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Orientador:
Eth inhiro Sntn
ORIENTADORA:
ETHEL PINHEIRO SANTANA
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UMA OUTRA ESTÓRIA . REPRESENTAÇÕES DA RUA DO CATETE PELAS NARRATIVAS
DO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’
Rio de Janeiro
Maio de 2020
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RIO DE JANEIRO
MAIO 2020
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Ao meu tio José Maria de Sousa Melo,
pois sem ele nada disso seria possível.
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AGRADECIMENTOS
Não tenho como começar estes agradecimentos sem falar da pessoa que mais me ensinou e
contribuiu para que tudo isso acontecesse. Ethel, você me ensinou muito e foi uma
orientadora maravilhosa, ajudou nos momentos em que eu achava que não tinha para onde ir,
acreditou e aceitou a orientação sem nem mesmo me conhecer. Ao final de tudo, conseguiu
fazer com que eu entregasse uma dissertação com desenhos feitos por mim. Sempre tive
“bloqueio” para desenhar, nunca achei que seria capaz de desenhar e você, me guiando,
mostrou que era possível. Só tenho a te agradecer por esses dois anos. Muito obrigada!
Queria agradecer ao pessoal do LASC (Laboratório de Ambiência, Subjetividade e Cultura) e a
professora Cristiane pelo apoio e orientação. Obrigada por me permitirem fazer parte desse
grupo de pesquisa no qual eu aprendi tanto.
Aos professores Laís Bronstein e Gustavo Rocha-Peixoto por todo carinho e orientação, tanto
acadêmica quanto de vida, vocês são extremamente especiais.
A Maria Lygia, Maria Lucia e Jorge, essa trinca de sogra e tios maravilhosos que meu marido
colocou na minha vida e que me ajudaram tanto nas dúvidas acadêmicas quanto nos
momentos de desespero e de maneiras que eu nunca vou saber como retribuir.
Aos professores Ana Amora e Gustavo Racca por terem sido a melhor banca que eu poderia
ter, foram super generosos e conseguiram me ajudar a achar o melhor caminho após a
qualificação.
A minha mãe e minha irmã que nunca me deixaram desistir desde a época de noites viradas na
graduação e sempre acreditaram que eu iria conseguir.
Sou uma pessoa de muita sorte, pois caí em uma turma maravilhosa e só tenho
agradecimentos para a Turma de Mestrado do Proarq de 2018. Vocês são pessoas incríveis,
ninguém nunca se negou a ajudar ninguém e chegamos nessa reta final juntos e torcendo um
pela vitória do outro.
Em especial queria agradecer a Clara Buckley e Lis Pamplona que foram os maiores presentes
que o Proarq me deu. Juro que sem vocês eu não teria conseguido, sem a forca e amizade de
vocês esta dissertação não estaria aqui agora. Obrigada por fazerem parte desse momento e
da minha vida, você são maravilhosas.
A minha terapeuta Dra. Patrícia que tanto me ajudou na manutenção da minha saúde mental
durante este processo tão intenso e solitário. Quando eu achava que não tinha mais jeito ela
mostrava que tinha jeito sim e que eu mesma sabia o caminho.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de
bolsa de estudo durante cinco meses desta pesquisa.
A toda a equipe de funcionários e professores do Proarq, por me acolherem, contribuírem
com meu crescimento e pela excelência em seu trabalho cotidiano.
E por fim não tem como não agradecer aos amores da minha vida, que estiveram ao meu lado
durante todo esse processo e que passaram comigo por todos meus altos e baixos.
Ao meu marido Gustavo que é o amor da minha vida e que sempre acreditou em mim. Nunca
duvidou que eu fosse conseguir e esteve do meu lado em todos os momentos. Pelo melhor
colo do mundo, pelo melhor abraço e, até mesmo, pelas broncas para que eu levantasse a
cabeça e seguisse em frente. Te amo muito, você sabe disso.
E ao meu filho que não me abandonou em nenhum momento, deitadinho no meu pé ou em
cima da mesa ao lado do computador, mas sempre ao meu lado me passando o amor mais
puro do mundo todo. Kauai Te amo!
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RESUMO
A evolução da cidade do Rio de Janeiro foi pontuada por influências e impactos que se
refletem em sua historia. A construção do metrô, na década de 1970, e a transferência da
capital para Brasília são casos de intervenção urbana e esvaziamento econômico que
marcaram de forma significativa a história e a memória da Rua do Catete. A atual configuração
da Rua do Catete é o resultado da combinação de trechos preservados, com edifícios
construídos nos terrenos remanescentes das demolições e persistência de vazios urbanos. O
objetivo deste trabalho é analisar as mudanças de cenário da Rua do Catete através de
narrativas proporcionadas pela justaposição de diferenciados enfoques, de modo a evidenciar
um cenário atual e complexo e reforçar a conexão memória / espaço físico / usos e práticas
locais. A metodologia de pesquisa se configura através dos estudos das narrativas e do
conceito de ‘Palácio de Memórias’. Introduzimos a Rua do Catete como objeto de estudo e
igualmente como estudo de caso, ratificando um dos pontos principais para se desenvolver a
pesquisa em questão: a necessidade de aprender com os registros/memórias/discursos do
passado para se fazer compreender o hoje, em diversos cenários de metrópoles mundiais,
assim como para interpretar cidades.
RIO DE JANEIRO
MAIO 2020
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ABSTRACT
The evolution of the city of Rio de Janeiro was punctuated by influences and impacts that are
reflected in its history. The construction of the subway, in the 1970s, and the transfer of the
capital to Brasília are cases of urban intervention and economic emptying that marked the
history and memory of Catete Street in a significant way. The current configuration of Catete
Street is the result of the combination of preserved stretches, with buildings built on the
remaining land from the demolitions and persistence of urban voids. The objective of this work
is to analyze the changes in the scenario of Catete Street through narratives provided by the
juxtaposition of different approaches, in order to highlight a complex current scenario and
reinforce the connection between memory / physical space / uses and local practices. The
research methodology adopts the studies of narratives and the concept of 'Palace of
Memories'. Catete Street is introduced as an object of study and also as a case study, ratifying
one of the main points to develop the research in question: the need to learn from the records
/ memories / discourses of the past in order to make the present understood, in different
scenarios of world metropolises, as well as to interpret cities.
RIO DE JANEIRO
MAIO 2020
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SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO............................................................................. 13
1.1. POR QUE A RUA DO CATETE? ...................................................................................... 18
1.2. TRILHANDO A PESQUISA ............................................................................................. 20
4.METODOLOGIA.......................................................................... 68
4.1. OBSERVANDO PERSONAGENS E LUGARES.......................................................................... 71
4.2. COMPOSIÇÃO DE NARRATIVAS........................................................................................... 92
4.3. APLICAÇÃO DO MÉTODO DE PALÁCIO DAS MEMÓRIAS...................................................... 96
BIBLIOGRÁFIA................................................................................ 135
APÊNDICE....................................................................................... 141
ANEXO.............................................................................................. 163
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ÍNDICE DE FIGURAS
FIGURA 1 – “O IMPONENTE PALÁCIO DO CATETE, ANTIGO PALÁCIO DE NOVA FRIBURGO. AO
FUNDO NA ESQUINA COM A RUA SILVEIRA MARTINS, VÊ-SE O PRÉDIO ECLÉTICO DA
ESCOLA PÚBLICA RODRIGUES ALVES DEMOLIDO PELAS OBRAS DO METRÔ. ENTRE
POVO, MILITARES E POSSÍVEIS AUTORIDADES DESTACA-SE, GARBOSA, EM
PRIMEIRO PLANO, UMA GALINHA” (PAG. 295). PÁG- 24
FIGURA 2 – RUA DO CATETE, EM 24/01/1906. OBRA DE INSTALAÇÃO DOS TRILHOS DOS
BONDES. DESTAQUE PARA O PALÁCIO DO CATETE - HOJE MUSEU DA REPÚBLICA.
FOTO DE AUGUSTO MALTA. FONTE: ACERVO (IMS) PÁG-25
FIGURA 3 – MAPA DA ÁREA DO CATETE NO ANO DE 1897 FONTE: HTTPS://IMAGINERIO.ORG/
PÁG- 25
FIGURA 4 - NA FOTOS ACIMA, VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE
LOCALIZADO NA ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ. FOTO DA AUTORA,
2018. PÁG- 27
FIGURA 5 – LOCALIZAÇÃO EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO
NA ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ. FONTE: INDICAÇÃO DA AUTORA
SOBRE GOOGLE MAPS PÁG- 27
FIGURA 6 – PRACA JOSE DE ALENCAR 1906, FOTO DE AUGUSTO MALTA.FONTE: ACERVO (IMS)
PÁG- 29
FIGURA 7 – PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR, 1996.FONTE:
HTTP://JAUREGUI.ARQ.BR/CIDFORMAL.HTML PÁG- 29
FIGURA 8 – CROQUIS RIO CIDADE PARA A PRAÇA DO POETA
FONTEHTTP://JAUREGUI.ARQ.BR/CIDFORMAL.HTML PÁG- 30
FIGURA 9 – NOVA CAPITAL. O PRESIDENTE JUSCELINO KUBITSCHEK (AO CENTRO) COM UMA
DAS MAQUETES DE BRASÍLIA FONTE: HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/RIO-
DE-HISTORIAS/21-DE-ABRIL-DE-1960-DIA-EM-QUE-RIO-DE-JANEIRO-DEIXOU-DE-
SER-CAPITAL-FEDERAL-8898992#IXZZ5MKPHFEKK ACESSO EM: 13 JAN. 2019. PÁG-
33
FIGURA 10 – SEGUIDO DA FAMÍLIA E DOS MEMBROS DO GOVERNO, O PRESIDENTE DESCE OS
DEGRAUS DO PALÁCIO DO CATETE. DIVULGADA EM TODA A IMPRENSA, A IMAGEM
VIRIA A SER A REPRESENTAÇÃO OFICIAL DA PARTIDA DO PODER. FONTE:
HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/RIO-DE-HISTORIAS/INAUGURACAO-DE-
BRASILIA-ENCERRA-CICLO-DE-DOIS-SECULOS-DE-PODER-DO-RIO-DE-JANEIRO-
8929190 ACESSO EM: 13 JAN. 2019. PÁG- 34
FIGURA 11– “VAI, VAI PARA A SUA BRASÍLIA DE UMA VEZ, INGRATO... MAS DOR DE BARRIGA
NÃO DÁ UMA VEZ SÓ” FONTE: DIÁRIO DA NOITE, 20 DE ABRIL DE 1960. ACERVO
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – BRASIL PÁG- 35
FIGURA 12- O PRESIDENTE GEISEL, O GOVERNADOR DO RIO, ALMIRANTE FARIA LIMA, O
GENERAL FIGUEIREDO E NOEL ALMEIDA (PRESIDENTE DO METRÔ) INAUGURAM
TRECHO GLÓRIA-PRAÇA ONZE 5/3/79 FONTE:
HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/EM-DESTAQUE/COM-50-ANOS-DE-
ATRASO-RIO-GANHOU-METRO-EM-MARCO-DE-1979-INAUGURADO-POR-GEISEL-
12092759#IXZZ5MMJKHD3G PÁG- 36
FIGURA 13- A FOTO ACIMA MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DA RUA SILVEIRA
MARTINS EM FRENTE AO PALÁCIO DO CATETE, PODEMOS NOTAR O TERRENO
9
VAZIO ONDE SE ENCONTRAVA ANTES A ESCOLA RODRIGUES ALVES. FONTE:
HTTP://WWW.ESPENGENHARIA.COM/NOVO/WPCONTENT/UPLOADS/2017/07/01-
9.JPG PÁG- 38
FIGURA 14- A FOTO MOSTRA A ESCOLA RODRIGUES ALVES, NA ESQUINA DA RUA DO CATETE
COM A RUA SILVEIRA MARTINS. O IMÓVEL FOI DEMOLIDO DURANTE AS OBRAS DO
METRÔ NA DÉCADA DE 1970.FONTE:
HTTP://LUIZD.RIO.FOTOBLOG.UOL.COM.BR/IMAGES/PHOTO20150826065118.JPG
PÁG- 39
FIGURA 15– NO TAPUME UM PEDIDO DE DESCULPAS DE UM OPERÁRIO. E A ADVERTÊNCIA DE
QUE NÃO PODE FAZER ZOADA.
FONTE:HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/BUSCA/?TIPOCONTEUDO=PAGINA
&PAGINA=1&ORDENACAODATA=RELEVANCIA&ALLWORDS=METRO+CATETE&ANY
WORD=&NOWORD=&EXACTWORD= PÁG- 40
FIGURA 16– ÁREA LOCALIZADA NA RUA DO CATETE NA ALTURA DA PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR.
FONTE: <HTTP://WWW.RIOQUEPASSOU.COM.BR/2009/04/01/LARGO-DO-
MACHADO-OBRAS-DO-METRO/> PÁG- 41
FIGURA 17– A IMAGEM MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DO LARGO DO MACHADO, AO
FUNDO VEMOS O QUE RESTOU DO CINEMA SÃO LUIZ.
FONTE:<HTTP://WWW.RIOQUEPASSOU.COM.BR/2009/04/01/LARGO-DO-MACHADO-
OBRAS-DO-METRO/ > PÁG- 41
FIGURA 18 – RUA DO CATETE, 1976, DURANTE AS OBRAS DO METRÔ NA ALTURA DA RUA
FERREIRA VIANA. FONTE: ARQUIVO NACIONAL PÁG- 42
FIGURA 19– ALGUNS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE FONTE: AUTORA PÁG- 43
FIGURA 20-CROQUI DA AUTORA DE ALGUNS PERSONAGENS OBSERVADOS DURANTE A
PESQUISA NA RUA DO CATETE. 08/12/2019 A 04/01/2020. PÁG- 72
FIGURA 21- CROQUI DA AUTORA ONDE VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO
PLANO AGACHE LOCALIZADO NA ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ, E
UMPEDACO DO GRADIL DO TERRENO DO DETRAN, REVELANDO OS ‘RESQUÍCIOS DE
CIDADE’ APÓS A DEMOLIÇÃO DAS OBRAS DO METRÔ. 08/12/2019. DOMINGO PÁG-
74
FIGURA 22- CROQUI DA AUTORA NA SAÍDA DO METRÔ DO CATETE, ONDE SE PERCEBE UMA
IMAGEM (AINDA) PARADIGMÁTICA DO BAIRRO. RUA DO CATETE ESQUINA COM
SILVEIRA MARTINS. 13/12/2019.SEXTA FEIRA PÁG- 75
FIGURA 23- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO MACHADO ONDESE CONCENTRAM VÁRIOS
GRUPOS DE PESSOAS JOGANDO CARTAS, DAMA E XADREZ EM MESAS FIXAS, UMA
DAS MARCAS SOCIAIS DA RUA DO CATETE. ESTE GRUPO PARECIA O MAIS
ANIMADO, DISPONDO DE PLATEIA PARA O JOGO. 06/12/2019 SEXTA FEIRA PÁG- 75
FIGURA 24- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO MACHADO ONDE SE LOCALIZA O POSTO DE
BICICLETAS DO ITAU, LOCAL DE MOVIMENTO CONTINUO DE PESSOAS TIRANDO E
DEIXANDO BICICLETAS, ESPAÇO ATUAL DE BASTANTE IMPORTÂNCIA PARA A
SOCIALIDADE DO BAIRRO. 17/12/2019 TERCA FEIRA PÁG- 76
FIGURA 25- CROQUI DA AUTORA DE UM DIA DE ENSAIO DO BLOCO ‘AMIGOS DO CATETE’ QUE
ACONTECEU NA RUA DO CATETE, ESQUINA COM RUA DOIS DE DEZEMBRO. O USO
DA RUA DO CATETE COMO PASSAGEM E AGLOMERAÇÃO PARA ATIVIDADES
CARNAVALESCAS DATA DE DESDE O IMPÉRIO. 04/01/2020 SÁBADO. PÁG- 76
10
FIGURA 26- PESSOAS NO PONTO DE ONIBUS NO MEIO DA TARDE EM FRENTE A GALERIA DO
CINEMA SÃO LUIZ. 17/12/2019 TERCA FEIRA PÁG- 77
FIGURA 27- SAPATEIRO QUE FAZ PONTO NO LARGO DO MACHADO QUASE EM FRENTE AO
SUPERMERCADO EXTRA. ELE E DEFICIENTE, NÃO POSSUI AS PERNAS E ATENDE HÁ
ANOS NA RUA EM FRENTE A UM DOS RESPIRADORES DO METRÔ.19/12/2019
QUINTA FEIRA. PÁG- 77
FIGURA 28- CROQUI DA AUTORA EM UM DIA DE CHUVA NA RUA DO CATETE ESQUINA COM
RUA DOIS DE DEZEMBRO. QUARTA FEIRA 11/12/2019. PÁG- 78
FIGURA 29- MAPEAMENTO DOS LOCAIS ONDE FORAM REALIZADOS OS CROQUIS PELA
AUTORA. PÁG- 79
FIGURA 30- A FOTO MOSTRA UMA DAS ÁGUIAS DO PALÁCIO OBSERVANDO O CATETE. FONTE:
FOTO RICARDO BELIEL PÁG-92
FIGURA 31- GALERA DO SKATE, HIP HOP E DA JOGATINA DO LARGO DO MACHADO,
PERSONAGENS DO CATETE. FONTE: AUTORA E MAURO M.KURY, 2020. PÁG-103
FIGURA 32- - FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUNS DOS
ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA AUTORA. FONTE: AUTORA, 2019. PÁG- 103
FIGURA 33- FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUMAS
DOS ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA AUTORA MOSTRANDO O COTIDIANO DA RUA .
FONTE: AUTORA PÁG- 106
FIGURA 34- DESENHOS DE INDIVIDUOS QUE TRANSITAVAM PELA RUA DO CATETE DURANTE A
PESQUISA. FONTE: AUTORA PÁG- 108
FIGURA 35- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA
RUA DO CATETE .FONTE: AUTORA PÁG- 109
FIGURA 36- MAPEAMENTO PALÁCIO DE MEMÓRIAS PERSONAGENS CATETE. FONTE: AUTORA,
2020. PÁG- 112
FIGURA 37- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA
RUA DO CATETE XARPI E RAPPER DO TTK. FONTE: AUTORA, 2019. PÁG- 119
FIGURA 38- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA
RUA DO CATETE VETERINÁRIA ZACCARIANA E COLÉGIO ZACCARIA. FONTE: AUTORA,
2019. PÁG- 122
FIGURA 39- MURO QUE CERCA O TERRENO DO DETRAN NA RUA DO CATETE. FOTO DA
AUTORA, 2018. PÁG- 131
FIGURA 40- IMAGENS DE ALAGAMENTO NA RUA DO CATETE EM 1928 E EM 2019. FONTE:
JORNAL O GLOBO E ARQUIVO DA CIDADE PÁG- 132
11
Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos
altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma
de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de
zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer
nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu
espaço e os acontecimentos do passado: [...] A cidade se embebe como uma
esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de
Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a
cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão,
escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das
escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada
segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
(CALVINO, 1990, p.14-15)
12
UMA OUTRA ESTÓRIA. REPRESENTAÇÕES DA RUA DO CATETE PELAS
NARRATIVAS DO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’
1. INTRODUÇÃO
13
Para desenvolver a proposta desta dissertação, a busca por uma metodologia de
trabalho que tornasse possível a apreciação dos acontecimentos em ordem não
cronológica, mas experimental, e que abordasse a cidade por uma tessitura de
histórias e memórias, encontrou nas Narrativas um caminho científico.
Tratar da questão das narrativas para interpretar as mudanças que alguns cenários
cariocas vêm passando desde sua colonização, como uma das cidades mais antigas do
Brasil, foi uma escolha difícil. Deste modo, com vários caminhos já definidos por outras
pesquisas no campo da sociologia, da história, da geografia e mesmo da arquitetura,
ao pensar sobre como abordar a caracterização e a compreensão da Rua do Catete, a
ideia de ‘enfocar’ narrativas tornou-se preponderante para efetivar respostas mais
complexas, humanizadoras e críticas sobre esse espaço físico linear e entrecruzante do
bairro do Catete, recorte escolhido.
A narrativa surge, então, dessa “coisa” que ainda pulsa, onde não poderemos voltar ao
evento acontecido, onde só se tem acesso aos vestígios desse evento através de
discursos – que são arquivos móveis. O passado, então, se torna essa virtualidade e se
coloca em uma condição de olhar para diversos vestígios e tentar dialogar com tal
1
Desde muito cedo em sua pesquisa, uma característica da memória chamou a atenção de Freud. Em 1899
Freud escreveu um artigo ao qual chamou de Lembranças Encobridoras (Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. III; Ed. Imago, R.J.). Estes registros muito nítidos de fatos
aparentemente irrelevantes, quando analisados, revelam experiências reprimidas da infância.
14
discurso (DELEUZE, Gilles. 1996) onde o passado ainda pulsa e é a matéria prima. O
‘contador de estórias’, que escreve a narrativa sobre essa matéria prima, nunca vai
poder voltar ao evento, ele só tem acesso a vestígios desse evento que vem através de
discursos. O passado então se torna uma virtualidade – em seu caráter máximo, o de
possibilidade.
O principal conceito utilizado para possibilitar essa pesquisa foi, então, o “Palácio de
Memórias” também conhecido como Método de Loci (lugar, em latim),
constantemente utilizado pela maioria dos oradores desde a Antiguidade para
executar seus discursos sem nenhum tipo de apoio, usando apenas a memória. A
escolha pela utilização deste estudo se deu através de pesquisa (Psychological Science,
2003) na qual se constatou que menos de dez pessoas no mundo poderiam memorizar
mais de 20.000 dígitos do numero PI, mas muitas pessoas já interpretaram Hamlet e
memorizam todas as suas falas, que contam quase 50.000 letras, comprovando que ao
associar coisas ou fatos de que queremos lembrar a uma estrutura
física/arquitetônica/material que já vimos, fica mais fácil o ato de recordar através da
criação de narrativas.
Tal estudo também comprovou que toda memória é fortalecida por histórias, e que
nossos cérebros prestam mais atenção a informações que chegam a nós em forma de
narrativas. Em outro estudo liderado pelos pesquisadores Gordon, Bower e Clark 2
solicitou-se que 24 pessoas memorizassem doze listas de dez palavras. Metade
estudou e ensaiou a lista porem as pessoas lembravam em média de 13% das palavras,
a outra metade que transformava as palavras em uma narrativa inventada em suas
mentes, lembrava-se de 93% das palavras.
2
Gordon H, Bower and Michael C. Clark, Narrative stories as mediators for serial learning. Stanford
University, Stanford, Calf.94305
15
Sendo assim utilizamos como ponto central para esta pesquisa o método do ‘Palácio
de Memórias’, que foi desenvolvido através do Método de Loci onde personagens
foram escolhidos a construírem seus ‘Palácio de Memórias’ através dos lugares
mencionados durante suas entrevistas e onde haviam centrado suas lembranças: em
igrejas, edifícios, escolas ou no próprio Palácio do Catete.
Para Moscovici (2010) não existe separação entre o universo interno do indivíduo e
seu universo externo, pois ambos se completam. O que a mente do indivíduo
consegue identificar se relaciona aos aspectos físicos e o pensamento antes imaginário
se transfere para a realidade transformando assim o que é estranho em familiar.
Assim, relembrando que esta pesquisa se preocupa, antes, com o papel da arquitetura
em alicerçar tais narrativas possíveis para uma cidade, é possível afirmar que toda
narrativa precisa de uma base espacial – assim como a memória (JODELET, 2002).
16
Em suas notáveis teses “Sobre o conceito da historia”, Walter Benjamin (1985) declara
que articular historicamente o passado não significa conhece-lo exatamente como o
mesmo ocorreu e sim significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila em
um instante de perigo.3
3
BENJAMIN, W. As Teses sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas, Vol. 1,. São Paulo, Brasiliense,
1985.
17
narrativas recolhidas in loco na Rua do Catete e onde a narrativa, com sua capacidade
de classificar o discordante e homogeneizar o heterogêneo, possibilita configurar e
reconfigurar criativamente episódios dispersos em um todo coerente.
O Rio de Janeiro, como antiga e estratégica capital do Brasil, além de palco de variadas
ações políticas e econômicas e imagem de desenvolvimento nacional no início do
século XX, tem em sua arquitetura um símbolo de evolução e atuação comprometida
com as modificações urbanas, tendo recentemente recebido o título de Capital
Mundial da Arquitetura pela Unesco (2019).4
4
https://nacoesunidas.org/unesco-declara-rio-de-janeiro-a-1a-capital-mundial-arquitetura/
18
A Rua do Catete também sofreu com a destruição da passagem com a passagem do
metrô no final dos anos 1970, com inúmeras desapropriações de imóveis nas áreas das
obras que cortaram ruas da cidade e castigaram os moradores durante sua execução.
O bairro do Catete foi um dos bairros que sofreu uma grande transformação em razão
das mudanças e interdições que as obras trouxeram para o ambiente. Deste modo, os
caminhos para estudar tal recorte espacial e temporal provem onde a história é uma
ação que se articula com a memória.
No texto acima, Le Goff (2016) cita Ricoeur para explicar o paradoxo entre história e
memória a partir da questão de onde a História se situa, se a mesma se encontra no
limite do fato ou no limite da teoria ou ainda na compreensão da estrutura. É
interessante perceber que, para Ricoeur (2007) a historicidade é muito importante em
qualquer um dos extremos, no fato, no fenômeno em um momento especifico ou na
estrutura por si só despida da ação humana. O momento de capturar a história é
quando esta se aproxima dos extremos desses conceitos sem, entretanto, atingi-los.
Neste sentido, Ricouer (2007) discute essas fronteiras, tratando assim o que seria a
consciência, em “A Memória, a História e o Esquecimento”: memória, para o autor,
seria maneira de se manter vivo um evento ou um tempo, sendo fixada e construída a
partir do aporte emocional. Muitas vezes um fato pode ser deturpado pela lembrança,
enquanto ação de uma representação, como mencionamos acima. Apesar de ser o
combustível da história, a memória não deve ser tomada como um testemunho
documental, da mesma forma que documentos também não são neutros. A ideia de
19
narrativas que surgem de diversas fontes (documental, pessoal e ‘estrangeira’ – o
Outro) traz então o papel representacional que a memória pode trabalhar, fundando
um contexto mais refinado de interpretações.
Na busca pela recuperação dessas memórias urbanas, o passado tende a ser recriado
de forma a refletir nítida e metaforicamente os desejos do presente. Esta recriação
passa por interferências de ordem subjetiva e torna-se, para nós, um objeto de análise
sensitiva. Trata-se de uma construção, e como tal precisa passar por algum viés de
abordagem.
Podemos lembrar o passado não apenas como uma espécie de culto ao acontecido.
Theodor Adorno aborda a exigência de não esquecimento não como um apelo a
comemorações solenes (apesar de ser um judeu sobrevivente), e sim como uma
exigência de análise esclarecedora que deveria produzir instrumentos de análise para
melhor esclarecer o presente e desconstruir histórias fixadas.
Levando em consideração que a Rua do Catete não possui um relato coeso sobre ‘seu
tempo’ e que, mesmo com toda a sua bagagem histórica, praticamente não se escreve
muito sobre ela após o esvaziamento de poder, não há muita bibliografia no campo da
arquitetura sobre esse espaço físico tão importante historicamente para o Rio de
Janeiro, e neste caminho pretendemos trilhar.
Desta forma, a pesquisa tem como objetivo geral analisar as mudanças de cenário da
Rua do Catete através de narrativas proporcionadas por personagens em relação à
vivência do espaço pelo ‘Palácio de Memórias’, de modo a evidenciar um cenário
atual complexo e reforçar a conexão memória/espaço físico.
20
delinear a evolução urbana da Rua do Catete no recorte temporal da pesquisa,
de modo a contemplar o viés fenomenológico e cultural possível do espaço
físico;
21
Após a introdução entraremos no segundo capítulo onde será explicado o recorte
físico e temporal utilizado para o estudo da Rua do Catete; serão tratados pontos
importantes da sua história que interferiram na evolução da Rua, como a saída da sede
da República e os impactos do espaço físico das obras do Metrô.
22
A proposta deste estudo, após toda a introdução, é que uma “Outra Estória” denote, a
partir de uma nova perspectiva, a visão daqueles que viveram diferentes estórias e
podem, assim, contar sobre uma (nova) cidade, feita de muitas arquiteturas.
Originalmente, o Caminho do Catete era utilizado por índios para buscar água no braço
esquerdo do rio Carioca. Com a ocupação portuguesa, o caminho passou a interligar
engenhos de açúcar ao restante da cidade.
A história da Rua Catete remonta ao início do século XVIII quando a região era ocupada
por chácaras e olarias. Foi nessa época que o trecho passou a ser chamado Estrada do
Catete, essa que deixou para trás más lembranças, por que ao ser descrito a D. João VI
por padre Perereca, o eclesiástico não usou nem meia página em sua descrição:
A estrada do Catete é larga, e por um e outro lado poucas casas tem à frente
dela, sendo quase toda bordada de cercas das chácaras, que ocupam o
terreno, por onde passa a dita estrada, mas sobre os outeiros até a praia de
Botafogo, inclusivemente se veem muitas e boas casas de campo.(APUD
GERSON, 2013, p. 293)
23
colocou o palácio no meio do parque e sim na estranha posição que se encontra, nas
esquinas das Ruas do Catete com Silveira Martins.
FIGURA 1 – “O IMPONENTE PALÁCIO DO CATETE, ANTIGO PALÁCIO DE NOVA FRIBURGO. AO FUNDO NA ESQUINA COM A RUA
SILVEIRA MARTINS, VÊ-SE O PRÉDIO ECLÉTICO DA ESCOLA PÚBLICA RODRIGUES ALVES DEMOLIDO PELAS OBRAS DO METRÔ.
ENTRE POVO, MILITARES E POSSÍVEIS AUTORIDADES DESTACAM-SE, GARBOSA, EM PRIMEIRO PLANO, UMA GALINHA” (PAG.
295).
Fonte: GERSON, Brasil. Histórias das ruas do Rio. 6. ed. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2013.
24
FIGURA 2 – RUA DO CATETE, EM 24/01/1906. OBRA DE INSTALAÇÃO DOS TRILHOS DOS BONDES. DESTAQUE PARA O
PALÁCIO DO CATETE - HOJE MUSEU DA REPÚBLICA. FOTO DE AUGUSTO MALTA
Fonte:Acervo (IMS)
25
O Rio de Janeiro, Capital da República (1897-1960), reuniu no bairro do Catete o centro
das decisões do país, o que, por conseguinte, colocava seu entorno como um dos mais
atrativos do país à época. Sua ocupação ocorreu de modo gradativo, reunindo diversas
tipologias de edificação e de influências estilísticas. Posteriormente, com a
transferência da capital para Brasília, o bairro sofreu marcado esvaziamento.
5
“Na memória dos cariocas, ele não desfruta do mesmo prestígio de Pereira Passos ou Pedro Ernesto. Mas,
justiça seja feita: o paulista Antônio Prado Júnior foi o primeiro governante do Rio a patrocinar um plano-
diretor para o então Distrito Federal. Sua gestão, entre 16 de novembro de 1926 e 24 de outubro de 1930,
foi marcada pela abertura de ruas, calçamento, mudanças de alinhamento, obras de saneamento e
construção de escolas. Filho de uma família tradicional, nomeado pelo amigo e presidente da República
Washington Luís, Prado Júnior, que não tinha curso superior, contratou o urbanista francês Alfred Agache
para elaborar o Plano de Remodelação, Extensão e Embelezamento da Cidade. O projeto, que ficaria
conhecido como Plano Agache, pretendia organizar o crescimento do Rio, determinando áreas de expansão,
prevendo a criação de redes de serviço e tratando da instalação da infraestrutura urbana. O trabalho do
urbanista nunca foi inteiramente aplicado no Rio, embora tenha servido de base para meia dúzia de planos
diretores.” (Acervo Jornal O Globo, Publicado: 17/10/13 - 13h 01min)
26
FIGURA 4 - NA FOTOS ACIMA, VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO NA ESQUINA DA
RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ.
Foto da AUTORA, 2018.
FIGURA5 – LOCALIZAÇÃO EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO NA ESQUINA DA RUA
ALMIRANTE TAMANDARÉ.
Fonte: Indicação da Autora sobre Google Maps
27
negativa que é a exclusão, e uma fragmentação positiva que permite a multiplicidade
de identidades, sendo essa esta última a que se buscou trabalhar no Catete no ano de
1996 durante a execução do projeto Rio Cidade.
Com projeto de Jorge Mario Jáuregui6, a intervenção do projeto Rio Cidade (1996) na
Rua do Catete consistiu na reformulação do eixo viário/comercial/histórico que
conecta o centro da cidade com os bairros da zona sul, o que resultou em
transformações urbanísticas como a modificação do traçado e dos níveis das ruas e a
criação de praças. As transformações infraestruturais demandaram obras importantes
de drenagem (embora a Rua do Catete ainda hoje alague em alguns trechos em dias de
fortes chuvas), novo mobiliário urbano e plantio de renovação das áreas de jardins.
O projeto buscou planejar uma conexão entre o “lugar histórico” e o “lugar presente”,
onde o histórico registrado nos monumentos e nos sobrados recebeu tratamento de
materiais, equipamentos e iluminação diferenciados do resto, já o atual ficou
registrado na sequência de singularidades do bairro.
A Praça José de Alencar foi reformulada, a estátua do escritor que dá nome à praça,
sentado em uma cadeira no centro de uma rótula, é semelhante à que existia no local
no início do século. A rótula fica no início da Rua do Catete, dividindo os bairros do
Catete, Laranjeiras e Flamengo.
6
Jorge Mario Jáuregui é um "carioca" de origem Argentina. Entre seus principais trabalhos, todos na cidade
do Rio de Janeiro, estão a Requalificação Urbana da Rua do Catete (programa Rio-Cidade); o Mobiliário
Urbano para a zona sul e a Urbanização de mais de vinte favelas em diferentes locais da cidade (Programa
Favela-Bairro).
28
FIGURA 6 – PRACA JOSE DE ALENCAR 1906, FOTO DE AUGUSTO MALTA.
Fonte: Acervo (IMS)
29
O Largo do Machado também foi reformulado, tendo sido realizada a restauração do
projeto paisagístico de Burle Marx, e previsto o estacionamento subterrâneo (não
concretizado) e a elevação do nível da Rua que dá continuação a Rua Gago Coutinho, a
agrupando ao domínio dos pedestres.
Entre as Ruas Correa Dutra e Pedro Américo, onde se localiza a área histórica do bairro
com os sobrados do século XIX e o Palácio do Catete, foi feito um novo traçado da via
onde as calçadas receberam pisos de granito semelhantes ao já existentes na calcada
do palácio. Essa mesma calçada foi alargada com o intuito de criar uma praça 7 que, se
concretizada, seria usada como um lugar para extensão das atividades do centro
cultural do Museu da República.
Encontramos alguns desajustes na nova articulação urbana, como a praça8 surgida pela
demolição da escola Rodrigues Alves, vizinha do Palácio da República, onde foi
construída a Praça Fernando Pessoa, mais conhecida como Praça do Poeta.
Apesar da Rua do Catete ‘respirar história’, o projeto do Rio Cidade (1996) deixa claro
que não buscou reconstruir o passado, não buscou utilizar a memória coletiva como
7
Esta praça acabou não vingando, pois elaborada sem mobiliário urbano utilizável pela população, se
tornou somente um local de passagem e saída do metrô. Neste mesmo conjunto da reforma, a Rua do
Catete ainda possui duas “praças” que não deram certo, uma delas é o espaço localizado na entrada da Vila
Elite, vizinha ao antigo prédio da UNE; o espaço foi revitalizado e pensado em torno de uma grande boca de
ventilação do metrô, mas o mesmo não possui qualquer relação com as atividades locais ou com a escala do
corpo humano, estando em estado de abandono.
8
Acreditamos que a morfologia urbana não seja de uma praça e sim um lugar com uma saída do metrô, sem
mobiliário urbano, sem dimensionamento e sem uso cotidiano. No ano de 2019, encontrava-se cercada por
grades.
30
referência e, sim, resolver alguns lugares remanescentes da obra do metrô e da Rua do
Catete, o que fica claro nas palavras do arquiteto Jaurégui quando diz que “o projeto
trata-se de uma memória apontando para o futuro, para a práxis e não para o
passado” (JAURÉGUI,1996)
Apesar das inúmeras mudanças que a Rua do Catete passou após os planos
urbanísticos durante os anos, uma das suas maiores mudanças de identidade não se
deu por culpa de nenhum desses planos e sim pelo esvaziamento econômico que
ocorreu após a saída da sede da República do Palácio do Catete, como veremos no
capítulo a seguir.
A mudança da capital do Brasil para Brasília não ocorreu de uma hora para outra, o
primeiro a ter um pensamento mais concreto sobre Brasília veio a ser Jose Hipólito da
Costa9 que, em 1813, sugeriu que a capital brasileira fosse transferida para algum
lugar no interior do Brasil, pois segundo ele, seguindo o que já havia dito o frei Vicente
do Salvador em 1627, os Portugueses e depois os brasileiros viviam como caranguejos,
só na costa, e quase todo o vasto interior permanecia desconhecido.
Segundo esta visão era necessário interiorizar ação brasileira no coração do seu
próprio território. José Bonifácio de Andrade e Silva10 concordava com essa ideia e não
apenas sugeriu que a capital fosse levada de fato para o interior do país, como a
batizou de Brasília. Quando a primeira constituição de 1824 é redigida, registra-se na
mesma que a capital do país deveria ir para o interior do Brasil.
9
Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774 -1823) foi um jornalista, maçom e diplomata
brasileiro, patrono da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras.
10
José Bonifácio de Andrada e Silva Santos( 1763-1838) foi um naturalista, estadista e poeta luso-brasileiro,
conhecido pelo epíteto de Patriarca da Independência por seu papel decisivo na Independência do Brasil.
31
uma expedição que demarcou o local da futura capital entre as lagoas Feia e Formosa,
no Planalto Central, onde ele acreditava que deveria ser erguida a capital.
Sendo assim Juscelino Kubitschek reacende a ideia que já vinha sendo arrastada havia
mais de cem anos, faz de Brasília uma promessa de governo reafirmada logo após sua
posse, em janeiro de 1956.
Segundo Vidal (2012) o operário que conduz meticulosamente a cerimônia dessa saída
é o próprio presidente Juscelino Kubitscheck. Se concordarmos com Merleau-Ponty
(1991) que a Política é “uma ação que se inventa”, a de Juscelino Kubitscheck é a
totalizada elucidação dessa afirmativa. Com sua candidatura lançada em novembro de
1954 pelo PSD, Juscelino Kubitscheck impôs já no início de sua campanha um estilo de
procedimentos que rompiam com os dos seus antecessores, multiplicando em
especial, o contato direto com a população.
32
FIGURA 9 – NOVA CAPITAL. O PRESIDENTE JUSCELINO KUBITSCHEK (AO CENTRO) COM UMA DAS MAQUETES DE BRASÍLIA
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/21-de-abril-de-1960-dia-em-que-rio-de-
janeiro-deixou-de-ser-capital-federal-8898992#ixzz5mKPhfEKK Acesso em: 13 jan. 2019.
É mais que evidente que esse dia especial da transferência da capital para Brasília não
foi assimilado com facilidade, mesmo pelas testemunhas mais próximas. À distância
pode até parecer que o passado está enterrado, exaurido pela história, mas na
realidade é outra na memória de quem a viveu.
33
É como se um mecanismo maligno escamoteasse o acontecimento no
instante em que ele acaba de mostrar o rosto, como se a historia exercesse
censura nos dramas de que ela é feita , como se gostasse de se esconder, só
se entreabrisse para a verdade em breves momentos de confusão e no
restante do tempo se esforçasse para frustar as “superações”, em
reproduzir as fórmulas e os papéis do repertório e, em suma, nos persuadir
de que nada se passa. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 1).
FIGURA 10 – SEGUIDO DA FAMÍLIA E DOS MEMBROS DO GOVERNO, O PRESIDENTE DESCE OS DEGRAUS DO PALÁCIO DO
CATETE. DIVULGADA EM TODA A IMPRENSA, A IMAGEM VIRIA A SER A REPRESENTAÇÃO OFICIAL DA PARTIDA DO PODER.
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/inauguracao-de-brasilia-encerra-ciclo-de-dois-
seculos-de-poder-do-rio-de-janeiro-8929190 Acesso em: 13 jan. 2019.
34
Em 1960, a Rua do Catete, que antes era um lugar de pausa, se transformou em um
local de passagem e, apesar de seu forte comércio, ocorre um grande esvaziamento. A
população de classe média alta que ali vivia buscou lugares de maior poder aquisitivo
para habitar, os hotéis que recebiam grandes autoridades sobreviveram por um tempo
transformados em pensões, e fechando as portas com o tempo. A população de rua
tomou conta do bairro e a Rua do Catete, mesmo tendo todo seu glorioso passado,
acabou esquecida, mantendo somente seu estado simbólico que é sustentado pela
existência do Museu da República e as lembranças de quem viveu esses
acontecimentos.
FIGURA 11– “VAI, VAI PARA A SUA BRASÍLIA DE UMA VEZ, INGRATO... MAS DOR DE BARRIGA NÃO DÁ UMA VEZ SÓ”
Fonte: Diário da Noite, 20 de Abril de 1960. Acervo fundação Biblioteca Nacional – Brasil
35
2.2 A PASSAGEM DO METRÔ / IMPACTOS NO ESPAÇO FÍSICO
Apesar de os estudos para sua implantação datarem de 1928, o metrô chegou ao Rio
de Janeiro no final dos anos 1970. Se compararmos com Estados Unidos e Europa,
podemos dizer que chegou com mais ou menos cinco décadas de atraso. Embora o
governo tenha tentado buscar auxílio do metrô de Paris e discutido sobre técnicas de
projeto, a sua inauguração só ocorreu em 5 de março de 1979.
Com inúmeras desapropriações de imóveis nas áreas do metrô, as obras cortaram ruas
da cidade e castigaram os moradores durante sua execução. O primeiro trecho
inaugurado, da Glória à Praça Onze, tinha 5,1 quilômetros e cinco estações e foi
inaugurado pelo presidente Ernesto Geisel, a dez dias de deixar o governo. Em 1980
ocorre a inauguração das estações Uruguaiana e Estácio, seguindo da estação Carioca
em Janeiro do ano seguinte. No mesmo ano foram inauguradas ainda as estações
Catete, Flamengo e Botafogo, e em novembro foi inaugurada a Linha 2, apenas com as
estações São Cristóvão e Maracanã. Em dezembro, foi a vez da estação Largo do
Machado.
FIGURA 12- O PRESIDENTE GEISEL, O GOVERNADOR DO RIO, ALMIRANTE FARIA LIMA, O GENERAL FIGUEIREDO E NOEL
ALMEIDA (PRESIDENTE DO METRÔ) INAUGURAM TRECHO GLÓRIA-PRAÇA ONZE 5/3/79
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/com-50-anos-de-atraso-rio-ganhou-metro-em-
marco-de-1979-inaugurado-por-geisel-12092759#ixzz5mMJKhD3g ·.
O bairro do Catete foi um dos bairros que sofreu uma grande transformação em razão
das mudanças e interdições que as obras trouxeram para o ambiente. O tecido urbano
36
que se encontrava consolidado desde o meio do século XX, após passar por mudanças
desde a gestão do prefeito Pereira Passos, se esvaeceu. Entre as principais mudanças,
figura a demolição de grande parte dos sobrados que, durante o Brasil Colônia e o
Império, foram residências das elites, grandes referências do bairro e da cidade, como
a garagem dos bondes, o Cinema São Luiz e o Café Lamas, que faziam parte do casario
do lado ímpar da rua, sem esquecer a Escola Rodrigues Alves, vizinha do Palácio do
Catete, também colocada abaixo pelas obras do metrô.
Segundo Gerson (2013, p.298) um turista americano, ao ver o centro do Rio tão cheio
de buracos, disse ironicamente: “Que cidade maravilhosa será esta quando ficar
pronta!” sendo que as obras do metrô nem haviam começado. Se ele voltasse em 1975
e passasse pela Avenida Presidente Vargas, pela Uruguaiana, pela Treze de Maio, pela
Cinelândia, pela Glória, pela Rua do Catete, por certo que sua pergunta seria outra:
“Mas que bombardeio esta cidade sofreu, se nenhum jornal de Nova York deu notícias
deles?”
37
Durante o dia, o bairro do Catete era considerado insuportável pelos moradores,
comerciantes e transeuntes, mas à noite para os moradores a situação era pior. Um
morador antigo, vamos chamá-lo de o Viúvo do Bonde, 82 anos de vida e 70 anos de
Catete. lembra que: “Não adiantava reclamar, eles paravam o barulho por alguns dias,
mas depois de um tempo as máquinas voltavam a trabalhar e faziam barulho 24 horas,
não existia nenhum respeito pela hora do sono, entravam madruga adentro. Era uma
loucura, não sei como a gente aguentou.”
FIGURA 13- A FOTO ACIMA MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DA RUA SILVEIRA MARTINS EM FRENTE AO PALÁCIO DO
CATETE, PODEMOS NOTAR O TERRENO VAZIO ONDE SE ENCONTRAVA ANTES A ESCOLA RODRIGUES ALVES.
Fonte: http://www.espengenharia.com/novo/wpcontent/uploads/2017/07/01-9.jpg
38
esquina da Rua Silveira Martins ser demolida, ela foi construída pelo
prefeito Perreira Passos, era um primor de colégio, funcionava como
dependência burocrática do Palácio.”
FIGURA 14- A FOTO MOSTRA A ESCOLA RODRIGUES ALVES, NA ESQUINA DA RUA DO CATETE COM A RUA SILVEIRA
MARTINS. O IMÓVEL FOI DEMOLIDO DURANTE AS OBRAS DO METRÔ NA DÉCADA DE 1970.
Fonte: http://luizd.rio.fotoblog.uol.com.br/images/photo20150826065118.jpg
Ainda em seu depoimento, o Viúvo do Bonde também descreve a situação que passou
na época da construção do metrô: “Eu morava no prédio 101 da Rua do Catete e
lembro muito bem das explosões, um dia estava em casa e senti um barulho enorme
no quarto onde meus filhos brincavam, sai correndo e vi o quarto cheio de pedras e o
vidro da janela quebrado. O metrô tinha acabado de fazer mais uma explosão. O vidro
ficou lá, ninguém nunca apareceu para consertar.”
Os depoimentos são quase sempre pessoais. Segundo Ricoeur (2007, p. 107) “ao se
lembrar de algo, alguém se lembra de si”. Este é um traço que reforça o caráter
essencialmente privado e radicalmente singular da memória: minhas lembranças não
são as suas, como veremos no capítulo seguinte.
39
estavam satisfeitos com a situação e reclamavam da longa jornada de trabalho, que se
estendia ate o período noturno. Em um dos tapumes, um deles escreve um suposto
pedido de desculpa aos moradores através de um recado: “Gente boa, não me olhe de
cara feia. O barulho do meu martelão arrebenta mais meu coração que o seu. E eu sou
obrigado a pegar nele”. Embaixo assinava Gilson Paraíba.
FIGURA 15– NO TAPUME UM PEDIDO DE DESCULPAS DE UM OPERÁRIO. E A ADVERTÊNCIA DE QUE NÃO PODE FAZER ZOADA.
Fonte:
https://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&pagina=1&ordenacaoData=relevancia
&allwords=metro+catete&anyword=&noword=&exactword=
40
FIGURA 16– ÁREA LOCALIZADA NA RUA DO CATETE NA ALTURA DA PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR.
Fonte: http://www.rioquepassou.com.br/2009/04/01/largo-do-machado-obras-do-metro/
FIGURA 17– A IMAGEM MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DO LARGO DO MACHADO, AO FUNDO VEMOS O QUE
RESTOU DO CINEMA SÃO LUIZ.
Fonte: http://www.rioquepassou.com.br/2009/04/01/largo-do-machado-obras-do-metro/
41
FIGURA 18 – RUA DO CATETE, 1976, DURANTE AS OBRAS DO METRÔ NA ALTURA DA RUA FERREIRA VIANA.
FONTE: ARQUIVO NACIONAL
O crescimento das cidades nos mostra que a questão da preservação está intimamente
relacionada a períodos específicos. Se, na ocasião da demolição do Palácio Monroe
(1975) a conservação se baseava em juízo arbitrário a respeito de beleza e do quanto o
objeto do tombamento era “bom” ou “ruim”, recentemente a conservação passou a
ter outros aspectos levados em consideração, como o afeto, a interpretação
construída e a relação com as pessoas.
Arrasamentos, modificações de ruas e avenidas, tudo isso tem a ver com ideias que
antes não eram consideradas, como imanência, permanência e memória.
Diferentemente da história, a memória é flexível e trabalha com as condicionantes
locais e suas sensações. A memória é uma ação da retórica, está permanentemente
em construção e reconstrução de acordo com as espacialidades em que se ancora
como fundamentaremos mais adiante.
42
2.3. UMA RUA E SEUS PERSONAGENS
O que é contar uma história? Ou o que seria contar A história? Por que temos
necessidade, mas ao mesmo tempo temos muitas vezes uma insuficiência de contar?
Qual seria esse prazer que Platão denunciava como perigoso que seria o ato de escutar
histórias?
11
Canto IX, verso 368.
43
Segundo Gagnebin (2006), Ulisses demonstra desde o início a luta para voltar a Ítaca
que é, antes de tudo, uma luta para manter a memória, para manter a palavra, as
histórias, os cantos que ajudam os homens a se lembrarem do passado e, também, a
não se esquecerem do futuro. Mostra também que pode haver, por meio da narração
e da auto narração em particular, uma autoconstrução do sujeito que não se confunde
necessariamente com a renúncia ao próprio desejo.
Nietzsche (2001) nos fala que a consciência é a última fase da evolução do sistema
orgânico e, por consequência, também aquilo que há de menos acabado e de menos
forte neste sistema. É do consciente que provém uma multiplicidade de enganos que
fazem com que um animal ou um homem pereçam mais cedo do que seria necessário.
Segundo Freud (1976) a consciência é a parte do superego12 que inclui informações
12
O superego segundo Freud e sua teoria psicanalítica da personalidade, é o componente da
personalidade composto por nossos ideais internalizados que adquirimos com nossos pais e a
sociedade. Ele trabalha para suprimir os impulsos do id e tenta forçar o ego a agir moralmente, e não se
comportar de forma realista. Na teoria de Freud de desenvolvimento psicossexual, o superego é o
44
sobre as coisas que são vistas como ruins pelos pela sociedade e/ou pelas percepções
de algum indivíduo, fato que frequentemente se torna regra para uma conduta. A
conduta, desta forma, pode se tornar uma lente pela qual o mundo passa a ser
visualizado.
último componente da personalidade a se desenvolver. O superego para Freud pode ser dividido em
dois componentes: o ideal de ego e a consciência. O ego ideal é composto de todas as nossas regras de
bom comportamento. Fonte: Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980/1923, v. 19, p. 23-83.
45
identificados e analisados através da leitura da relação de cada um com o local através
de entrevistas e etnografia urbana.
Toda narrativa é a busca de um objetivo, e o que buscamos com isso é a leitura da Rua
do Catete nos dias de hoje através da pesquisa das narrativas de acontecimentos
passados. A narração tem uma parcela importante na construção do sujeito e essa
importância sempre foi reconhecida pela rememoração, a retomada salvadora pela
palavra de um passado que sem isso desapareceria no silêncio do esquecimento.
A história do Catete sempre foi contada nos livros pela visão dos mais abastados, dos
barões que moravam em suas chácaras e das grandes autoridades do tempo de
republica. Pouco se cita da parte mais importante da vida da Rua que eram seus
moradores, seu comércio e suas instituições de ensino. Benjamin (2009) defendia que
a história narrada nos livros estaria apenas confirmando a visão dos vencedores e sua
proposta é a de tecer uma narrativa histórica inspirada na crônica cotidiana, que busca
valorizar os pequenos e os vencidos.
Porem não se deve acreditar que os personagens sejam pequenos ou vencidos, todos
têm histórias de muita vitória e contam como passaram por inúmeros acontecimentos
que presenciaram na Rua do Catete. É com essas histórias dos “vencidos” que iremos
construir uma narrativa mostrando essa outra “estória” da Rua através da união das
narrativas desses personagens.
46
3.NARRATIVAS DE MEMÓRIA DA CIDADE: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.
As pessoas sempre falam como se houvesse uma linha bem definida entre
imaginação e a memória, mas não é assim, ao menos não para mim. Eu lembro de
coisas que imaginei e imagino coisas de que me lembro. (GREEN, 2017, pág.253).
A memória é uma questão que vem sendo estudada há muito tempo e que foi
interpretada de maneiras diferentes, pois existem vários conceitos que se agrupam ao
redor do tema memória.
Nietzsche já descrevia no fim do século XIX essas transformações culturais dos usos de
valor da memória, denunciava a acumulação obsessiva e a sabedoria vazia do
historicismo cujo maior efeito não consistia em uma conservação do passado, mas sim
em uma paralisia do presente.
47
Na filosofia tradicional, desde Platão, se tentou valorizar o aspecto mais consciente do
lembrar, os estudiosos mais ligados à filosofia e a psicologia tentaram decifrar o que
era o ato de lembrar, porém não deram muita importância a outra coisa que é
imprescindível, pois quando se lembra de algum fato, este é afetado por outras
lembranças que o indivíduo não necessariamente escolhe, essa mistura de passivo e
ativo atrapalha.
Gagnebin (2006) nos leva à reflexão sobre como a memória utiliza tão frequentemente
a imagem e o conceito de rastro. Segundo a autora, a memória vive essa tensão entre
presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido,
mas também presença do passado desaparecido que faz sua incursão em um presente
passageiro. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da mesma e do
rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente todo o
campo metafórico e semântico da escrita de Platão e Derrida.
48
passado, e constituindo aquilo a que chamamos presente por intermédio
dessa relação mesma com o que não é ele próprio. (DERRIDA, 1972 , p.45).
Esse esvaziamento, que Derrida (op. cit.) trabalha na questão linguística da Filosofia e
da Escritura, é problematizado também em relação à arquitetura. Uma vez que um
discurso é uma expressão, e a imagem se expressa como um símbolo, notamos aqui
um dado essencial: a imagem indica necessariamente o primado da enunciação, indica
que a linguagem tem lugar. Mas este dizer, antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre
si mesmo, é o movimento que expõe a presença de uma linguagem que impõe ao
mundo uma ordem, pois a enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir
da realização da presença do enunciador. Assim, seja pela oralidade ou pelo mundo
simbólico, ali está o enunciador.
Não por acaso, encontramos uma temática similar em outros autores franceses da
época, como Deleuze (Différence et répétition) e Lyotard (Le différend). Por isso,
Derrida pode dizer que o movimento da différence não é objeto de um sujeito
transcendental, ele produz toda e qualquer figura. O sujeito é o que está no lugar da
différence como movimento em direção à construção de uma memória global.
Ricoeur (2007) nos apresenta que os escritos platônicos relativos à memória dizem
respeito primeiramente à ausência de referência expressa à marca distintiva da
memória nas quais se significam as afecções do corpo e da alma às quais a lembrança
está ligada.
49
de não posicionais, porem não possuímos nada melhor que a memória para significar
que algo aconteceu antes que declarássemos nos lembrar dele. O testemunho
constitui a estrutura fundamental de transição entre memória e a história.
Devemos sim lembrar o passado, mas não lembrar por lembrar, numa espécie de culto
ao mesmo. No texto de Adorno, judeu e sobrevivente, a exigência de não
esquecimento não é um apelo a comemorações solenes; é, muito mais, uma exigência
de análise esclarecedora que deveria produzir instrumentos de análise para melhor
esclarecer o presente.
No plano fenomenológico, no qual nos situamos aqui, dizemos que nos lembramos
daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância
particular. Mas abre-se um leque de casos típicos entre os dois extremos das
singularidades dos acontecimentos e das generalidades, as quais podemos denominar
“estado das coisas”. Os fenômenos de memória tão próximos do que somos opõem,
mais que outros, a mais obstinada resistência à hubris da reflexão total. O primeiro par
de oposições é constituído pela dupla hábito e memória, que constituem os dois polos
de uma série contínua de fenômenos mnemônicos. (RICOEUR, 2007, p.43 e 44)
Segundo Ricoeur (2007) um passado reconhecido tende a se fazer valer como passado
percebido. Disso surge o estranho destino do reconhecimento, de poder ser tratado no
quadro da fenomenologia da memória e no da percepção.
50
atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se e, acima de tudo, habitar. Sendo
assim, as coisas que são lembradas são inerentemente associadas a lugares e não é por
acaso que dizemos sobre algo que ocorreu que ele teve lugar. O caráter coletivo da
memória traz os valores pressupostos pela comunidade, onde o tempo e espaço
acontecem. Quando se avolumam comentários acerca de fatos do passado, isso vira
um objeto edificado. Tal fenômeno relaciona-se àquilo que Pierre Nora postula em
seus escritores sobre Lugares de Memória: “os lugares de memória não são aqueles
dos quais nos lembramos, mas lá onde a memória trabalha” (NORA,1997,p.18).
O ato de habitar constitui a mais forte ligação humana entre momento e lugar. Os
lugares habitados são por excelência memoráveis. Por estar a lembrança tão ligada a
eles, a memória afirmativa se entretém em evocá-los e descrevê-los. Quanto aos
deslocamentos, os lugares que são percorridos servem de reminders aos episódios que
ali ocorreram, são eles que vão nos parecer hospitaleiros ou não.
51
de Memórias” que abordaremos na próxima seção, e, que explicaremos e
apresentaremos o método criado e adaptado para essa pesquisa.
O que seria contar uma história, ou o que é contar a história? O que isso significa? Para
que serve? Por que essa necessidade, mas também muitas vezes essa incapacidade de
narrar?
A resposta para essas perguntas define a questão que nos envolve e nos mostra a
importância da narração para construção do indivíduo. Essa importância sempre foi
reconhecida como a da rememoração, da retomada pela palavra de um passado que
se apagaria no silêncio e no esquecimento.
Segundo Gagnebin (2007), devemos partir da distinção entre Erfahrung e Erlebnis, que
podemos traduzir, respectivamente, por experiência e vivência ou experiência vivida.
O primeiro conceito, Erfahrung, é o mais antigo; ele remete no seu núcleo etimológico
(fahren, viajar, atravessar um país) às errâncias e provações de Ulisses, esse primeiro
viajante de nossa tradição ocidental. Se a Odisseia pode ser tida como um paradigma
do caminhar da vida e do pensamento, ela também é o modelo de uma narração bem
sucedida, aquela de Homero e, sobretudo, a do próprio Ulisses que conta suas
aventuras, nos cantos centrais do poema, a seus anfitriões na ilha da Feácia. Essa cena
demonstra não só a aptidão narrativa do herói, mas, também, a vontade, o desejo de
ouvir histórias dos seus ouvintes. Eles preferem passar uma noite em branco a perder
52
essas belas histórias. E Ulisses, por sua vez, aceita de bom grado postergar sua partida
para Ítaca e continuar narrando durante vários dias.
Da inserção entre passado e presente podem surgir condições que apontam para
outras modalidades de experiência. Nesse sentido, se há um laço entre os declínios da
Erfahrung e da narratividade, conforme assinala Benjamin, novas formas da arte de
contar devem acompanhar novas configurações de experiência. Já no artigo “A
imagem de Proust”, de 1929, Benjamin indica que, em sua obra, Proust teria
reintroduzido o infinito na vivência burguesa caracterizada pela individualidade,
particularmente pela atividade de rememoração. A isso, Gagnebin chama formas
“sintéticas” de experiência (GAGNEBIN, 1994, p.10).
Parece, pois, plausível ter como válida a cadeia seguinte de asserções: o conhecimento
de si próprio é uma interpretação - a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra
na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, - esta última
serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma
história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparável às biografias dos
grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p.2).
É mérito da interpretação benjaminiana ter mostrado como estes dois temas, cidade e
modernidade, são ao mesmo tempo determinantes e inseparáveis. Em Rua de Mão
Única (2010) a cidade configura-se como um microcosmo de uma cidade-texto, em
que a ausência de linearidade e de coerência visível se torna uma forma de critica.
Ocorre um entrelaçamento entre forma e conteúdo, onde Benjamin coloca-se diante
53
da metrópole de maneira semelhante ao estudioso frente à escritura, de modo que
todo o ambiente urbano parece se converter em texto.
Segundo Ricoeur (2007) o passado percebido tende a ser validado. Daí o estranho
destino do reconhecimento que pode ser tratado no quadro da fenomenologia, da
memória e da percepção, citando a descrição de Kant (1980), da tripla síntese
subjetiva: percorrer, ligar, reconhecer.
54
O ensaio sobre “O Narrador” é uma tentativa de pensar simultaneamente, de um lado,
o fim da experiência e das narrativas tradicionais, e de outro, a possibilidade de uma
forma narrativa diferente das baseadas na prioridade do Erlebnis, qual o romance
clássico que consagra a solidão do autor, do herói e do leitor, ou qual a informação
jornalística, falsamente coletiva, que reduz as distancias temporais e espaciais a
mediocridade da novidade.
Benjamin (1986) trabalha com a noção de que a narrativa está sendo superada pela
modernidade, atribuindo a narrativa a um passado totalmente tradicional. Ele opõe
dois tipos de narrador: o agricultor sedentário que trabalha com aquela narrativa
tradicional de pai para filho, e o mercador marítimo, o marinheiro ou o viajante, que
sai do seu meio conhece novos lugares e volta trazendo as novidades.
É nessa tensão entre narrador mais tradicional e aquele que traz a modernidade que
Benjamin encontra o arcabouço da narrativa tradicional. Em seu texto ele trabalha
essa impossibilidade da narrativa perdurar no período moderno; e ele está falando
dessa modernidade massificada que o século XX conheceu, porque no entender do
Benjamin o excesso de informação e as mudanças tecnológicas impedem a experiência
conforme ela era vivenciada pelos narradores rurais e pelos narradores tradicionais.
Para Benjamin (1986), não existe mais espaço para a narrativa da vida moderna
porque existe a informação e existe também o modo de narrar. Ele identifica no
surgimento do romance moderno o fim dessa experiência coletiva de narração devido
ao surgimento da subjetividade e da individualidade que existe no romance. Então são
duas formas de narrar que se tornaram antagônicas e o romance passou a ser um sinal
dessa modernidade que acabou descartando a narrativa tradicional.
55
Apresentado desde a primeira metade do século passado por Walter Benjamin (1986)
e salientado por Ítalo Calvino (1990) na metade da década de 1980 o excesso de
informação da cultura contemporânea nos faz encontrar e construir, ou tentar
reconstruir a partir do ponto de vista histórico, os personagens das “nossas” histórias.
Algum fato ou objeto sempre surge atraindo a atenção, fazendo com que se deva
checar a veracidade dos fatos e pesquisar para pensar sobre a forma de contar mais
uma de suas histórias.
Ricoeur e Benjamin compartilham assim a crença de que obras literárias são capazes
de transformar e engrandecer a experiência à configuração anterior à sua recepção.
Enquanto Benjamin adota uma perspectiva mais histórica, incidindo assim sobre
nossas relações com a rememoração e as transformações do século XX, Ricoeur
procura dar uma resposta no sentido da técnica literária. Para este, as narrativas
ficcionais aumentam nossa percepção da realidade, especialmente no que pertence à
dimensão temporal. Para tanto, a noção de narrativa, para Ricoeur, não está limitada
aos meios de constituição de uma trama literária.
56
grupos, e não estritamente a um campo de produção artística em específico. Sendo
assim, podemos chamar a atenção para a análise que atenta Ricoeur quanto às
metamorfoses da intriga em relação à visão Benjaminiana de narrativa.
Segundo Le Goff (2003) os elementos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos
como nos psicológicos, não são mais do que decorrências de princípios dinâmicos de
organização. O ato de rememoração principal é o “comportamento narrativo” (JANET
apud LE GOFF, 2003, p.421), pois a narrativa da lembrança nada mais é que uma forma
de comunicar a outro uma informação na ausência do acontecimento ou do objeto
que constitui o seu motivo. Sendo assim a narrativa é a possibilidade de comunicar a
outro indivíduo um acontecimento na ausência do que constitui o seu motivo.
57
Não é, portanto, por que Proust se lembra que ele conta, mas porque ele só
se lembra no mais profundo do esquecimento. Benjamin ressalta que “a
memória involuntária” é a mais próxima do esquecimento que da memória
e que no “tecido do lembrar no trabalho de Penélope da rememoração”, o
que transparece, o que também volta à superfície da narrativa são os
ornamentos do olvido”. (GAGNEBIN, 2007, pág 71).
Sendo assim notamos que há muito tempo, desde Platão, o diálogo oral representa a
vivacidade de uma busca em comum da verdade. A memória dos homens se constrói
entre dois polos, sendo um da transmissão oral viva que se apresenta mais frágil e
efêmera e o da conservação pela escrita que vem perdurando por mais tempo, porém
se desenhando no vulto da ausência. A partir do momento que ouvimos o apelo do
passado estamos também atentos a esse apelo de felicidade e, portanto, de
transformação do presente, mesmo que ele pareça estar sufocado e ressoar de
maneira inaudível.
A própria proposta teórica presente em La Psychanalyse: Son Image et Son Public, nos
mostra a dificuldade em conceituar as representações sociais ao aceitar que se, por
um lado, o fenômeno está sujeito à observação e identificação, por outro, o conceito,
dada sua complexidade, irá depender de uma maior “maturidade” e desenvolvimento
do próprio pressuposto teórico das representações sociais para que haja uma
definição do mesmo (MOSCOVICI, 1978).
58
O objeto de estudo da Sociologia são os fatos sociais. Para Durkheim (2007), "É fato
social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada,
apresentando existência própria, independente das manifestações individuais que
possa ter." A partir deste conceito Durkheim propõe que a Sociologia é responsável
pelo estudo das consciências coletivas, enquanto e a Psicologia deve se atentar em
entender os fenômenos psicológicos, provenientes da consciência dos indivíduos.
Sendo assim, se desconstrói uma realidade que não é única nem específica, mas sim
compartilhada pela comunicação dos indivíduos que interagem entre si, de tal modo
que não há representação social sem objeto e sem um sujeito social, coletivo ou
individual, pertencente a um determinado grupo, pois “uma representação é sempre
uma representação de alguém, tanto quanto de alguma coisa (MOSCOVICI, 1978, p.27,
63, 65).
Moscovici (1978) acredita que a relação de ideia de conhecimento particular pode ser
atribuída à representação, que nada mais é do que o senso comum com o qual o
indivíduo constrói as representações sociais de forma compartilhada e em uma regra
de comunicação.
59
traduz o modo como o grupo pensa nas suas relações com os objetos que o afetam.
(DURKHEIM, 1994, 2007)
Para Moscovici (2010) são dois os processos que geram as representações sociais:
Ancoragem e Objetivação. Ancorar significa “classificar e dar nome a alguma coisa.
Coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não
existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras” (MOSCOVICI, 2010). Seguindo a definição
de Jodelet a ancoragem “é um trabalho que corresponde a uma função cognitiva
essencial da representação e capaz também de se referir a todo elemento estranho ou
desconhecido no ambiente social ou ideal” (JODELET, 2001).
60
transforma algo abstrato em algo quase concreto, transfere o que está na mente em
algo que exista no mundo físico” (MOSCOVICI, 2010).
As representações sociais se apresentam não apenas como fatos coletivos, mas são
construídas através das interações sociais do sujeito, para quem a representação social
não é construída apenas pela vontade da coletividade, mas também pelas relações
individuais e coletivas.
Sendo assim compreendemos que existem dois mundos, o mundo objetivo e o mundo
subjetivo. O mundo objetivo é o que ele é, e o subjetivo é o que nós construímos a
respeito dele. Vamos utilizar nosso objeto de estudo como exemplo: A Rua do Catete.
Se sentarmos para conversar com alguém que frequenta, vive ou viveu algum tipo de
vivência ou experiência na Rua do Catete, esse indivíduo irá te apresentar várias
histórias sobre o lugar, fatos importantes históricos e pessoas sobre a rua, mas isso é
no subjetivo, onde é agregado um valor e um sentimento a essa rua.
Mas qual é o significado da Rua do Catete no mundo objetivo? No mundo objetivo ela
é apenas uma rua e todo o significado que é atribuído a ela é uma Representação
Social, ou seja, é a construção de um mundo subjetivo.
61
mundo através das representações que nós construímos como sociedade acerca do
mundo.
13
Cícero, (55 a.C.) De Oratore ad Quintum fratrem libri tres ("Sobre o Orador, três livros para seu irmão
Quinto"), p.351.
62
convidados estavam sentados lhe havia possibilitado identificar os corpos,
compreendeu que a disposição ordenada era essencial a uma boa memória. A esse
método deu o nome de memória artificial, ou seja, uma memória gerada a partir de
algum “gatilho” para gerar uma lembrança.
Cícero14 introduz sua exposição sobre a memória artificial com a história da sua
invenção por Simônides.
Poucos sabem que foram os gregos que inventaram a arte da memória que, como
muitas outras artes gregas, foi transmitida a Roma de onde passou à tradição
européia. Essa arte busca a memorização por meio de uma técnica de imprimir
“lugares” e “imagens” na memória. Uma memória treinada era de fundamental
importância antes da invenção da imprensa e, além disso, é uma arte que utiliza a
arquitetura da época para elaborar seus lugares de memória.
Simônides aprendeu com essa experiência que é a ordem que está na base dos
preceitos da memória. Esses devem ser considerados em lugares bem iluminados,
onde devem ser colocadas as imagens das coisas. O lugar dessas imagens, a forma
como foram depositadas, as devolverá à memória. Da mesma forma que o escrito está
fixado pelas letras na cera, o que foi confiado à memória está impresso nos lugares,
assim como em uma página, e as imagens guardam a lembrança das coisas, como se
fossem letras.
14
Marco Túlio Cícero foi um advogado, político, escritor, orador e filósofo da gens Túlia da República
Romana eleito cônsul em 63 a.C. com Caio Antônio Híbrida.
63
sentidos, e que, de todos os sentidos o mais sutil é o da visão e,
consequentemente, as percepções recebidas pelos ouvidos ou concebidas
pelo pensamento podem ser mais bem retidas se forem também
transmitidas a nossas mentes por meio dos olhos. (CÍCERO, 55ª.c, apud
YATES,2007, pag.20)
Se você precisará lembrar de coisas em uma ordem específica, é essencial que você
siga uma rota específica através do seu palácio, ambas no mundo real e na sua mente.
Deste modo, uma vez que você tenha decidido o que seu palácio da memória é, decida
como você viajará através dele. Se você realmente não precisa lembrar das coisas em
15
TELES, Leandro. O cérebro ansioso: aprenda a reconhecer, prevenir e tratar o maior transtorno
moderno. 2018, ed. Alaúde.
16
https://theweek.com/articles/465649/10-superhelpful-mnemonic-tricks
64
ordem, esse passo é desnecessário, mas continua útil, já que ele torna mais fácil
memorizar seu palácio. Quando você usar seu palácio da memória você irá colocar
coisas individuais para serem lembradas (um número, um nome, ou uma parte de um
discurso que você fará, por exemplo) em localizações específicas. Deste modo, você
precisa identificar tantos locais quanto você acha que precisará. Ande através da sua
estrutura ou ao longo da sua rota e realmente a observe. Se seu palácio na verdade é
uma rota, como seu caminho para o trabalho, os locais de armazenamento podem ser
pontos de referência ao longo do caminho: a casa do seu vizinho, uma encruzilhada,
uma estátua, ou um arranha-céu, por exemplo. Se o palácio é uma estrutura, você
pode pôr coisas em salas diferentes. Dentro dos quartos, você pode identificar locais
menores, como pinturas, peças de mobiliário, e assim por diante. A chave é certificar-
se de que os locais que você escolheu são distintos um do outro, assim nenhum local
pode ser confundido com outro.
17
Tomás de Aquino foi um frade católico italiano da Ordem dos Pregadores cujas obras tiveram enorme
influência na teologia e na filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica e que, por
isso, é conhecido como "Doctor Angelicus", "Doctor Communis" e "Doctor Universalis".
65
ligação da arte da memória com os lugares vem desde seu surgimento, quando
Simônides faz a associação de pessoas (imagens) a espaços (lugares). Posteriormente à
experiência de Simônides, a Arte da Memória passou por várias transformações, mas
sempre conservou, em sua essência, a questão da interrelação de imagens e lugares
como base para estruturar processos de concepção.
Neste sentido entendemos que também que o conceito “lugar” pode ser analisado
segundo perspectivas diversas. Sem entrar muito nesse conceito tão abrangente que é
“lugar”, abordaremos alguns dos pontos de vistas teóricos e críticos para situar o
conceito de lugar dentro da explicação de Memória artificial e Palácio de Memórias.
66
Inferno e de suas punições, a partir de imagens impressionantes colocadas em uma
série ordenada de lugares. Se considerarmos que o poema se baseia em séries
ordenadas de lugares no Inferno, Purgatório e Paraíso, e como uma ordem cósmica de
lugares nos quais as esferas do Inferno são as esferas do Céu invertidas, ele começa a
surgir como uma soma de semelhanças e exemplos dispostos em ordem e firmados no
Universo. Apesar de o Inferno de Dante não ser um lugar existente, mas apenas
ficcional, isso não causa impedimento para que o mesmo seja utilizado para os
métodos abordados, pois a obra é naturalmente um sistema de memória.
67
Com essa análise chegamos à conclusão que muitos indivíduos possuíam seu Palácio
de Memórias na Rua do Catete, e esse era o lugar de onde emergiam suas lembranças
e onde elas se ancoravam, pois para cada um dos entrevistados não existiria a Rua do
Catete sem um lugar específico.
Segundo Nora (1984), o lugar de memória existiria onde o simples registro acaba. Ele é
aquilo que o transcende, o sentido simbólico inscrito no próprio registro. Esses lugares
seriam os espaços onde a memória se fixou e transportariam o indivíduo como uma
nova forma de apreender a memória que não nos é natural, pois não vivemos mais o
que eles representam pela história como fonte. São, portanto, locais materiais e
imateriais onde se cristalizaram a memória de uma sociedade, de uma nação, locais
onde grupos ou povos se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um
sentimento de formação da identidade e de pertencimento.
4. METODOLOGIA
68
descritiva. Assim, do ponto de vista dos procedimentos, foram adotados a pesquisa
bibliográfica e a pesquisa de campo.
Claro que a memória é sempre pouco confiável, mitológica e ideológica. Mas isto,
afinal, é o que desejamos da memória-narrativa enquanto produção de algo novo, de
um outro espaço, de uma outra estória.
Para Ricoeur (2007), fazer história é uma ação de interpretação das memórias. Neste
composto ativo da construção, o autor chama atenção para o lugar onde a memória
está arquivada e de que modo começamos a fazer a nossa coleção. Quais são as
memórias acessadas (?), seria esta a primeira dúvida.
2) Desenhos Etnográficos;
3) Entrevistas abertas.
69
realizada através de observações em dias e horários variados no recorte de estudo, e
seu objetivo foi captar as informações dos usuários (sua vivência no local) e sobre o
caráter do lugar.
A segunda etapa, que foi realizada basicamente em conjunto com a primeira, foi
desenvolvida através de análises etnográficas através de desenhos feitos pela autora
no caderno de campo, em preto e branco, onde se buscou registrar informações
sensíveis das pessoas e do lugar. Os desenhos feitos em campo pela autora foram
usados como material para análise, apresentando eventuais descobertas da
investigação durante a observação da Rua do Catete.
Algumas entrevistas foram realizadas por meio de abordagem “na rua” ou através de
convites por mensagem eletrônica. Como exemplo de abordagem na rua temos a
entrevista feita com o Sr. Evaristo, o famoso “Homem da Rosca”; pela internet foram
feitos convites aos administradores de duas páginas de instagram sobre o bairro. Essas
entrevistas foram utilizadas para construção de narrativas da “outra estória” da Rua do
Catete e para a análise através do método do Palácio de Memória.
70
como isso pode ser colocado como discurso Benjaminiano (2010), a partir do conceito
“cidade texto”.
Por fim, o subcapítulo “Aplicação do método Palácio de Memórias” ( seção 4.3) exporá
o método delineado e a forma de sua aplicação com as personagens previamente
definidas.
Segundo George Perec (1975) condenamos, há muito, o nosso ato de ver a cidade ao
puro condicionamento mercadológico e espetacular. Vemos o mundo com olhos
objetivos e mecanizados e procuramos decodificar apenas o funcional e o utilitário.
Laplatine (2013), por sua vez, aborda a etnografia não apenas como atividade de
observação, mas também como atividade linguística que se efetua do que se vê na
paisagem para a escrita. Descrever, escrever e construir fazem acontecer o que não se
compreendia.
Através do estudo do local pelo viés etnográfico, foi proposto caminhar pela Rua do
Catete à procura de lugares que clamassem atenção. Durante a pesquisa pela rua,
71
entre setembro 2018 e janeiro 2020, a autora foi registando em seu caderno tudo o
que acontecia ao seu redor e lhe chamava atenção, anotando em diferentes ocasiões
acontecimentos cotidianos da rua, circulação de ônibus e veículos, animais, pessoas,
passagem do tempo, ou seja, o que estava ao alcance do seu olhar.
DESENHOS ETNOGRÁFICOS18
FIGURA 20-CROQUI DA AUTORA DE ALGUNS PERSONAGENS OBSERVADOS DURANTE A PESQUISA NA RUA DO CATETE.
08/12/2019 A 04/01/2020.
72
desse espaço, por um viés histórico e cronológico, o segundo passo foi imergir em
campo e aproveitar o corpo de pesquisador (inteiro, ambulante e questionador) para
produzir ‘relatos desenhados’, conforme o viés etnográfico permitiu compreender.
Através do uso do desenho etnográfico foi possível perceber o espaço através dos
detalhes que se materializam pelo tempo de desenho, de retratar o lugar para além
das palavras, buscando meios para realizar um estudo que mostrasse as características
daquele local para os outros e para a gente. Surgiu então a possibilidade de “desenhar
para conhecer”, desenhar como modo de estudar um local. O desenho também
apresenta compromisso com o objeto de estudo, ele é o olhar da pesquisadora, sobre
os objetos, pessoas e relações observadas no campo (KUSCHNIR, 2012).
Segundo Kuschnir (2016), pode-se perceber que é pelo viés da experiência artística que
o desenho se reaproxima do fazer antropológico, e não o oposto. A abordagem é feita
pela via de uma arte fortemente inspirada nos valores românticos, descolada de
molduras mercadológicas ou profissionalizantes. O caderno de campo, como suporte
para o registro gráfico, é o objeto que simboliza a ponte entre o mundo do desenho e
o da etnografia. O desenho de observação valoriza o “testemunho” de um autor
mergulhado não apenas numa paisagem (natural ou urbana), mas numa “experiência”
local e em diversos modos de vida.
Escolhido como uma das abordagens utilizadas, o desenho etnográfico foi adotado
pela autora (mesmo com todas as fragilidades da falta de prática) como uma forma de
entender o espaço através da concentração e da observação lenta e cuidadosa dos
lugares e pessoas ao seu redor.
73
O objetivo dessa sistemática foi a prática de observação daquele espaço que se
expandiu para além do tempo que a pesquisadora levava desenhando, ocorreu uma
mudança de percepção do lugar que incidiu em uma maior compreensão às
expressões corporais das pessoas. O desenho acabou sendo a descoberta de um novo
caminho para formas narrativas e expositivas da etnografia. O diálogo entre a
observação etnográfica e a observação gráfica questiona o sujeito que
observa/desenha e coloca em foco a observação como parte de uma mediação do
olhar.
FIGURA 21- CROQUI DA AUTORA ONDE VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO NA
ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ, E UM PEDACO DO GRADIL DO TERRENO DO DETRAN, REVELANDO OS ‘RESQUÍCIOS
DE CIDADE’ APÓS A DEMOLIÇÃO DAS OBRAS DO METRÔ. 08/12/2019. DOMINGO.
74
FIGURA 22- CROQUI DA AUTORA NA SAÍDA do metrô do Catete, onde se percebe uma imagem
(ainda) paradigmática do bairro. RUA DO CATETE ESQUINA COM SILVEIRA MARTINS.
13/12/2019.SEXTA FEIRA
FIGURA 23- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO MACHADO ONDESE CONCENTRAM VÁRIOS GRUPOS DE
PESSOAS JOGANDO CARTAS, DAMA E XADREZ EM MESAS FIXAS, UMA DAS MARCAS SOCIAIS DA RUA DO CATETE.
ESTE GRUPO PARECIA O MAIS ANIMADO, DISPONDO DE PLATEIA PARA O JOGO. 06/12/2019 SEXTA FEIRA
75
FIGURA 24- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO
MACHADO ONDE SE LOCALIZA O POSTO DE BICICLETAS
DO ITAU, LOCAL DE MOVIMENTO CONTINUO DE PESSOAS
TIRANDO E DEIXANDO BICICLETAS, ESPAÇO ATUAL DE
BASTANTE IMPORTÂNCIA PARA A SOCIALIDADE DO
BAIRRO. 17/12/2019 TERCA FEIRA
FIGURA 25- CROQUI DA AUTORA DE UM DIA DE ENSAIO DO BLOCO ‘AMIGOS DO CATETE’ QUE ACONTECEU NA RUA DO
CATETE, ESQUINA COM RUA DOIS DE DEZEMBRO. O USO DA RUA DO CATETE COMO PASSAGEM E AGLOMERAÇÃO PARA
ATIVIDADES CARNAVALESCAS DATA DE DESDE O IMPÉRIO. 04/01/2020 SÁBADO.
76
FIGURA 26- PESSOAS NO PONTO DE ÔNIBUS NO MEIO DA TARDE EM FRENTE A GALERIA DO CINEMA SÃO LUIZ. 17/12/2019
TERCA FEIRA.
FIGURA 27- SAPATEIRO QUE FAZ PONTO NO LARGO DO MACHADO QUASE EM FRENTE AO SUPERMERCADO EXTRA.
ELE E DEFICIENTE, NÃO POSSUI AS PERNAS E ATENDE HÁ ANOS NA RUA EM FRENTE A UM DOS RESPIRADORES DO METRÔ.
19/12/2019 QUINTA FEIRA.
77
FIGURA 28- CROQUI DA AUTORA EM UM DIA DE CHUVA NA
RUA DO CATETE ESQUINA COM RUA DOIS DE DEZEMBRO.
QUARTA FEIRA 11/12/2019.
O que os croquis acima demonstram, no estudo da Rua do Catete de uma forma quase
que inerente ao processo de interpretar, é que se trata de um local onde a tradição e a
modernidade se misturam, enquanto resposta de colagens de tempos. Por lá, vemos
pessoas jogando carteado, skatistas que se apropriam das calçadas para fazerem
manobras, “boêmios” que abrem e fecham os bares todos os dias, o seu Evaristo que
vende suas roscas utilizando slogans irreverentes de duplo sentido, a forte presença da
musicalidade no local (rap, funk, hip hop, chorinho), a arte dos pichadores, os
estudantes e jovens que frequentam as casas de suco e as feirinhas de moda aonde
tudo vai se tornando cena e referência da cultura urbana carioca na Rua do Catete.
Kuschnir (2016) expõe que os ideais de um fazer antropológico que valoriza o trabalho
de campo intenso e imersivo e conectado às dimensões da subjetividade, da
criatividade, do fluxo e da experiência. Berger (2005, p.71) reafirma a centralidade do
sujeito e da sua singularidade na produção do desenho de observação quando
descreve que “uma árvore desenhada não é uma árvore, mas uma árvore desenhada
por alguém”.
O desenho é indelegável de seu autor, pois ali naquelas linhas estão o olhar, a
imaginação e as condições em que foi produzido. Aquela imagem irá demonstrar
78
exatamente o ‘olhar de quem olha’ e o que se pode sentir no momento que foi
executado.
FIGURA 29- MAPEAMENTO DOS LOCAIS ONDE FORAM REALIZADOS OS CROQUIS PELA AUTORA.
ENTREVISTAS
Segundo Flick (2009), o uso das narrativas pode ser organizado em entrevista narrativa
ou episódica. Pensadas como uma alternativa às entrevistas semiestruturadas, as
narrativas abrem-se à subjetividade e “permitem ao pesquisador abordar o mundo
79
empírico até então estruturado do entrevistado, de um modo abrangente” (Op. Cit.
2009). O autor aborda também o uso de uma “pergunta gerativa de narrativa”, que se
refere a um tópico que será investigado e cujo objetivo é estimular a narrativa
principal do sujeito que contará a sua história. Quanto mais bem articulada for esta
pergunta gerativa maiores as chances de a narrativa ser relevante para a questão da
pesquisa.
Histórias de vida são geralmente obtidas por intermédio de narrativas, pelas quais os
indivíduos se definem. Narrar é construir um lugar imaginário para experiências do
pensamento.
Memória:
1. Qual sua relação com a Rua do Catete? Poderia contar uma história/fato que
considera importante sobre ela?
Simbolismo:
2. O que você acha que a Rua do Catete de hoje reflete para a cidade?
Significado:
3. Levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a mesma ‘cara’
que possuía no século XX, o que você acha que permanece e o que se perdeu?
80
As entrevistas foram iniciadas na fase da qualificação da dissertação, em que a
pesquisadora buscava dados mnemônicos dos moradores e frequentadores da Rua do
Catete sobre os acontecimentos mais marcantes que ali ocorreram. Muitos citavam as
obras do metrô, a demolição de grande parte do casario antigo e a saída da sede da
República do Palácio do Catete.
Foram realizadas ao todo 15 entrevistas no ano de 2020. Algumas fluíam melhor, pois
o entrevistado narrava inúmeros fatos de sua lembrança sobre a rua; em outras, as
pessoas demonstravam pouco interesse em participar e até mesmo um pouco de
vergonha, o que invariavelmente diminuía o tempo de entrevista realizada.
A grande contribuição dessas entrevistas foi que possibilitou perceber que a Rua do
Catete, além de conter muitas histórias, também é repleta de estórias. Cada indivíduo
entrevistado tem a sua história com a rua e tem a Sua Rua do Catete. A Rua do Catete
representa um acontecimento, um marco, uma mudança e uma conquista diferente
para cada indivíduo, em tantos anos de história oficial e não oficial.
Desde cena do grafite do rap e hip hop, passando por lembranças de falência e perda
do prédio da família causada pela obra do metrô até lembranças horríveis da época da
ditadura militar.
81
SAUDOSO DO ARMAZÉM: SA tem 37 anos e hoje em dia mora no
Flamengo. Sua família tem uma história muito forte com a Rua do Catete,
pois ela significava a vida de todos eles até a chegada da obra do metrô
quando tudo virou de cabeça para baixo. Apesar de não ter vivido essa
época e ter toda essa memória herdada do pai e dos tios, SA demonstra
muita tristeza ao contar toda a história. Tentamos fazer uma entrevista
com o pai de SA, mas este se recusou a responder as perguntas sobre esse
tempo alegando não querer tocar no assunto.
SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR: Sócia tem 68 anos e foi a mais empolgada
ao dar seu relato. Contou sua história desde a época que chegou com sete
anos para morar no Cosme Velho até como ela vive hoje. Conheci Sócia na
Praça São Salvador e a mesma acabou com esse apelido, pois o próprio
filho a chama assim por frequentar muito a Praça. Foi através da
entrevista de Sócia que fiquei sabendo da época sombria da ditadura no
Largo do Machado e voltei a alguns entrevistados procurando saber mais
sobre o assunto.
82
rede social instagram em homenagem ao bairro. Nessa página, fala sobre
a história do bairro e a agenda social do local. Foi importante como uma
visão externa do lugar, uma visão de alguém que não nasceu nem cresceu
aqui, mas que em pouco tempo já tinha uma opinião bem formada e uma
ligação forte que foi capaz de fazer com que criasse a conta no instagram.
DA ROSCA: “quem quer comer minha rosca”? “Ela tá pegando fogo” “Olha
quem comer minha rosca não vai se decepcionar que ela é bem larga.”
Essas algumas das famosas frases de marketing do Da Rosca. Ele tem 62
anos, veio de Crato no Ceará e se tornou tão famoso com suas roscas e
seu modo de vendê-las pela Rua do Catete que acabou aparecendo em
vários programas de televisão e até livro sobre sua estratégia de branding
e marketing já foi publicado. Da Rosca é patrimônio do Catete, é único e
não há quem não o conheça. Quando comecei a entrevistar os
personagens, seu nome foi o primeiro que me veio à cabeça.
83
VETERINÁRIA ZACCARIANA: VZ tem no Colégio Zaccaria o verdadeiro
significado de “Palácio de Memórias”. Tem 32 anos, morou quase toda a
vida no Catete, na Rua Pedro Américo.Estudou dos 3 aos 17 anos no
Colégio Zaccaria e só ficou longe do bairro no período da Faculdade
quando morou em Seropédica, tirando isso tem uma vida completamente
Cateteana. Hoje em dia tem um consultório veterinário no Catete e,
durante a entrevista, todas as suas lembranças da Rua começavam
atreladas ao Colégio Zaccaria.
Foram realizadas entrevistas com vários personagens na Rua do Catete, porém foram
escolhidos para serem citados nesta dissertação os que mais demonstraram ligação de
um “afeto memorial” com a rua, demonstrando em suas entrevistas que não estavam
ali naquele lugar somente de passagem, mas sim que o lugar tinha influência na sua
vida e no indivíduo que se tornou hoje em dia.
84
Minha família toda morava no Catete, e meu avô possuía um armazém que
foi herdado do seu pai, meu bisavô, na altura da Rua do Catete com Largo
do Machado. Eles moravam em um casario também na Rua do Catete
próximo a Rua Dois de Dezembro. O armazém era o sustento da família
inteira, que nunca teve problemas financeiros. Porém, por volta de 1970,
começaram as obras do metrô, ninguém passava direito na Rua e o
armazém começou a ficar às moscas. Quando meu avô achou que decretaria
falência chegou uma carta do metrô falando que uma área seria demolida
por causa das obras e essa área incluía o armazém e a casa onde eles
moravam. Claro que financeiramente foi bom para o meu avô acontecer a
demolição do armazém, pois ele recebeu um bom dinheiro tanto pela casa
quanto pelo comércio, mas ele tinha grande apego sentimental ao local e
assim que foi feito o negócio todos se mudaram para Copacabana, pois meu
avô pegou ódio pelo Catete, entrou em depressão e veio a falecer. Até hoje
falam que foi de tristeza por ter perdido o armazém para as obras do metrô.
(SAUDOSO DO ARMAZÉM, 37 anos).
[...] no Largo do Machado ainda não existia o chafariz, ele foi criado bem
depois, lá pra 68 ou 69 por aí que teve o chafariz. Naquela época de 64 era
época da ditadura, época do AI5 e eu já estava mais mocinha. Eu descia com
as minhas amigas, estudava por ali no Catete, e o Largo do Machado era
uma praça de guerra, porque nós estávamos na ditadura e ali só havia
tanques do Exército, tanques de guerra e a cavalaria da Polícia do Exército.
Tanto que a gente não podia fazer manifestação nenhuma, mas quando a
gente fazia a gente apanhava muito, eu mesma tenho uma cicatriz nas
nádegas por ter levado uma borrachada de um PE em cima de um cavalo [...]
(Entrevista completa no Anexo – SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR, 68 anos)
85
siglas FR (Filhos da Rebeldia), VR (Vício Rebelde), JR (Juventude Rebelde) e
TW (Trip Wave). Assim que comecei a pixar com as meninas em 2002, Naty,
a fundadora da sigla, faleceu (por motivo não relacionado à pixação), e
nenhuma das outras quis continuar praticando, mas eu resolvi continuar
mesmo assim pra fazer a vontade da Naty e dar orgulho a ela. Quem
conheceu sabe, devo tudo a ela! (Entrevista completa no Anexo – XARPI, 32
anos).
Como podemos ver nos trechos de entrevistas acima, cada uma das personagens
entrevistadas na Rua do Catete possui um tipo de lembrança que podemos reconhecer
nas Teoria das Representações Sociais, já abordada no capítulo 3. Segundo Moscovici
(2002), a Representação Social se relaciona à forma dos sujeitos sociais avaliarem um
objeto e construírem nele um significado, para então reproduzir tal significado
compartilhado pelo grupo.
A NARRATIVA ETNOGRÁFICA
Todas as frases em caixa alta reverberam uma reação da autora-narradora, que buscou
no campo da pesquisa da narrativa etnográfica uma tendência em que etnografia
serviria para entender as atitudes dos outros indivíduos através dos olhos do
pesquisador. Essa busca por todo tipo de informação relevante a ser coletada é
importante para que haja maior embasamento sobre a realidade do campo para que o
pesquisador possa encontrar as informações necessárias para entender a cultura e os
hábitos do indivíduo inserido no objeto estudado (CAVEDON, 2003).
86
O simples ato de andar pelo lugar se torna estratégia para igualmente interagir com
elementos da população com os quais cruzamos nas ruas. Moradores, frequentadores,
ou simples passantes, todos eles motivam o etnógrafo a perfilar personagens,
descrever ações e estilos de vida a partir de suas atuações cotidianas. E todos são bons
momentos para se retraçar os cenários onde transcorrem suas histórias de vida e,
sendo assim, delinear as ambiências dos inúmeros ramos de significados que abrigam
os territórios de uma cidade.
19
Transcrição de um relato etnográfico feito na Rua do Catete, em frente ao Palácio do Catete. A
etnografia durou em torno de três horas e a autora descreveu suas reações em caixa alta em negrito na
cor cinza.
87
Uma senhora com uma sacola grande chega ao ponto de ônibus e se junta ao rapaz
que já estava ali.
Uma garota atravessa a Rua correndo e quase é pega pela moto. SUSTO!
Passa um 104 e logo atrás um 517.
Para uma caminhonete e o motorista pede informação às pessoas do ponto de ônibus.
(duas moças, um senhor e a senhora da sacola que continua no ponto).
Passa um 434 lotado.
Sai um taxi do ponto com um rapaz engravatado de passageiro.
ESTOU COM MUITO CALOR.
Passa outro 104 e um 775D.
A senhora da sacola que estava ainda no ponto entra no 775D.
Passa um grupo de adolescentes com uniforme escolar.
Passa um 422.
Começa a passar muitos grupos de estudantes pela calçada com uniforme.
JÁ DEVE SER MAIS DE 12h00
Cheiro de pipoca! Passa uma carrocinha e para quase na minha frente me tirando um
pouco da visão do ponto de ônibus.
Passam inúmeros carros o tempo todo na Rua.
Passa uma senhora, ela para, olha para mim e acena, eu aceno de volta, mas não faço
ideia de quem seja.
Vários estudantes entram nos jardins do Palácio do Catete.
ESSE CHEIRO DE PIPOCA ESTÁ ME MATANDO!!!
Passa um 434.
Passa um 775D.
Passa um ônibus de turismo.
Estudantes passam gritando e brincando uns com os outros.
Passa um 422 e desce um cadeirante.
Passa um 118.
Passa um 434.
Passa uma mulher de casa de lã.
PASSO MAL SÓ DE OLHAR, ESTÁ MUITO QUENTE.
Passa de novo a senhora e acena para mim e sorri.
MEU DEUS, NUNCA VI ESSA SENHORA.
Param dois taxis no ponto.
Passa um 118.
São 13h05
88
Passa uma garota carregando uma grande cartolina e com uniforme de escola.
Uma senhora sentada ao meu lado na mureta do respirador faz crochê.
MEU DEUS SÓ AGORA REPAREI.
São 13h 30
PAUSA
___________________________________________________________________________
- Após o almoço volto para a frente do Palácio e resolvo fazer algumas anotações, mas dessa
vez resolvo ficar mais próximo à esquina da Rua Silveira Martins. Fico em pé encostada ao lado
da porta de entrada do Palácio do Catete.
- Possuo a mesma visão que tinha pela manhã, porém de um ângulo diferente. Continuo vendo
os ônibus passando, o ponto de táxi, carros particulares passando aos montes na Rua,
bicicletas e triciclos de entrega, transeuntes, cães ... Tudo que via pela manhã.
Vai começar algum evento/aula nos jardins do Palácio, deve ser aula de yoga, várias
senhoras entram com tapetinhos em mãos.
O sinal de trânsito da Rua do Catete esquina com a Rua Silveira Martins não está
funcionando (pela manhã estava normal), um guarda está tentando organizar o
trânsito.
Um menino usando um boné preto atravessa a Rua pulando e pisando somente nas
faixas brancas da faixa de pedestre.
Passa uma senhora com dois cães vira-latas.
Passa um carteiro puxando um carrinho com uma caixa azul.
ESTOU COMEÇANDO A SENTIR DORES NO PESCOÇO E NA LOMBAR. Olho para o
relógio da Rua do Catete e são 15h50 (pela manhã o ponto de ônibus me tirava a visão
do relógio).
Uma criança tentando abrir uma bala acaba tropeçando e caindo, o adulto (acho que o
pai) vai acudir, mas ela sai no seu colo chorando.
A lanchonete do outro lado da Rua está lotada
Passa um rapaz no triciclo de entrega carregando um colchão.
Todos os lugares do ponto de táxi estão ocupados.
São 14h05min. CANSAÇO DOS OLHOS, DO CORPO E CANSAÇO DAS PALAVRAS.
PAUSA
89
Data: 06 de Dezembro de 2019.
Hora: 11h00
Local: Largo do Machado.
Tempo: Temperatura Amena
- Andando pelo Largo do Machado, onde acontecia uma feirinha de roupas e objetos pra casa
vejo que há vários grupos de pessoas jogando cartas, damas e xadrez nas mesas de concreto
do local. Avisto um grupo bem animado e resolvo sentar em um banco quase em frente a eles.
O grupo esta jogando algum jogo com cartas de baralho e tem até plateia assistindo.
São seis pessoas, todos homens. Dois estão jogando e o resto assiste.
Apesar de a mesinha ter quatro bancos, somente um homem calvo que está jogando
se encontra sentado, o restante est em pé só com um dos pés apoiado em um dos
bancos.
Dois homens, um usando bermuda e o outro calça estão somente em pé olhando o
jogo com as mãos no bolso.
O homem calvo sentado dá um grito e comemora.
Um rapaz de terno e gravata falando no celular se senta na mureta do chafariz do lado
contrário onde eu estou e fica olhando na direção das mesas enquanto fala ao celular.
Bate um vento e vem um cheiro forte de flores da barraca de flores que esta próxima
às mesas de jogos
ESSE CHEIRO ME LEMBRA CEMITÉRIO
Passam alguns meninos correndo.
Um homem com um isopor para no meio das mesas.
Um dos homens que esta em pé olhando o jogo (o de bermuda e mão no bolso) se
aproxima do homem com isopor e pergunta se tem cerveja latão.
Toca o sino da igreja. Já são 12h00.
Passa seu Erisvaldo vendendo roscas e gritando: Paga três reais para comer minha
rosca, olha minha rosca é bem larga, tá quentinha a minha rosca.
ROSCA MAIS FAMOSA DO CATETE E ARREDORES.
A mesa inteira grita e começa a zoar o homem calvo.
Todos, menos o homem calvo começam a gritar e pular esfregando a cabeça do
homem calvo.
ESTOU COMECANDO A SENTIR FOME.
Olho para o relógio, são 12h45 e resolvo ir embora.
PAUSA.
90
Os três relatos etnográficos acima seguem o modelo de roteiro de narrativa, como um
esquema para o desenvolvimento de uma estória. Seja qual for a modalidade, o
texto narrativo sempre dispõe de certos elementos primordiais, que são: tempo,
espaço, personagens, narrador e enredo – geralmente colocados em forma de roteiro
para que possam ser descritos em seguida, a partir de um tipo de narrativa. Os tipos de
narrativas são divididos, na literatura, em Romance, Novela, Conto, Crônica e Fábula.
Não é nosso interesse, nesta fase, utilizar algum desses tipos de narrativa para
construir interpretação; ao contrário, o ideal é fixar as etapas e elementos
compositivos do enredo que podem suscitar atenção. A narrativa, aqui, se presta a
estruturar uma compreensão, por isso aparece como roteiro que, por sua vez, serve
para suscitar uma espécie de estudo experimental sobre o espaço urbano, no campo
da arquitetura e do urbanismo.
Esses três estudos, além de diversos outros realizados, foram feitos em diferentes
horários e pontos espaciais, durante alguns dias de imersão na Rua do Catete. Através
dessas anotações, das respostas advindas das entrevistas e dos croquis etnográficos,
compusemos um cenário muito mais rico do que aquele apresentado pela história
fixada em acontecimentos fabulosos e distanciados da vida ordinária. Os três métodos
em consonância permitiram compreender que para se elevar pessoas ordinárias ao
papel de modificadoras da história é preciso estar na mesma história, é preciso
encontrar o ‘lugar de fala’.
Por isso, no próximo capítulo, investiremos na composição das narrativas, como etapa
final da construção desse método, e de modo a demonstrar como cada persogem
definida nos croquis etnográficos se comportou, frente à sua Rua do Catete narrada, e
permitiu-nos compreender um outro lado da ‘história’.
91
4.2. COMPOSIÇÃO DE NARRATIVAS
FIGURA 30- A FOTO MOSTRA UMA DAS ÁGUIAS DO PALÁCIO OBSERVANDO O CATETE.
FONTE: FOTO RICARDO BELIEL
A explicação da cidade que somos e que se encontra em nós é uma narrativa que se
decompõe através da memória de seus habitantes, tanto quanto do pesquisador
(neste caso, pesquisadora-arquiteta-urbanista) que reinterpreta os comentários dos
habitantes que pesquisa em suas trajetórias.
92
Histórias de vida não são dados adquiridos, são obtidas por intermédio de narrativas
(construções) pelas quais os sujeitos se definem; narrar é instalar um lugar imaginário
para experiências de pensamentos.
Como construir tal discurso através desse esvaziamento de significado? Como aplicá-lo
no estudo da memória na Rua do Catete? A resposta veio através da composição de
narrativas por seus personagens ordinários.
E: Para mim a Rua do Catete representa uma glória de outrora. A rua hoje
está bem decadente, mas é uma décadence avec élégance e o Palácio do
Catete continua como testemunha viva desse passado em que o Catete era o
centro da Política nacional. Resumindo: a Rua do Catete representa o ciclo
de mudanças que o Rio de Janeiro passou e vai continuar passando (meio o
que ocorre com Copacabana).
93
P: Levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a mesma
‘cara’ que possuía no século XX, o que você acha que permanece e o que se
perdeu?
E: Para mim o que permanece é o legado histórico, com alguns casarões
preservados e com o Palácio. O que foi embora é o seu significado político,
como sede do poder federal (e imagino que com isso seu prestígio). Para
mim, como disse antes, a Rua do Catete é um lugar extremamente pitoresco
e minha referência de uma vida carioca. (Entrevista completa no Anexo,
Proprietário do Instagram @BOMPRACATETE, 31 anos).
A Rua do Catete também tem suas personagens, que já são famosas não só na rua; é
caso do Homem da Rosca, um senhor cearense que vende rosquinhas fritas de modo
irreverente pela Rua do Catete e não há ninguém no bairro que não o conheça.
94
um dos entrevistados que aceitou de bom grado dar a entrevista mesmo ela sendo
durante seu tempo de trabalho. Respondeu às perguntas entre a venda de uma
rosquinha e um café que ele vende pelo nome de preto passado no saco, e respondeu
com seu humor característico a todas as perguntas.
Porém, quando era iniciativa do próprio informante contar sua história, o mesmo
procurara os fios condutores por onde poderia resgatar as lembranças do relato –
geralmente, fios espaciais. Caso não conseguisse memorizar todos os detalhes,
começava a usar do recurso da imaginação.
95
Uma vez que a memória pode ser construída a partir de testemunhos e narrativas, que
constituem a estrutura fundamental de transição entre memória e história, a
construção de narrativas – como percebemos – não acontece somente através do uso
das entrevistas dos personagens, mas também da captação dos registros e dos
pormenores da lembrança.
Com o uso do método delimitado a seguir, O ‘Palácio das Memórias’, teremos uma
experiência muito diferente, o ato de narrar que Benjamim (1986) afirmava ser uma
arte em extinção. Segundo Benjamin, são cada vez mais raras as pessoas que sabem
narrar devidamente. E apesar de termos captado tantas narrativas pelo processo da
entrevista-narrativa ou episódica, ainda que tivéssemos muitos relatos simbólicos e
afetivos, nos faltava entender como a memória estaria operando – e isto é, pela Teoria
da Narrativa, o ápice do roteiro. Saber aquilo o que relembrar, ou trazer à luz, ou
aquilo que deve ser esquecido e ocultado.
“Há coisas que nós simplesmente não sabemos nessa história. Vamos deixar
isso bem claro, de saída. Há fatos controversos. Mas isso acontece, muitas
vezes, quando você revisita o passado.”
Benjamim aborda em “O Narrador” (1986) uma crise no ato de contar histórias, onde
afirma que os fatos citados em sua época, vindos de todas as partes do mundo, não
favoreciam a experiência da narrativa, pois chegavam carregados de explicações sem
precisarmos ter uma escuta atenta e sensível de refletir sobre o ocorrido - porém isso
beneficiava o excesso de informação que ainda hoje é um dos temas mais abordados
96
por pesquisadores em diferentes áreas e campos do saber, como História, Sociologia,
Comunicação, Filosofia entre outros.
Memórias podem ser fortalecidas por histórias; nossos cérebros prestam mais atenção
à informação em forma de narrativa (por meio de cenas, elementos marcantes e
fatos), pois quanto mais associamos coisas de que queremos lembrar às estruturas que
já possuímos em mente, mais fácil será o ato de lembrar. Quando consultamos a
memória, é como se soubéssemos os caminhos certos para acessá-la. Construímos,
assim, narrativas.
Para explicar a técnica, peço que imagine como Palácio uma casa em que você tenha a
seguinte ordem dos cômodos: 1) Garagem, 2) Sala de estar, 3) Lavabo, 4) Sala de
jantar, 5) Cozinha, 6) Varanda, 7) Área de serviço, 8) Banheiro Social, 9) Dormitório I,
10) Dormitório II, 11) Suíte, 12) Banheiro da Suíte. Apresentado o palácio, vamos ao
exercício, que será feito com o objetivo de memorizar 12 itens que devem ser
comprados no supermercado. Para isso, vamos colocar cada item em um cômodo de
forma incomum, isto porque nosso cérebro tem facilidade para guardar informações
diferentes, não habituais, surpreendentes.
Use bastante, então, sua criatividade. Comece imaginando que, na Garagem, sobre o
carro, existe uma penca de bananas cobrindo todo o carro, como se fosse a capa
protetora do veículo. Depois, entre na sala de estar, e visualize no lugar do sofá uma
estrutura de caixas de sabão em pó onde você pode se sentar. Passe pelo lavabo e
faça a imagem da pia jorrando leite pela torneira. Na sala de jantar, tem um frango
sentado em uma das cadeiras. No meio da cozinha existe um pé de mamão plantado.
Você passa pela varanda e vê que está chovendo feijões. Na área de serviço, a
máquina de lavar está batendo uma massa de pão. Ao ligar o chuveiro do banheiro
social a água sai preta como café. A cama do primeiro dormitório está vermelha,
cheia de molho de tomate. No segundo dormitório você nem consegue entrar,
porque o chão está repleto de ovos, a cada passo, vários ovos se quebram. Na suíte,
os travesseiros são sacos de farinha. E o banheiro da suíte está cheiroso, pois as
paredes estão repletas de orégano. Uma vez criada a imagem absurda em cada um
97
dos cômodos, aos passear pelo Palácio, os objetos vão sendo resgatados facilmente.
Esta técnica cria relações espaciais com a informação a ser memorizada. Assim, ao
passear pelo Palácio, as imagens vão sendo resgatadas já de modo ordenado, ou
20
seja, nada mais é que a criação de uma narrativa.
As memórias podem ser fortalecidas por histórias, mas algumas coisas que fortalecem
nossas memórias também podem distorcê-las. Normalmente, com memórias
emocionais tendemos a lembrar do aspecto central do evento e essa lembrança pode
depender de outras informações, como o lugar onde ocorreu o acontecimento, por
exemplo.
Após realizarmos as entrevistas com alguns indivíduos descobrimos que a maioria das
lembranças estão ligadas a lugares da Rua do Catete. Quando a pessoa começava a
falar sobre a Rua nunca descrevia como um todo em sua lembrança, ela sempre focava
em algum lugar e desse lugar era de onde iam surgindo as suas memórias.
Alguns lugares ainda existentes como o Colégio Zaccaria e o Palácio do Catete que
foram bastante citados, mas também lugares que não existem mais, porém as pessoas
sabem exatamente onde se localizavam, como o Bar Lamas, a Escola Rodrigues Alves e
a garagem da CTC, antiga empresa de ônibus do estado.
Sendo assim foi desenvolvido para esta pesquisa o método do ‘Palácio de Memórias’,
onde as personagens que foram escolhidas para construírem seus ‘Palácios de
Memórias’ através dos lugares mencionados, onde haviam centrado suas lembranças:
em igrejas, edifícios, escolas ou no próprio Palácio do Catete.
20
Citação de Palácio da Memória: Técnicas de Memorização de E. Juliano, 2017.
98
cumprimentar a multidão. (Entrevista completa no Anexo, MOÇA DA
PAPELARIA, 73 anos).
Do ponto de vista pessoal dois momentos marcam minha relação com o
logradouro referido. O primeiro diz respeito às idas em minha infância com
minha mãe para escolha de mobiliário residencial. O segundo refere-se ao
meu primeiro estágio no Museu Edison Carneiro. Desse modo, minha relação
com a Rua do Catete se dá no âmbito das reminiscências e, portanto, da
subjetividade e das afecções. (Entrevista completa no Anexo, O PROFESSOR,
65 anos).
Para realizar as análises propostas neste capítulo vamos trabalhar com as abordagens
metodológicas descritas no capítulo 4 e com as respostas que alcançam nosso objetivo
geral, que é: analisar as mudanças de cenário da Rua do Catete através de narrativas
proporcionadas pelas personagens, em relação à vivência do espaço pelo ‘Palácio de
Memórias’, de modo a evidenciar um cenário atual complexo e reforçar a conexão
memória/espaço físico, e dos objetivos específicos.
Sendo assim, nossas análises serão realizadas a partir das seguintes diretrizes:
99
1) Identificar os usos e a caracterização dada ao lugar pelos usuários através da análise
das Etnografias (Narrativas de Deriva);
6) Apresentar uma narrativa construída pela autora, mostrando essa outra “estória” da
Rua do Catete através da coesão das narrativas descritas pelas personagens
escolhidas, elencando pontos de ‘cicatrizes’ da evolução urbana, tanto no espaço
como no indivíduo.
A Rua do Catete dos dias de hoje reflete aquilo que sobrou de uma história de Poder e
Aristocracia. O lugar ainda conserva certo ar bucólico causado por alguns sobrados que
resistiram ao tempo, porém o que resta hoje em dia é uma rua em estado de
decadência e esquecida pelo tempo.
100
Como já apresentamos na configuração do objeto de estudo, a área apresenta duas
configurações bastante distintas. O trecho que vai do Largo do Machado até a Rua
Correa Dutra tem um perfil mais verticalizado, com grande parte de edifícios
construídos a partir da década de 1970 no lugar do casario demolido para a obra de
construção do metrô. Ainda hoje o local possui áreas remanescentes não edificadas e
“problemas de distribuição de espaço e acúmulo de atividades, enquanto o potencial
máximo não consegue se impor, por falta de uma estruturação de parcelamento e de
soluções para a viabilização do espaço ocioso.” (PINHEIRO e TÂNGARI, 2003).
Tendo revisto essas condicionantes espaciais, e tendo analisado o local através dos
estudos etnográficos e as narrativas de deriva, nota-se que a Rua do Catete se modifica
no decorrer do dia. Nos dias úteis (manhã e tarde) o trânsito das calçadas é marcado
pela presença de estudantes uniformizados indo e vindo das escolas que se encontram
ao longo da Rua do Catete. Também podem ser reconhecidos outros transeuntes
habituais tais como moradores, pais e babás levando crianças para brincar e tomar sol
nos jardins do Museu da República (importante área de lazer do bairro), vendedores
ambulantes, funcionários e clientes do comércio formal e informal. Com o anoitecer, a
rua passa por uma mudança: os bares começam a funcionar, mesas são espalhadas
pelas calçadas, o barulho e a iluminação artificial criam a ambiência noturna.
Tendo experimentado todos os ritmos e horários, foi descoberta uma Rua do Catete
que poucos conhecem: um lugar importante para a cena da música e para a identidade
do Rap e do Hip Hop. Um lugar com grupos de pichadores e que também foi berço
para grandes nomes do rap e do hip hop, não só cariocas, como do Brasil. Rua onde o
grupo fala uma língua própria a “Gualin do Tetek” (Língua do Catete ao contrário),
onde falam uns com os outros com a ordem invertida das sílabas das palavras. Esta
Rua do Catete destoa daquela bastante caracterizada como um lugar rico em lojas
especializadas em mobiliário, no passado, e que também abrigava no Largo do
Machado uma praça de guerra durante a ditadura civil militar, em 1964.
101
A identidade de um espaço urbano vai se formando com o passar dos anos pela
associação do espaço construído com o espaço vivido. As manifestações próprias da
vida cotidiana, carregadas de sentidos e sentimentos, constroem a identidade do
lugar. Todos os dias passamos pelas ruas de nossa cidade para ir ao trabalho, à escola,
fazer compras, passear e, finalmente, voltar para casa. No percurso do nosso dia a dia
quase nunca paramos para pensar no que esses lugares significam para nossa vida,
nossa história e para a cidade.
Percebemos, com as derivas e entrevistas, que existem várias ruas dentro da Rua do
Catete, com grupos de rap, hip hop e pichadores com sua língua própria, com os
comerciantes informais famosos, com os skatistas que surgem do nada ocupando as
102
calçadas largas do bairro quando estão vazias, os coroas da jogatina do Largo do
Machado (assim chamados pela idade, embora nem sempre tão avançada), várias
personagens que foram entrevistadas ou somente observadas com a intenção de que
narrassem suas relações com a rua e, ao mesmo tempo, se escutassem, para que de
um certo modo, se reconhecessem como uma parte desse importante pedaço
histórico da cidade do Rio de Janeiro.
FIGURA 31- GALERA DO SKATE, HIP HOP E DA JOGATINA DO LARGO DO MACHADO, PERSONAGENS DO CATETE.
FIGURA 32 - FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUNS DOS ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA
AUTORA. FONTE: AUTORA, 2019.
103
As imagens da cidade habitam nossas memórias e ao caminharmos por ela
despertamos inúmeros sentimentos em relação a algumas pessoas enquanto
estranhamos outras. Há ruas que nos são familiares porem evitamos outras; alguns
espaços que frequentamos e outros que ignoramos, transeuntes que atraem a nossa
atenção enquanto também evitamos alguns; enfim, essas disposições sociais
configuram um sentido de ser e estar na cidade. É nestas formas de perceber a cidade
que tecemos nossas rotinas, traçamos percursos, planejamos afazeres e enfrentamos
medos e repressões.
Sendo assim, buscou-se através das observações elaborar, pelo estudo de viés
etnográfico, uma narrativa de deriva que fosse um convite à observação dos fluxos
visíveis e invisíveis que marcam os espaços da cidade. Um convite ao habitante da
cidade a enxergar o espaço que atravessa todos os dias, sem filtros ou outros aparatos.
Uma provocação que atravessa o tempo, as gerações, e se aproxima das nossas
relações atuais com o espaço urbano.
104
cotidianos da rua, a circulação de veículos, pessoas, animais, nuvens, a passagem do
tempo. Seu caderno vira uma lista de todos os fatos ordinários do nosso dia a dia.
[...] Há três pessoas no ponto de ônibus, uma moça carrega um bebê no colo.
- Passa um 775D
105
Como podemos ver no recorte de um dois textos etnográficos realizados pela autora,
enquanto os fatos acontecem à sua volta e são registrados, ocorre um intervalo entre
um fato e outro em que ocorre a anotação da linha de ônibus que passa pelo ponto, o
que cria um ritmo e faz com que tanto a autora tenha uma noção de tempo quanto
quem está lendo. Ao mesmo tempo em que imaginamos os indivíduos que estão no
ponto de ônibus, pensamos na menina do cigarro, no ponto de bicicleta que está
quase vazio e no tempo que cada linha de ônibus demora a passar, qual passa mais
vezes e qual muitas vezes nem passa.
FIGURA 33- FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUMAS DOS ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA
AUTORA MOSTRANDO O COTIDIANO DA RUA .
FONTE: AUTORA
106
DESENHOS ETNOGRÁFICOS
107
horizontalidade entre esses universos, da evocação de memórias, da
produção de trocas e colaboração, mas sobretudo do projeto de viver uma
experiência de campo num tempo alongado, de modo sensível, focada em
captar o momento e consciente das próprias limitações desse
empreendimento[...] Contra essas armadilhas, os textos e as imagens
artesanais evocariam fragmentos das múltiplas dimensões do processo
vivido, dando a ver as possibilidades e impossibilidades da produção (e
divulgação) do conhecimento etnográfico e antropológico. (Kuschnir, 2016).
FIGURA 34- DESENHOS DE INDIVIDUOS QUE TRANSITAVAM PELA RUA DO CATETE DURANTE A PESQUISA.
FONTE: AUTORA
108
FIGURA 35- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE
FONTE: AUTORA
Foi observado que durante as entrevistas dos personagens ocorreu o uso da memória
autobiográfica. Conforme estudos da City University of London21, no Reino Unido,
todos nós criamos impensadamente recordações que não correspondem à realidade,
mas que se adaptam à história que construímos sobre nossa vida e personalidade.
Algumas pessoas entrevistadas não tinham idade suficiente para certas memórias que
apresentavam ou muitas vezes contavam o mesmo fato duas vezes, porém de duas
21
Pesquisa realizada por Martin Conway, diretor de centro de Direito e Memória da City University no
Reino Unido.
109
formas diferentes. Isso revela que o indivíduo apresenta uma memória que não
corresponde à sua realidade, mas que de alguma forma está enraizada em seu
subconsciente, seja como uma memória inventada ou herdada de algum outro
indivíduo com que compartilhou.
COMPOSIÇÃO DE NARRATIVAS
A explicação da cidade que somos e que se encontra em nós é uma narrativa que se
decompõe através da memória de seus habitantes, tanto quanto do etnógrafo que
reinterpreta as explanações dos habitantes que pesquisa em suas trajetórias.
110
há uma consciência de que a visão da pesquisadora não seria capaz de reproduzir
fielmente as percepções do lugar das personagens da Rua do Catete. Por isso,
considera-se a entrevista uma maneira apropriada de se aproximar ainda mais do
objeto de estudo e de como ele é apropriado pelos indivíduos.
Sendo assim, a partir das entrevistas percebemos que as personagens ancoravam suas
memórias da Rua do Catete sempre a partir de algum lugar, ou seja, para relatarem
suas lembranças eles sempre citavam lugares da Rua que lhe eram saudosos e onde
estavam ‘talhadas’ a maioria de suas memórias.
A entrevista acima foi uma das citadas no capítulo anterior; podemos notar que a
personagem tem o Colégio Zaccaria como seu ‘Palácio de Memórias’ da Rua do Catete
e, como ela, inúmeras outras personagens citaram os seus Palácio de Memórias que
existem na Rua do Catete – lugares presentes ou passados, muitas vezes já demolidos.
Era comum o fato de informantes apontarem para onde o mesmo deixou de existir,
como se ainda estivesse lá. Podemos citar a escola Rodrigues Alves, o antigo Café
Lamas, a Garagem dos bondes e a garagem da CTC- empresa de ônibus que se
localizava no Largo do Machado.
111
FIGURA 36- MAPEAMENTO PALÁCIO DE MEMÓRIAS PERSONAGENS CATETE. FONTE: AUTORA, 2020.
A pesquisa foi feita através de entrevistas que procuravam demonstrar três pontos de
análise através das narrativas – memorial, simbólica e significante – e com isso foi
elaborado um conjunto de perguntas abertas (apresentado no capítulo metodologia),
para ser usado como guia durante as entrevistas – caracterizadas por flexibilidade e
exploração máxima do assunto a partir de uma “conversa livre” sobre o tema central.
Foi feito então um mapeamento das áreas mais citadas nas entrevistas; identificamos
como o Palácio de Memorias das personagens:
112
Palácio do Catete
Colégio Zaccaria
Bar Lamas
Garagem da CTC no Largo do Machado
Escola Rodrigues Alves
Rua Silveira Martins
Largo do Machado
As análises aqui tecidas mostram que embora se tenha como maior crença que a Rua
do Catete se tornou uma rua abandonada após a saída do poder, a Rua mostra
totalmente o contrário, ela se encontra totalmente viva tanto quanto na memória
quanto na vivência dos indivíduos.
113
linguagem histórica, como numa abordagem cinematográfica de espaço,
contemplando conceitos bastante enquadráveis por um olho-câmera como
“sequência”, “percepção” e “percurso”. O tempo ‘de hoje’ ganha fundamental papel
nesta proposta de fundar uma narrativa, e se aproxima do que Rocha-Peixoto (2013)
chamou de modo culturalista, ou seja, “operação literária” semelhante às narrativas
da literatura, que buscam estabelecer conexão com o presente.
Segundo Benjamim (2009), a história narrada nos livros estaria apenas confirmando a
visão dos vencedores, e sua proposta é a de “tecer uma narrativa histórica inspirada na
crônica cotidiana”, que busca valorizar os pequenos e os vencidos. É o que buscamos
através dessa “estória” que será narrada pela pesquisadora, como resultado
concatenador de uma análise.
Foram escolhidas oito personagens para construir essa “outra estória” na versão da
pesquisadora, a partir da narração de conquistas e acontecimentos que tais
personagens presenciaram na Rua do Catete, em toda a sua vida; é com as historias
dos “vencidos” que iremos construir essa outra (possível) estória/história da Rua do
Catete.
114
Esses oito personagens foram escolhidos por serem os que mais demonstraram uma
ligação não somente com a Rua do Catete, mas também com a sua história, e não com
a História da Rua do Catete sede do governo da República, mas a história de hoje, a
que está sendo construída por cada um desses oito personagens que demonstram que
existem várias Ruas do Catete e que cada um e protagonista da sua estória da Rua.
Neste capítulo serão escritos três contos com os personagens escolhidos, que nos
mostram as suas Ruas do Catete. A partir desses contos, veremos que a Rua do Catete
não é somente a lembrança de um passado Burguês e Republicano, ela vai muito mais
além disso; e cada personagem que vive e viveu uma história pessoal com a Rua tem
um jeito de narrar suas lembranças e contar o que é a Rua do Catete. A proposta
dessas três narrativas é construir uma estória fabulosa, não oficial e completamente
compromissada com a vivência e a proximidade do corpo ao espaço urbano.
A opção de escrever três contos que contam estórias diferentes e com protagonistas
diferentes da mesma rua conseguimos demonstrar realmente que não existe somente
uma Rua do Catete, cada conto aborda uma rua diferente.
Os contos foram elaborados a partir dos relatos das personagens, fatos que ocorreram
durante algumas análises etnográficas e alguns fatos criados pela autora através de
impressões durante as entrevistas. A grande maioria das falas escritas nos contos,
porém, foram ditas pelos nossos informantes.
Os contos são:
115
UM PALÁCIO DE MEMÓRIAS ZACCARIANO
116
TTK: OS POSTEM DE CABLIPÚRE CRAMCAFI NO DOSSAPA22
22
“Catete: Os tempos de República ficaram no passado”, traduzido da Gualin do TTK.
117
festa Zoeira na Lapa com 10, 11 anos e começou a fazer rap nessa idade. Com 15, 16
anos ele tomou isso a sério. Vocês são a geração da parada do "do it yourself", de fazer
tudo mesmo, de abrir a própria empresa. Hoje em dia as gravadoras não tem mais
controle sobre vocês, e vocês tem que estar é muito feliz em ter suas próprias paradas.
Galera voltou a ser livre, vocês falam o que querem.
Todos gritam e batem palma para RT enquanto o mesmo acende um cigarro com uma
das mãos e balança a outra para a galera.
Xarpi então se aproxima de RT, dá os parabéns pela fala e pergunta:
- Nossa você deve amar mesmo o Catete e essa galera, falou bonito e deu uma grande
injeção de animo.
RT sempre defendeu as minorias e a arte, então quando soube que a polícia havia
mexido com a molecada ficou furioso, mas ao mesmo tempo ficou com medo que os
meninos largassem a arte que estavam construindo.
RT chegou ao Catete em 1983, saído do Andaraí, e não tinha rap em lugar algum. No
Rio de Janeiro devia ter umas cinco pessoas que faziam rap, mas no Catete tinha muito
dançarino de break e já tinha o Baile Funk do Santo Amaro. Nessa época, o funk tocava
Afrika Bambaataa, Kurtis Blow... E depois RT começou a fazer rap. O catete da década
de 1980 era ‘swing’ na veia.
- Xarpi, vou te falar uma coisa, quando eu cheguei ao Catete foi muito impactante, pra
mim, esse aspecto de contracultura que o bairro tem e a herança da malandragem da
Lapa. Geral falava disso, dos malandros, de Madame Satã. Aqui encontrei roqueiros,
cineastas, artistas e isso me inspirou muito. Eu morava no 90 da Rua do Catete e
adorava ir nas sessões de filmes independentes que rolavam no cinema do Palácio do
Catete. Eu botava nome, era pichador, pichava ZIC, a pichação aqui sempre foi forte.
Sou da época do Vinga e eu nem sabia que pichação e grafite tinham a ver com a
cultura hip hop, fui descobrir essa ligação no Catete. Outra parada interessante era
como geral falava a Gualin do TTK. O Catete ainda é muito importante para mim. Aqui
moram minha mãe, meu filho, minha neta, a galera do futebol e vários amigos. É um
lugar propenso pro hip hop, é muito urbano, a molecada é rua e tá sempre na rua.
- Acho muito legal que a gente poder se comunicar com a nossa própria língua e as
pessoas ficam se olhando, sem entender nada, a Gualin do TTK é da galera da
pichação, do hip hop e do Rap do Catete.
RT sorri abraça Xarpi e a manda ir para casa para não perder a hora da aula mais uma
vez.
A menina desce a Rua do Catete em direção à Glória, pensando em tudo que RT disse,
na molecada e em como O TTK ficou conhecido por difundir a língua de trás pra frente,
a famosa "Gualin do TTK", na mesma hora lembra de sua amiga N23 que foi que a
iniciou nesse mundo da pichação e que após falecer (por motivo não relacionado à
pichação), nenhuma das outras meninas quis continuar praticando. Ela lembra que
não aceitou e resolveu continuar mesmo assim para fazer a vontade de N e dar
orgulho a ela.
23
Amiga N apresentou a pichação a Xarpi e a inicio nesse mundo. Usaremos esse nome para não revelar
a identidade.
118
Xarpi sempre achou um absurdo a Rua do Catete estar relacionada somente ao bairro
histórico e à tradição da República, essa era a Rua do Catete do passado, a dos livros
de história que com certeza não foram escritos pela molecada da favela que faz arte e
que luta contra a repressão da polícia. A Rua do Catete de hoje é a Rua da galera da
pichação, do Rap e do Hip Hop e da galera que luta pra sobreviver a cada dia a Rua do
Catete dos poderosos ficou para trás e todos precisavam saber disso.
- Seu Antônio abre aqui o portão para mim, por favor – Xarpi chega ao seu prédio e
sobe correndo, afinal amanhã tem aula e tem mais vida a ser vivida na Aru do TTK( Rua
do Catete).
FIGURA 37- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE Xarpi e
Rapper do TTK. FONTE: AUTORA, 2020.
119
duas, três ou várias pessoas. Vários modos de locomoção: caminhando, veículos de
duas rodas, com ou sem motor, automóveis táxis ou particulares, ônibus.
Seu destino é o Colégio Zaccaria, local onde passou toda sua infância e adolescência e
que continua sendo seu colégio, porém agora eleitoral. É dia de votação e VZ já esta
correndo, pois já são quase 17h00min e ela se enrolou com o atendimento de
emergência de um de seus pacientes caninos.
Ao passar pelo portal de luz, VZ está entre Rua do Catete e Silveira Martins, o encontro
histórico Republicano de simbolismo e aparência vívida, o céu era uma explosão de
azul e calor e as poucas nuvens que ali se encontravam pareciam manchas de suor
remanescentes de uma grande aquarela. Essa esquina é um ponto chave, pois é nesse
local que ocorreram os grandes eventos da história, onde esta impregnada a maioria
das memórias relatadas pelos livros. Neste momento, a veterinária sente certa raiva, já
que as águias de asas abertas instaladas no pináculo do edifício sabem tudo o que se
passou por lá, mas não tem como contar.
Trazendo a lembrança das aulas de Literatura do Colégio quando a professora citava
Machado de Assis em “Esaú e Jacó”, de 1904, a cobiça de Santos ao olhar para o
palácio e relatar as águias, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o
palácio viria a ter na República; “tão exposta como aqui no Catete, passagem obrigada
de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as grandes portas, as grandes
águias no alto de asas abertas”. (Machado de Assis, 2004, p. 36)
Ao se dar conta, VZ sai correndo, pois se perder a hora não vai conseguir votar. No
entanto, ao passar pelo portão do colégio parece que o coração para e, quando volta,
parece bater muito rápido e forte. VZ não sabe explicar, e talvez não tenha explicação,
mas parece que toda sua vida passa a sua frente naquele momento, naquele lugar
onde ela passou a maior parte do seu tempo, entre os 4 e os 17 anos, aquele local que
congrega a Rua do Catete inteira. É tão mágico e nostálgico, que assim que ela passa
pela porta do prédio e avista a imagem de Santo Antônio Maria Zaccaria, no fundo, ela
não consegue conter as lágrimas.
É como voltar no tempo, parece que ela novamente está vestindo a camisa azul ou
branca abotoada na frente com o a flor de lis no bolso na lateral direita, mochila nas
costas e subindo as escadas, ainda sonolenta, para o primeiro tempo de aula.
Após o primeiro lance de escadas, se depara com o pátio visto através das grades.
Quantos recreios e aulas de educação física, e quantas vezes não ficou sentada na
escada, só que do outro lado do portão, esperando o segundo tempo porque tinha
perdido a hora vendo TV no dia anterior.
Agora ela estava ali, no Colégio, para votar, mas para ela isso era o que menos
importava; estava ali para reviver a melhor fase da sua vida, a partir de todas as suas
lembranças.
Ao chegar ao terceiro andar do prédio, andou até o corredor onde cursou a oitava
série do ensino fundamental – conseguiu ver-se ali, em uma de suas aulas favoritas, e
parou na fila que estava na porta para poder entrar e votar. Ainda chorosa e encostada
na parede com suas lembranças, um rapaz a cutuca no ombro.
- Está tudo bem com você? Pergunta o rapaz
120
- Oi, está sim.... Obrigada por perguntar. – Respondeu VZ.
- Se por acaso estiver chorando por medo de certo candidato ganhar a eleição, saiba
que estou quase chorando também.
Os dois caem na risada.
VZ entra pra votar e sai. Quando está quase virando o corredor para descer as escadas
escuta alguém gritando chamando por outro alguém. Ao se virar, vê que o rapaz que
estava atrás dela na fila corre pelo corredor para alcançá-la.
- Oi, nem perguntei seu nome, o meu é @bompracatete, eu tenho uma página de
instagram sobre o bairro do Catete. Você mora aqui pelo Catete?
- O meu é VZ, e sim moro por aqui, morei minha vida toda aqui no Catete.
- Que legal o que você acha da Rua do Catete? Por que para mim é um contato com
uma vida à carioca. Venho de MG então, minha impressão do Catete é de um
forasteiro. Para mim, ela representa toda a confusão do Rio, com seu comércio e sua
sujeira, mas ao mesmo tempo apaixonante (como a própria cidade). São tantas
pessoas diferentes circulando, o que não ocorre no lugar de onde venho.
Acho que é essa diversidade de pessoas que me impressiona na rua. Aspirantes a
atores de Laranjeiras, velhinhos, pedintes, artistas de rua, tudo misturado. Nunca me
esquecerei do dia em que vi duas pessoas brigando na rua e um correndo atrás do
outro, com um serrote na mão.
- Nossa que legal que você se envolveu tanto com o lugar, mesmo não sendo daqui. Na
hora que você me perguntou se eu estava bem lá na fila, eu estava imersa em minhas
lembranças; estudei aqui no Colégio Zaccaria toda a minha vida, e parece que todas as
minhas lembranças moram aqui.
- Mas você gosta de morar aqui pelo Catete? Insistiu o rapaz.
- Minha relação com a Rua do Catete é de muito carinho e gratidão, afinal é o bairro
onde eu vivo, onde a maior parte da minha família reside e onde pude fazer muitos
amigos. Minhas maiores lembranças são da época de colégio; estudei no Colégio
Zaccaria minha vida inteira e, nossa, como esse lugar me fazia e ainda me faz feliz! Fiz
questão de colocar meu local de votação lá só para ter uma desculpa para visitar a
escola. Lembro que às sextas-feiras era obrigatório o almoço no Mac (McDonald’s) no
Largo do Machado, a resenha da semana e a programação do final de semana eram
feitas lá.
Os dois saem do Colégio conversando sobre a Rua e VZ continua falando:
- Na minha cabeça, a Rua é uma mistura de passado e presente, pois na mesma rua
temos o palácio do Catete e o novo prédio do Hotel Flórida, como representantes
dessas diferenças temporais.
- Para mim, a Rua do Catete representa uma glória de outrora. A rua hoje está bem
decadente, mas é uma décadence avec élégance. E o Palácio do Catete continua como
testemunha viva desse passado, em que o Catete era o centro da Política nacional.
- Resumindo: a Rua do Catete representa o ciclo de mudanças que o Rio passou e vai
continuar passando (meio o que ocorre com Copacabana). – Responde
@bompracatete
121
- Concordo com você, mas é engraçado que toda vez que alguém fala Rua do Catete,
apesar de morar a minha vida toda na Rua Dois de Dezembro e trabalhar aqui no
bairro, a primeira lembrança que me vem à cabeça é a do Colégio Zaccaria; é a partir
dali que parece que surge a história da minha vida na minha cabeça, todas as
lembranças partem dali.
@bompracatete olha para VZ e dá um sorriso; os dois continuam caminhando quando
param para atravessar na Rua Correa Dutra, e ele fala para ela.
- VZ, uma coisa que eu aprendi depois que cheguei aqui no Catete é que essa Rua não
é simplesmente a Rua do Catete do marco dos acontecimentos históricos, essa Rua é
completamente sentimento e eu acabei de ter certeza disso agora conversando com
você. Cada indivíduo que vive ou viveu nessa Rua tem a sua estória e a sua Rua do
Catete e a sua VZ e a Rua do Catete do Colégio Zaccaria.
Os dois se olham sorriem e atravessam a Rua em direção ao McDonald’s do Largo do
Machado, apesar de hoje não ser sexta feira, dia de almoçar para combinar o final de
semana.
FIGURA 38- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE Veterinária
Zaccariana e Colégio Zaccaria. FONTE: AUTORA, 2020.
122
LEMBRANÇAS E MEMÓRIAS: AS CICATRIZES DO METRÔ E DA DITADURA.
123
demolida por causa das obras e essa área incluía o armazém e a casa onde eles
moravam. Claro que financeiramente foi bom para o meu avô acontecer a demolição
do armazém, pois ele recebeu um bom dinheiro tanto pela casa quanto pelo comércio,
mas ele tinha grande apego sentimental ao local e, assim que foi feito o negocio,
todos se mudaram para Copacabana, pois meu avô ‘pegou ódio’ pelo Catete; meu avô
entrou em depressão e veio a falecer. Até hoje falam que foi de tristeza por ter
perdido o armazém para as obras do metrô.
O Viúvo do Bonde (VB) dobra o jornal e dá um tapinha nas costas do Saudoso do
Armazém (SA) como forma de consolo. Olho para o Palácio do Catete, onde o brilho do
sol o emoldura nesse momento, e transforma aqueles elementos do edifício, águias,
portões, portas e janelas trabalhadas em imagens sobrepostas. Ao olhar para o edifício
é como se estivesse olhando uma fotografia feita de granito e mármore rosa, com
imagens sobrepostas que enaltecem seus ricos detalhes em ferro fundido. Ao longo do
monumento da fachada do Palácio havia vários outros monumentos menores, que
sustentavam o olhar. Porém ali eu percebo que a estória da Rua do Catete é muito
maior que o edifício do Palácio, pois uma estória não sobrevive sem personagens e ali,
sentada, eu tinha encontrado dois muito importantes.
VB pergunta a mim e a SA se aceitamos tomar um café próximo ao Largo do Machado
então levantamos e seguimos caminho pela calçada do Palácio em direção ao Largo do
Machado.
Vizinhos e no mesmo alinhamento do Palácio do Catete, dois sobrados imponentes e
bem conservados, o Museu do Folclore e o Centro de Convenções, na esquina com a
Rua Ferreira Viana. Na calçada oposta está o Hotel Florida, que foi ampliado nos anos
2000, ocupando um dos vazios deixados pelas demolições. O edifício destaca-se na
paisagem não por seus atributos estéticos nem por seu passado, mas sim pelo impacto
visual criado pelo volume ocupado e seu tratamento de fachada com vidros
espelhados e placas de alumínio.
Seguimos pela Rua do Catete em direção ao Largo do Machado, observo quatro
sobrados em diferentes estágios de conservação, enquanto um se encontra
abandonado e dois na iminência de cair; um parece sobreviver espremido no meio do
abandono e esquecimento, mostrando que nada está perdido, seus vizinhos ainda tem
chance não devem desistir. Olhando do outro lado da calçada, na altura da Rua Correa
Dutra, os sobrados se encontram em melhores condições, foram tomados pelo
comércio, não há nenhum vestígio de moradia; no térreo o comércio e em cima
estoque ou abandono. A única lembrança do passado são os detalhes das fachadas de
alguns sobrados que sobreviveram à ação do tempo.
Chegando ao Largo do Machado (a praça), está acontecendo uma feirinha de roupas e
objetos de decoração para casa; vejo que há vários grupos de pessoas jogando cartas,
damas e xadrez nas mesas de concreto do local. Passamos ao lado de um grupo bem
animado, então VB resolve sentar em um dos bancos e nos chama para acompanhá-lo.
Sentamos e começamos a observar um grupo que está jogando algum jogo com cartas
de baralho e possui até plateia assistindo. Nesse momento, sinto que Seu VB esqueceu
o café, mas também não comento nada.
Porém o do Armazém parece estar querendo mesmo tomar um café e indaga VB:
124
- Seu VB, o senhor esqueceu que iríamos tomar um café?
- Não meu jovem, só estou esperando Cateteana, uma amiga minha que vai nos
encontrar, contei para ela que a jovem aqui queria informações sobre a Rua do Catete
e ela falou que queria ajudar.
Nesse momento fico bastante animada, nada melhor do que escutar mais narrativas
para minha pesquisa, e pensar que tinha saído de casa para escutar a estória de seu VB
e voltaria com três estórias no caderno.
Após meia hora, vejo VB acenando e se levantando do banco em direção a duas
senhoras, cumprimenta-as e nos apresenta.
- Cateteana, essa é a menina que falei que está pesquisando sobre a Rua do Catete e,
olha, você está com sorte por que Cateteana trouxe a Sócia da Pça São Salvador e ela
sabe de tudo sobre esse lugar aqui.
Levanto e cumprimento as duas, logo após elas também cumprimentam SA e
resolvemos ir até a Galeria do Cinema São Luiz, tomar o esperado café.
Ao entrarmos na galeria VB dá um suspiro e fala baixo:
-Nossa, acabaram com o cinema São Luiz, era tão lindo esse cinema.
Nesse momento, Cateteana ri e fala:
- Homem, você só reclama, as coisas mudam e se modernizam, o cinema continua
muito bonito.
Sentamos em uma chocolataria e então pergunto à Cateteana o que a Rua do Catete
era para ela; ela olha para o balcão, chama a atendente e antes mesmo de me olhar,
começa a responder:
- Em 1974 mudei-me da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para o bairro
e frequentava o antigo Bar Lamas que era centenário e onde se encontravam diversos
artistas e intelectuais. Trabalhei anos na garagem da CTC no Largo do Machado - antiga
empresa de ônibus do estado. Quando ela fechou, fui para outra empresa perto da
Rodoviária Nova Rio e agora, aposentada, vivo de passear e jogar conversa fora pela
Rua do Catete.
Nesse momento ela me olha e ri, eu sorrio de volta e ela continua.
- A Rua do Catete representa a convergência entre as pessoas que residem em todas as
regiões da cidade. É uma mistura de moradores da zona norte, centro, baixado
fluminense e zona sul. Talvez seja a rua mais democrática da zona sul.
Nesse momento todos da mesa concordam balançando a cabeça em aprovação e a
mesa fica em silêncio; nesse momento, também, lanço a ela outra pergunta:
- Mas, Cateteana, levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a
mesma ‘cara’ que possuía no século XX, o que você acha que permanece e o que se
perdeu?
- O que se perdeu? – Ela dá um gole no café e olha para VB como se pedisse cola e logo
após me olha e responde - A arquitetura antiga permanece pelos tombamentos.
Perdeu-se a forma de vida do povo, mas faz parte do contexto de cidade.
125
VB me olha e pergunta se ele ter chamado elas para nos acompanhar no café está me
ajudando, olho para ele e abro um sorriso enorme.
- Olha, gente, ela está toda feliz, ser velho às vezes ajuda!
- VB fale por você, nós ainda somos jovens, ainda mais o SA que nem 40 o menino tem
ainda.
Todos na mesa começam a rir e é quando Sócia fala:
- Vêm cá, vocês não vão comentar os tempos sombrios que vivemos aqui em 64? Ela
precisa saber dessa época também. VB eu sei que você não gosta de lembrar, mas é
importante falar.
O Viúvo do Bonde se mostra extremante incomodado, mas fala - Acho importante que
todos saibam, mas já te falei que evito falar por que passei por momentos horríveis e
até hoje encontro o certo cidadão que povoa todos meus pesadelos algumas vezes ali
no Largo do Machado.
Esse cidadão dos pesadelos do VB é quem o torturou na época da ditadura, e ele até
hoje tem a infelicidade de encontrá-lo às vezes pelo bairro. Nesse momento, Sócia
termina o biscoito que vem junto com o café se inclina à mesa e começa a falar.
- Bom, antes de mais nada, eu tenho que começar com uma historinha do Cosme
Velho para chegar à Rua do Catete; então quando eu cheguei no Cosme velho para
morar eu tinha em torno de 7 anos, isso por volta de 1960, e o Cosme Velho não tinha
nada, só tinha uma quitandinha, uma farmácia pequenininha e a Basílica de São Judas
Tadeu ainda estava sendo construída. Só existia a gruta, tanto que eu fiz minha
primeira comunhão lá no refeitório onde os rapazes trabalhavam na obra, e tinha a
estação do Corcovado.
Como minha mãe trabalhava muito de segunda a sábado e no domingo não tinha mais
nada para fazer lá [no Cosme Velho] e eu só podia brincar com as minhas coleguinhas
na rua, minha mãe pegava eu e minha irmã e descíamos a Rua das Laranjeiras e íamos
para o Largo do Machado. Então, todo domingo, íamos ao Largo do Machado, nessa
época nem existia o chafariz, tinha um cinema que a gente chamava de pulgueiro que
só passava “A vida de Cristo” e “Marcelino Pão e Vinho” – a mesa inteira ri nesse
momento.
- Nossa, Sócia, ela nem deve saber o que é isso – responde VB antes de Sócia continuar
a falar.
- Nessa época tinha o bonde, lembra VB? Ele ama o bonde, morre de saudades. – VB
sorri e olha para baixo pensativo.
- Então, o bonde vinha do Cosme Velho e ia até o Largo do Machado onde era o ‘rodo
do bonde’. Ele fazia a volta aqui, onde hoje em dia é o São Luiz, e retornava para o
mesmo lugar, que no caso era o Cosme Velho. A Rua do Catete era estreita,
praticamente só para bonde e carros da época que eram poucos. Mas foi em 1964 no
ano do AI524, a época da Ditadura, que foi a pior na minha opinião, e para os
moradores, e quem andava pelo Catete. Eu já estava mais mocinha e estudava aqui
24
Devemos lembrara que o AI5 ocorreu em 1968 e não em 1964 conforme a memória da personagem,
em 1964 ocorreu o golpe militar.
126
pelo Catete, eu andava aqui pelo Largo do Machado com as minhas amigas e isso aqui
era uma praça de guerra, era cavalaria da policia do Exército, tanques de guerra, uma
coisa horrível. Tanto que a gente não podia falar nada e quando a gente resolvia se
manifestar, a gente apanhava muito. Eu mesma tenho uma cicatriz nas nádegas de ter
levado uma borrachada de PE em cima de um cavalo.
- Nossa nem fala, apanhei muito de PE aqui no Largo do Machado, escuto até menos
do ouvido direito por causa de uma cacetada que levei de um deles uma vez, e foi de
graça, porque eu não estava fazendo nada, estava voltando do curso - Se manifesta
Cateteana.
- Eu acho importante falar sobre essa época, porque ninguém fala, e a Rua do Catete,
principalmente aqui no Largo do Machado, era um local de muita repressão militar.
Seu VB nem gosta que a gente toque no assunto, porque ele foi torturado.
Nesse momento VB abaixa a cabeça e limpa os olhos com um lenço.
- Mas é importante falar Sócia, aposto que você nunca tinha ouvido falar que isso
acontecia aqui no Catete né? – me pergunta VB para logo após eu balançar a cabeça
em negativa.
A mesa novamente fica em silêncio, e Sócia o quebra continuando a falar.
- Então, a Rua do Catete que eu lembro era assim, era uma ‘Rua de mão única’ que
dava acesso ao centro, pois não existia ainda o Aterro do Flamengo. Era uma rua
lotada de sobrados, onde cada um vendia um tipo de coisa, a gente fazia as compras
nos sobrados, biquíni, maiô, roupa masculina ou feminina; era nos sobrados que
vendia. É isso, eu continuo vivendo aqui pela Rua do Catete e para mim é maravilhoso,
apesar de ter passado por momentos difíceis em 1964 esse lugar aqui é o melhor do
mundo, e eu não troco por nada.
- Gente vamos indo? Já são quase 18h00min e vai começar o chorinho na Praça São
Salvador, quer ir com a gente? – Pergunta Sócia da Praça São Salvador
- Nossa a Sócia não sai da praça, é a segunda casa dela, isso se não for a primeira. Ri o
do Armazém.
Eu recuso, agradeço e me despeço de cada um deles ao sairmos do café.
Ao colocar o pé para fora da galeria do cinema São Luiz me pego ainda pensando em
como a Rua guarda memórias tão fortes e tristes na cabeça de muitos indivíduos, mas
mesmo assim, alguns continuam a amando e afirmando ser o melhor lugar do mundo.
Como deve ser difícil para VB encontrar o individuo que o maltratou na época da
ditadura pela Rua, porque, com certeza, ele não lembra do Viúvo, mas o malfeitor
nunca lembra; só quem apanha.
Walter Benjamim (2009) estava completamente certo quanto à história dos livros
estarem ligadas aos vencedores, pois após sair dessa imersão na Rua do Catete ‘do
passado’ que eu experimentei, dentro daquele café, na Galeria do cinema São Luiz, eu
vejo que realmente devemos valorizar muito a história narrada pelos pequenos e pelos
vencidos.
127
Os três contos apresentados demonstram que através das narrativas dos personagens
foram descobertas inúmeras Ruas do Catete, um lugar extremamente rico em
experiência e com diversas memórias ancoradas não somente na Rua do Catete em si,
mas sim nas suas ruas paralelas como a Silveira Martins que faz esquina com o Palácio
do Catete que foi citada varias vezes durante as narrativas.
Vários personagens ancoravam suas memórias na Rua Silveira Martins como uma rua
muito importante ao lembrar-se do movimento do Palácio, da demolição da escola
Rodrigues Alves e a partir dessas lembranças que as outras estórias narradas
evoluíram.
128
CONSIDERAÇOES FINAIS – cicatrizes de uma evolução urbana
129
públicas e privadas em sítios cheios de retalhos superpostos, a arquitetura se
insere na condição de transportadora da informação. É fato que diversas
imagens se espalham com facilidade por diversos cenários, ampliando o
sentido de desterritorialização do homem e trazendo a memória como uma
entidade de estudo. É fato, também, que existem vários casos de exceção.
(PINHEIRO E UGLIONE, 2009, p.194)
Para Michel de Certeau (1994) o caminhar é importante não apenas por ser uma
maneira de o indivíduo se apropriar dos lugares, pois a cada passo temos uma unidade
de negociação e de diálogo que se vai adquirindo com a cidade, mas também para o
exercício de abstração que permite a consolidação dos lugares, como também
Augoyard menciona (1998).
Podemos dizer, então, que a experiência dos atos é uma fabricadora do Lugar - aqui
colocado como conceito, como nas proposições de Norberg Schulz, (1976), mas nem
sempre as atitudes são enquadradas positivamente. O Lugar muitas vezes não é
fundado pelo que ele tem, nem pelo que ele é, mas pelo que ele fez o corpo coletar. A
criação de experiências não depende do valor do espaço físico, mas sim do seu corpo e
da coleção de memórias.
130
Após passar por rupturas e evoluções urbanas, a Rua do Catete foi perdendo sua
identidade e se descaracterizando, e para esta pesquisa não pode haver modo melhor
de entender esse espaço atual do que o percorrendo e o entendendo pelos
corpos/pessoas/personagens que narraram o novo, o passado, as lembranças e os
esquecimentos.
Nessa região encontramos cicatrizes espaciais deixadas pelas obras do metrô, várias
áreas que foram desapropriadas e tiveram suas edificações demolidas, espaços que
viraram vazios urbanos ou espaços mal projetados, abandonados pela população. Após
mais de 70 anos desde a mudança da capital e mais de 30 anos de inauguração do
metrô, a região ainda possui uma área enorme de vazios subutilizados, como é o caso
do terreno do DETRAN atrás do cinema São Luiz, que somente no ano de 2018 foi
utilizado para a construção de um edifício residencial. Entre outros problemas, esses
vazios trouxeram a noção de insegurança para a área, como relatado pelos(as)
informantes. Para Jacobs (2000) a rua ou a atividade humana se mantem quando há
pessoas cuidando desse ‘reino’, se não há interação corpo e espaço, não existe Lugar.
A Rua do Catete adquiriu fama de ser a ‘rua das enchentes’; sempre quando cai
qualquer chuva no local, muitos defendem que a culpa foi das obras do metrô, que
mexeram muito com o desenho da rua. No entanto, até isso são ‘estórias’, narrativas
que preservam ou ocultam outros episódios, pois o problema é bem antigo segundo
registro encontrado em uma foto de 1928.
131
FIGURA 40- IMAGENS DE ALAGAMENTO NA RUA DO CATETE EM 1928 E EM 2019
Fonte: Jornal o Globo e Arquivo da Cidade
Reforçando o valor das narrativas para a construção de uma ideia de lugar, buscamos
delinear nesta pesquisa que as cidades são portadoras de histórias (JODELET, 2002)
através de suas ruas, de suas casas, seus mitos, assim como através de seus símbolos e
paisagens, como suas edificações e lugares construídos, cada pedaço conta uma
historia e tem um significado para a memória de quem vivencia com o local.
Começou-se a falar de memória no século XIX, quando tornou-se visível que as cidades
passavam por um período de grandes mudanças ideológicas e econômicas. No campo
epistemológico, vários autores começaram a abordar a questão da memória naquele
momento, quando ocorreu uma inflação de discursos identitários reivindicando a
memória oficial.
Tal resgate de discursos espalhados por diversas versões – algumas tomadas como
oficiais – pode ser reencontrado a partir de uma coleção de narrativas que abordem as
historias pelas lembranças dos que vivenciaram, ou dos que souberam do mesmo
acontecimento, como demonstramos nesta dissertação. A narrativa surge dessa
“coisa” que ainda pulsa, onde não poderemos voltar ao evento acontecido, onde só se
tem acesso aos vestígios desse evento através de discursões, coleções de narrativas.
Onde esta memória estaria ancorada, então? Como se pode acessá-la? Os Palácios de
Memórias estão guardados na lembrança do individuo sobre aquele determinado lugar
132
ou acontecimento, e cada arquivo tem um motivo para que seja guardado, e isso se
estabelece a partir de uma lógica que não é neutra.
Algumas vezes o Palácio de Memórias de alguns não existe mais, ou é até mesmo uma
herança menmônica de algum familiar, como pudemos ver nas entrevistas realizadas.
A partir da pesquisa desenvolvida nesta dissertação, pudemos também notar que a
memória, em sua grande maioria das vezes, chega a nós em forma de discurso. As
experiências de memória acontecem com as relações temporais; toda experiência de
memória é uma relação temporal, mas não um tempo determinado e sim um tempo
que vamos levar através das convenções. A memória se encontra no mundo sensível,
cognitivo, não no campo perceptivo.
O estudo ordenado de Paul Ricoeur (2007) nos mostra que a memória não deve ser
compreendida somente como uma busca de uma imagem que muitas vezes corre o
risco de ser “inventada”. Porem a mesma deve ser compreendia como a busca de
alguma informação que estava guardada e vem à tona através de narrativas pessoais.
A memória, assim, também pode ser encarada como justificativa para o esquecimento,
buscando assegurar através dos dados na memória que acontecimentos ruins do
passado não se repitam. O ato de lembrar é uma experiência de ressignificação,
reconhecimento e de recriação dos acontecimentos e de si mesmo. Através dessas
narrativas resgatadas dos personagens entrevistados, que o passado se faz presente
de forma transfigurada por meio de lembranças encobridoras de atos de memória, a
história é reinterpretada e explica-se pelo estado devaneador no qual se encontra o
fenômeno, em sua tradução para a linguagem.
Através da produção dessa narrativa, que faz uma “outra estória”, descobrimos várias
Ruas do Catete. A Rua do Catete possui a sua própria língua, a Gualin do Tetek, e é um
lugar extremante artístico e contemplativo, um lugar que vai muito além de pertencer
a um bairro onde outrora habitavam os representantes da República. A Rua do Catete
também é da galera do hip hop, dos ‘coroas’ da jogatina das mesinhas do Largo do
133
Machado, da galera do skate e da pichação, e dos famosos ambulantes como o Da
Rosca com seu marketing de duplo sentido.
134
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140
Estudos Etnográficos
Entrevistas
APÊNDICE
141
Estudos Etnográficos
APÊNDICE
142
Data: 05 de Dezembro de 201925
Hora: 10h30min
Local: Rua do Catete, calçada em frente ao Palácio do Catete.
Tempo: Calor!!!Bem quente!
- Inventário de algumas coisas escritamente visíveis.
Vários letreiros do outro lado da Rua: Papelaria do Catete, Droga Raia, Hotel
Riazor, Bar Berbigão.
Um passante passa com NIKE escrito na mochila que carrega nas costas.
Alguns números: Placa da Rua mostra que este trecho vai do 187 ao 153.
Alguns sobrados carregam na fachada seu ano de construção. O do Hotel Riazor
1891, outro sobrado apresenta 1904.
Vejo o piso do chão em vários tons de cinza e de um vermelho terroso.
Vejo árvores frondosas na calçada em frente a entrada dos jardins do Palácio.
Abaixo da árvore em frente ao ponto de ônibus um respirador do metrô,
resolvo sentar.
Passa um 434.
Vejo um trecho de céu pelas árvores.
Tem três taxis no ponto do outro lado da Rua.
Uma senhora com uma sacola grande chega ao ponto de ônibus e se junta ao
rapaz que já estava ali.
Uma garota atravessa a Rua correndo e quase é pega pela moto. SUSTO!
Passa um 104 e logo atrás um 517.
Para uma caminhonete e o motorista pede informação as pessoas do ponto de
ônibus. (Duas moças, um senhor e a senhora da sacola que continua no ponto).
Passa um 434 lotado.
Sai um taxi do ponto com um rapaz engravatado de passageiro.
ESTOU COM MUITO CALOR.
Passa outro 104 e um 775D.
A senhora da sacola que estava ainda no ponto entra no 775D.
Passa um grupo de adolescentes com uniforme escolar.
Passa um 422.
25
Transcrição de uma etnografia feita na Rua do Catete, em frente ao Palácio do Catete. A etnografia
dura em torno de três horas e a autora escreve suas reações em caixa alta em negrito na cor cinza.
143
Começa a passar muitos grupos de estudantes pela calçada com uniforme.
JÁ DEVE SER MAIS DE 12h00min
Cheiro de pipoca! Passa uma carrocinha e para quase na minha frente me
tirando um pouco da visão do ponto de ônibus.
Passam inúmeros carros o tempo todo na Rua.
Passa uma senhora, ela para, olha para mim e acena, eu aceno de volta, mas
não faço ideia de quem seja.
Vários estudantes entram nos jardins do Palácio do Catete.
ESSE CHEIRO DE PIPOCA ESTÁ ME MATANDO!!!
Passa um 434.
Passa um 775D.
Passa um ônibus de turismo.
Estudantes passam gritando e brincando uns com os outros.
Passa um 422 e desce um cadeirante.
Passa um 118.
Passa um 434.
Passa uma mulher de casa de lã.
PASSO MAL SÓ DE OLHAR, ESTÁ MUITO QUENTE.
Passa de novo a senhora e acena para mime sorri. MEU DEUS, NUNCA VI ESSA
SENHORA.
Param dois taxis no ponto.
Passa um 118.
São 13h05min
Passa uma garota carregando uma grande cartolina e com uniforme de escola.
Uma senhora sentada ao meu lado na mureta do respirador faz crochê. MEU
DEUS SÓ AGORA REPAREI.
São 13h 30min
PAUSA
144
Data: 05 de Dezembro de 2019.
Hora: 15h00min
Local: Rua do Catete, esquina com Silveira Martins em frente ao Palácio do Catete.
Tempo: Muito Calor (Marca 33° no relógio da Rua)
- Após o almoço volto para frente do Palácio e resolvo fazer algumas anotações, mas
dessa vez resolvo ficar mais próximo à esquina da Rua Silveira Martins. Fico em pé
encostada ao lado da porta de entrada do Palácio do Catete.
- Possuo a mesma visão que tinha pela manhã, porem de um ângulo diferente,
continuo vendo os ônibus passando, o ponto de táxi, carros particulares passando aos
montes na Rua, bicicletas e triciclos de entrega, transeuntes, cães ... Tudo que via pela
manhã.
Vai começar algum evento/aula nos jardins do Palácio, deve ser aula de yoga,
varias senhoras entram com tapetinhos em mãos.
O sinal de transito da Rua do Catete esquina com a Rua Silveira Martins não
esta funcionando (pela manhã estava normal), um guarda de transito está
tentando organizar o transito.
Um menino usando um boné preto atravessa a Rua pulando e pisando somente
nas faixas brancas da faixa de pedestre.
Passa uma senhora com dois cães vira-latas.
Passa um carteiro puxando um carrinho com uma caixa azul.
ESTOU COMEÇANDO A SENTIR DORES NO PESCOÇO E NA LOMBAR.
Olho para o relógio da Rua do Catete e são 15h50min (pela manhã o ponto de
ônibus me tirava à visão do relógio).
Uma criança tentando abrir uma bala acaba tropeçando e caindo, o adulto (
acho que o pai) vai acudir, mas ela sai no seu colo chorando.
A lanchonete do outro lado da Rua está lotada
Passa um rapaz no triciclo de entrega carregando um colchão.
Todos os lugares do ponto de táxi estão ocupados.
São 14h05min. CANSAÇO DOS OLHOS, DO CORPO E CANSAÇO DAS PALAVRAS.
PAUSA.
145
Data: 06 de Dezembro de 2019.
Hora: 11h00min
Local: Largo do Machado.
Tempo: Temperatura Amena
-Andando pelo Largo do Machado, onde acontecia uma feirinha de roupas e objetos
pra casa vejo que há vários grupos de pessoas jogando cartas, damas e xadrez nas
mesas de concreto do local. Avisto um grupo bem animado e resolvo sentar em um
banco quase em frente a eles.
O grupo esta jogando algum jogo com cartas de baralho e tem até plateia
assistindo.
São seis pessoas, todos homens. Dois estão jogando e o resto assiste.
Apesar de a mesinha ter quatro bancos para sentar, comente um home, um
careca que esta jogando se encontra sentado, o restante esta em pé só com um
dos pés apoiado em um dos bancos.
Dois homens, um usando bermuda e o outro calça estão somente em pé
olhando o jogo com as mãos no bolso.
O homem careca sentado da um grito e comemora.
Um rapaz de terno e gravata falando no celular se senta na mureta do chafariz
do lado contrario onde eu estou e fica olhando na direção das mesas enquanto
fala ao celular.
Bate um vento e vem um cheiro forte de flores da barraca de flores que esta
próxima às mesas de jogos
ESSE CHEIRO ME LEMBRA CEMITÉRIO
Passam alguns meninos correndo.
Um homem com um isopor para no meio das mesas.
Um dos homens que esta em pé olhando o jogo (o de bermuda e mão no bolso)
se aproxima do homem com isopor e pergunta se tem cerveja latão.
Toca o sino da igreja. Já são 12h00min
Passa seu Erisvaldo O Homem da Rosca vendendo roscas e gritando: Paga três
reais para comer minha rosca, olha minha rosca é bem larga, ta quentinha a
minha rosca.
ROSCA MAIS FAMOSA DO CATETE E ARREDORES.
A mesa inteira grita e começa a zoar o homem careca.
146
Todos menos o careca começam a gritar e pular esfregando a cabeça do
homem careca.
ESTOU COMECANDO A SENTIR FOME.
Olho para o relógio e são 12h45min e resolvo ir embora.
PAUSA
-As lojas estavam fechadas e a Rua estava meio vazia. Decidi então ficar um tempo
observando abaixo do numero 66 da Rua do Catete com Rua Almirante Tamandaré
- Esse prédio possui altos pilotis e fica ao lado do terreno “vazio” que abriga o DETRAN.
O terreno do DETRAN está localizado em um dos locais que sofreram com a demolição
pelas obras do metrô.
Passa uma moça mexendo no celular e rindo para tela.
Alguns garotos chegam de skate e usam o lugar para praticar algumas
manobras.
Passa uma senhora empurrando um carrinho com dois cachorrinhos dentro
Passa um carro da Polícia e para próximo ao posto do DETRAN.
Acho que atraio pontos de taxi, pois há um na minha frente novamente.
Penso em ir para o Bar do Elias, que fica na outra esquina COSTAS DOENDO DE
ESTAR EM PÉ, mas o bar tem uma fila de espera na porta.
Começa a bater um vento frio, o que é super estranho para Dezembro no Rio
de Janeiro.
Passa um senhor e me pergunta as horas
São 16h10min
NOSSA JÁ?
Os meninos andando de skate resolvem ir embora.
O ponto de taxi está cheio
As luzes do dia começam a se modificar.
Um homem tenta entrar no antigo banco Itaú, porem só depois percebe que a
agência fechou e não existe mais, ele vem ate a minha direção e pergunta se sei
onde há outra agência e eu faço que não com a cabeça.
147
Um mendigo empurrando um carrinho de mercado para em frente a antiga
agência do Itaú desativada e começa a se arrumar para ficar ali.
Passa uma família com duas crianças correndo e uma em um patinete.
Passa um casal de mãos dadas
CANSAÇO E DOR NAS COSTAS.
Passa um home com uma sacola de compras.
Bate uma rajada de vento.
Vejo que o mendigo esta me olhando e vejo eu já são 16h45min
ESTOU COM MEDO VOU EMBORA
PAUSA
-Esta frio, o que é muito esquisito para Dezembro e além de tudo a chuva não
deu trégua desde de hoje de manha, mesmo assim resolvo ir ate a Rua do
Catete para observa-la na chuva.
-Posso fazer isso pois cai uma garoa fina, caso contrario não poderia fazer
minha caminhada pois a Rua do Catete quase sempre enche durante as chuvas.
-Resolvo ficar na Rua do Catete esquina com Rua Dois de Dezembro. Como esta
chovendo me sento no bar Paraiso do Chopp, peço um a coca cola e uma
porção de batatas e me sento do lado do vidro com a visão para a rua.
Passa um 118
Um rapaz corre atrás de uma criança com um guarda chuva de joaninha
Passa uma moto engraçada tocando musica árabe.
Tem uma fila no Mcdonalds para comprar sorvete do outro lado da rua.
Passa um 434 e para no sinal.
Olho para o relógio do outro lado da rua e marca 24°
Uma senhora com uma sacola e um guarda chuva roxo tenta atravessar
a rua fora do sinal, mas esta complicado, pois quando fecha o sinal da
Rua do Catete abre o sinal da Rua Dois de Dezembro.
148
Passa um rapaz de boné e mochila preta.
As pessoas gostam mesmo de sorvete, a fila do Mcdonalds não diminui.
Chove sem parar uma garoa fina.
Passa um 434.
Passa um 422.
Passa uma senhora puxando um carrinho de feira com um guarda chuva
amarelo.
Passam dois carros de bombeiros e uma ambulância do Samu. (QUE
SUSTO)
Passa um 775D.
O garçom vem me perguntar se quero mais alguma coisa, peço mais um
coca.
Olho o relógio da rua, são 14h10min e percebo que o restaurante está
vazio.
Passa um carro de som anunciando ofertas de um hortifrúti
Passa uma senhora com um objeto comprido que parece ser um varal
de cortina.
Passa um guardador correndo usando uma capa de chuva
Passa um carro de auto escola e entra na Rua Dois de Dezembro.
Passa um homem carregando uma lata de tinta.
Passa um 434.
Olho para o relógio e são 14h30min, chamo o garçom e peço um café.
Passa um garoto com um cachorrinho.
Passa um catador com papelão.
Bebo o café e peço a conta, são 14h50min já, vou embora antes que me
expulsem do restaurante.
PAUSA
149
Data: 13 de Dezembro de 2019.
Hora: 15h00min
Local: Rua do Catete saída do metrô
Tempo: Calor!!!
150
Um carro particular ultrapassa o sinal vermelho e por sorte ninguém se
machuca.
São 16h55min
Passa uma senhora com carrinho vendendo bolo e café.
Passa um 422.
MINHAS COSTAS COMECAM A DOER QUERIA SENTAR!
O bar do lado da papelaria começa a por as mesas na calcada. Olho para
o relógio e já são 17h30min.
Resolvo pegar o metrô e voltar pra casa.
PAUSA
151
Varias pessoas ocupam os aparelhos de ginastica da praça, algumas
usam como lugar para sentar e outras para realmente se exercitar.
Passa um 118.
Uma menina vem anadando e olhando no celular e tropeça.
Há cinco taxis no ponto de taxis.
Passa um 434.
Uma senhora joga pedaços de pão no chão e vários pombos aparecem
do nada.
Pessoas aos montes passam de um lado para o outro
Uma caminhonete dos correios
Um homem segurando um jornal
Uma senhora com um cãozinho
Passa um 434 e um 118 logo atrás
São 15h22min.
ESTOU COM FOME VOU COMER
PAUSA
152
Entrevistas26
APÊNDICE
26
Entrevistas realizadas pela pesquisadora durante o ano de 2020.
153
VIÚVO DO BONDE, 82 anos.
154
RAPPER DO TTK, 52 anos.
155
SAUDOSO DO ARMAZÉM, 37 anos.
156
DA ROSCA, 62 anos.
Eu nasci no Crato no Ceará e vim para o Rio de Janeiro em 2005 trabalhar vendendo crediário nas
portas, mas não deu certo. Aluguei uma casa para morar na comunidade do Santo Amaro e moro lá
ate hoje. Como vender crediário não deu certo fui ver como poderia tirar sustento. Eu vendia
salgado lá no Ceará então fiz uma pesquisa e vi que pelo bairro do Catete ninguém vendia rosquinha
frita então eu vi uma oportunidade. Eu estava na rua da amargura, com vinte reais no bolso,
sozinho, pedindo a Deus que me desse uma luz. Vendi água de coco por seis meses no Largo do
Machado, peguei o dinheiro e comprei o material para fazer a rosca. Antes eu fazia pequenininha e
vendia a 50 centavos hoje ela ta maior e eu vendo a 3 reais. Vendo 200 roscas por dia, saio com 100
de manha e 100 a tarde, vendo tudo pela Rua do Catete ate o Largo do Machado, faço as pessoas
comerem minha rosca que é bem boa e ainda faço eles rirem. Todo mundo me conhece e tenho
muito a agradecer a Rua do Catete por que é daqui que eu tiro meu sustento. Vender minha rosca
aqui na Rua do Catete me fez ficar famoso, já fui no Jô Soares, na Ana Maria Braga e ate livro sobre
mim já tem.
Apesar da papelaria ser aqui no Flamengo eu sempre morei no Catete, fiz normal e era professora, ai
quando papai ficou doente eu vim trabalhar aqui na papelaria. Eu morava na Rua Silveira Martins
quando era criança, ao lado do Palácio do Catete. Me lembro de escutar da escola Rodrigues Alves,
onde eu estudava na época, a fanfarra presidencial e Juscelino saía na sacada para cumprimentar a
multidão. Era outra época, outra vida, hoje está tudo muito mudado, mas as coisas mudam é a vida.
Hoje estou morando com meu marido na Rua Dois de Dezembro, gosto muito de lá , não me mudo
não, gosto muito do Catete, sou feliz ali.
157
XARPI, 32 anos.
Eu moro na Glória e estudei no Catete. A cena da pixação aqui na área sempre foi muito forte. O
TTK sempre foi conhecido por difundir a língua de trás pra frente, a famosa "Gualin do TTK". Eu
cresci em meio a tudo isso. Com 14 anos eu coloquei meu primeiro nome na rua e comecei a
conhecer os garotos da área que faziam acontecer, mas foi uma amiga que me encorajou. Existiam
"bondes" de meninas que pixavam, e uma amiga me chamou pra entrar na sigla "Inferno
Feminino". Aí eu comecei e logo depois já estava entre os maiores pixadores do Rio. Eu admirava
muito a galera das siglas FR (Filhos da Rebeldia), VR (Vício Rebelde), JR (Juventude Rebelde) e TW
(Trip Wave). Assim que comecei a pixar com as meninas em 2002, Naty, a fundadora da sigla,
faleceu (por motivo não relacionado à pixação), e nenhuma das outras quis continuar praticando,
mas eu resolvi continuar mesmo assim pra fazer a vontade da N. e dar orgulho a ela. Quem
conheceu sabe, devo tudo a ela!
Logo depois conheci os maiores da cena. Comecei a namorar um deles (o lendário C., falecido em
2005) e passei muitos anos me dedicando a essa loucura que é o xarpi. O xarpi sempre esteve
muito presente na minha vida e logo depois eu conheci o hip hop, que me fascinou muito
também.
Em 2010 eu já estava muito abalada com as perdas que tive na pixação e resolvi fazer uma festa de
aniversário misturando esses dois mundos (hip hop e pixação) e deu super certo. Chamei o Ret (na
época do Numa Margem Distante) e os amigos do Comando Selva pra cantarem num antigo
sobrado na Lapa. Naquela época pixador gostava de funk; hip hop pra eles era só Racionais MC's e
MV Bill. A partir dessa festa resolvi começar a fazer o evento de verdade porque a cidade tava
carente disso. E o evento não podia ter outro nome, batizei de Xarpi. Lançamos muita gente
importante do cenário nacional.
A pixação me deu tudo isso de bom, mas muita coisa negativa também. É uma relação de amor e
ódio. Foi preciso eu perder duas pessoas que eu gostava muito pra eu amadurecer. Vou sempre
admirar a cultura, mas hoje em dia estou bem afastada da cena. Muitas amizades continuam,
claro. O xarpi é uma cultura que passa de geração pra geração.
A JORNALISTA, 34 anos.
Eu morava no subúrbio e nunca tinha circulado pelo Catete até meus 19 anos. Por acaso precisei
colocar aparelho e a clínica ficava bem na Rua do Catete (na altura da Rua Ferreira Viana). Daí
aprendi a chegar na clínica para as manutenções e ao longo dos anos comecei a frequentar o
bairro por diversos motivos: uma amiga começou a trabalhar na Praia do Flamengo, comecei a
namorar e ele morava na Marquês de Abrantes, até que eu consegui me mudar pra ficar mais
perto do trabalho, e fiquei na Ferreira Viana. O bairro inteiro gira em torno da Rua do Catete, rua
que praticamente delimita o bairro, tem todo o comércio, o metrô e pontos de ônibus, enfim.
Dizem que bairros como o Catete são bairros de passagem, mas mesmo sendo pequeno ele tem
muitas atrações.
Na infância cheguei a visitar o Museu umas 2 ou 3 vezes, sempre achei muito interessante. Foram
visitas que me marcaram.
Só o fato de abrigar uma ex-sede da República, já é de se levar em conta. Fora isso, o casario que
está até que bem preservado, ocupando lojas e mantendo a fachada, é bem interessante. No
centro/lapa há isso, mas estão em piores condições. Gosto muito desse modelo de preservação,
loja com fachada antiga.
O que se perdeu creio que foi a relevância pra cidade, geralmente só se falam da Rua do Catete
quando alaga, algo que acontece há décadas sem previsão de melhora. Mas permanece muito da
história, algo que podia ser mais resgatado.
Pra mim a Rua do Catete significa lar, significa conhecer tudo, acompanhar as mudanças, mesmo
que lentas, do bairro.
158
@BOMPRACATETE, 31 anos .
A Rua do Catete para mim é um contato com uma vida à carioca
Venho de MG então, minha impressão do Catete é de um forasteiro. Para mim ela representa toda
a confusão do RJ, com seu comércio e sua sujeira, mas ao mesmo tempo apaixonante ( como a
própria cidade). São tantas pessoas diferentes circulando, o que não ocorre no lugar de onde
venho.
Acho que essa diversidade de pessoas que me impressiona na rua. Aspirantes a atores de
Laranjeiras, velhinhos, pedintes, artistas de rua, tudo misturado. Nunca me esquecerei de um dia
que vi duas pessoas brigando na rua e um correndo atrás do outro com um serrote na mão
Para mim a Rua do Catete representa uma gloria de outrora.
A rua hoje está bem decadente, mas é uma décadence avec élégance, e o Palácio do Catete
continua como testemunha viva desse passado em que o Catete era o centro da Política nacional.
Resumindo: a Rua do Catete representa o ciclo de mudanças que o RJ passou
E vai continuar passando (meio o que ocorre com Copacabana)
Para mim o que permanece e o legado histórico, com alguns casarões preservados e com o Palácio.
O que foi Embora é o seu significado político, como sede do poder federal (e imagino que com isso
seu prestígio).
Para mim, como disse antes, a Rua do Catete é um lugar extremamente pitoresco e minha
referência de uma vida carioca.
O PROFESSOR, 65 anos.
Do ponto de vista pessoal dois momentos marcam minha relação com o logradouro referido. O
primeiro diz respeito às idas em minha infância com minha mãe para escolha de mobiliário
residencial. O segundo refere-se ao meu primeiro estágio no Museu Edson Carneiro. Desse modo,
minha relação com a Rua do Catete se dá no âmbito das reminiscências e, portanto, da
subjetividade e das afecções.
Não tenho como avaliar. A "cidade" refere-se a uma universalidade atravessada por uma
expressiva heterogeneidade, conflito e diferença. Pessoalmente, mesmo considerando sua
importância patrimonial, a rua possui importância relativa.
O que permanece são os fluxos das vidas e o encontro do passado com a atualidade.
EX ZACCARIANA, 28 anos.
Estudei muitos anos no colégio Zaccaria. Gostava de passear no museu da república. Na minha
época havia uma biblioteca no museu na qual eu podia estudar.
Embora ainda mantenha muitos dos sobrados, estes viraram lojas e restaurantes e agora acho que
a Rua do Catete virou um centro comercial.
Hoje ela é só uma rua de comércios na qual se tornou quase impossível transitar, com muitos
pessoas de rua e ambulantes.
159
VETERINÁRIA ZACCARIANA, 32 anos.
Minha relação com a Rua do Catete é de muito carinho e gratidão, afinal é o bairro onde eu vivo,
onde a maior parte da minha família reside e onde pude fazer muitos amigos. Minhas maiores
lembranças são da época de colégio; estudei no Colégio Zaccaria minha vida inteira e, nossa, como
esse lugar me fazia e ainda me faz feliz! Fiz questão de colocar meu local de votação lá só para ter
uma desculpa para visitar a escola. Lembro que às sextas-feiras era obrigatório o almoço no Mac
(McDonald’s) no Largo do Machado, a resenha da semana e a programação do final de semana
eram feitas lá.
Tenho no meu armário ate hoje as blusas principais do uniforme, a branca que usávamos no
ensino fundamental e a azul quando a gente entrava pro ensino médio. Na verdade todas as
minhas lembranças da Rua do Catete vem muito do Zaccaria, eu morei minha vida inteira aqui no
Catete, tirando a época de faculdade que morei em Seropédica e hoje em dia meu consultório é
aqui no bairro também, mas a lembrança do Colégio para mim é muito forte.
Mas falando sobre a minha percepção da Rua, na minha cabeça, a Rua é uma mistura de passado e
presente, pois na mesma rua temos o Palácio do Catete e o novo prédio do Hotel Flórida, como
representantes dessas diferenças temporais.
CATETEANA, 73 anos.
Em 1974 mudei-me da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para o bairro e
frequentava o antigo Bar Lamas que era centenário e onde se encontravam diversos artistas e
intelectuais. Trabalhei anos na garagem da CTC no Largo do Machado - antiga empresa de ônibus
do estado. Quando ela fechou, fui para outra empresa perto da Rodoviária Nova Rio e agora,
aposentada, vivo de passear e jogar conversa fora pela Rua do Catete.
A Rua do Catete representa a convergência entre as pessoas que residem em todas as regiões da
cidade. É uma mistura de moradores da zona norte, centro, baixado fluminense e zona sul. Talvez
seja a rua mais democrática da zona sul.
P: Levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a mesma ‘cara’ que possuía no
século XX, o que você acha que permanece e o que se perdeu?
A arquitetura antiga permanece pelos tombamentos. Perdeu-se a forma de vida do povo, mas faz
parte do contexto de cidade. Mas assim tenho tem 73 anos e acho que esse bairro é maravilhoso,
não saio daqui os amigos que fiz no Catete são minha verdadeira família.
160
SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR, 68 anos.
Bom, antes de mais nada, eu tenho que começar com uma historinha do Cosme
Velho para chegar à Rua do Catete; então quando eu cheguei no Cosme velho
para morar eu tinha em torno de 7 anos, isso por volta de 1960, e o Cosme
Velho não tinha nada, só tinha uma quitandinha, uma farmácia pequenininha e
a Basílica de São Judas Tadeu ainda estava sendo construída. Só existia a gruta,
tanto que eu fiz minha primeira comunhão lá no refeitório onde os rapazes
trabalhavam na obra, e tinha a estação do Corcovado.
Como minha mãe trabalhava muito de segunda a sábado e no domingo não
tinha mais nada para fazer lá [no Cosme Velho] e eu só podia brincar com as
minhas coleguinhas na rua, minha mãe pegava eu e minha irmã e descíamos a
Rua das Laranjeiras e íamos para o Largo do Machado. Então, todo domingo,
íamos ao Largo do Machado, nessa época nem existia o chafariz, tinha um
cinema que a gente chamava de pulgueiro que só passava “A vida de Cristo” e
“Marcelino Pão e Vinho”, você nem deve saber o que é isso mas tudo bem
(risos). Dai nessa época tinha o bonde, Então, o bonde vinha do Cosme Velho e
ia até o Largo do Machado onde era o ‘rodo do bonde’. Ele fazia a volta aqui,
onde hoje em dia é o São Luiz, e retornava para o mesmo lugar, que no caso era
o Cosme Velho. A Rua do Catete era estreita, praticamente só para bonde e
carros da época que eram poucos.
Então, mas antes deixa eu falar do Largo do Machado, não existia o chafariz, ele
só foi surgir bem depois lá pra 68/69. Mas foi em 1964 no ano do AI527, a
época da Ditadura, que foi a pior na minha opinião, e para os moradores, e
quem andava pelo Catete. Eu já estava mais mocinha e estudava aqui pelo
Catete, eu andava aqui pelo Largo do Machado com as minhas amigas e isso
aqui era uma praça de guerra, era cavalaria da policia do Exército, tanques de
guerra, uma coisa horrível. Tanto que a gente não podia falar nada e quando a
gente resolvia se manifestar, a gente apanhava muito. Eu mesma tenho uma
cicatriz nas nádegas de ter levado uma borrachada de PE em cima de um
cavalo.
Voltando, então a Rua do Catete era uma rua única, que dava acesso para o
centro, por que ainda não existia o aterro do Flamengo. A Praia do Flamengo só
tinha um lado da rua, ia e voltava em mão dupla, como era a Rua do Catete
também. Até para atravessar a rua era horrível naquela época pra gente. Então
a Rua do Catete era lotada de sobrados, as únicas lojas que eu lembro de lá era
uma loja que tinha ali onde hoje é a Rio Farma e onde a calçada era bem
estreitinha. Mal dava para passar uma pessoa, e ali bem nessa esquina tinha
uma loja de roupa que se chamava Seleção Modas, ao lado tinha a Raviolândia
que era um restaurante de massas que minha mãe como Italiana adorava e
levava a gente sempre para comer lá. Tinha o Bar Lamas, que era uma lojinha
pequenininha que agora ta la na Marques de Abrantes, ficava aberto dia e
noite, isso me lembro. Lembro que a gente passava carnaval no Largo do
Machado e na Rua do Catete.
Nos sobrados cada um vendia um tipo de coisa, você subia e fazia suas
compras, você queria um biquene ou um maiô, uma roupa masculina ou
feminina você ia nos sobrados e comprava entendeu.
27
Devemos lembrara que o AI5 ocorreu em 1968 e não em 1964 conforme a memória da personagem,
em 1964 ocorreu o golpe militar.
161
Até sandália tipo sapataria era tudo nos sobrados, não tinha loja como hoje em
dia. Inclusive tinha o Instituto Monteiro Lobato de Musica onde eu estudei
acordeom, era quase na esquina da Rua Machado de Assis. Não existia esses
calçadões , não existia nada disso. A Rua do Catete era mão dupla e de lado a
lado eram sobrados, muito pouco prédio , muitas casas, sobrados e casarões,
como também era no Cosme Velho. Tanto que eu na casa que eu morei, era
tipo casa de cômodos, então cada quarta era uma família.
Tinha muito disso no Catete, as casas de cômodos, as vilas e o Museu da
republica que todo mundo já conhecia devido ao suicídio de Getúlio Vargas que
foi algo que marcou muito o Catete.
Frequentei muito o Museu quando era criança, minha mãe me levava, nós
tínhamos que colocar ate um filtro como chinelo para não arranhar o chão. Mas
deve ter mudado muita coisa ali dentro por que tem muito tempo que eu não
vou lá.
Então a Rua do Catete ela foi e é importante, as pessoas se orgulham de morar
no Catete, ela não é um simples bairro da zona sul, ela é muito mais conhecida
do que qualquer outro bairro.
Se você falar: Eu moro na Rua das Laranjeiras, vão perguntar, mas aonde? É ai
você responde: Sabe a Rua do Catete? O Largo do Machado todo mundo vai se
achar.
E naquela época era maravilhoso, era época de carnaval e a gente ia para Rua
brincar e ia nos casarões para comprar fantasia, sabe eu vivi minha infância
toda na Rua do Catete e mais tarde quando fui morara já com meus 14 anos fui
morar no 310 em frente a Machado de Assis e nessa época já tava ficando
diferente quando eu já tava na puberdade já tava ficando diferente.
Os prédios já estavam começando a serem construídos e os sobrados a serem
derrubados, muito pela obra do metrô e também para aumentar as calçadas. A
Rua do Catete foi aumentando absurdamente, a rua como já disse não era tão
larga como está hoje em dia entendeu.
Eu continuo vivendo na Rua do Catete durante muitos anos e que eu saiba para
mim tem uma importância maravilhosa, apesar de ter passado por momentos
ruins na época da ditadura em 64 que a gente não podia falar nada que
qualquer coisa a gente tomava mesmo porrada de PE, eu tomei e ate hoje
tenho uma cicatriz horrível, mas tudo bem foi um tempo que passou e eu não
me arrependo de nada do que eu fiz.
162
PLATAFORMA BRASIL
ANEXO
163
UFRJ - CENTRO DE FILOSOFIA
E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP
Título da Pesquisa: Uma outra estória, Representações da Rua do Catete pelas narrativas do "Palácio de
Memória".
Pesquisador: PAMELA PARIS AVILA
Área Temática:
Versão: 2
CAAE: 27832819.3.0000.5582
Instituição Proponente: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Patrocinador Principal: FUND COORD DE APERFEICOAMENTO DE PESSOAL DE NIVEL SUP
DADOS DO PARECER
Apresentação do Projeto:
Segundo o que o foi apresentado pela pesquisadora: "A evolução da cidade do Rio de Janeiro foi
pontuadapor influências e impactos que se refletem em sua historia. A construção do metrô , na década de
70, e a transferência da capital para Brasília são casos de intervenção urbana esvaziamento econômico que
marcaram de forma significativa historia e a memória da Rua do Catete. A atual configuração da Rua do
Catete é o resultado da combinação de trechos preservados, com edifícios
construídos nos terrenos remanescentes das demolições e persistência de vazios urbanos. O objetivo deste
trabalho é analisar as mudanças de
cenário da Rua do Catete através de narrativas proporcionadas pela justaposição de diferenciados
enfoques, de modo a evidenciar um cenário atual complexo e reforçar a conexão memoria / espaço físico /
usos e práticas locais. A metodologia de pesquisa
será realizada a partir de três vertentes
principais: a evolução urbana da área para compreender como a Rua do Catete chegou a sua configuração
atual, dos autores que darão embasamento teórico à pesquisa para ajuste das premissas conceituais, e
através das narrativas de memória servindo de instrumentos e métodos de trabalhos para a pesquisa de
campo."
Página 01 de 04
UFRJ - CENTRO DE FILOSOFIA
E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
Continuação do Parecer: 3.973.862
Objetivo da Pesquisa:
"Objetivo Primário:
A pesquisa tem como objetivo geral analisar as mudanças de cenário da Rua do Catete através de
narrativas proporcionadas pelo uso dos arcabouços teóricos apresentados através do emprego dos mesmos
na coleta de narrativas de personagens
e da própria autora em relação à convivência e vivência do espaço, de modo a evidenciar um cenário atual
complexo e reforçar a conexão memória/espaço físico/usos e práticas locais."
Página 02 de 04
UFRJ - CENTRO DE FILOSOFIA
E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
Continuação do Parecer: 3.973.862
Situação do Parecer:
Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP:
Não
Página 03 de 04
UFRJ - CENTRO DE FILOSOFIA
E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
Continuação do Parecer: 3.973.862
Assinado por:
ERIMALDO MATIAS NICACIO
(Coordenador(a))
Página 04 de 04