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DOI:http:/dx.doi.org/10.

5965/1414573102252015042

Teatro e história: a incrível dialética entre


processos sociais e formas sensíveis

Theatre and History: the astonishing dialectic between


social processes and sensible forms
Fernando Kinas1

Urdimento, v.1, n.26,p42 -58 Julho 2016 42


Teatro e história: a incrível dialética entre processos
sociais e formas sensíveis

Resumo Abstract

Contra a hipótese idealista e pou- Against the idealistic hypothesis and


co preocupada com as urgências sociais, little concerned with social emergencies,
este artigo argumenta sobre as relações this article argues about the inextricable
inextricáveis entre teatro, história e polí- links between theater, history and poli-
tica. Ele destaca ainda a centralidade da tics. It also emphasizes the centrality of
construção do sentido, portanto, da in- the construction of sense, therefore, in-
teligibilidade, como instrumento para a telligibility, as a tool for the theatrical ac-
ação teatral. tion.

Palavras-chave: Teatro contempo- Keywords:Contemporary theater; po-


râneo; teatro político; teatro e história; litical theater; theater and history; dialectic
dialética

ISSN: 1414.5731
E-ISSN: 2358.6958

1
Diretor e pesquisador teatral. Doutor em Teatro pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3) e Universidade de São Paulo (USP).

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Teatro e história: a incrível dialética entre processos
sociais e formas sensíveis

HISTÓRIA E POLÍTICA

Para iniciar uma discussão produtiva sobre teatro e política é importante fazer
algumas observações gerais antes de entrar no vivo do assunto, que examina cer-
tas opções e manifestações do teatro contemporâneo. Esta tarefa se impõe não em
função de exigências acadêmicas ou veleidades intelectuais, mas porque diante da
atualidade - teatral e política - há urgência em clarificar as questões e assumir um
ponto de vista.
Em outro momento já abordei, sumariamente, a chamada “vocação política do
teatro” (Kinas, 2013a, p. 31). Convém insistir na discussão e, no âmbito deste texto,
tentar esclarecer o tema espinhoso. Novamente me socorro em Bernard Dort, desta
vez deixando correr um pouco mais a citação. Peço paciência aos que já estão fami-
liarizados com o tema, para quem a argumentação talvez soe redundante:

Quando se fala em teatro político, pensa-se em teatro engajado, teatro didático,


tomada de posição. Creio que isso é colocar mal o problema, ou, em todo caso,
restringi-lo de maneira abusiva. É preciso não esquecer: ‘político’, em sua
acepção mais ampla, designa tudo ‘o que se relaciona com os interesses públicos’
e por teatro é preciso entender não apenas a obra dramática e seu conteúdo, mas
também a peça tal como é representada diante de um certo público e para um cer-
to público - a obra e sua forma cênica. A partir daí, tudo muda: a interrogação não
se aplica mais unicamente às ‘mensagens’ deste ou daquele autor dramático, mas
abrange todo o teatro no coração mesmo de seu exercício (Dort, 1977, p. 365).

O texto em questão é A vocação política, um clássico da reflexão teatral, escrito


em 1965 pelo primeiro grande teórico do brechtismo na França. A sequência da cita-
ção talvez seja seu trecho mais conhecido, e também o mais eloquente:

Em vez de ficarmos nos perguntando como o teatro pode ser político, não seria
melhor refletir sobre o fato de que, de alguma maneira, o teatro sempre é políti-
co, ontologicamente? E falar de uma vocação política do teatro. Nestes termos, a
questão não seria mais saber qual poderia ser, em determinadas circunstâncias, a
eficácia desta ou daquela obra dramática, mas estabelecer, claramente, a dimen-
são própria a todo grande teatro - ficando apenas por avaliar, posteriormente, de
que modo autores e encenadores, nos dias de hoje, aceitam ou recusam tal dimen-
são (Dort, 1977, p. 366).

Mesmo dando algum desconto, que o momento histórico em que o texto foi
escrito nos autoriza (não só pelo calor de uma época que explodiria com todas as
suas cores em maio de 1968, mas também porque o autor não tinha como antecipar
os tempos ditos pós-modernos que produziram um novo tipo teatro, abusivamente
chamado de pós-dramático), e mesmo considerando peculiaridades do teatro fran-
cês, como um textocentrismo renitente (por mais que se afirme o contrário, como
é o caso de Dort), há algo de canônico nestas formulações, temperadas na batalha
das ideias, das ruas e das cenas. Também continua lapidar a fórmula com que Dort
caracteriza a empreitada brechtiana, uma súmula da questão: “Não instalar a História
no palco, mas situar o palco e a plateia na História” (Dort, 1977, p. 375).
É a associação destas duas dimensões, a “dimensão política ontológica” e a “di-

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mensão histórica”, que caracteriza um autêntico divisor de águas conceitual. Palco e


plateia - hoje talvez seja melhor falar em eventos cênicos ou em experiências teatrais
(a nomenclatura não é o essencial neste momento) - só fazem sentido na história e à
luz da ação política. Ou ainda, não faz sentido indagar o teatro fora da história, e esta
opção, assim como o próprio teatro, são sempre políticos.
A esta altura caberia a pergunta: toda esta argumentação para uma conclusão
tão óbvia? Sim, nossa época - ingrata teoricamente - parece exigir o que seria evi-
dente em outros momentos. A conclusão que tiramos não quer dizer que o ápice te-
atral tenha sido alcançado pelo gênio de Augsburgo, e que, portanto, de certa forma,
a história teria acabado. Seria um contrassenso tamanho. O pulo do gato conceitual
apenas indica que, no estágio atual do pensamento sobre o teatro e a sociedade,
nada sugere que seja possível excluir as dimensões histórica e política enquanto fun-
damentos analíticos para a compreensão da complexidade deste binômio: teatro e
sociedade. Reflexão que toma corpo pela primeira vez com Brecht. Assim, e a defini-
ção de Dort novamente é muito precisa, não é o distanciamento que é fundamental
em Brecht, “que permanece uma técnica”, mas “a organização de uma nova ordem
de relações”. Em outras palavras, Brecht propõe “a organização de uma nova dialética
entre o palco, a plateia e a história” (Dort, 1977, p. 376).
Se o brechtismo é certamente mais do que isso, é, precisamente, a centralidade
da história (e da ação política) que permite compreender algo que o ultrapassa (o
brechtismo) como aventura do pensamento, escapando dos limites do próprio teatro
brechtiano ou inspirado por ele. A centralidade da história é, portanto,
o instrumento conceitual aplicável para refletir, inclusive, sobre o teatro que não
propõe “uma nova ordem de relações”, mas que, evidentemente, não está acocora-
do fora do mundo, flutuando feito bolha de sabão num mundo apolítico e ahistórico.
Para quem vê o teatro de fora e está interessado em analisar o fenômeno teatral, a
abordagem sócio-estética seria, portanto, a mais adequada. Para quem está dentro,
Dort sugere:

Que hoje o teatro assuma sua vocação política. E se critique como teatro para nos
permitir aceder à história.
Recusemos o dilema: particular ou geral, comédia ou tragédia. E invoquemos o geral
apenas através do particular; evoquemos o particular somente em função do geral.
Uma dramaturgia do nosso tempo: aquela em que a descrição do cotidiano é ascen-
são para a História (Dort, 1986, p. 247)2.

Outros autores indicaram caminhos semelhantes, em diversas latitudes e com


diferentes colorações políticas. Para Eric Bentley, “a subversão, a rebelião, a revolu-
ção no teatro não são uma mera questão de programa, e muito menos podem ser
definidas em termos de um gênero particular de peça” (1969, p. 178). O crítico nor-
te-americano reconhecia no teatro, especialmente nos textos que escreveu a
partir da segunda metade dos anos 19603, a “vocação política” mencionada por Dort.
Daí sua afirmação de que “existe certo grau de ‘subversão’ no próprio fenômeno te-
atral” (Bentley, 1969, p. 178). Confirma esta interpretação, por antítese, sua avaliação
2
Em função de um erro de tradução ou de impressão da versão brasileira, optamos por traduzir o texto diretamente do original francês.
3
A este respeito é útil comparar os textos “Os prós e contras do teatro político” (1960) e “O teatro engajado” (1966), que revelam uma transição na posição do
autor, aproximando-se da visão que apresentamos neste artigo. (Bentley, 1969)

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negativa da televisão (uma espécie de anti-ágora) e do cinema de Holywood, que


para ele seria “contra a imaginação poética”, além servir ao controle econômico ou à
dominação espiritual de amplas parcelas da população (Bentley, 1991, p. 343 e 346).
No Brasil, Dias Gomes, pouco antes de sua imersão televisiva, sentenciou:

Em primeiro lugar, devemos levar em conta o caráter do ato político-social ine-


rente a toda representação teatral. A convocação de um grupo de pessoas para
assistir a outro grupo de pessoas na recriação de um aspecto da vida humana, é
um ato social. E político, pois a simples escolha desse aspecto da vida humana, do
tema apresentado, leva o autor a uma tomada de posição. Mesmo quando ele não
tem consciência disso […] Toda escolha importa em tomar partido, mesmo quan-
do se pretende uma posição neutra, abstratamente fora dos problemas do jogo,
pois o apoliticismo é uma forma de participação pela omissão. Pois esta favorece
o mais forte ajudando a manter o status quo. Toda arte é, portanto, política” (Dias
Gomes, 1968, p. 10)4

Ele sabia do que estava falando. Pela mesma época, também no Brasil, Oduval-
do Vianna Filho se debruçava, prática e teoricamente, sobre a questão. Maria Sílvia
Betti resume uma das conclusões a que chegou Vianinha:

Num contexto como este [pós-AI-5], o fundamental para Vianna não era debater
a oposição entre racional versus irracional, ou entre consciente versus incons-
ciente, mas apontar a legitimidade da história como horizonte de trabalho e de
representação (Betti, 2012, p. 193).

Portanto, continua Betti, “a contradição central que se apresentava para Vianna


não era a observada entre o rígido racionalismo de um lado e a forma instintiva do
outro, mas sim entre a historicidade e a não historicidade”. Daí, por consequência,
a defesa feita por Vianinha da centralidade da ação política, da inteligibilidade do
mundo e da ideia que ele “pudesse ser objeto de transformação”. (Betti, 2012, p. 193
e 194). A própria argumentação de Vianinha, em um famoso texto do final dos anos
1960 (“Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”), classificando o teatro em
três vertentes: “de esquerda”, “esteticista” e “comercial” (Vianna, 1968), também pre-
cisaria ser rigorosamente compreendida sob a perspectiva histórica (incluindo, mas
indo além das considerações tradicionais sobre a política de conciliação de classes
do PCB), para dele se tirar não uma lição sobre o teatro (da época ou posterior), mas
uma visão com ambição totalizante sobre o fenômeno teatral e os processos sociais,
concordando-se ou não com ela.
Como seria de esperar, o vácuo deixado pela recusa da historicidade abria o ter-
reno para toda sorte de devaneio, confusão e mistificação, tema que vamos explorar
mais adiante. A análise de Vianinha, segundo a autora, ganha atualidade em fun-
ção da “recusa epistemológica da historicidade” (Betti, 2012, p. 195), que seria uma
das características da chamada cultura pós-moderna. O tema é mais complexo do
que habitualmente se apresenta, uma vez que não há equivalência automática entre
pós-moderno (Harvey, 1992; Jameson,1996; Eagleton, 1998) e pós-dramático, a não
ser que se empreste a este último termo a definição (pós- moderna) de Hans-Thies
Lehmann (2007). Eagleton, por exemplo, considera o pós- moderno “a ideologia de
4
Dois dos autores citados, Eric Bentley e Dias Gomes, são mencionados por Kátia Paranhos no texto “Pelas bordas: História e teatro na obra de João das Neves”,
em Kátia Paranhos (org.). História, teatro e política, São Paulo: Boitempo, 2012, p. 135-156.

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uma época histórica específica do Ocidente” (1998, p. 116), definição que admite nu-
ances, mas globalmente indica que o pós-moderno faz parte dos nossos problemas,
ideia com a qual conclui o livro As ilusões do pós- modernismo. Já o pós-dramático
pode designar outra coisa que a ideologia anti- brechtiana destilada pela obra e pela
agenda política de Lehmann. Em outros termos, um hipotético teatro pós-dramático
(na falta de melhor designação) pode ser muito mais do que uma mera convulsão
caleidoscópica imagética, propositalmente desprovida de sentido, niilista, lúdica e
cínica5. Este trabalho de (des)construção conceitual em torno da teoria do pós-dra-
mático ainda precisa ser feito, será um benefício ao teatro contemporâneo que inova
esteticamente sem dar sinal de abandonar sua ancoragem e sua ambição crítica.
Raymond Williams, ao analisar as duas grandes correntes do teatro de vanguar-
da, não hesita em considerá-las, cada qual a seu modo, “políticas”, avaliando que as
ações dos setores conservadores ou reacionários representam “políticas de uma
avant-garde como uma arrière-garde”. Para Williams tentar cancelar a realidade
humana, racionalizando a derrota, ou aceitando como inevitável a miséria que é his-
tórica, é também, e sempre, uma clara ação política. No vasto campo da “reação” es-
tariam Artaud e Grotowski, assim como Eliot, Yeats, Claudel e Beckett, representantes
de um teatro que “tem programaticamente reduzido a escala das possibilidades hu-
manas e da ação humana, convertendo um dinamismo da forma que havia flertado
com um dinamismo da ação numa condição de paralisia repetitiva e mutuamente
equivocada.” (Williams, 2011, p. 91-92). Embora o tema seja delicado, há diferença
entre, por um lado, romper com os valores e as formas da burguesia e, por outro,
construir uma alternativa real de sociedade:

[…] uma tendência estava se movendo para aquela nova forma de dissidência
burguesa que, na sua própria ênfase na subjetividade, rejeitou o discurso de
qualquer mundo público como algo irrelevante para as suas preocupações mais
profundas. A liberação sexual, a emancipação do sonho e da fantasia, um novo
interesse pela loucura como uma alternativa à sanidade repressiva e uma rejeição
da linguagem ordenada como uma forma de dominação oculta, embora rotineira,
todas essas preocupações eram vistas como a dissidência real, uma tendência
que culminou no surrealismo e no “teatro da crueldade” de Artaud, rompendo
tanto com a sociedade burguesa quanto com as formas de oposição a ela que
haviam sido geradas dentro de seus termos. Por outro lado, a tendência oposta e
mais política defendia a renúncia total da burguesia, com o propósito de passar
da dissidência para a afiliação consciente à classe trabalhadora: o primeiro teatro
soviético, Piscator e Toller e, por fim, Brecht.” (Williams, 2011, p. 82-83)

Ao analisar o surgimento e os impasses do naturalismo teatral, destacando a


inadequação entre forma (o drama na “sala de estar” burguesa) e conteúdo (as cri-
ses econômicas e sociais), e o posterior desenvolvimento das vanguardas, Williams
coloca a reflexão sobre o teatro moderno e contemporâneo sob o guarda- chuva da
história e da ação política. Ele menciona, por exemplo - em oposição a uma tendên-
cia que podemos supor menos política -, uma tendência “mais política”, e afirma que
“o conceito de ‘teatro político’, por razões óbvias, está associado, sobretudo, com

5
Para uma apreciação crítica inicial do livro de Hans-Thies Lehmann, ver Sérgio de Carvalho, “Apresentação”, em Teatro pós-dramático. São Paulo:
Cosac Naify, 2007.

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a segunda tendência. Mas seria errado ignorar por completo os efeitos políticos da
primeira tendência” (2011, p. 83).
As opções pela esfera pública ou pelo subjetivismo, ou mesmo pela combina-
ção mais ou menos feliz, mais ou menos possível, entre elas, dá régua e compasso
para compreender aspectos decisivos do teatro dos nossos dias, embora o conjunto
destas opções inscreva-se sempre, como estamos salientando, no campo da ação
política.

O SENTIDO PROFANO

O debate anterior abre o caminho para aprofundar outro aspecto central. Vou
citar uma citação na tentativa de esclarecê-lo. Trata-se de Josette Féral que cita An-
nette Michelson:

Existem na renovação dos modos de representação, dois movimentos de base


divergentes que modelam e animam suas principais inovações. O primeiro, anco-
rado nos prolongamentos idealistas de um passado cristão, é mito-poético pelas
suas aspirações, eclético pelas suas formas e constantemente atravessado pelo
estilo dominante e polimorfo que constitui o vestígio mais tenaz do passado: o
expressionismo. Os porta-palavras são: para o teatro, Artaud e Grotowski, para
o cinema, Murnau e Brakhage, e para a dança, Wigman e Graham. O segundo,
consequentemente profano no seu engajamento à objetificação, procede do cubis-
mo e do construtivismo; suas abordagens são analíticas e seus porta-palavras são:
para o teatro, Meierhold e Brecht, para o cinema, Eisenstein e Snow, e para a
dança, Cunningham e Rainer. (Michelson, apud Féral, 1985, p. 125, 126)

Este resumo, embora insuficiente, tem o mérito de limpar o terreno. As distin-


ções sumarizadas pela crítica de arte norte-americana não devem ser tomadas em
termos de adesão ou repulsa absolutas. Ou isto ou aquilo. Não se trata de um fla-
flu passional. Também não se trata de um esquematismo démodé, ultrapassado por
estudos culturais up to date. Estas distinções são antes balizas, oriundas da grande
tradição europeia que formatou parcialmente o repertório cultural brasileiro. Enten-
der quais são e onde se situam estas balizas nos permite ver mais nitidamente que
ações (e opções) estão sendo feitas, política e historicamente, no campo do teatro e
da sociedade.
As conclusões as quais chega Josette Féral no texto em que cita Michelson (“Per-
formance et théâtralité: le sujet démystifié”), não são as nossas. A própria Féral revê e
altera várias de suas conclusões em textos posteriores. É principalmente a discussão
sobre o “sentido” que provoca clivagem. Para Féral, à época entusiasmada com as
possibilidades da performance e admitindo uma distinção inequívoca entre esta e o
teatro convencional, “a performance não visa a um sentido, mas ela faz sentido na
medida em que trabalha precisamente nestes locais de articulação extremamente
vagos [flous, no original] de onde acaba por emergir o sujeito” (Féral, 1985, p. 130).
E na sequência do texto: “uma performance não quer dizer nada, […] ela não visa a
nenhum sentido preciso e único, mas […] ela busca sobretudo revelar lugares de pas-
sagem, ‘ritmos’, diria Foreman, (trajetória do gesto, do corpo, da câmera, do olhar…) e
assim despertando o corpo, do performer e do espectador, da anestesia ameaçadora
que os assombra” (Féral, 1985, p. 131).

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A polêmica aqui não é sobre a definição de performance, seria objeto para ou-
tro artigo, mas a respeito da interpretação sobre o sentido, ou ausência dele, em
manifestações teatrais e performáticas. Quando Féral afirma, e defende, que o pri-
meiro objetivo da performance é o de “desfazer as ‘competências’ (teatrais essen-
cialmente)”, supõe-se que uma destas competências, para ela, seja a capacidade do
teatro em extrair ou criar sentidos a partir da realidade. Abdicar do “sentido”, sob as
mais diversas alegações, é um sinal clássico de falência do pensamento, ou estraté-
gia diversionista, indissociável de injunções políticas e históricas precisas, sejam elas
conhecidas ou não, assumidas ou não, por aqueles que abdicam. Portanto, merece
destaque e análise o deslumbre (ou fetiche) com a recusa do “sentido”.6 E esta análise
só pode ser feita considerando a época que induz, permite, autoriza, viabiliza, enqua-
dra, formata… este ressurgimento e valorização do irracionalismo. Como toda forma
de teorização carrega conteúdos políticos (e ideológicos), também o irracionalismo
contemporâneo - na versão místico-kitsch ou envolvendo aporias pretensamente
profundas - faz parte, querendo ou não, das lutas pela interpretação e pelo controle
do mundo social. Opõem-se uma visão idealista e uma visão profana de mundo, para
retomar os termos de Michelson. Grande parte do debate sobre o pós-moderno e, no
âmbito teatral, do pós-dramático (segundo a terminologia proposta, ou sequestrada,
por Hans-Thies Lehmann) depende da compreensão fina desta oposição de modelos.
E depende, também, das disputas políticas (apresentadas, muitas vezes, como meros
embates intelectuais ou estéticos) bastante concretas sobre o tipo de mundo em que
queremos viver.
Encerrando uma palestra em São Paulo, o dramaturgo, poeta e ensaísta britâ-
nico Edward Bond afirmou que “cabe a nós fazer com que a forma de vida e pensa-
mento atual não contribua para piorar as coisas”. E concluiu, distante de qualquer
romantismo ou ingenuidade sugeridos pela frase, que “este é o trabalho de que o
teatro deveria se incumbir: tornar todos os seres humanos mais felizes” (Bond, 2004,
p. 242). Podemos ressalvar que a felicidade implica em autonomia, exige igualdade e
que seria preciso definir melhor os termos (“felicidade”, por exemplo, lembrando da
Política de Aristóteles). Mas seria injusto negar que, finalmente, é disso mesmo que se
trata: felicidade para todos.
É o caso de ver nesta frase de Bond, coerente com uma visão de mundo deci-
didamente não idealista, mais uma aposta (embora inferida pela realidade) do que
uma certeza teleológica ou o resultado de um dogmatismo político qualquer. Nesta
concepção, a história é um campo de possíveis (não o resultado de leis conhecidas,
imutáveis e implacáveis) em que a luta (às vezes revolucionária) está sempre presente
- porque é impossível fazer a economia do embate social ou subtrair a razão e a po-
lítica dos processos sociais -, mas cujo desfecho é sempre imprevisível.7 A trajetória
artística e política de Edward Bond é o exercício desta maneira de conceber o mundo
e o teatro, assim como sua maneira de ver o mundo e o teatro resultam de sua práxis
artística e política como criador e intelectual.

6
Uma versão bem brasileira deste fenômeno ficou conhecida como “desbunde”. Ver, por exemplo, Heloísa Buarque de Hollanda. Impressões de Viagem: CPC,
Vanguarda e desbunde. 1960/1970. Rio de Janeiro: Aeroplano. 2004. O livro, escrito no final dos anos 1970, não está isento de problemas, mas vale como retrato
de época e pelos excelentes anexos.
7
Ver Le pari mélancolique [A aposta melancólica], de Daniel Bensaïd, Paris: Fayard, 1997.

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DISFARCES E CULATRA

Mencionados estes aspectos, presença inescapável da dimensão histórico- po-


lítica no fenômeno teatral e reivindicação da inteligibilidade (produção crítica de
sentido), pode-se analisar aspectos da relação arte/sociedade, cultura/política, que
embora particulares têm ressonância nas manifestações teatrais contemporâneas.
Um destes aspectos é o travestimento, ou os disfarces, que acabam por nublar a
apreensão crítica. Como são menos evidentes (caso contrário não seriam disfarces)
e, portanto, menos sujeitos à detecção e à crítica, estes disfarces funcionam como
estratégias ideológicas (de controle social, de fabricação do consenso etc.) cujo al-
cance, evidentemente, atinge o teatro, e são utilizados inclusive por alguns que ima-
ginam combater o establishment.
Uma explicação para este fato estaria nos anacronismos. Expedientes outrora
críticos e eficientes socialmente são anulados em novos contextos. Roberto Schwarz
chamou a atenção para a recuperação pela publicidade de técnicas desenvolvidas
por Brecht, exemplificando com o distanciamento “brechtiano” do ator que prota-
gonizou durante anos as conhecidas propagandas da palha de aço Bombril. Schwarz
também mostrou como o foco “brechtiano” na “infra-estrutura material da ideologia”
é praticado por qualquer telejornal mediano quando revela os bastidores da cena,
deixando à mostra câmeras, cabos e operadores (Schwarz, 1999, p. 130). O mesmo
vale para outros instrumentos, expedientes e procedimentos utilizados pela tradição
teatral crítica (iluminação da plateia, apartes, songs, exposição comentada da fábula,
distanciamento entre personagem e ator e deste com o público, cartazes nomeando
as cenas etc.).
Operações críticas, potencialmente reveladoras de relações sociais comple-
xas, são postas de pernas para o ar, os sinais são trocados e a crítica (do fetiche, do
mercado, do consumo, do luxo, do individualismo…) pode transformar-se em apo-
logia. Ou seja, e este é um caso clássico, aspectos formais utilizados na crítica da
forma-mercadoria passam a servir como alavancas para o consumo conspícuo e para
a aceitação da lógica mercantil. Aniquilar a empatia, usar parábolas, “estranhar” ou
“distanciar”, podem ser largamente insuficientes se o “método” brechtiano não
estiver presente8. E ele está ausente não apenas na publicidade, nos telejornais
ou nas telenovelas, mas também em determinados filmes cults, em múltiplas mani-
festações artístico-performáticas hiper ou pós- modernas, e até mesmo em parte do
bem-intencionado teatro crítico.
É por isso que importantes achados estéticos dos anos 1960 (do Arena, Oficina,
Opinião, CPC’s, mas também do Cinema Novo e da MPB) - desconsiderando, para
efeito de análise, “a gelatina do nacionalismo populista” (Schwarz, 1999, p. 122) que
não poupou o teatro, o cinema e a música da época -, também correm o risco de não
funcionar nos dias de hoje. Como um tiro que sai pela culatra, podem produzir uma
desastrosa inversão do sentido crítico original. Já na época em que foram criados, pi-

8
”É tentador sugerir que precisamente a conhecida sagacidade de Brecht seja o seu método ou mesmo sua dialética: a inversão das hierarquias de um problema,
a premissa maior tornando-se a menor, a absoluta tornando-se a relativa, a forma tornando-se o conteúdo e vice-versa - são todas operações em que o dilema em
questão é virado do avesso, e uma linha de ataque inesperada e imprevisível se abre sem levar nem para o beco sem saída do insolúvel nem para a banalidade
da doxa estereotipada sobre o assunto.” (Jameson, 2013, p. 47)

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pocavam as contradições. Para Schwarz “a utilização dos procedimentos narrativos,


concebida originalmente para propiciar a distância crítica, nalguns momentos via-se
transformada por Boal e Glauber no seu contrário, em veículo de emoções nacionais,
‘de epopeia’, para fazer contrapelo à derrota política” (Schwarz, 1999, p. 122).
O golpe de 1964 e o tiro de misericórdia do AI-5, quatro anos depois, pratica-
mente interromperam o avanço social e a experimentação estética que estavam
em curso acelerado desde meados da década anterior. E foi uma dupla interrupção:
imediata, física, concreta, porque a produção artística definhou sob os coturnos da
repressão e da censura (especialmente depois de 1968); e interrupção do pensa-
mento, pela incapacidade de toda uma geração em medir e interrogar as inovações
formais na construção social objetiva. Embora não se possa ignorar a migração de
artistas e coletivos teatrais para práticas menos institucionalizadas, resumidas pelas
fórmulas “teatro popular”, “comunitário”, “amador” ou “independente”. Não é casual
que o 1º Seminário de Teatro Popular tenha sido realizado na cidade de São Paulo em
1974, coincidindo com o final do governo Médici, auge da repressão e do terrorismo
de Estado.
Não pode passar em branco o fato de que Terra em transe de Glauber Rocha,
parte do tropicalismo (na música, nas artes plásticas e na literatura) e da produção do
Teatro Oficina (d’O Rei da Vela em diante), deram exemplos de confusão ou evidente
renúncia do pensamento crítico. Por isso Roberto Schwarz não poupa as experiên-
cias dionisíacas e ritualizantes de Zé Celso, mencionando “uma espécie de colapso
histérico e histórico da razão.” (Schwarz, 1999, p. 124). A carta que o Grupo Oficina
envia a Sábato Magaldi em 1972 (Arte em Revista, 1983, p. 51-55), escrita por Zé Celso,
confirma, além do “desespero irracional” apontado pelo crítico, o viés autoritário do
grupo (além de neorromântico e protomessiânico), que entre neologismos duvidosos
(“re-volição” ou “te-ato”) distribui ataques pouco consistentes e ofensas a Magaldi e a
Anatol Rosenfeld. Até Galileu é convocado para cerrar fileiras com a sensorialidade e
a “viagem” propostas por Gracias Señor (a montagem criticada por Sábato Magaldi).
Novamente, não se trata de fla-flu. Não é o caso de comprar o pacote integral de uma
crítica que, sem dúvida, também exerceu papel normalizador, recusando experiên-
cias radicais que não se enquadravam na sua grade analítica. A pior das armadilhas
é aquela que exige falsas escolhas. Está viva na memória a falácia, vendida por boa
parte da mídia mundial, que nos queria aprisionar na escolha entre George W. Bush e
Bin Laden, ou seja, entre a nova etapa do hegemonismo norte-americano (com tintas
de fundamentalismo protestante) e o terrorismo patrocinado pela ditadura saudita.
Discursos e práticas, no âmbito social ampliado ou no especificamente teatral,
uma vez disfarçados com roupas aparentemente críticas, podem se prestar aos piores
serviços, ou, na melhor das hipóteses, servir esquizofrenicamente a dois amos.
É preciso reconhecer, saindo do conforto, que obviamente nem todas as escolhas
são falaciosas, e portanto opções precisam ser feitas. Não se pode ter a manteiga e o
dinheiro da manteiga, diz um conhecido provérbio francês.

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Teatro e história: a incrível dialética entre processos
sociais e formas sensíveis

SE NÃO FOR STAROUP, PROTESTE

Se parte da herança brechtiana e do teatro dos anos 1960 - ela mesma já tendo
se reapropriado da herança de Brecht -, não nos são mais socialmente úteis, o fato
apenas confirma uma concepção do marxismo… e do brechtismo: o mundo só pode
ser entendido historicamente e em transformação. E mais, as próprias categorias em-
pregadas na análise do seu caráter histórico e transformável precisam ser, elas tam-
bém, igualmente historicizadas. A tarefa não é fácil, mas é estimulante. Nós mesmos,
em Teatro/mercadoria #1, trabalho cênico criado em 19969, tentamos dar uma forma
capaz de revelar a recuperação feita pelo status quo capitalista da crítica antissistê-
mica. Para não glosar sobre trabalho próprio, aqui vai a análise de Iná Camargo Costa
sobre dois momentos desta peça:

Uma cena do Woyzeck [incluída e retrabalhada em Teatro/mercadoria #1] é uma


aula minuciosa sobre o modo como o repertório realista dramático pode des-
truir uma cena épica. Mas o maior feito do espetáculo consiste na atualização do
método cinematográfico de Guy Debord: desenvolvendo, sem enunciar, a tese
debord-benjaminiana de que o espetáculo [no sentido que emprega Debord] tem a
capacidade de transformar até mesmo as lutas revolucionárias (depois de derrota-
das, é claro) em mercadoria, é apresentada, sem comentários, por desnecessários,
a longa peça publicitária em que as lutas dos anos 1970 contra a ditadura foram
transformadas em argumentos para demonstrar a qualidade e a resistência de uma
determinada marca de jeans (Costa, 2008, p. 118).

Na mesma tela, lado a lado, apresentávamos o filme publicitário da Staroup,


Passeata, produzido pela W/Brasil em 1988, e imagens documentais de protestos dos
anos 1960. Não parece ter escapado ao júri do Festival de Publicidade de Cannes a
qualidade - publicitária e política - do material criado por Washington Olivetto e Ni-
zan Guanaes, atribuindo a ele o Leão de Ouro. O cinismo e o oportunismo eram mais
uma vez premiados. Cannes percebeu que a transição para a democracia liberal - na
época vivíamos sob o governo Sarney - era a prova dos nove de que a ditadura tinha
vencido10. O mercado, enfim, podia ter livre curso. A rebeldia e em alguns casos o
ímpeto revolucionário tinham cedido o lugar (ao preço que se sabe) para a calmaria
(selvagem) da normalização capitalista. “Se não for Staroup, proteste”, era o slogam
da campanha.
A rudeza - e a eficiência - do massacre ideológico e midiático no Brasil é de tal
magnitude, que nos pareceu necessário, à época, justapor os dois filmes, imaginan-
do que a simples exposição do filme publicitário, mesmo no contexto de uma peça
teatral crítica como Teatro/mercadoria #1, fosse insuficientemente compreendida
por uma parte importante dos interlocutores do trabalho. Nesta montagem, tanto
como agora, estavam postas antigas e decisivas questões: Como ativar o pensamento
crítico? Como identificar questões prioritárias e urgentes que merecem tratamento
teatral? Como encontrar formas para examinar estas questões? Como dialogar pro-
dutivamente com o público, evitando, por um lado, as armadilhas da lição pronta e,
de outro, a recusa do sentido? Como fugir dos standards estéticos e do formalismo

9
Teatro/mercadoria #1, montagem da Kiwi Companhia de Teatro, dirigida por Fernando Kinas, estreou no Sesc Copacabana em dezembro de 2006
10
A este respeito vale a pena conferir o livro O que resta da ditadura, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle, São Paulo: Boitempo, 2010.

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Teatro e história: a incrível dialética entre processos
sociais e formas sensíveis

estéril? Como plasmar, crítica e criativamente, conteúdos não hegemônicos e formas


sensíveis? Como criticar a forma-mercadoria a partir do mundo do capital? Como
expressar a rebeldia sem a complacência tão ao gosto das classes médias?
Com estas indagações vinham outras, aparentemente extrateatrais. Que modo
de produção seria compatível com este tipo de teatro? Colaborativo, compartilhado,
horizontal, associativo, não mercantil, cooperativado? Por último, mas não menos
importante, quem são nossos interlocutores? Isto é, existe, e onde estará, o público
capaz de reivindicar um teatro com estas características?
Somente dez anos depois de Teatro/mercadoria #1 houve ocasião para rever
este filme publicitário em um outro trabalho cênico. A montagem colombiana de No-
tas de cocina, escrita por Rodrigo Garcia e dirigida pelo espanhol Marc Caellas, con-
firma parcialmente a tese da recuperação de materiais ou dispositivos críticos pelo
status quo. Uma recuperação, digamos assim, elevada ao quadrado, já que a matéria
original (a rebeldia e o protesto da juventude), recuperada pela marca de jeans e pela
agência publicitária, prestava-se à nova recuperação, desta vez por uma produção
teatral relativamente rebelde, fazendo parte de um circuito artístico relativamente
crítico, assistida por públicos relativamente interessados no protesto. Tudo muito re-
lativo, como se vê.
Ao público, aos críticos, aos artistas, aos estudiosos, cabe reconhecer e fazer a
adequada apreciação destes mecanismos, avaliando seus alcances e limites. Desfeti-
chizar e dasalienar não saíram de moda.

ABORDAGEM SÓCIO-ESTÉTICA

Para destacar o aspecto geral das relações entre arte e história, teatro e socie-
dade, vale reforçar uma argumentação desenvolvida em outro artigo, com algumas
novas ponderações (Kinas, 2013b).
Provavelmente há mais do que um fluxo de duas mãos entre o fenômeno tea-
tral e o “campo histórico das relações humanas” (Brecht, 1979, p. 24). A abordagem
não deve ser em termos de rígida dualidade, mas de “totalidade sócio- estética”. Um
exemplo de aplicação desta abordagem é o da correspondência entre o teatro brasi-
leiro produzido nos anos 1960 e o contexto social e político vivido pelo país. As refle-
xões de Augusto Boal (representativas do Teatro de Arena), do ISEB (Instituto Superior
de Estudos Brasileiros) e do PCB (e também de certos movimentos sociais, sindicais
e estudantis) estavam em “perfeita sintonia”, como destaca Edélcio Mostaço (1982, p.
45). Talvez se possa acrescentar que não se tratava propriamente de “sintonia”, como
se estivessem face a face dois campos autônomos (teatro e política), mas, justamen-
te, de uma totalidade sócio-estética, já que as manifestações teatrais e políticas só
podem ser compreendidas a partir do contexto em que se efetivam. É a démarche
que adota Marcelo Ridenti ao analisar o mesmo período: “ficava mais uma vez evi-
dente - como em geral ocorre com mais transparência nos momentos de impasses
4
“In Diderot´s writings on painting and drama the object-beholder relationship as such, the very condition of spectatordom, stands indicted as theatrical, a médium
of dislocation and estrangement rather than of absorption, sympathy, self-transcendence; and the success of both arts, in fact their continued functioning as major
expressions of the human spirit, are held to depend upon whether or not painter and dramatist are able to undo that state of affairs, to detheatricalize beholding and
so make it once again a mode of access to truth and conviction, albeit a truth and a conviction that cannot be entirely equated with any known or experienced before”.

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sociais e formas sensíveis

na sociedade - que a produção cultural é ao mesmo tempo política, e vice-versa, ain-


da que nem sempre seja possível estabelecer precisamente a articulação entre arte e
vida sócio-política” (Ridenti, 2000, p. 280).
Exemplos inequívocos da unidade sócio-estética foram as experiências realiza-
das em torno da revolução de 1917 (Meierhold, Maiakovski, Tairov, construtivismo,
biomecânica etc.) e a efervescência da República de Weimar (Piscator, Toller, Brecht,
teatro documentário, cabaré político etc.).
Evidentemente, a percepção do fenômeno sócio-estético é mais visível nos pe-
ríodos de grande inquietação política e artística. Mais desafiador é identificar o fenô-
meno em tempos não tão intensos, quando os processos históricos e a produção
artística e cultural parecem relativamente autônomos. É preciso destacar, ainda, que
processos reativos, como o surgimento de um teatro conservador ou reacionário em
tempos de contestação política, não desautorizam, antes confirmam a hipótese aqui
apresentada. O conceito de backlash (utilizado por setores do movimento feminista)
ajuda a explicar este fenômeno. Ele significa, basicamente, uma reação conservadora,
com diferentes graus de violência, em resposta a avanços políticos conquistados por
movimentos sociais.
Peter Bürger em Teoria da Vanguarda mostrou as complexas conexões entre o
desenvolvimento (emancipação) da arte em relação aos desenvolvimentos tecnoló-
gicos, especialmente a partir das reflexões seminais de Walter Benjamin (1985). Para
Bürger era fundamental evitar os esquematismos:

Ora, a emancipação é um processo que pode ser efetivamente promovido por


meio do desenvolvimento das forças produtivas, na medida em que estas prepa-
ram um campo de novas possibilidades disponíveis para a concretização de ne-
cessidades humanas, mas isso não pode ser pensado independentemente da cons-
ciência humana. Uma emancipação que se impusesse natural e espontaneamente
seria o contrário da emancipação (Bürger, 2008, p. 70).

A transposição do esquema marxista que relaciona o desenvolvimento das for-


ças produtivas com a alteração substancial das relações de produção não pode ser
aplicada mecanicamente ao conjunto arte/sociedade. Não basta que haja alteração
da situação social (como o desenvolvimento de novas técnicas de reprodução), para
que a situação artística (o sistema de arte e as obras ou processos) seja automatica-
mente alterada. O “desenvolvimento técnico não deve ser interpretado como variável
independente, sendo ele próprio dependente do desenvolvimento do todo social”,
diz Bürger, acrescentando que “não se deve atribuir unicamente ao desenvolvimento
dos procedimentos técnicos de reprodução a ruptura decisiva no desenvolvimento
da arte na sociedade burguesa” (Bürger, 2008, p. 70). Seria necessário levar em conta
tanto uma relativa autonomia da vontade humana (a atitude política em ação), como
a nova divisão do trabalho que se estabelecia neste tipo de sociedade, responsável
pela especialização generalizada das ocupações, incluindo as artísticas.
Para Bürger, nem mesmo o surgimento e a generalização do mercado podem
ser considerados como causas unívocas ou definidoras do processo de reconfigura-
ção das artes. “O processo contraditório do surgimento da esfera social que designa-
mos como arte, que (sempre pressionado por movimentos contrários) por séculos

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Teatro e história: a incrível dialética entre processos
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se prolongou, não pode ser deduzido de uma só ‘causa’, ainda que seja de tão central
importância para o todo social como o mecanismo de mercado” (Bürger, 2008, p.
87).
Mais do que afirmar uma “vinculação” entre processos artísticos e condições
sociais e históricas gerais, talvez seja o caso de pensar, como esboçado acima, em
termos de unidade ou totalidade estético-social, em que a especificidade da esfera
estética se objetifica em determinado contexto social. Mesmo que muitas vezes nos-
so vocabulário seja enganoso, ao nos referirmos, por exemplo, à “influência social” na
criação artística, o sentido geral da reflexão tende a ser não dogmático, procurando
dar conta da multiplicidade do real em sua sofisticada arquitetura histórica, política,
social e estética. Ismail Xavier, na tentativa de compreender a produção cultural bra-
sileira, empreende análise na mesma direção:

Certo momento do capitalismo e da evolução da técnica que organiza a vida


cotidiana engendra ou, pelo menos, favorece um estilo de representação que se
mostra capaz de dar conta da experiência histórica; quando as coisas mudam,
quando a ordem econômica e o aparato técnico vão dando cada vez menos sinais
visíveis de sua lógica, é necessário outra forma de arte para falar desse mundo e
de suas determinações, seu sentido, sua maneira de condicionar, moldar, excluir.
(Xavier, 2000, p. 108)

É o esforço dialético que merece ser retido como procedimento metodológi-


co. Situações, ou momentos, sociais permitem, ou favorecem, expressões artísticas
e estas são capazes de expressar a realidade. Quando a realidade se altera, e a lógica
estabelecida entra em crise, outras formas artísticas são necessárias, e são capazes,
por sua vez, de expressar esta nova realidade. As formas artísticas, no entanto, são
também indutoras - na dimensão que cabe identificar em cada caso concreto - das
determinações e condicionamentos que formatam o conjunto da experiência histó-
rica.

O CHÃO DA HISTÓRIA

Não seria simples trazer o conjunto da argumentação feita até aqui para o chão
da atualidade teatral brasileira. A reflexão que apresentamos está mais próxima de
um elogio do método, à moda de Descartes, do que dos estudos de caso. É possível,
no entanto, afirmar que uma experiência localizada e recente, a do teatro paulistano,
especialmente após meados da década de 1990, apresenta elementos visíveis do que
tentamos analisar. Visíveis, porque as ações do teatro de grupo, da articulação de
artistas, coletivos e intelectuais (primeiro no Arte contra a Barbárie, depois no mo-
vimento 27 de Março e em torno do teatro de rua), e os resultados do Programa de
Fomento ao Teatro para a cidade de São Paulo (em funcionamento desde 2002), têm
sido objeto de investigação atenta, revelando uma imensa diversidade de práticas ar-
tísticas e sociais que expressam, e muitas vezes reivindicam, um protagonismo - ele
também artístico e social - que há muitas décadas não se via11.
O atual teatro de grupo paulistano é, portanto, um concentrado, rico e contra-
ditório, desta incrível dialética entre processos sociais e formas sensíveis.

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Teatro e história: a incrível dialética entre processos
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EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Trad. Elisabeth Barbosa. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

11
Ver, por exemplo: Iná Camargo Costa, “Teatro de grupo contra o deserto do mercado”. Em ArtCultura, Uberlândia, v. 9, n. 15, p. 17-29, jul.-dez. 2007, e da mesma
autora (org.) A luta dos grupos teatrais de São Paulo por políticas públicas para a cultura. São Paulo, Cooperativa Paulista de Teatro, 1998; Fernando Kinas, “A lei
de fomento ao teatro para a cidade de São Paulo: uma experiência de politica pública bem sucedida”. Revista Extraprensa, São Paulo, v.1, 2010, p. 194-203. Este
texto, revisado e aumentado, foi publicado no Caderno de Estudos Contrapelo, São Paulo (Kiwi Companhia de Teatro), v. 2, 2015, p. 62-69, com o título “O tor-
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Aprovado em: 02/07/2016

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