingen, J. C. B. Mohr, Paul Siebeck, 1958, pp. 299 e ss. Não sabemos como ele
teria desenvolvido a relação entre o típico-ideal e o nível comportamental de análise, se tivesse vivido
para completar sua sociologia do Estado.
11. Minha primeira tentativa de formular as precondições do comportamento burocrático encontra-se em
Reinhard Bendix, Higher Civil Scrvants in American Society, University of Colorado Series, Studics
in Sociology, n" l, Boulder, University of Colorado Press, 1949, cap. I.
ISO
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

está a opinião de que os dois papéis são inteiramente compatíveis, de modo que o
funcionário público goza de plenos direitos do cidadão privado sempre que atue
na qualidade deste. Esta visão pode ser chamada de plebiscitarianismo democrá-
tico, no sentido de que trata todos os cidadãos da mesma maneira e não permite
que o status especial do funcionário prejudique os direitos universais de cidadania.
No outro extremo está a opinião de que os servidores civis são acima de tudo
servidores do Estado e, portanto, que o emprego público implica um suporte
político positivo para o governo no poder. Esta opinião pode ser chamada de
autocrática ou plebiscitarianimo totalitário, desde que a mesma exigência de
completa fidelidade seja feita a todos os cidadãos; os direitos da cidadania são
anulados sempre que interfiram com essa obediência dominante, de modo que sob
essas circunstâncias não há também nenhuma diferença entre o cidadão comum e
o funcionário público. Entre esses extremos está a posição que recomenda a todos
os funcionários públicos, especialmente aos que ocupam posições de responsabi-
lidade, o ideal da neutralidade política. Aqui, os funcionários públicos são delibe-
radamente separados dos cidadãos privados. Informalmente ou através de uma
legislação especial, eles são solicitados a aceitar restrições especiais sobre sua
expressão ou opiniões políticas e sua participação em atividades políticas, a fim de
salvaguardar a imparcialidade da administração governamental bem como a con-
fiança pública nessa imparcialidade. Nas democracias ocidentais, é muito difundi-
da a ideia de que os funcionários públicos devem renunciar a alguns de seus direitos
de cidadãos porque o emprego governamental envolve uma confiança pública que
poderia ser prejudicada por um uso imprudente desses direitos. Nos termos da
discussão precedente, essa abordagem exemplifica Q princípio funcional no sentido
de que os funcionários públicos são reconhecidos como uma ocupação que possui
direitos e deveres particulares. Portanto, com referência ao emprego público, o
princípio plebiscitário dos direitos universais de cidadania é rejeitado12. A discus-
são diretamente subsequente restringir-se-á à terceira abordagem apenas mencio-
nada. Seu propósito é mostrar o impacto da estrutura autoritária e do padrão de
cultura burocrática no esforço para definir a posição legal e política dos funcioná-
rios públicos nos Estados Unidos e na Alemanha13.

12. Para um breve levantamento exemplificando essas três abordagens com referência à França na Terceira
República, à Alemanha nazista e à Itália fascista, e à Grã-Bretanha, ver Thomas I. Emerson e David
M. Helfield, "Loyalty among Government Employees", YaleLaw Journal, vol. 58,1948, pp. 120-133.
13. A discussão que se segue deve muito a Ernst Fraenkel, "Freiheit und politisches Betàtigungsrecht der
Beamten in Deutschland und den USA", em Vcritas, lustitia, Libertas, Edição Comemorativa em Honra
ao Bicentenário da Universidade de Colúmbia transmitida pela Universidade Livre de Berlim e pela
Escola Superior de Política, Berlin, Colloquium Verlag, 1953, pp. 60-90.

757
REINHARD BEND1X
No ambiente americano, a suspeita em relação aos funcionários públicos data
do início da independência. Dentre as queixas das colónias contra as "repetidas
injustiças e usurpações" do rei da Grã-Bretanha está a declaração de que "Ele
instituiu uma multidão de cargos novos, e enviou para cá um enxame de funcioná-
rios para molestar nosso povo e arruinar sua propriedade"14. O Decreto de Direitos
de 1776 da Virgínia, bem como a correspondente declaração de direitos para
Massachusetts, Pensilvânia, e outros Estados, coloca os altos funcionários do setor
executivo do governo no mesmo pé que o legislativo com referência ao princípio
de rodízio. Funcionários nomeados, bem como os eleitos, devem retornar à vida
privada em intervalos fixos, tanto como salvaguarda contra o abuso de poder
quanto como um meio pelo qual eles podem voltar a participar das preocupações
e privações do povo. Assim, a administração do governo deve refletir diretamente
a vontade do povo, e os funcionários do governo são literalmente servidores do
público. Com base em suas observações em 1831, Tocqueville notou que, nos
Estados Unidos, o governo é considerado um mal necessário, nenhuma "semelhan-
ça ostensiva de autoridade" é desnecessariamente ofensiva, e que "os próprios
funcionários públicos estão bem conscientes de que a superioridade sobre seus
concidadãos, que emana de sua autoridade, eles só a desfrutam com a condição de
colocar-se por sua conduta no nível de toda a comunidade"15. Quando nenhum
homem no serviço público é diferenciado da população em geral, o rodízio no cargo
é visto como uma garantia de que distinções hostis não serão introduzidas no futuro,
porquanto os homens de todas as classes sociais são considerados igualmente
qualificados para ocupar um cargo público16. Este sentimento antiburocrático
manteve forte influência na administração pública americana, mesmo depois que
a Reforma do Serviço Civil de 1883 aboliu o sistema de favorecimento de
partidários políticos e introduziu algumas salvaguardas legais nos estatutos do
emprego público do governo.
Ernst Fraenkel cita duas decisões que exemplificam essa atitude generaliza-
da. No caso de Butler x Pensilvânia (51, EUA, 1850), os reclamantes argumentam
que sua nomeação para um cargo no governo baseava-se em contrato protegido
pelo art. 1a, parágrafo 10 da Constituição, que proíbe ao Estado sancionar leis "que
prejudiquem as obrigações contratuais". Mas, na opinião do tribunal,
14. Citado em Cari L. Becker, The Dcclaration of Indcpcndcnce, New York, Vintage Books, 1958, p. 12.
15. Alexis de Tocqueville, Dcmocracy in America, New York, Vintage Books, 1954, I, pp. 214-215.
16. Ver James Bryce, The American Commonwealth, Chicago, Charles H. Sergel & Co., 1891, II, pp.
127-128. A importância dessas opiniões não diminui com a descoberta de que o favorecimento de
partidários políticos não foi tão grande na administração de Andrew Jackson como se supunha. Ver S.
M. Lipset, The First New Nation, New York, Basic Books, Inc., 1963, pp. 101-102.
752
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

a nomeação e o mandato de um cargo criado para uso público, [...] não vão além do momento
do prazo de contrato, ou, em outras palavras, os direitos privados pessoais estabelecidos que se
pretendem desse modo estar protegidos. Eles [a nomeação, e o mandato, cargo público] são
funções próprias daquela classe de poderes c obrigações aos quais os governos estão habilitados,
e a que estão obrigados, para fomentar e promover o bem geral: funções, por conseguinte, que
não se pode presumir que os governos tenham abandonado. [...]

Um século depois, no processo deBailey xRichardson (182 f. 2.d., 1951), o


tribunal suspendeu o direito do governo de demitir um empregado de cuja lealdade
ele não estava totalmente convencido. Na opinião que apoiava esse julgamento, o
tribunal também comentava a natureza e o status legal do emprego público:

A devida cláusula do processo não se aplica à propriedade de um cargo no governo [...]


O emprego no governo está sujeito a muitas restrições sobre direitos individuais, de outro modo
irrestritos, com respeito a atividades, posse de propriedade etc. [...] Deste modo, no presente
caso, se Miss Bailey não tem direito constitucional a seu cargo, e os funcionários públicos do
executivo têm poder de demiti-la, o fato de que ela foi prejudicada no processo de demissão não
invalida sua demissão nem dá a ela o direito de reparação. [...] Essas rígidas regras, que
contrariam todos os preceitos conhecidos de equidade ao indivíduo privado, sempre foram
consideradas necessárias como um assunto de política oficial, de interesse público, e de livre
desempenho do negócio público.

Portanto, uma vez que os cargos em função pública não dependem de direitos
contratuais protegidos pela Constituição, o término de um emprego público não
priva o encarregado de nenhum direito, tendo em vista a importância predominante
do negócio público17.
Esse tratamento à parte e discriminatório dos funcionários públicos não foi
aplicado à esfera política, ao menos no início. O artigo l u , capítulo 6 da Constitui-
ção declara que ninguém poderá ser ao mesmo tempo funcionário nomeado e eleito.
Em princípio, essa proibição circunscrevia as atividades políticas permitidas dos
empregados do governo federal. Como apontava Thomas Jefferson em 1801, a
separação de poderes torna "impróprio que os funcionários dependentes do Exe-
cutivo [...] controlem ou influenciem o livre exercício do direito eleitoral", de modo
que a propaganda eleitoral por funcionários públicos é "considerada incompatível
com o espírito da Constituição""1. Mas não se deu atenção a essa interpretação, as
atividades políticas de funcionários federais eram geralmente aceitas como parte

17. Ver Fraenkel, op. cit., pp. 84-85. Ver também minha discussão sobre os servidores públicos americanos
como um "grupo desprivilegiado" em Highcr Civil Scrvants in American Socicty, pp. 100 e ss.
18. Citado em Joseph M. Friedman e Tobias G. Klinger, "The Halch Act: Regulation by Administrative Action
of Political Aclivities of Government Employees", The Federal Bar Journal, VII, out. 1945, p. 6.

75.?
RE1NHARD BENDIX
do sistema de favorecimento de partidários políticos, e apenas a disposição cons-
titucional era obedecida. Contudo, essa atitude clemente generalizada mudou após
a Reforma do Serviço Público de 1883. Numa instrução de 1886, o presidente
Cleveland proibiu aos funcionários federais comprometer-se em "partidarismo
importuno", apontando que "as propriedades do cargo público também os impedi-
rão de assumir a condução ativa de campanhas políticas". Vinte anos depois, o
mesmo princípio foi formalizado por Theodore Roosevelt e incorporado aos
Estatutos do Serviço Público que permaneceram em vigor até 1939, quando a Lei
Hatch estendeu os mesmos estatutos a todos os funcionários federais, bem como a
alguns funcionários do Estado e dos governos municipais19. Desde então, a Comis-
são do Serviço Público implementou essas restrições por uma detalhada especifi-
cação das atividades políticas nas quais os funcionários públicos podem participar,
bem como aquelas que lhes são vedadas 2".
As várias opiniões expressas no caso dos Trabalhadores Públicos Unidos x
Mitchell [330, EUA 75(1947)] revelam a lógica que fundamenta tais especificações.
Nesse caso, um funcionário federal havia sido demitido por sua participação ativa
na campanha política. Em sua opinião minoritária, o juiz Black sustenta que a Lei
Hatch reduz a liberdade garantida constitucionalmente de milhões de funcionários
públicos que eram impedidos de contribuir com seus argumentos e sugestões para
a livre discussão de questões públicas. Os funcionários do governo são dessa forma
transformados em cidadãos de segunda classe, meros espectadores das discussões
que resultam em ações políticas referentes ao bem-estar público. Essa consideração
baseia-se numa visão plebiscitaria que concede os mesmos direitos e deveres a
todos os cidadãos, independentemente de sua posição na comunidade. Essa opinião
é em parte esposada pelo juiz Douglas, que considera inconstitucional reduzir as
atividades políticas dos funcionários públicos comuns. Contudo, o juiz Douglas
concorda com a maioria do tribunal quando expressa o receio de que os servidores
públicos em posições administrativas possam prejudicar o funcionamento regular
do setor executivo do governo, se puderem engajar-se irrestritamente em atividades
políticas. Aqui o "princípio funcional" é aduzido em apoio a regras especiais para
a situação particular do servidor público numa posição de responsabilidade. Na
opinião da maioria do tribunal, essa mesma consideração se aplica ainda mais
amplamente, de modo que o "princípio funcional" predomina. Subscrevendo a
maioria, o juiz Reed afirma que dois perigos surgiriam se os funcionários públicos
19. Ver Milton J. Esmein, "The Hatch Act: A Reappraisal", Yalc Law Journal, vol. 60, jun. 1951, p. 998,
sobre a fonte das instruções dos presidentes Cleveland e Roosevelt.
20. Ver idem, pp. 990-991, sobre uma lista das atividades políticas sob esses dois tópicos.
154
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

pudessem desempenhar duas funções como funcionários de partido. O principal


perigo para os funcionários administrativos é que as atividades partidárias interfe-
ririam no desempenho de seus deveres públicos; pois, na grande maioria dos
funcionários públicos comuns, as atividades partidárias poderiam fortalecer o
domínio do partido no poder e dar origem desse modo a tendências que favorece-
riam um Estado de partido único. Conseqúentemente, a Lei Hatch serve como
salvaguarda contra a contaminação política do serviço público, bem como contra
a possibilidade de uma manipulação burocrática de partidos políticos — um grande
esforço para garantir a separação entre política e administração.
O desenvolvimento do serviço público alemão não se caracterizou por esfor-
ços para alcançar essa separação. No caso americano, a experiência inicial e
dominante foi a oposição colonial aos "enxames de funcionários" enviados da
Inglaterra. No caso prussiano, a experiência inicial era a emergência de funcioná-
rios públicos muito instruídos a uma posição de grande influência e relativa
independência política, após prolongadas lutas contra a regra pessoal arbitrária.
Recrutados em grande parte fora da Prússia, esses funcionários eram leais ao
monarca mais do que à nobreza prussiana. Todavia, no serviço real, eles recebiam
privilégios seminobres e um título nobiliárquico hereditário se alcançassem um
alto posto. O contraste entre essa emergente nobreza burocrática e a posição
subordinada dos funcionários públicos americanos anteriormente mencionada não
poderia ser mais marcante:

A política de nobilitação na Prússia, inadvertida ou intencionalmente, ajudou a fixar a


identidade social e as lealdades da burocracia civil como um grupo de status distinto dentro da
classe alta remodelada. Como tal, ela era destacada e alienada das pessoas comuns e inferiores.
Estava imbuída dos ideais hierárquicos e corporativos da classe superior do passado pré-abso-
lutista que foram intimamente combinados com a atitude autoritária e os hábitos arrogantes dos
Herrenmenschen militaristas. Na execução de suas ordens, os comissários tendiam a agir como
oficiais em comando por direito próprio e costumavam curvar as classes inferiores à sua
vontade21.

Até a morte de Frederico II (1786), esses funcionários autocráticos eram ao


mesmo tempo "servidores reais" no sentido literal do termo. Mas sob a influência
do Iluminismo, e com o enfraquecimento da ordem autocrática, esses homens
educados tornaram-se cada vez mais inquietos em sua posição subserviente. O
subsequente declínio da Prússia e sua derrota nas mãos de Napoleão em 1806

21. Hans Rosenberg, Bureaucracy, Aristocracy and Autocracy, Cambridge, Harvard University Press,
1958, p. 142.

155
RE1NHARD BENDIX
criaram-lhes oportunidades para reformas administrativas e sociais. Assim, a ideia
da ordem ilustrada, tecnicamente competente por ação de funcionários do governo
de alto nível, estava associada na Prússia com o esforço para restringir o regime
arbitrário de um autocrata real e com a promoção de reformas, em oposição aos
privilégios estabelecidos da nobreza22.
Este é o cenário no qual o antigo liberalismo alemão defendia a ideia de que
os servidores públicos devem ser protegidos contra as medidas disciplinares
arbitrárias e as demissões injustificadas. Na primeira metade do século XIX, os
porta-vozes liberais advogavam aproteção constitucional dos direitos dos servido-
res públicos, a fim de compensar a antiga subserviência dos funcionários ao
monarca. Uma vez que os funcionários gozavam da proteção legal de sua posição,
estavam aptos a proteger o público contra éditos arbitrários do monarca ou das
ações ilegais de grupos privilegiados. Consequentemente, em contraste com a
Constituição americana, as primeiras constituições alemãs continham dispositivos
que garantiam a regulamentação legal do emprego público. Um servidor público
pode ser demitido de seu cargo, ou seu salário pode ser reduzido, apenas com base
na adjudicação apropriada de seu caso. A mesma orientação liberal também deu
origem à opinião de que os servidores públicos deviam ter permissão para servir
como membros do Parlamento. Essa opinião fundamentava-se na experiência das
assembleias legislativas do Sul da Alemanha (Landtage), antes de 1848. Deputados
cuja posição no serviço público era assegurada com base em garantias constitucio-
nais demonstraram independência em relação ao governo vigente e determinados
defensores da Constituição23. Mesmo na Prússia, houve ocasiões significativas
antes de 1848 em que os servidores declaravam seu julgamento independente, sob
o risco de uma demissão instantânea. E na ausência de instituições representativas,
alguns altos funcionários interpretavam tal independência desempenhando o papel
de uma oposição constitucional num Estado absolutista.
22. Esse breve resumo baseia-se em Otto Hintze, GcistundEpochcnderprcussischcn Gcschichte, Lcipzig,
Koehler & Amelang, 1943, especialmente pp. 25-33, 537 e ss., 566 c ss.
23. Fraenkel, op. cit., pp. 87-89. Reunindo todos os deputados que eram considerados servidores públicos
na Alemanha, uma pesquisa mostra que de 1/5 a mais da metade dos representantes em assembleias
legislativas sucessivas era de servidores públicos. Sua proporção baixou de 55% de todos os deputados
na Paulskirche de 1848. Desde então, a proporção dos servidores públicos entre os representantes do
Reichstag foi de 47% em 1871, 38% em 1887, 25% em 1912, e 21% em 1930. Isto inclui professores
universitários, professores e superintendentes das escolas secundárias, oficiais do exército, clérigos,
bem como servidores públicos. Para maiores detalhes, ver Karl Demeter, "Die soziale Schichtung dês
deutschen Parlaments seit 1848", Vicrtcljahrsschrift fur Sozial- und Wirtschaftsgeschichtc, vol. 39,
1952, p. 13 epassim. Após a Segunda Guerra Mundial, a proporção dos servidores públicos nos corpos
parlamentares da República Federal cresceu novamente, inicialmente por causa da falta de candidatos
adequados para o cargo público eletivo.
156
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

São estas as circunstâncias sob as quais a orientação e as atividades políticas


dos servidores públicos tornaram-se uma questão geral. A completa liberdade
política dos funcionários públicos parecia desejável aos porta-vozes liberais, na
medida em que esses funcionários se opunham ao poder monárquico arbitrário e
contribuíam para o crescimento das instituições parlamentares - tendências que,
naturalmente, suscitaram apreensão entre os conservadores. Essas posições rever-
teram-se nos anos subsequentes à revolução de 1848, sempre que os altos funcio-
nários de opinião liberal tiveram de enfrentar subordinados firmemente
conservadores que se opunham ao governo constitucional. O resultado foi uma
acomodação. A legislação anterior havia legitimado a demissão de servidores
públicos em casos de depravação moral. Em 1852, um novo regulamento discipli-
nar foi acrescentado, de acordo com o qual os ministros tinham o poder de colocar
funcionários numa posição de afastamento temporário (einstweiligen Ruhestand)
com metade dos vencimentos, mas sem nenhuma redução de seus direitos garan-
tidos legalmente. Esse poder não é limitado por salvaguardas processuais e se
estende a um grupo específico de altos funcionários públicos, que passaram a ser
conhecidos como "funcionários políticos" nos anos de 1880. Embora os detalhes
tenham sido modificados de tempos em tempos, essa acomodação de 1852 perma-
neceu vigente daí cm diante. Ela parece sustentar a proteção legal ou constitucional
do serviço público com sua liberdade de expressão e participação políticas, bem
como uma salvaguarda da eficiência do governo24.
A experiência com essa solução de compromisso foi muito confusa. No
século XIX, os governos alemães empregavam servidores públicos em campanhas
eleitorais, bem como os convocavam para uma defesa ativa das ações políticas no
Parlamento e em outros lugares. Depois de 1914, essas tentativas eram, de toda
maneira, sempre bem-sucedidas, uma vez que os mais altos servidores públicos —
entre eles os chamados "funcionários políticos" - frequentemente defendiam o
Estado de direito contra o que consideravam expediente político. Retrospectiva-
mente, podemos ver que essa independência era facilitada pela perspectiva conser-
vadora dos funcionários; suas disputas com um governo conservador eram
conflitos entre homens com opiniões iguais, mais do que em campos ideológicos
opostos. Depois de 1918, a situação mudou, quando ministros da República de
Weimar viram-se diante da oposição de funcionários públicos muito conservadores
que resistiam a um regime constitucional. Conseqúentemente, o expediente do

24. Ver Fritz Hartung, "Studien zur Geschichte der preussischen Verwaltung", em Staatsbildcnde Krãfte
derNeuzeit, Berlin, Duncker & Humblot, 1961, pp. 248-254. Nas páginas que se seguem Hartung faz
um detalhado balanço das políticas referentes aos "funcionários políticos" no período de 1848-1918.

157
RE1NHARD BEND1X
"afastamento temporário" era usado para substituir funcionários recalcitrantes por
outros mais aceitáveis ao partido no poder, debilitando assim a independência do
serviço público e favorecendo mais seu sectarismo do que sua neutralidade. Depois
de 1933, o endosso político do regime transformou-se num requerimento positivo
do emprego público25. Essas vicissitudes não afetaram, contudo, a perspectiva
predominante.
Até hoje, os funcionários públicos podem exercer dupla função como legis-
ladores e porta-vozes de partidos, embora muitos argumentos a favor da proibição
dessa prática tenham sido propostos durante os debates alemães sobre essa ques-
tão26. Contudo, a política que permite aos funcionários servirem no Parlamento
permanece associada não só à crença nas liberdades políticas de todos os cidadãos,
independentemente de seu status, mas, mais especificamente, à ideia de que a
independência dos servidores públicos, politicamente protegida, não deve ser
prejudicada, pois é um esteio do Estado de direito. De forma semelhante, a
manutenção do Estado de direito permanece identificada com o serviço público,
cujos membros são nomeados vitaliciamente, protegidos contra mudanças de
posições que não representam a carreira exata equivalente ao cargo anterior,
protegidos contra demissão ou transferência arbitrária do serviço (exceto em casos
de "afastamento temporário"), e habilitados a uma adequada subsistência de si
mesmos e de suas famílias27. No cenário americano, essas condições não foram
nem de longe igualadas, e além disso a posição melhorada do servidor civil
americano não incluía nada parecido ao prestígio, à segurança c à ideologia de
apoio do cargo público alemão.
As implicações dessa diferença tornaram-se evidentes quando, no fim da
Segunda Guerra Mundial, o governo militar americano procurou aplicar os precei-
tos da Lei Hatch à reorganização do serviço público alemão. Na opinião dos
observadores alemães, essa tentativa parecia motivada pela suspeita americana em
25. A prova da independência política dos servidores públicos antes de 1914 é citada por Hartung, op. cit.,
que parece, contudo, subestimar (nas pp. 273-275) o grau em que os funcionários públicos eram
obrigados a "manter-se na linha" politicamente durante a República de Weimar. Para uma pesquisa
deste último problema, ver Theodor Eschenburg, Der Beamtc in Fartei und Parlament, Frankfurt,
Alfred Metzner Verlag, 1952, caps. 2-3.
26. Ver Werner Weber, "Parlamentarische Unvereinbarkeiten", em Archiv dês õffentlichen Rechts, vol.
58, 1930, pp. 208 e ss., sobre uma análise comparativa abrangente dos argumentos apresentados e a
legislação pertinente.
27. Ver Klaus Kroeger, "'Parteipolitische Meinungsàusserungen' der Beamten", em Archiv dês òffenlli-
chen Rechts, vol. 88, jun. 1963, p. 134 a respeito das citações jurídicas pertinentes. Esse artigo contém
nas pp. 121-147 uma completa, quando não bombástica, reafirmação das opiniões caracterizadas acima.
Há indicações de que essa opinião é em larga medida compartilhada pelo povo alemão. Ver Brian
Chapman, The Profession of Government, London, George Allen & Unwin, 1959, pp. 308-310.
158
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

relação ao serviço público alemão como sobrevivente de uma tradição absolutista,


animada por atitudes políticas reacionárias, embaraçosa e antiquada em seus
procedimentos, e que gozava de excessivos privilégios económicos e sociais
devidos à confiança especial que caracteriza a relação entre o governo e seus
funcionários28. Mas essas considerações não são vistas como aplicáveis a um
sistema baseado na lei codificada, que, em contraste com a lei comum, limita muito
o critério do juiz ou do funcionário. No caso americano, os perigos aparecem
quando funcionários se envolvem em atividades partidárias, porque lhes é conce-
dido considerável arbítrio em seus deveres públicos e o "sectarismo obstrusivo"
pode facilmente distorcer-lhes o exercício discricionário. Mas, no caso alemão, os
funcionários são limitados por normas legais; o conhecimento especializado e a
imparcialidade de suas ações públicas podem ser salvaguardados pelas condições
de emprego que garantam sua segurança e independência. Segundo essa visão, as
condições privilegiadas de emprego dos servidores públicos alemães são uma
garantia de sua independência de pressões externas que surgem dos partidos
políticos e grupos de interesse; enquanto essa independência é assegurada, não faz
muita diferença que uns poucos juizes e servidores públicos sirvam por um tempo
como representantes eleitos e participem nas deliberações parlamentares. O impor-
tante é proteger a habilitação do funcionário e evitar a intrusão da política no
processo administrativo - ambas importantes salvaguardas do Estado de direito2''.
A defesa convencional do serviço público alemão foi desafiada por aqueles
que eram favoráveis a que se fizessem restrições especiais às atividades políticas
dos funcionários públicos3". Quando os servidores públicos servem como deputa-
dos parlamentares, eles ajudam a decretar leis e a supervisionar sua execução,
conduzindo desse modo a uma burocratização do Parlamento. Isso se aproxima
muito do abuso quando os partidos políticos colocam seus altos funcionários em
posições no funcionalismo público. Tanto o setor legislativo como o executivo do
governo são prejudicados se um se transforma numa mera extensão do outro. Um
escritor declara que a neutralização política do funcionalismo público apenas
aumenta a integridade do Estado. Mas ao defender dessa forma a clara separação

28. Ernst Kern, "Berufsbeamtentum und Politik", emArchiv dês õffcntlichcn Rechts, vol. 77, 1951/1952,
p. 108.
29. Sigo aqui o argumento apresentado em Idem, pp. 109-110. O mesmo volume doArchiv contém uma
réplica de Otto Kuester (nas pp. 364-366), na qual o autor argumenta contra a posição jurídica especial
dos servidores públicos como não mais justificável atualmente, mas nenhuma referência é feita ao
problema especial das atividades políticas por servidores públicos.
30. Uma pesquisa das opiniões e das várias propostas para uma legislação que corrija essas distorções
encontra-se em Eschenburg, op. cit., pp. 59-77. O autor examina as implicações das atividades políticas
pelos servidores públicos com inúmeros exemplos extraídos do contexto alemão, nocap. 4 dessa obra.

759
RE1NHARD BEND1X
entre política e administração, ele também acrescenta uma consideração que
revela a diferença básica entre a estrutura institucional alemã e americana. A
neutralização política
fortalece presumivelmente a homogeneidade interna do funcionalismo público [alemão]. Mas
então se pergunta se isso está realmente de acordo com as intenções do governo militar [ameri-
cano]. Pois eles estão interessados em primeiro lugar em eliminar a "segregação com caráter de
casta" do funcionalismo público privilegiado (Beamtenstand). A neutralização política do fun-
cionalismo conseguiu demonstrar que era um privilégio legítimo, contudo, ainda que a proibição
do cargo eletivo para o servidor público constitua uma diminuição de seus direitos como cidadão.
Pois essa neutralização também impede a possibilidade de que o funcionalismo seja invadido por
forças externas em sua própria província ("berufsfremde" Krãftef1.
Quando existe uma posição tradicional de privilégios especiais, a neutraliza-
ção política só aumenta a distância social e psicológica entre os funcionários e o
público que as reformas deveriam supostamente reduzir. Isto contrasta com o caso
americano, em que medidas semelhantes reforçam a "cidadania de segunda classe"
dos funcionários públicos. O contexto alemão tende, portanto, a transformar o
significado da neutralidade política, como observa Ernst Fraenkel3-1. Pois a proibi-
ção de ingressar nas atividades partidárias pode significar, com efeito, que o
servidor público alemão é instruído a demonstrar acentuada ênfase na neutralidade
de sua posição e nas obrigações especiais resultantes de seus privilégios legais.
Conseqúentemente, os servidores públicos muitas vezes alegam uma confiança e
autoridade especiais como funcionários do Estado. A seus olhos, a proibição das
atividades partidárias pode ser equivalente a uma depreciação autoritária da polí-
tica como tal e, portanto, "justifica" a ideia da isenção executiva dos controles
parlamentares que "apenas" refletem o partidarismo.
A palavra alemã para as obrigações dos funcionários públicos é, caracteris-
ticamente, Treuepflicht, ou cargo de confiança, lembrando uma antiga condição na
qual os servidores públicos eram servidores pessoais do monarca. Sob a influência
do romantismo político, essa ideia foi transformada no dever especial do funcio-
nário em relação ao Estado, e isso, por sua vez, foi interpretado como significando
que ele era o guardião especial do Staatsinteresse, o que podia significar qualquer
31. "Beamte ais Abgeordnete", em Ar Mv dcs óffcntlichcn Rcchts, vol. 75, 1949, pp. 108-100. Há,
naturalmente, outras opiniões. Ver, por exemplo, Eschenburg, op. cit., p. 67, no qual a neutralização é
considerada um perigo potencial, porque, na ausência de participação política, os servidores públicos
seriam politicamente ignorantes ou indecisos e poderiam ainda ser vítimas de "tendências equivoca-
das".
32. Ver Fraenkel, op. cit., p. 80.
760
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇAO

coisa, da política do poder ao bem-estar público. Contra esse pano de fundo, não
é de surpreender que, para alguns, restringir as atividades políticas desses "guar-
diães públicos" pudesse parecer uma eliminação da política de um grupo que estava
claramente identificado com o público e com o interesse nacional.
A discussão precedente focalizou a atenção nas atividades políticas de funcio-
nários públicos em relação a sua posição social e legal. Tais funcionários são
impedidos de ter envolvimento com lealdades de parentesco, privilégios hereditá-
rios, e interesses de propriedade pelas condições de seu recrutamento, enquanto as
relações de autoridade entre eles são estipuladas em termos impessoais. Mas, uma
vez que isto é alcançado, torna-se necessário manter esses critérios impessoais do
emprego público contra novas formas de influência. Restrições impostas sobre as
atividades políticas dos servidores públicos são um exemplo desse tipo de salva-
guarda. O isolamento de funcionários das influências da política partidária torna-se
um atributo comum do Estado-nação, onde a separação do governo em relação à
sociedade é instituída sob condições de um moderno sistema de partidos plebi-
scitados. Mas cada Estado-nação é também afetado pelo momentum de aconteci-
mentos passados que lhe são característicos. A mesma ideia de reduzir as atividades
políticas dos funcionários públicos pode ter repercussões contrastantes, como nas
estruturas sociais alemã e americana. Sem atentar para os padrões de cultura
burocrática divergentes, não podemos entender o significado para cada sociedade
da burocracia como um tipo ideal de administração sob o Estado de direito33.
A exclusão de servidores públicos da participação direta em "partidarismo
importuno" é, contudo, apenas um aspecto do problema delineado anteriormente.
Mesmo quando a política e a administração são claramente distintas, uma questão
permanece em aberto: Até que ponto o processo administrativo pode ser isolado
de influências ou pressões que afetam a implementação das políticas?

Os administradores e o público

O CENÁRIO PLEBISCITARIO. As sociedades ocidentais modernas são caracteri-


zadas pelas comunidades políticas nacionais. Elas exemplificam a moderna duali-
dade entre governo e sociedade: uma jurisdição de âmbito nacional com autoridade
administrativa nas mãos de um grupo de funcionários funcionalmente definidos de
um lado, e a participação formalmente igual nos negócios públicos por todos os
cidadãos, de outro34. Como foi afirmado anteriormente, a política nessas circuns-

33. Uma análise mais completa da burocracia, a partir de uma perspectiva semelhante, encontra-se na obra
de Michel Crozier. The Burcaucralic Phcnomcnon, Chicago, University of Chicago Press, 1964.
34. Políticas organizadas segundo o princípio federativo apresentam problemas especiais, naturalmente,

161
RE1NHARD BEKD1X
tâncias deixa de ser uma luta pela distribuição de poderes soberanos, tornando-sc,
em vez disso, uma luta pela distribuição do produto nacional e por princípios
norteadores da administração governamental. Com a universalização da cidadania,
as demandas no governo e, portanto, nas atividades governamentais expandem-se
muito. Esse crescimento do plebiscitarianismo refletc-se no desenvolvimento de
partidos políticos em organizações de massa. Os Parlamentos transformam-sc de
um corpo de notáveis deliberativos, que representam ou dizem representar o
público em geral, num corpo de políticos profissionais que se identificam com um
partido político e representam seu eleitorado. No campo do emprego público, as
antigas restrições baseadas na experiência familiar e na posição social são gradual-
mente substituídas pela confiança nas qualificações de instrução e educação como
o único critério de seleção. Com essas mudanças, dá-se uma importante transfor-
mação da vida pública que se origina no desenvolvimento dos meios de comuni-
cação de massa e a gradual mas profunda intromissão da publicidade em esferas
previamente consideradas confidenciais e privilegiadas35.
O uso do termo "plebiscitarianismo" com relação aos funcionários públicos
é uma questão equivocada. No contexto eleitoral, o termo significa que todos os
cidadãos como indivíduos possuem o direito de votar e concorrer às eleições. Para
estabelecer esses direitos, os poderes corporativos - os "interesses intermediários"
de Lê Chapelier-foram destruídos. Esse legado anticorporativista ajuda a explicar
o fato de as constituições ocidentais não terem, até recentemente, previsto a
existência de partidos políticos, pois estes foram considerados novos poderes
corporativos que intervinham entre os indivíduos e o Estado-nação. O mesmo
mas eles não invalidam essa caracterização geral. Comumente, as disposições constitucionais prevêem
a divisão de poderes entre o centro federal e o Estado ou as autoridades provinciais e locais, com certas
autoridades de âmbito nacional permanecendo com o centro. Embora complexas disputas ocorram com
referência a essa divisão, qualquer alteração importante requer emendas constitucionais, c essas são
relativamente raras.
35. Um breve sumário só pode apontar a complexa transformação de uma política de notáveis com sua
ênfase na representação funcional numa política de partidos plebiscitários. Ver a análise dessa
transformação n u m a base comparativa em Gerhard Leibholz, Strukturproblcme der moderncn Derno-
kratic, Karlsruhc, Verlag C. F. Mueller, 1959, pp. 78 e ss. Ver também a brilhante análise de Jiirgen
Habermas, Strukturwandcl der Õffcntlichkcit, Neuwied, Hermann Luchterhand, 1962, passim, que
examina em especial as consequências culturais e psicossociais da "universalização" da vida política.
Com respeito ao desenvolvimento americano, essa transformação ocorreu muito mais cedo do que no
continente europeu ou na Inglaterra, e, como observa o autor americano, os partidos políticos não
exercem uma disciplina sobre os representantes eleitos que seja, sob qualquer condição, comparável
àquela exercida pelos partidos europeus. Portanto, embora o político como notável tenha desaparecido
mais cedo nos Estados Unidos do que na Europa, alguns aspectos de uma política de notáveis ali
perduram, porque alguns políticos individuais conseguiram construir eleitorados seguros próprios que
os habilitam a desafiar a liderança de seu próprio partido, fenómeno que é familiar onde ele tem uma
base regional mais geral, como no Sul.
762
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

legado ajuda a explicar alguns exemplos em que todas as distinções entre os


servidores públicos e outros cidadãos são negadas. Os exemplos são o sistema
americano de favorecimento de partidos, o argumento de Lênin de que toda pessoa
instruída está qualificada para o emprego público em virtude da crescente simpli-
cidade do governo, ou a argumentação dos sindicatos do funcionalismo francês de
que os servidores públicos devem possuir plena liberdade política quando não
estiverem servindo formalmente ao governo. Todavia, na prática, o nivelamento
objetivou menos abolir a situação privilegiada dos funcionários do que eliminar o
acesso privilegiado ao emprego público. Essa questão torna-se menos importante
quando os privilégios diminuem e regras formais governam os procedimentos de
recrutamento e os direitos e deveres dos servidores públicos.
O acesso à influência sobre o processo administrativo é, contudo, um
problema de crescente importância. À medida que os direitos são universalizados
c as atividades governamentais proliferam, é menos problemático que o cidadão
não instruído seja barrado do emprego público por não estar qualificado do que por
não possuir as aptidões e atitudes necessárias para obter razoável consideração de
seu caso pelas autoridades públicas. Tais indivíduos são ajudados em suas nego-
ciações com o governo quando suas desvantagens são reconhecidas. Não devemos
coonestar as trágicas incongruências entre as preocupações humanas e o procedi-
mento administrativo, mas o confronto dircto entre indivíduos e funcionários
caracteriza apenas uma fração das relações entre os administradores e o público.
Este é composto por indivíduos isolados apenas quando o cidadão requer assistên-
cia pública, atua em sua capacidade como eleitor, e assim por diante. Quando os
cidadãos desejam influenciar a política em algum nível, como têm o direito de
fazer, muitas vezes combinam suas demandas com as de outros, quer o objetivo
seja fazer um partido ganhar uma eleição, interferir com representantes individuais,
quer seja modificar a implementação da política através do contato com uma
secretaria administrativa.
Grupos de interesse proliferaram com o aumento e a diversificação de
atividades governamentais. Tratando com o governo em larga escala, a ação
coletiva e plural é não só segura como vantajosa. Cabe resumir esses desenvolvi-
mentos do "público" numa série de propostas. Com referência ao cidadão como
um indivíduo que possui liberdade de concluir contratos e direito de votar, podemos
adotar a famosa formulação de Sir Henry Maine:

É o Contrato que substitui gradualmente essas formas de reciprocidade em direitos e


deveres que tiveram origem na Família. Começando, como que de um marco da história, de uma
condição de sociedade na qual as relações das Pessoas são somadas nas relações de Família,

163
RE1NHARD BEND1X
parece que avançamos firmemente para uma fase da ordem social em que todas essas relações
derivam do livre consentimento de Indivíduos3'1.
Essa formulação deve ser alterada se nos referirmos ao cidadão como um
indivíduo necessitado com direito à assistência pública. Nesse caso, a autoridade
pública reconhece seu direito social a uma subsistência mínima. Podemos adotar
a formulação de Maine segundo a qual:
Começando como que de um marco da história, de uma condição de sociedade na qual
todas as relações pessoais derivam do livre consentimento de indivíduos, parece que avançamos
firmemente para uma fase da ordem social em que as desigualdades sociais, políticas e
económicas que afetam a capacidade legal dos indivíduos se tornaram de preocupação pública
suficiente de maneira a conduzir a uma redistribuição corretiva dos direitos e deveres da
cidadania por intermédio da legislação e da administração.
Essa "redistribuição corretiva" através do governo exemplifica o aumento
das atividades governamentais de uma maneira geral, uma vez que elas afetam uma
redistribuição de direitos e deveres, mesmo que esse não seja seu propósito
explícito. Grupos de interesse ou partidos políticos são formados e se tornam ativos
como causas e como consequências dessa proliferação de governo. Podemos,
portanto, reexprimir a proposição precedente da seguinte maneira:
Partindo como que de um marco da história, de uma condição de sociedade na qual a
reciprocidade de direitos e deveres tem sua origem no livre consentimento de indivíduos, parece
que avançamos firmemente para uma fase da ordem social na qual essa reciprocidade tem sua
origem nas relações de pessoas que derivam de ações de governo. Em consequência, os cidadãos
se organizam a fim de modificar em proveito próprio os direitos e deveres que são afetados por
açóes das autoridades públicas.
Portanto, as atividades governamentais, que se desenvolvem em resposta a
demandas públicas, encorajam por sua vez a formação de grupos baseados nos
princípios do interesse comum e na "capacidade de organização", mais do que no
"privilégio herdado".
REPRESENTAÇÃO POR INTERESSES ORGANIZADOS37. A proliferação de in-
teresses organizados deu origem a uma proliferação de termos "agarrados" a esse
36. Henry Maine, Ancient Law, Everyman's Library, New York, E. P. Dutton, 1931, p. 99.
37. Esta frase é extraída do título da obra de Joseph Kaiser, Dic Rcpràscntation organisicrtcr Interessai,
Berlin, Duncker & Humblot, 1956. Apesar de uma interpretação um tanto corporativista, esta é a mais
ampla análise comparativa até a presente data.
164
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

fenómeno. Grupos de interesse, lobbies, grupos de pressão, governo invisível,


neofcudalismo, concentrações de poder, anarquia de interesses particularizados,
infiltração do governo, poderes compensatórios, grupos de veto — estas são algumas
das expressões que passaram a ser utilizadas. Seu número elevado sugere tanto a
preocupação como a incerteza intelectual com a qual esses interesses organizados
são encarados. No presente contexto, apenas desejo comentar brevemente dois
aspectos desse complexo problema: o significado dominante dos interesses orga-
nizados para o "administrador neutro" e para a teoria sociopolítica de grupos no
Estado-nação.
Vimos anteriormente que o tipo ideal de burocracia de Weber presumia a
existência da autoridade (monocrática) efetiva sobre o quadro de funcionários
administrativos e uma clara separação entre decisões políticas no alto e a execução
política abaixo. Em sua análise política, Weber também comentava a tendência dos
altos funcionários alemães a tomar decisões políticas sob o disfarce de uma preocu-
pação com problemas administrativos puramente técnicos - tendência que compli-
cou a já difícil tarefa de uma supervisão efetiva por corpos parlamentares. Na
Alemanha, esse problema era especialmente agudo por causa da força da burocracia
e da grande fragilidade dos partidos políticos e do Parlamento. A preocupação
política de Weber com essas questões toldou sua própria preocupação com seu
significado geral. O fato é que, com a proliferação de funções governamentais, o
"segredo" do processo administrativo é com maior frequência mais um subproduto
da complexidade do que o resultado de um funcionalismo enérgico e bem defendido.
Além disso, a supervisão parlamentar dos atos administrativos decai em segurança,
se não em habilidade e vigor, mesmo quando os partidos políticos e instituições
parlamentares são fortes e largamente aceitos. Sob tais circunstâncias, os adminis-
tradores passaram a se preocupar com a política e a exercer julgamentos arbitrários,
provavelmente mais do que anteriormente, porque a "cadeia de comando" alongou-
se e os funcionários públicos responsáveis no bom sentido já não podem atender a
suas responsabilidades sem essa preocupação e tais julgamentos3".
As políticas muitas vezes permitem que os administradores decidam entre
cursos de ação alternativos, e eles não desejam agir arbitrariamente. "A responsa-

38. Um indício incidental mas marcante desse ponto é a discrepância entre o montante de casos judiciais
tratados pelo sistema judiciário comparado com a adjudicação administrativa. "A cada ano a Adminis-
tração de Veteranos [Americana] julga em seu âmbito processual (a Junta de Apelação dos Veteranos)
quase a metade do número de casos julgados por todo o sistema judiciário federal. Mas o julgamento
informal conduzido pela junta num ano soma mais que trinta vezes o número de casos julgados pelo
sistema judiciário federal." Ver Peter Woll, Administrativc Law, Berkeley, University of Califórnia
Press, 1%3, p. 7.

165
RE1NHARD BENDIX
bilidade administrativa" pode tomar a forma de consulta aos interesses organizados
mais diretamente envolvidos. Aqui, a responsabilidade ganha o sentido de atendi-
mento ao "público". Isso pode significar tão-somente a percepção do administrador
daquilo que o público quer ou necessita, mas tais estimativas se obscurecem nas
ideias de quais devem ser os desejos do público. Este é um campo traiçoeiro, que
muitos administradores evitarão ou evitariam se soubessem estar pisando nele. Há
o risco das repercussões negativas por parte do público e da legislatura, se a
estimativa do funcionário estiver drasticamente errada. Conscqúentemente, os
administradores procuram o amparo dos julgamentos arbitrários, que geralmente
orientam as diretivas políticas e que a complexidade organizacional do governo os
obriga a tomar.
Eles encontram esse amparo nas opiniões e no conselho especializado que
apenas os interesses organizados estão dispostos a oferecer. A essa altura há uma
notável interação entre "Estado" e "sociedade". Num amplo estudo do Government
by Committee, K. C. Wheare declara, com referência às práticas inglesas:
Às vezes acontece que, somente após ouvir as partes interessadas e reuni-las para ouvirem
uma à outra e talvez negociar um pouco entre si, o Departamento pode obter a orientação de que
precisa. Com os governos empenhados em planejar e o controle da vida económica, é essencial
obter a cooperação daqueles que são afetados pela política do Governo:'g.
Numa discussão paralela das condições americanas, somos informados que
os comités consultivos raramente são estabelecidos com o propósito apenas de uma
deliberação desinteressada. As pessoas que trabalham nesses comités geralmente
esperam permanecer em contato com os processos de fazer política do programa
sobre o qual foram consultadas, e "essa extensão do relacionamento muito além
do ponto do parecer real se encaixa nitidamente no propósito real mas não explícito
do administrador de fortalecer e validar seu programa e o apoio para este"40.
Enfatizando essa busca de apoio, o autor reconhece a função conciliadora do
administrador que "aceitou a tarefa de intermediário nas várias reivindicações das
quais o legislador desistiu"41.
Há indícios, por outro lado, de que a negociação ou consulta com autoridades
públicas tem efeitos importantes sobre os próprios interesses organizados. Numa
39. K. C. Wheare, Government by Committee, Oxford, Clarendon Press, 1955, p. 53.
40. Mort Grant, "The Technology of Advisory Committees", em Cari Friedrich e Seymour Harris (eds.),
Public Policy, Yearbook of lhe Graduate School of Public Administration, Harvard University,
Cambridge, Harvard University Press, 1960, vol. X, p. 94.
41. Idcm, ibidem. Notar também essa mesma tónica nas análises de Norton Long, The Polity, Chicago,
Rand McNally & Co., 1962, cap. 4.
766
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇAO

carta reveladora, o professor Arnold Brecht explicou que a obrigação expressa dos
ministros alemães de consultar-se apenas com representantes das federações de
grupos de interesse (as assim chamadas associações de ponta), teve início depois
de 1918, quando cada cidadão ou associação local dirigia suas reivindicações ou
desejos pessoalmente ou por escrito aos ministérios e à Chancelaria do Reich. O
propósito desse regulamento não era dar reconhecimento privilegiado às federa-
ções, mas evitar a inundação do governo. Assim, considerações inteiramente
processuais e a preocupação com a eficiência tinham o efeito de encorajar as
federações a articular várias reivindicações locais antes de contatar o governo. Não
é preciso invocar aqui algum propósito sinistro ou teoria conspiratória. É um
exemplo especialmente claro no qual considerações inteiramente formais podem
aumentar o poder dos grupos federados e de seus funcionários-chave, e assim ter
um efeito importante na estrutura dos interesses organizados42.
A consulta a interesses organizados torna-se em si mesma um artigo de
política. Nas palavras do Comité Haldane sobre a Máquina do Governo:

A preservação da total responsabilidade dos ministros pela ação executiva não é garantia,
em nossa opinião, de que o curso da administração que eles adotam assegurará e manterá a
confiança pública, a menos que seja reconhecido como uma obrigação dos departamentos
valer-se eles mesmos do conselho e assistência dos corpos consultivos assim constituídos para
tornar disponível o conhecimento e experiência de todos os setores da comunidade afetados
pelas atividades do Departamento 41 .

De acordo com K. C. Wheare, a consulta entre os funcionários públicos e os


interesses organizados é considerada uma parte reconhecida da Constituição britânica.
O recente relatório PEP (Planejamento Económico e Político) declara explicitamente
que "o objetivo de ter comités com status consultivo mas grande autoridade inde-
pendente é destacar o trabalho administrativo da máquina principal do Governo"44.
Essa afirmação não é considerada incongruente porque, teoricamente, o controle
final permanece com o ministro. E, na Inglaterra, os funcionários públicos e os

42. A carta de Brecht é citada em Wilhelm Hennis, "Verfassungsordnung und Verbandseinfluss", Politis-
chc Viertcljahrschrift, II, 1961, p. 28.
43. Citado em Political and Economic Planning (PEP), Advisory Committccs in British Government,
London, Allen & Unwin, 1960, p. 6.
44. Ver Wheare, op. cit., p. 32 e PEP Report, op. c/í., p. 16. Os comités consultivos são, é claro, apenas
um dos muitos contatos entre os funcionários públicos e os interesses organizados. Um resumo do
alcance e da variedade de contatos entre funcionários públicos e cidadãos individuais, bem como com
grupos organizados, encontra-se no Report of lhe Committee on Intermediaries, Cmd. 7904, London,
H.M.S.O., 1950. Num país de 53 milhões de pessoas, as agências analisadas lidam com um excesso de
19 milhões de requerimentos anualmente (idcm, p. 8).

767
REINHARD BEND1X
funcionários de interesses organizados têm uma experiência social semelhante e,
aparentemente, um entendimento tácito das propriedades de seu relacionamento,
que os ajuda a distinguir as questões de política das questões de administração45.
As mesmas tendências aparecem em outras partes de formas diferentes. A
Constituição da República Federal da Alemanha não reconhece a existência de
interesses organizados. Mas os manuais de procedimento (Geschãftsordnungen)
dos principais ministérios estabelecem formalmente a consulta às principais asso-
ciações na preparação inicial das moções legislativas pelo governo federal. Comi-
tés consultivos são outro artifício reconhecido para canalizar as influências
recíprocas entre funcionários e associações. Além disso, o chanceler Adenauer
recebeu pessoalmente altos funcionários dos principais interesses organizados,
violando desse modo os procedimentos formais do governo federal. Esse tipo de
"democracia-chanceler" não só milita contra a responsabilidade ministerial no
executivo, mas também prejudica as funções constitucionais do Parlamento46.
Nos Estados Unidos, questões de organização e procedimento no ramo
executivo são reconhecidas pelos tribunais como pertencentes ao campo do
arbítrio administrativo. Assim, o procedimento dos tribunais administrativos, as
designações executivas de funcionários administrativos, e o funcionamento de
comités consultivos podem, de várias maneiras, levar em conta as representações
dos interesses organizados. Quando os poderes legislativos foram delegados a
grupos privados, os tribunais insistiram cm que a responsabilidade final perma-
necesse nas mãos dos funcionários públicos, embora na prática isso tenha signi-
ficado que os atos administrativos resultantes se basearam no consenso entre os
grupos de interesses e os funcionários públicos formalmente responsáveis47.
Desse modo, o contato frequente e íntimo entre os funcionários públicos e os
interesses organizados é uma parte aceita do processo administrativo. Nesse
contexto, a regulamentação legal de "conflitos de interesses" procura isolar os
administradores de influências que possam interferir com sua implementação de
diretivas políticas.
45. Ver, por exemplo, S/rRaymond Street, "Government Consultation w i t h Induslry", Public Aclminislra-
tion, vol. 37, 1959, p. 7, e S. E. Finer, "The I n d i v i d u a l Responsahilily ol' Minislers", Public Adminis-
tration, vol. 34, 1956, pp. 377 e ss. Ver também as observações de Henry E h r m a n n e Norman Chester
em Henry Ehrmann (ed.), Intcrcst Groups on Four Continenls, Pittsburgh, Universily of Pittsburgh
Press, 1958, pp. 6-7, 285, epassim.
46. Ver a excelente discussão desses pontos por Wilhelm Hennis, op. cit., pp. 23-35.
47. Ver Avery Leiserson, Administrativa Rcgiilation, Chicago, University of Chicago Press, 1942, cap. 9
epassim. Ver também a utilíssima pesquisa do mesmo autor, "Interest Groups in Administration" , em
Frilz Morstein-Marx (ed.), Elcments of Public Administration, New York, Prentice-Hall, Inc., 1946,
pp. 314-338.
16S
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

Vários princípios parecem ter guiado essa regulamentação4". A regra básica


contra o suborno preocupa-se com casos nos quais pessoas privadas, através de
pagamento a um funcionário, procuram influir num ato oficial, e nos quais por sua
vez o oficial permite-se ser assim influenciado. Sob as leis de "conflito de
interesses", desenvolveram-se princípios adicionais que tratam da conduta do
funcionário em sua capacidade pública e privada. Com referência à primeira, são
consideradas inaceitáveis transações sempre que um funcionário participe em
ações públicas que afetem significativamente seus interesses económicos pessoais.
Além disso, é inaceitável que fontes privadas transfiram valores económicos para
funcionários públicos, mesmo quando tais transferências não constituam suborno.
Aqui, o princípio é que os funcionários públicos não devem aceitar nenhuma
transferência de valores económicos de uma fonte privada, que é de competência
do último. Tais transferências são aceitáveis apenas se forem correspondentes a
um contrato válido ou direito de propriedade do funcionário. Em outras palavras,
a conduta do negócio público deve ficar imune ao perigo de que o funcionário
público se torne subserviente a interesses particulares. Os funcionários não devem
aparecer num foro do governo em sua capacidade privada ou fazer transações em
assuntos nos quais o governo é parte interessada. É uma questão de princípio que
os funcionários não se utilizem de suas posições oficiais para atender a interesses
privados em suas transações com o governo. A mesma proibição aplica-se também
ao caso de ex-funcionários, embora aqui ela tenda a limitar-se a um determinado
período de tempo subsequente ao desligamento do emprego público, bem como ao
grau de conexão entre o assunto em questão e as responsabilidades passadas do
ex-funcionário. Finalmente, há o princípio de que os funcionários públicos não
podem usar em proveito próprio informação confidencial adquirida em suas
funções oficiais; nessa área, tentou-se apenas uma regulamentação pontual, na
medida em que, de um modo geral, é difícil distinguir entre o uso legítimo e
ilegítimo da experiência adquirida. Os princípios precedentes na legislação de
"conflitos de interesses" são, portanto, outros tantos esforços para preservar os
critérios impessoais do emprego contra as novas formas de influências que surgi-
ram da proliferação de interesses organizados.
IMPLICAÇÕES TEÓRICAS. Depois de ter analisado resumidamente o significado
dos interesses organizados para o "administrador neutro", devemos retroceder a
discussão às mudanças estruturais das sociedades ocidentais consideradas nos

48. Minha discussão bascia-se em Roswell B. Perkins, "The New Federal Conflict-of-Interest Law",
ilarvard Law Rcview, vol. 76, abr. 1963, pp. 1113-1169.

769
RE1NHARD BEND1X
capítulos anteriores. O desenvolvimento simultâneo de uma autoridade de âmbito
nacional, um corpo de funcionários públicos formalmente isolados das influências
"externas", e as tendências plebiscitarias no domínio político são acompanhados
pelo desenvolvimento de interesses funcionalmente definidos e organizados. Os
esforços dos funcionários públicos para obter apoio, informação e orientação dos
"públicos" relevantes combinam-se ponto por ponto com os esforços de interesses
organizados para influenciar as ações do governo, assim como para beneficiar seus
membros ou clientes49. Pode ser considerado um corolário da autoridade de âmbito
nacional, de um lado, e a proliferação de interesses organizados para influir sobre
essa autoridade, do outro, que nos Estados-nações ocidentais o consenso c elevado
em seu nível nacional. Nessas comunidades políticas, ninguém questiona seria-
mente o fato de que funções como tributação, conscrição, constrangimento legal,
a conduta dos negócios estrangeiros e outras pertencem (ou devem ser delegadas)
ao governo central, mesmo que a implementação específica de muitas dessas
funções seja controvertida5".
Embora esse alto grau de consenso nacional seja paradoxal, as comunidades
políticas nacionais são caracterizadas pelo contínuo exercício da autoridade cen-
tral. A continuidade é garantida pela despersonalização da administração governa-
mental, de modo que ela se tornou uma matéria de pouca monta em quase todos os
postos-chave, para os quais os indivíduos são nomeados. A continuidade é também
assegurada pelo consenso nacional sobre as funções essenciais do governo. Con-
seqiientemente, um governo nacional do tipo moderno representa um princípio
mais ou menos autónomo da tomada de decisão e da implementação administrati-
49. Que eu saiba, não temos nenhum estudo comparativo abrangente do grau em que esses "públicos" são
organizados. A título de ilustração, cabe, contudo, citar as estimativas de S. E. Finer para a Inglaterra.
De acordo com Fíner, 90% de todos os fazendeiros pertencem ao Sindicato Nacional dos Fazendeiros,
80% de todos os diretores ao Instituto de Diretores, 85% de todas as firmas manufatureiras à Federação
de Indústrias Britânicas, 85% de todos os médicos à Associação Médica Britânica, 80% de todos os
professores ao Sindicato Nacional de Professores, mas apenas 48% da força de trabalho aos vários
sindicatos. Ver S. E. Finer, "Interest Groups and lhe Political Process in Great Britain", em Ehrmann,
op. cit., pp. 118-124.
50. Admitidamente, essas matérias são instáveis, e existem diferenças significativas na civilização ociden-
tal. Ademais, ninguém pode duvidar das circunstâncias em que essa hipótese fundamental é questio-
nada, como na guerra civil americana, a ampla oposição ao governo constitucional na Alemanha durante
a República de Weimar, ou mais recentemente, no conflito entre o governo nacional na França e o
exército francês estacionado na Argélia. Pondo de parte esses casos extremos, o consenso sobre as
funções nacionais do governo, ou o que E. A. Shils chama de "disposição civil", é compatível com uma
separação altamente desenvolvida de poderes e a proliferação de competição e conflito. Ver a análise
geral em termos culturais de E. A. Shils, "The Theory of Mass Society", Diogcncs, vol. 39, 1962, pp.
45-66, e a análise institucional do sistema político americano de Henry Ehrmann, "Funktionswandel
der demokratischen Institutionen in den USA", em Richard Lòwenthal (ed.), Die Dcmokratie im
Wandel der Gescllschaft, Berlin, Colloquium Verlag, 1963, pp. 29-55.
170
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

va51. Mesmo para um teórico do grupo como Emile Durkheim, somente o Estado,
nas condições modernas, pode garantir a "existência moral" do indivíduo. O Estado
pode ter esse efeito, porque ele é "um órgão distinto do resto da sociedade"52.
Provavelmente, as pessoas aceitam a jurisdição total do Estado, porque acreditam
na realização e revisão ordeira de uma total reciprocidade de direitos e deveres.
Podemos dizer que essa crença é expressa nas reivindicações que os indivíduos e
os interesses organizados fazem ao Estado. Mas se é verdade que o consenso com
respeito às instituições que podem satisfazer essas reivindicações é elevado, é
também verdade que a multidão e diversidade das reivindicações podem tornar
impossível qualquer política coerente. Com efeito, mesmo o interesse em formular
tais políticas pode declinar quando qualquer identificação do "bem-estar público"
é obrigado a funcionar cm detrimento de alguns interesses. Um alto grau de
consenso no nível nacional pode, portanto, ser totalmente compatível com uma
decrescente habilidade para alcançar acordo em questões de políticas nacionais.
Exceto em emergências, o consenso no nível nacional possui, portanto, uma
qualidade impessoal que não satisfaz ao persistente anseio por fraternidade ou
sentimento de solidariedade.
Esse anseio tampouco é satisfeito em outros níveis de formação de grupo. De
fato, o desenvolvimento de um consenso de âmbito nacional foi acompanhado por
um declínio da solidariedade social. Classes, grupos de status, e associações formais
derivam da junção de "interesses ideais e materiais". Contudo, nenhum deles
envolve um consenso comparável à aceitação por todos os cidadãos da ideia de que
o governo nacional possui autoridade soberana. Esta não é uma questão nova. Os
teóricos sociais e políticos deploraram e criticaram a perda da solidariedade social
desde o início da moderna comunidade política. Quando escritores como Tocque-
ville e Durkheim sublinham a importância de "grupos secundários", fazem-no na
crença de que esses grupos podem contrabalançar tanto o isolamento de cada homem
em relação a seus contemporâneos como a centralização do governo. Todavia, a
maior parte dessa análise permanece num nível cm que considerações de política e
um elemento de nostalgia se fundem com considerações de fato, especialmente nos
contrastes hostis sempre recorrentes entre tradição e modernidade53.

51. Nem a vida política medieval, nem os regimes absolutistas do século XVIII, nem ainda muitas das
"áreas cm desenvolvimento" do mundo moderno tiveram ou têm um governo desse tipo, porque a
adjudicação e a administração eram e são descentralizadas, pessoais, intermitentes, e sujeitas a uma
remuneração para cada serviço governamental.
52. Emile Durkheim, Professional Ethics and Civic Morais, Glencoe, The Free Press, 1958, pp. 64, 82.
53. Para um levantamento dessa linha de pensamento, ver Robert A. Nisbet, The Qucst for Community,
New York, Oxford University Press, 1053.

171
RE1NHARD BEND1X
Apesar dos eminentes nomes associados a ele, devemos descartar esse legado
intelectual. A "grande transformação" que conduz à comunidade política moderna
torna inevitável o declínio da solidariedade social. Nenhuma associação baseada
numa reunião de interesses ou em filiação étnica e religiosa pode recapturar a
intensa reciprocidade de direitos e deveres que foi própria das "jurisdições autó-
nomas" de uma sociedade de Estado. A razão é que nessas "jurisdições", ou
"comunidades de lei" (Rechtsgemeinschafteri) como as chamava Max Weber, cada
indivíduo é envolvido numa sociedade de "ajuda mútua" que protege seus direitos
apenas se ele cumpre seus deveres. Essa grande coesão dentro das ordens sociais
cobra um alto preço em subordinação pessoal. Acima de tudo, ela foi uma
contrapartida à falta de integração de uma multiplicidade de jurisdições no nível
político "nacional". Nesse aspecto, os regimes absolutistas alcançaram uma inte-
gração maior através da administração real centralizada e da lealdade do povo ao
rei, embora os privilégios apropriados pela Igreja e a aristocracia também sujeitas-
sem o homem comum ao regime autocrático do senhor local. Onde esses privilégios
substituíram as "comunidades legais" dos primeiros tempos, os grupos privilegia-
dos conseguiram uma coesão social considerável, mas o povo foi privado da
proteção legal c costumeira de que gozava e, por conseguinte, excluído de sua
participação passiva anterior na reciprocidade de direitos e obrigações14. As comu-
nidades políticas modernas conseguiram uma centralização do governo maior do
que os sistemas medieval ou absolutista, e esse resultado foi precedido, acompa-
nhado ou seguido pela participação de todos os cidadãos adultos na vida política
(com base na igualdade formal do direito ao voto). Mas um preço desses resultados
é a menor solidariedade de todos os "grupos secundários".
Esse "preço" é um subproduto da separação entre sociedade e governo na
comunidade política moderna. Considerando que a solidariedade baseara-se na
participação do indivíduo numa "comunidade legal" ou em sua associação num
grupo de status privilegiado que possuía certas prerrogativas governamentais, ela
deve resultar agora da estratificação económica da sociedade, auxiliada pela
igualdade de todos os cidadãos adultos perante a lei e no processo eleitoral.
Nos sistemas legais do velho tipo, toda lei aparecia como um privilégio de indivíduos ou
objetos particulares ou de constelações de indivíduos ou objetos particulares. Esse ponto de vista
opunha-se, é claro, àquele em que o Estado aparece como uma instituição coercitiva de
54. Tocqueville tende a obscurecer essa distinção identificando essa reciprocidade nas antigas sociedades
territoriais da Europa medieval com a posterior simbiose da ordem absolutista e do privilégio
aristocrático, embora indique com presteza a tendência do absolutismo de solapar a posição aristocrá-
tica.
772
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

abrangência total. O período revolucionário do século XVIII produziu um tipo de legislação que
procurava extirpar toda forma de autonomia associativa e particularismo legal. [...] Isso foi
efetuado por dois arranjos: o primeiro é a autonomia de associação universalmente acessível,
estreitamente limitada e legalmente regulamentada, que pode ser criada por todo aquele que
desejar fazê-lo; o outro consiste na garantia a todos do poder de criar sua própria lei mediante
o engajamento em certos tipos de transações legais privadas 53 .

Nessa base, ações conjuntas e relações de troca podem excluir o controle


governamental, sem com isso desrespeitar a soberana autoridade do governo.
Embora o desempenho governamental das tarefas administrativas possa ser afetado
no detalhe, as ações individuais c coletivas não prejudicam necessariamente o
funcionamento contínuo da comunidade política nacional. Nas sociedades da
civilização ocidental devemos aceitar, portanto, a existência de um hiato entre as
forças que conduzem à solidariedade ou ao conflito social independentemente do
governo e das forças que respondem pelo exercício contínuo da autoridade na
comunidade política nacional.
O que foi dito em relação à comunidade política do moderno Estado-nação
ocidental é verdadeiro em termos de um contraste ocasional. Comparado com a
multiplicidade de jurisdições em grande parte autónomas, ligadas mais ou menos
estreitamente pela sacrossanta autoridade do rei e pela fidelidade a ele devida por
seus vassalos, o Estado-nação moderno representa uma estrutura de autoridade com
funções soberanas que já não podem ser apropriadas e herdadas como atributos do
direito de propriedade. Comparações ocasionais entre a vida política medieval e
moderna trarão ao primeiro plano os aspectos duradouros do Estado-nação, mas
ao iluminar os contrastes também diminuirão a relevância dos conceitos resultantes
para uma compreensão de comportamento. Embora as características do Estado-
nação tenham permanecido, elas foram combinadas com mudanças de estrutura e
comportamento tais como as acima analisadas com referência aos padrões de
cultura burocrática e as relações entre os administradores e o público.

Resumo

Este capítulo analisou as transformações das sociedades europeias ocidentais


por parte da autoridade pública, suplementando a análise anterior das relações
sociais no contexto das estruturas políticas em mudança.

55. Weber, Law in Economy andSocicty, pp. 145-146.

173
REINHARD BENDIX
A primeira parte do capítulo exemplifica o uso de conceitos de aplicabilidade
limitada. Nos estudos de mudança, geralmente definimos as estruturas sociais por
uma lista de atributos que se distinguem uns dos outros. Tais definições são pontos
de referência indispensáveis que nos habilitam a afirmar de forma sumária a
ocorrência de uma mudança como a da administração patrimonial para a burocrá-
tica. Contudo, cada estrutura possui um grau de flexibilidade que uma mera
listagem de seus atributos distintivos tende a obscurecer. Esse elemento de flexi-
bilidade pode ser analisado, contudo, se cada atributo for concebido como uma
questão sobre a qual os homens disputam e sobre a qual, depois de um tempo,
chegam a acordos temporários. Os historiadores lidam com essas contendas e
acordos como sequências de acontecimentos, enquanto os sociólogos analisam seu
denominador ou padrão comum. No caso da administração patrimonial, esse
denominador comum é a tensão entre a arbitrariedade sancionada do dirigente
supremo e a inviolabilidade da tradição. No caso da burocracia, é a tensão entre a
equidade, procurada por regulamentos aplicáveis universalmente, e a equidade,
procurada por dar atenção às particularidades do caso a ser decidido. Vimos que
essas tensões características refletem-se nas condições de emprego que distinguem
a administração burocrática da patrimonial.
A ênfase nessa distinção é suplementada na segunda parte do capítulo por
análises que consideram o Estado-nação e sua burocracia como dadas, mais do que
como emergentes. A marca de ambas c a destruição do privilégio herdado, condu-
zindo a uma jurisdição de âmbito nacional. A administração dessa jurisdição está
nas mãos de funcionários cujo trabalho é vedado às lealdades de parentesco c
interesses de propriedade. Mas esse isolamento é inequívoco apenas se considerado
em contraste com a administração patrimonial. É uma realização muito mais
condicional se o contexto da burocracia em si é considerado. Então, verifica-se que
o passado de um país afeta a posição legal e política dos servidores públicos, de
modo que um dado atributo da burocracia - como a neutralidade política — pode
ter implicações totalmente diferentes, como na Alemanha e nos Estados Unidos.
Essa análise contextuai da burocracia também revela mudanças nas relações
entre Estado c sociedade. O crescente acesso ao emprego público e à influência
sobre a implementação administrativa de políticas são uma contrapartida para a
extensão da cidadania. Onde todos os adultos gozam de direitos de cidadania, o
acesso ao emprego público será irrestrito, exceto por qualificações educacionais.
De modo semelhante, o crescimento da política plebiscitaria dará origem à proli-
feração de tentativas de influenciar a administração e à regularização de contatos
entre os administradores e o "público". Esses desenvolvimentos revelam as condi-
ções sob as quais a submissão nacional aumenta à custa da solidariedade de grupo.
174
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA NO ESTADO-NAÇÃO

Nas sociedades ocidentais, um grande número de "interesses organizados" forma-


ram-se numa base impessoal de interesses comuns. Eles foram encorajados pelo
direito de formar associações, pelo uso administrativo da representação de grupo,
pelos grandes recursos disponíveis ao nível nacional, e pelo grau com que a política
se tornou uma luta pela distribuição do produto nacional. Conseqúentemente, a
atenção c focalizada no nível governamental e nacional, enquanto o sentimento de
grupo ou fraternidade está em declínio, apesar do crescimento dos "interesses
organizados".
Esses desenvolvimentos das sociedades ocidentais fornecem um ponto pri-
vilegiado para os estudos comparativos subsequentes. Como se verá, cada um deles
trata do problema da autoridade pública em relação com as tendências de formação
de grupo que surgem na estrutura social.

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