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Orientador:
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Fcdd d Arqittr  Urbniso | Unirsidd Fdr do Rio d Jniro
2020
UMA OUTRA ESTÓRIA. REPRESENTAÇÕES DA RUA DO CATETE
PELAS NARRATIVAS DO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’

PÂMELA PARIS ÁVILA

ORIENTADORA:
ETHEL PINHEIRO SANTANA

1
UMA OUTRA ESTÓRIA . REPRESENTAÇÕES DA RUA DO CATETE PELAS NARRATIVAS
DO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’

ANOTHER STORY. REPRESENTATIONS OF RUA DO CATETE BY NARRATIVES OF THE


“MEMORY PALACE”

Pâmela Paris Ávila

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura,


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciências em
Arquitetura, Linha de pesquisa: Cultura, Paisagem e Ambiente Construído.

Orientadora: Ethel Pinheiro Santana

Rio de Janeiro
Maio de 2020

2
RIO DE JANEIRO
MAIO 2020

3
Ao meu tio José Maria de Sousa Melo,
pois sem ele nada disso seria possível.

4
AGRADECIMENTOS

Não tenho como começar estes agradecimentos sem falar da pessoa que mais me ensinou e
contribuiu para que tudo isso acontecesse. Ethel, você me ensinou muito e foi uma
orientadora maravilhosa, ajudou nos momentos em que eu achava que não tinha para onde ir,
acreditou e aceitou a orientação sem nem mesmo me conhecer. Ao final de tudo, conseguiu
fazer com que eu entregasse uma dissertação com desenhos feitos por mim. Sempre tive
“bloqueio” para desenhar, nunca achei que seria capaz de desenhar e você, me guiando,
mostrou que era possível. Só tenho a te agradecer por esses dois anos. Muito obrigada!
Queria agradecer ao pessoal do LASC (Laboratório de Ambiência, Subjetividade e Cultura) e a
professora Cristiane pelo apoio e orientação. Obrigada por me permitirem fazer parte desse
grupo de pesquisa no qual eu aprendi tanto.
Aos professores Laís Bronstein e Gustavo Rocha-Peixoto por todo carinho e orientação, tanto
acadêmica quanto de vida, vocês são extremamente especiais.
A Maria Lygia, Maria Lucia e Jorge, essa trinca de sogra e tios maravilhosos que meu marido
colocou na minha vida e que me ajudaram tanto nas dúvidas acadêmicas quanto nos
momentos de desespero e de maneiras que eu nunca vou saber como retribuir.
Aos professores Ana Amora e Gustavo Racca por terem sido a melhor banca que eu poderia
ter, foram super generosos e conseguiram me ajudar a achar o melhor caminho após a
qualificação.
A minha mãe e minha irmã que nunca me deixaram desistir desde a época de noites viradas na
graduação e sempre acreditaram que eu iria conseguir.
Sou uma pessoa de muita sorte, pois caí em uma turma maravilhosa e só tenho
agradecimentos para a Turma de Mestrado do Proarq de 2018. Vocês são pessoas incríveis,
ninguém nunca se negou a ajudar ninguém e chegamos nessa reta final juntos e torcendo um
pela vitória do outro.
Em especial queria agradecer a Clara Buckley e Lis Pamplona que foram os maiores presentes
que o Proarq me deu. Juro que sem vocês eu não teria conseguido, sem a forca e amizade de
vocês esta dissertação não estaria aqui agora. Obrigada por fazerem parte desse momento e
da minha vida, você são maravilhosas.
A minha terapeuta Dra. Patrícia que tanto me ajudou na manutenção da minha saúde mental
durante este processo tão intenso e solitário. Quando eu achava que não tinha mais jeito ela
mostrava que tinha jeito sim e que eu mesma sabia o caminho.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela concessão de
bolsa de estudo durante cinco meses desta pesquisa.
A toda a equipe de funcionários e professores do Proarq, por me acolherem, contribuírem
com meu crescimento e pela excelência em seu trabalho cotidiano.
E por fim não tem como não agradecer aos amores da minha vida, que estiveram ao meu lado
durante todo esse processo e que passaram comigo por todos meus altos e baixos.
Ao meu marido Gustavo que é o amor da minha vida e que sempre acreditou em mim. Nunca
duvidou que eu fosse conseguir e esteve do meu lado em todos os momentos. Pelo melhor
colo do mundo, pelo melhor abraço e, até mesmo, pelas broncas para que eu levantasse a
cabeça e seguisse em frente. Te amo muito, você sabe disso.
E ao meu filho que não me abandonou em nenhum momento, deitadinho no meu pé ou em
cima da mesa ao lado do computador, mas sempre ao meu lado me passando o amor mais
puro do mundo todo. Kauai Te amo!

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RESUMO

UMA OUTRA ESTÓRIA . REPRESENTAÇÕES DA RUA DO CATETE PELAS NARRATIVAS


DO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’

PÂMELA PARIS ÁVILA


ORIENTADORA: ETHEL PINHEIRO SANTANA

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura,


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Ciências em Arquitetura.

A evolução da cidade do Rio de Janeiro foi pontuada por influências e impactos que se
refletem em sua historia. A construção do metrô, na década de 1970, e a transferência da
capital para Brasília são casos de intervenção urbana e esvaziamento econômico que
marcaram de forma significativa a história e a memória da Rua do Catete. A atual configuração
da Rua do Catete é o resultado da combinação de trechos preservados, com edifícios
construídos nos terrenos remanescentes das demolições e persistência de vazios urbanos. O
objetivo deste trabalho é analisar as mudanças de cenário da Rua do Catete através de
narrativas proporcionadas pela justaposição de diferenciados enfoques, de modo a evidenciar
um cenário atual e complexo e reforçar a conexão memória / espaço físico / usos e práticas
locais. A metodologia de pesquisa se configura através dos estudos das narrativas e do
conceito de ‘Palácio de Memórias’. Introduzimos a Rua do Catete como objeto de estudo e
igualmente como estudo de caso, ratificando um dos pontos principais para se desenvolver a
pesquisa em questão: a necessidade de aprender com os registros/memórias/discursos do
passado para se fazer compreender o hoje, em diversos cenários de metrópoles mundiais,
assim como para interpretar cidades.

PALAVRAS CHAVE: Rua do Catete, Narrativas, Memória, Cidade, Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO

MAIO 2020

6
ABSTRACT

ANOTHER STORY. REPRESENTATIONS OF RUA DO CATETE BY THE NARRATIVES OF


THE ‘MEMORY PALACE’

PÂMELA PARIS ÁVILA

ORIENTADORA: ETHEL PINHEIRO SANTANA

Abstract of the dissertation submitted to the architecture post-graduation program of the


Faculty of Architecture and Urbanism of Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ- as part
of the necessary requirements to obtaining the master degree in Architectural Sciences.

The evolution of the city of Rio de Janeiro was punctuated by influences and impacts that are
reflected in its history. The construction of the subway, in the 1970s, and the transfer of the
capital to Brasília are cases of urban intervention and economic emptying that marked the
history and memory of Catete Street in a significant way. The current configuration of Catete
Street is the result of the combination of preserved stretches, with buildings built on the
remaining land from the demolitions and persistence of urban voids. The objective of this work
is to analyze the changes in the scenario of Catete Street through narratives provided by the
juxtaposition of different approaches, in order to highlight a complex current scenario and
reinforce the connection between memory / physical space / uses and local practices. The
research methodology adopts the studies of narratives and the concept of 'Palace of
Memories'. Catete Street is introduced as an object of study and also as a case study, ratifying
one of the main points to develop the research in question: the need to learn from the records
/ memories / discourses of the past in order to make the present understood, in different
scenarios of world metropolises, as well as to interpret cities.

Key words: Catete Street, Narratives, Memory, City, Rio de Janeiro.

RIO DE JANEIRO

MAIO 2020

7
SUMÁRIO

1.INTRODUÇÃO............................................................................. 13
1.1. POR QUE A RUA DO CATETE? ...................................................................................... 18
1.2. TRILHANDO A PESQUISA ............................................................................................. 20

2.RUA DO CATETE UM PASSEIO PELO TEMPO............................. 23


2.1. UM PONTO DE INFLEXÃO: A SAÍDA DA SEDE DA REPÚBLICA ............................................ 31
2.2. A PASSAGEM DO METRÔ / IMPACTOS NO ESPAÇO FÍSICO................................................ 36
2.3. UMA RUA E SEUS PERSONAGENS....................................................................................... 43

3. NARRATIVAS DE MEMÓRIA DA CIDADE:


FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ........................................................ 47
3.1. MEMÓRIA: CAPACIDADE DE LEMBRAR E REMINISCÊNCIAS............................................... 47
3.2. NARRATIVAS DA /NA CIDADE.............................................................................................. 52
3.3. REPRESENTAÇÕES SOCIAS: UM OLHAR DIFERENCIADO
SOBRE O INDIVIDUAL E O COLETIVO.......................................................................................... 58
3.4. PALÁCIO DE MEMÓRIAS...................................................................................................... 62

4.METODOLOGIA.......................................................................... 68
4.1. OBSERVANDO PERSONAGENS E LUGARES.......................................................................... 71
4.2. COMPOSIÇÃO DE NARRATIVAS........................................................................................... 92
4.3. APLICAÇÃO DO MÉTODO DE PALÁCIO DAS MEMÓRIAS...................................................... 96

5. ESTUDOS ETNOGRÁFICOS: OUTROS OLHARES SOBRE A RUA


DO CATETE.................................................................................... 99
5.1. TESSITURAS CATETIANAS.................................................................................................... 100
5.2. UMA OUTRA ESTÓRIA: NARRATIVAS QUE REFAZEM A RUA DOCATETE............................. 113

CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................... 127

BIBLIOGRÁFIA................................................................................ 135

APÊNDICE....................................................................................... 141

ANEXO.............................................................................................. 163

8
ÍNDICE DE FIGURAS
FIGURA 1 – “O IMPONENTE PALÁCIO DO CATETE, ANTIGO PALÁCIO DE NOVA FRIBURGO. AO
FUNDO NA ESQUINA COM A RUA SILVEIRA MARTINS, VÊ-SE O PRÉDIO ECLÉTICO DA
ESCOLA PÚBLICA RODRIGUES ALVES DEMOLIDO PELAS OBRAS DO METRÔ. ENTRE
POVO, MILITARES E POSSÍVEIS AUTORIDADES DESTACA-SE, GARBOSA, EM
PRIMEIRO PLANO, UMA GALINHA” (PAG. 295). PÁG- 24
FIGURA 2 – RUA DO CATETE, EM 24/01/1906. OBRA DE INSTALAÇÃO DOS TRILHOS DOS
BONDES. DESTAQUE PARA O PALÁCIO DO CATETE - HOJE MUSEU DA REPÚBLICA.
FOTO DE AUGUSTO MALTA. FONTE: ACERVO (IMS) PÁG-25
FIGURA 3 – MAPA DA ÁREA DO CATETE NO ANO DE 1897 FONTE: HTTPS://IMAGINERIO.ORG/
PÁG- 25
FIGURA 4 - NA FOTOS ACIMA, VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE
LOCALIZADO NA ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ. FOTO DA AUTORA,
2018. PÁG- 27
FIGURA 5 – LOCALIZAÇÃO EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO
NA ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ. FONTE: INDICAÇÃO DA AUTORA
SOBRE GOOGLE MAPS PÁG- 27
FIGURA 6 – PRACA JOSE DE ALENCAR 1906, FOTO DE AUGUSTO MALTA.FONTE: ACERVO (IMS)
PÁG- 29
FIGURA 7 – PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR, 1996.FONTE:
HTTP://JAUREGUI.ARQ.BR/CIDFORMAL.HTML PÁG- 29
FIGURA 8 – CROQUIS RIO CIDADE PARA A PRAÇA DO POETA
FONTEHTTP://JAUREGUI.ARQ.BR/CIDFORMAL.HTML PÁG- 30
FIGURA 9 – NOVA CAPITAL. O PRESIDENTE JUSCELINO KUBITSCHEK (AO CENTRO) COM UMA
DAS MAQUETES DE BRASÍLIA FONTE: HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/RIO-
DE-HISTORIAS/21-DE-ABRIL-DE-1960-DIA-EM-QUE-RIO-DE-JANEIRO-DEIXOU-DE-
SER-CAPITAL-FEDERAL-8898992#IXZZ5MKPHFEKK ACESSO EM: 13 JAN. 2019. PÁG-
33
FIGURA 10 – SEGUIDO DA FAMÍLIA E DOS MEMBROS DO GOVERNO, O PRESIDENTE DESCE OS
DEGRAUS DO PALÁCIO DO CATETE. DIVULGADA EM TODA A IMPRENSA, A IMAGEM
VIRIA A SER A REPRESENTAÇÃO OFICIAL DA PARTIDA DO PODER. FONTE:
HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/RIO-DE-HISTORIAS/INAUGURACAO-DE-
BRASILIA-ENCERRA-CICLO-DE-DOIS-SECULOS-DE-PODER-DO-RIO-DE-JANEIRO-
8929190 ACESSO EM: 13 JAN. 2019. PÁG- 34
FIGURA 11– “VAI, VAI PARA A SUA BRASÍLIA DE UMA VEZ, INGRATO... MAS DOR DE BARRIGA
NÃO DÁ UMA VEZ SÓ” FONTE: DIÁRIO DA NOITE, 20 DE ABRIL DE 1960. ACERVO
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL – BRASIL PÁG- 35
FIGURA 12- O PRESIDENTE GEISEL, O GOVERNADOR DO RIO, ALMIRANTE FARIA LIMA, O
GENERAL FIGUEIREDO E NOEL ALMEIDA (PRESIDENTE DO METRÔ) INAUGURAM
TRECHO GLÓRIA-PRAÇA ONZE 5/3/79 FONTE:
HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/EM-DESTAQUE/COM-50-ANOS-DE-
ATRASO-RIO-GANHOU-METRO-EM-MARCO-DE-1979-INAUGURADO-POR-GEISEL-
12092759#IXZZ5MMJKHD3G PÁG- 36
FIGURA 13- A FOTO ACIMA MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DA RUA SILVEIRA
MARTINS EM FRENTE AO PALÁCIO DO CATETE, PODEMOS NOTAR O TERRENO

9
VAZIO ONDE SE ENCONTRAVA ANTES A ESCOLA RODRIGUES ALVES. FONTE:
HTTP://WWW.ESPENGENHARIA.COM/NOVO/WPCONTENT/UPLOADS/2017/07/01-
9.JPG PÁG- 38
FIGURA 14- A FOTO MOSTRA A ESCOLA RODRIGUES ALVES, NA ESQUINA DA RUA DO CATETE
COM A RUA SILVEIRA MARTINS. O IMÓVEL FOI DEMOLIDO DURANTE AS OBRAS DO
METRÔ NA DÉCADA DE 1970.FONTE:
HTTP://LUIZD.RIO.FOTOBLOG.UOL.COM.BR/IMAGES/PHOTO20150826065118.JPG
PÁG- 39
FIGURA 15– NO TAPUME UM PEDIDO DE DESCULPAS DE UM OPERÁRIO. E A ADVERTÊNCIA DE
QUE NÃO PODE FAZER ZOADA.
FONTE:HTTPS://ACERVO.OGLOBO.GLOBO.COM/BUSCA/?TIPOCONTEUDO=PAGINA
&PAGINA=1&ORDENACAODATA=RELEVANCIA&ALLWORDS=METRO+CATETE&ANY
WORD=&NOWORD=&EXACTWORD= PÁG- 40
FIGURA 16– ÁREA LOCALIZADA NA RUA DO CATETE NA ALTURA DA PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR.
FONTE: <HTTP://WWW.RIOQUEPASSOU.COM.BR/2009/04/01/LARGO-DO-
MACHADO-OBRAS-DO-METRO/> PÁG- 41
FIGURA 17– A IMAGEM MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DO LARGO DO MACHADO, AO
FUNDO VEMOS O QUE RESTOU DO CINEMA SÃO LUIZ.
FONTE:<HTTP://WWW.RIOQUEPASSOU.COM.BR/2009/04/01/LARGO-DO-MACHADO-
OBRAS-DO-METRO/ > PÁG- 41
FIGURA 18 – RUA DO CATETE, 1976, DURANTE AS OBRAS DO METRÔ NA ALTURA DA RUA
FERREIRA VIANA. FONTE: ARQUIVO NACIONAL PÁG- 42
FIGURA 19– ALGUNS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE FONTE: AUTORA PÁG- 43
FIGURA 20-CROQUI DA AUTORA DE ALGUNS PERSONAGENS OBSERVADOS DURANTE A
PESQUISA NA RUA DO CATETE. 08/12/2019 A 04/01/2020. PÁG- 72
FIGURA 21- CROQUI DA AUTORA ONDE VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO
PLANO AGACHE LOCALIZADO NA ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ, E
UMPEDACO DO GRADIL DO TERRENO DO DETRAN, REVELANDO OS ‘RESQUÍCIOS DE
CIDADE’ APÓS A DEMOLIÇÃO DAS OBRAS DO METRÔ. 08/12/2019. DOMINGO PÁG-
74
FIGURA 22- CROQUI DA AUTORA NA SAÍDA DO METRÔ DO CATETE, ONDE SE PERCEBE UMA
IMAGEM (AINDA) PARADIGMÁTICA DO BAIRRO. RUA DO CATETE ESQUINA COM
SILVEIRA MARTINS. 13/12/2019.SEXTA FEIRA PÁG- 75
FIGURA 23- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO MACHADO ONDESE CONCENTRAM VÁRIOS
GRUPOS DE PESSOAS JOGANDO CARTAS, DAMA E XADREZ EM MESAS FIXAS, UMA
DAS MARCAS SOCIAIS DA RUA DO CATETE. ESTE GRUPO PARECIA O MAIS
ANIMADO, DISPONDO DE PLATEIA PARA O JOGO. 06/12/2019 SEXTA FEIRA PÁG- 75
FIGURA 24- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO MACHADO ONDE SE LOCALIZA O POSTO DE
BICICLETAS DO ITAU, LOCAL DE MOVIMENTO CONTINUO DE PESSOAS TIRANDO E
DEIXANDO BICICLETAS, ESPAÇO ATUAL DE BASTANTE IMPORTÂNCIA PARA A
SOCIALIDADE DO BAIRRO. 17/12/2019 TERCA FEIRA PÁG- 76
FIGURA 25- CROQUI DA AUTORA DE UM DIA DE ENSAIO DO BLOCO ‘AMIGOS DO CATETE’ QUE
ACONTECEU NA RUA DO CATETE, ESQUINA COM RUA DOIS DE DEZEMBRO. O USO
DA RUA DO CATETE COMO PASSAGEM E AGLOMERAÇÃO PARA ATIVIDADES
CARNAVALESCAS DATA DE DESDE O IMPÉRIO. 04/01/2020 SÁBADO. PÁG- 76

10
FIGURA 26- PESSOAS NO PONTO DE ONIBUS NO MEIO DA TARDE EM FRENTE A GALERIA DO
CINEMA SÃO LUIZ. 17/12/2019 TERCA FEIRA PÁG- 77
FIGURA 27- SAPATEIRO QUE FAZ PONTO NO LARGO DO MACHADO QUASE EM FRENTE AO
SUPERMERCADO EXTRA. ELE E DEFICIENTE, NÃO POSSUI AS PERNAS E ATENDE HÁ
ANOS NA RUA EM FRENTE A UM DOS RESPIRADORES DO METRÔ.19/12/2019
QUINTA FEIRA. PÁG- 77
FIGURA 28- CROQUI DA AUTORA EM UM DIA DE CHUVA NA RUA DO CATETE ESQUINA COM
RUA DOIS DE DEZEMBRO. QUARTA FEIRA 11/12/2019. PÁG- 78
FIGURA 29- MAPEAMENTO DOS LOCAIS ONDE FORAM REALIZADOS OS CROQUIS PELA
AUTORA. PÁG- 79
FIGURA 30- A FOTO MOSTRA UMA DAS ÁGUIAS DO PALÁCIO OBSERVANDO O CATETE. FONTE:
FOTO RICARDO BELIEL PÁG-92
FIGURA 31- GALERA DO SKATE, HIP HOP E DA JOGATINA DO LARGO DO MACHADO,
PERSONAGENS DO CATETE. FONTE: AUTORA E MAURO M.KURY, 2020. PÁG-103
FIGURA 32- - FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUNS DOS
ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA AUTORA. FONTE: AUTORA, 2019. PÁG- 103
FIGURA 33- FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUMAS
DOS ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA AUTORA MOSTRANDO O COTIDIANO DA RUA .
FONTE: AUTORA PÁG- 106
FIGURA 34- DESENHOS DE INDIVIDUOS QUE TRANSITAVAM PELA RUA DO CATETE DURANTE A
PESQUISA. FONTE: AUTORA PÁG- 108
FIGURA 35- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA
RUA DO CATETE .FONTE: AUTORA PÁG- 109
FIGURA 36- MAPEAMENTO PALÁCIO DE MEMÓRIAS PERSONAGENS CATETE. FONTE: AUTORA,
2020. PÁG- 112
FIGURA 37- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA
RUA DO CATETE XARPI E RAPPER DO TTK. FONTE: AUTORA, 2019. PÁG- 119
FIGURA 38- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA
RUA DO CATETE VETERINÁRIA ZACCARIANA E COLÉGIO ZACCARIA. FONTE: AUTORA,
2019. PÁG- 122
FIGURA 39- MURO QUE CERCA O TERRENO DO DETRAN NA RUA DO CATETE. FOTO DA
AUTORA, 2018. PÁG- 131
FIGURA 40- IMAGENS DE ALAGAMENTO NA RUA DO CATETE EM 1928 E EM 2019. FONTE:
JORNAL O GLOBO E ARQUIVO DA CIDADE PÁG- 132

11
Inutilmente, magnânimo Kublai, tentarei descrever a cidade de Zaíra dos
altos bastiões. Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em forma
de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas de
zinco são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo que não dizer
nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu
espaço e os acontecimentos do passado: [...] A cidade se embebe como uma
esponja dessa onda que reflui das recordações e se dilata. Uma descrição de
Zaíra como é atualmente deveria conter todo o passado de Zaíra. Mas a
cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão,
escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das
escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada
segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras.
(CALVINO, 1990, p.14-15)

12
UMA OUTRA ESTÓRIA. REPRESENTAÇÕES DA RUA DO CATETE PELAS
NARRATIVAS DO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’

1. INTRODUÇÃO

Este trabalho se insere no contexto de uma pesquisadora que se questiona sobre a


evolução do espaço urbano pelo viés fenomenológico, mas também de alguém que
habita a cidade. Muitas seriam as formas de abordar o cenário atual, e muitos os
lugares para desenvolver isso, mas o Rio de Janeiro, e em especial a Rua do Catete –
como objeto de estudo desta dissertação – pareceu um caminho acertado, uma vez
existir familiaridade de pesquisa (iniciada desde a graduação em Arquitetura e
Urbanismo), a possibilidade de abordar a relação memória/história pela experiência e
pela narrativa dos habitantes locais e também pelo papel representacional de
centralidade e ostensão do poder político e econômico de outrora, no país.

Damos importância a certos momentos da História oficializada em livros que


acreditamos ter um registro perfeito deles em nossa mente, até nossas memórias mais
importantes, aquelas que formam a base da história das nossas vidas, não são
lembranças perfeitas, elas podem se distorcer com tempo. Se o propósito da memória
é preservar o passado por que as memórias não são confiáveis? Como funciona o
processo de lembrar? O que é importante lembrar? Como a arquitetura auxilia essa
construção memorial?

À frente da ‘escrita da cidade’ ocorrem transformações não somente em termos de


locus, mas também nas maneiras de leitura das suas personagens. Em outras palavras,
a metrópole – narrada - passa a ser um espaço textual, coberto pelo que Bolle (1994)
chama de “escrita da cidade”. Não há mais um herói protagonista, mas sim a cidade e
seus habitantes, que 'tomam a palavra’; não há mais um narrador onipresente, mas
sim um pedestre, um transeunte entregue aos estímulos visuais da rua e das
propagandas, ao barulho do trânsito, que tropeça e esbarra em outros pedestres e
obstáculos. A cidade contemporânea, assim como a interpretação de sua arquitetura,
não é mais caracterizada como um simples lugar de passagem, nem por uma história
configurada em tempo específico, mas “um palco de um teatro profano, onde a
destruição acaba por vencer sempre” (GAGNEBIN, 1999).

13
Para desenvolver a proposta desta dissertação, a busca por uma metodologia de
trabalho que tornasse possível a apreciação dos acontecimentos em ordem não
cronológica, mas experimental, e que abordasse a cidade por uma tessitura de
histórias e memórias, encontrou nas Narrativas um caminho científico.

Tratar da questão das narrativas para interpretar as mudanças que alguns cenários
cariocas vêm passando desde sua colonização, como uma das cidades mais antigas do
Brasil, foi uma escolha difícil. Deste modo, com vários caminhos já definidos por outras
pesquisas no campo da sociologia, da história, da geografia e mesmo da arquitetura,
ao pensar sobre como abordar a caracterização e a compreensão da Rua do Catete, a
ideia de ‘enfocar’ narrativas tornou-se preponderante para efetivar respostas mais
complexas, humanizadoras e críticas sobre esse espaço físico linear e entrecruzante do
bairro do Catete, recorte escolhido.

Qualquer lugar surge nos/pelos relatos memoriais de seus usuários através da


construção de narrativas como registro da memória, que se estrutura nos indivíduos
que vivem e viveram (ou não) determinado espaço físico e social. Através desse re-
trabalho interpretativo das personagens elencadas na Rua do Catete, o passado se faz
presente de forma transfigurada por meio de lembranças encobridoras1 de atos de
memória, revelando uma ‘outra cidade’ e uma ‘outra estória’.

O ato de interpretação do passado se dá na análise e explicação do estado devaneador


no qual se encontra o fenômeno, em sua tradução para a linguagem. Configurando-se
enquanto uma imagem e produto das mudanças morfológicas e político-sociais, surge
esse resgate que se dá através de uma coleção de narrativas, que abordam as histórias
por meio dos relatos dos que souberam/viveram tal história, de alguma forma.

A narrativa surge, então, dessa “coisa” que ainda pulsa, onde não poderemos voltar ao
evento acontecido, onde só se tem acesso aos vestígios desse evento através de
discursos – que são arquivos móveis. O passado, então, se torna essa virtualidade e se
coloca em uma condição de olhar para diversos vestígios e tentar dialogar com tal

1
Desde muito cedo em sua pesquisa, uma característica da memória chamou a atenção de Freud. Em 1899
Freud escreveu um artigo ao qual chamou de Lembranças Encobridoras (Edição Standard das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. III; Ed. Imago, R.J.). Estes registros muito nítidos de fatos
aparentemente irrelevantes, quando analisados, revelam experiências reprimidas da infância.

14
discurso (DELEUZE, Gilles. 1996) onde o passado ainda pulsa e é a matéria prima. O
‘contador de estórias’, que escreve a narrativa sobre essa matéria prima, nunca vai
poder voltar ao evento, ele só tem acesso a vestígios desse evento que vem através de
discursos. O passado então se torna uma virtualidade – em seu caráter máximo, o de
possibilidade.

O principal conceito utilizado para possibilitar essa pesquisa foi, então, o “Palácio de
Memórias” também conhecido como Método de Loci (lugar, em latim),
constantemente utilizado pela maioria dos oradores desde a Antiguidade para
executar seus discursos sem nenhum tipo de apoio, usando apenas a memória. A
escolha pela utilização deste estudo se deu através de pesquisa (Psychological Science,
2003) na qual se constatou que menos de dez pessoas no mundo poderiam memorizar
mais de 20.000 dígitos do numero PI, mas muitas pessoas já interpretaram Hamlet e
memorizam todas as suas falas, que contam quase 50.000 letras, comprovando que ao
associar coisas ou fatos de que queremos lembrar a uma estrutura
física/arquitetônica/material que já vimos, fica mais fácil o ato de recordar através da
criação de narrativas.

Tal estudo também comprovou que toda memória é fortalecida por histórias, e que
nossos cérebros prestam mais atenção a informações que chegam a nós em forma de
narrativas. Em outro estudo liderado pelos pesquisadores Gordon, Bower e Clark 2
solicitou-se que 24 pessoas memorizassem doze listas de dez palavras. Metade
estudou e ensaiou a lista porem as pessoas lembravam em média de 13% das palavras,
a outra metade que transformava as palavras em uma narrativa inventada em suas
mentes, lembrava-se de 93% das palavras.

Após realizarmos as entrevistas com alguns indivíduos descobrimos que as


lembranças, em sua maioria, estão ligadas a lugares da Rua do Catete. Quando o
indivíduo começava a falar sobre a Rua nunca a descrevia como um todo em sua
lembrança, mas sempre focava em algum lugar, de onde iam surgindo as suas
memórias.

2
Gordon H, Bower and Michael C. Clark, Narrative stories as mediators for serial learning. Stanford
University, Stanford, Calf.94305

15
Sendo assim utilizamos como ponto central para esta pesquisa o método do ‘Palácio
de Memórias’, que foi desenvolvido através do Método de Loci onde personagens
foram escolhidos a construírem seus ‘Palácio de Memórias’ através dos lugares
mencionados durante suas entrevistas e onde haviam centrado suas lembranças: em
igrejas, edifícios, escolas ou no próprio Palácio do Catete.

Devemos frisar que ao trabalhar com o indivíduo/coletivo e suas memórias


adentramos a área das representações sociais, onde buscaremos fundamentação nos
estudos do psicólogo social Moscovici (2002) que apresenta as representações sociais
não apenas como fatos coletivos, mas sim contribuídos pelas interações sociais do
sujeito. Para o mesmo a Representação Social não é construída apenas pelas relações
individuais e coletivas.

Para Moscovici (2010) não existe separação entre o universo interno do indivíduo e
seu universo externo, pois ambos se completam. O que a mente do indivíduo
consegue identificar se relaciona aos aspectos físicos e o pensamento antes imaginário
se transfere para a realidade transformando assim o que é estranho em familiar.

Outro importante ponto, advindo desta pesquisa, é a constatação de que algumas


coisas que fortalecem nossas memórias também podem distorcê-las. Normalmente,
com memórias emocionais tendemos a lembrar do aspecto central. Nossa atenção se
foca na essência da experiência, então podemos esquecer alguns detalhes periféricos,
pois memórias não são gravações em alta definição, estão mais para apresentações ao
vivo criadas com a contribuição de diversas partes do cérebro no tempo presente –
uma “ilha de edição” (Wally Salomão). Não lembramos dos mínimos detalhes de toda
uma experiência, então são usados conhecimentos preexistentes como memórias
semânticas ou fatos sabidos para se colarem à narrativa.

Assim, relembrando que esta pesquisa se preocupa, antes, com o papel da arquitetura
em alicerçar tais narrativas possíveis para uma cidade, é possível afirmar que toda
narrativa precisa de uma base espacial – assim como a memória (JODELET, 2002).

Quando consultamos a ‘memória’ (como ideia de arquivo) é como se soubéssemos o


caminho certo para acessá-las. História, espaço e emoção são a base de algumas das
nossas memórias mais fortes.

16
Em suas notáveis teses “Sobre o conceito da historia”, Walter Benjamin (1985) declara
que articular historicamente o passado não significa conhece-lo exatamente como o
mesmo ocorreu e sim significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela cintila em
um instante de perigo.3

Assim como tendências e crenças prévias para preencher lacunas, quando


reconstruímos nossa memória episódica juntamos ‘peças’ da nossa mente, o que
prova que nossa memória episódica é bastante flexível, pois ao deixarmos nossa
mente ‘viajar’, ela mesma se alterna entre o ato de lembrar e imaginar. Como
resultado, o mesmo maquinário que reúne todas essas peças para relembrar o
passado pode reunir algumas dessas pecas, junto a outras, para simular futuros.

Utilizaremos também como arcabouço teórico outros conceitos embasados,


principalmente, nos estudos de Paul Ricoeur (2007) e Walter Benjamin (2010), onde se
funda a ideia de “cidade texto” na obra “Rua de mão única” frente ao impacto da
escrita da cidade, onde a principal personagem é a grande cidade moderna e seu
movimento de destruição do antigo e de construção dos novos tempos que também
virão a serem destruídos no futuro, lugares destinados a vender sonhos, espetáculos e
mercadorias na sua dinâmica fantasmagórica, segundo Benjamin (2010), produzidas
pelo capitalismo.

Através dos estudos de LeGoff (2003) com vistas ao desenvolvimento do viés


história/memória, pretendemos elaborar uma leitura de diversas tensões
contemporâneas. Histórias de vida não são dados adquiridos, são obtidas por
intermédio de narrativas pelas quais os sujeitos se definem; narrar, assim, é instalar
um lugar imaginário para experiências de pensamentos.

Para Ricoeur (1994) o espaço é equivalente ao tempo contado, ou seja, é construído


como um arquivo da memória. O ponto de partida para essa afirmação encontra-se
exatamente na questão: “O tempo torna-se tempo humano na medida em que é
articulado de um modo narrativo, e a narrativa atinge seu pleno significado quando se
torna uma condição da existência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 85). É a partir deste
cenário que usaremos como exemplo a transição da história através do uso de

3
BENJAMIN, W. As Teses sobre o Conceito de História. In: Obras Escolhidas, Vol. 1,. São Paulo, Brasiliense,
1985.

17
narrativas recolhidas in loco na Rua do Catete e onde a narrativa, com sua capacidade
de classificar o discordante e homogeneizar o heterogêneo, possibilita configurar e
reconfigurar criativamente episódios dispersos em um todo coerente.

Através dos estudos das narrativas e do conceito de ‘Palácio de Memórias’


introduziremos a Rua do Catete como objeto de estudo e igualmente como estudo de
caso, ratificando um dos pontos principais para se desenvolver a pesquisa em questão:
a necessidade de aprender com os registros/memórias/discursos do passado para se
fazer compreender o hoje, em diversos cenários de metrópoles mundiais, assim como
para interpretar cidades.

1.1. POR QUE A RUA DO CATETE?

O Rio de Janeiro, como antiga e estratégica capital do Brasil, além de palco de variadas
ações políticas e econômicas e imagem de desenvolvimento nacional no início do
século XX, tem em sua arquitetura um símbolo de evolução e atuação comprometida
com as modificações urbanas, tendo recentemente recebido o título de Capital
Mundial da Arquitetura pela Unesco (2019).4

Assim, o bairro do Catete e a Rua do Catete testemunharam diversas dessas etapas


que ainda hoje configuram a trama urbana e cultural do Rio de Janeiro. Como capital
da República (1897-1960), o Rio de Janeiro reuniu no bairro do Catete o centro das
decisões do país e, o que colocava seu entorno como um dos mais atrativos do país à
época. Sua ocupação ocorreu de modo gradativo, reunindo diversas tipologias de
edificação e de influências estilísticas.

A Rua do Catete viu o aparecimento da Belle Époque; construiu sobrados imponentes;


condescendeu aos modernistas e aos traços geométricos do Art Déco, assistiu à
revolução política e social da década de 1930, à ditadura de Vargas e o início da real
industrialização do Brasil, passou por toda a era desenvolvimentista do período JK,
introduzindo no país as fábricas automotivas e realizou a construção de Brasília,
mudando para a cidade o centro de decisões do país, mas, com a transferência da
capital para Brasília, o bairro sofreu marcado esvaziamento.

4
https://nacoesunidas.org/unesco-declara-rio-de-janeiro-a-1a-capital-mundial-arquitetura/

18
A Rua do Catete também sofreu com a destruição da passagem com a passagem do
metrô no final dos anos 1970, com inúmeras desapropriações de imóveis nas áreas das
obras que cortaram ruas da cidade e castigaram os moradores durante sua execução.
O bairro do Catete foi um dos bairros que sofreu uma grande transformação em razão
das mudanças e interdições que as obras trouxeram para o ambiente. Deste modo, os
caminhos para estudar tal recorte espacial e temporal provem onde a história é uma
ação que se articula com a memória.

O estudo da Rua do Catete a partir do conceito de memória e do estudo das narrativas


traz em si um desafio: como estabelecer o limite entre História e Memória? Em que
momento a pesquisa poderia ultrapassar a linha divisória entre esses conceitos e cair
na área de historiografia?

Paul Ricoeur vê na supressão da historicidade através da história da filosofia


o paradoxo do fundamento epistemológico da história. De fato segundo
Ricoeur, o discurso filosófico faz desdobrar a história em dois modelos de
inteligibilidade, um modelo de acontecimentos (événementiel) e um
momento estrutural, o que leva ao desaparecimento da historicidade. (LE
GOFF, 2016, P.23)

No texto acima, Le Goff (2016) cita Ricoeur para explicar o paradoxo entre história e
memória a partir da questão de onde a História se situa, se a mesma se encontra no
limite do fato ou no limite da teoria ou ainda na compreensão da estrutura. É
interessante perceber que, para Ricoeur (2007) a historicidade é muito importante em
qualquer um dos extremos, no fato, no fenômeno em um momento especifico ou na
estrutura por si só despida da ação humana. O momento de capturar a história é
quando esta se aproxima dos extremos desses conceitos sem, entretanto, atingi-los.

Neste sentido, Ricouer (2007) discute essas fronteiras, tratando assim o que seria a
consciência, em “A Memória, a História e o Esquecimento”: memória, para o autor,
seria maneira de se manter vivo um evento ou um tempo, sendo fixada e construída a
partir do aporte emocional. Muitas vezes um fato pode ser deturpado pela lembrança,
enquanto ação de uma representação, como mencionamos acima. Apesar de ser o
combustível da história, a memória não deve ser tomada como um testemunho
documental, da mesma forma que documentos também não são neutros. A ideia de

19
narrativas que surgem de diversas fontes (documental, pessoal e ‘estrangeira’ – o
Outro) traz então o papel representacional que a memória pode trabalhar, fundando
um contexto mais refinado de interpretações.

Os conceitos de memória de Paul Ricoeur (2007) permitem traçar linhas de raciocínio e


de compressão da realidade na construção de narrativas, trabalhando as mesmas em
diferentes escalas de tempo. A adoção da metodologia do “Palácio de Memórias”, as
relações espaciais memorizadas são utilizadas para estabelecer, ordenar e coletar
conteúdo memorial. Analisaremos assim o objeto de estudo, a Rua do Catete,
localizada na cidade do Rio de Janeiro.

Na busca pela recuperação dessas memórias urbanas, o passado tende a ser recriado
de forma a refletir nítida e metaforicamente os desejos do presente. Esta recriação
passa por interferências de ordem subjetiva e torna-se, para nós, um objeto de análise
sensitiva. Trata-se de uma construção, e como tal precisa passar por algum viés de
abordagem.

Podemos lembrar o passado não apenas como uma espécie de culto ao acontecido.
Theodor Adorno aborda a exigência de não esquecimento não como um apelo a
comemorações solenes (apesar de ser um judeu sobrevivente), e sim como uma
exigência de análise esclarecedora que deveria produzir instrumentos de análise para
melhor esclarecer o presente e desconstruir histórias fixadas.

1.2. TRILHANDO A PESQUISA

Levando em consideração que a Rua do Catete não possui um relato coeso sobre ‘seu
tempo’ e que, mesmo com toda a sua bagagem histórica, praticamente não se escreve
muito sobre ela após o esvaziamento de poder, não há muita bibliografia no campo da
arquitetura sobre esse espaço físico tão importante historicamente para o Rio de
Janeiro, e neste caminho pretendemos trilhar.

Desta forma, a pesquisa tem como objetivo geral analisar as mudanças de cenário da
Rua do Catete através de narrativas proporcionadas por personagens em relação à
vivência do espaço pelo ‘Palácio de Memórias’, de modo a evidenciar um cenário
atual complexo e reforçar a conexão memória/espaço físico.

Como objetivos específicos da pesquisa podemos relacionar:

20
 delinear a evolução urbana da Rua do Catete no recorte temporal da pesquisa,
de modo a contemplar o viés fenomenológico e cultural possível do espaço
físico;

 identificar como as relações cotidianas afetam e são afetadas pela/na Rua do


Catete, através do estudo da construção das narrativas das personagens do
lugar;

 contribuir para os estudos sobre ambiências culturais a partir de uma


abordagem multidisciplinar no campo da arquitetura e do urbanismo.

As justificativas aplicáveis a este trabalho, dentre tantas apontadas acima, se


relacionam com as constatações sobre as quais discorreremos a seguir, dadas as
condicionantes que denotam a utilidade desta pesquisa tanto no campo acadêmico
quanto para o desenvolvimento urbano das cidades brasileiras, para sua história e para
a sociedade.

É possível refletir sobre narrativa, memória e corpo para conseguir a interpretação do


espaço que, construído, se transforma em um ‘arquivo de memória’. Através de atos
de memória, o passado se faz presente de certa forma alterado pelas lembranças
“inventadas” e se reflete nos corpos/personagens. Sendo assim, a memória possui um
lugar e este se encontra inscrito no espaço onde apresenta inúmeras temporalidades.

Tendo justificado os motivos para empreender esta pesquisa no campo da arquitetura


e urbanismo, entendemos que é importante mencionar que a escrita e a narrativa oral
não são fontes excludentes entre si, mas sim complementares; por isso trataremos das
narrativas pelo viés documental, através das análises feitas pela pesquisadora que
lidera esta pesquisa: as narrativas memoriais de personagens selecionadas, por meio
de abordagens diretas a frequentadores da Rua do Catete.

O caminho metodológico escolhido parte, assim, da identificação dos principais


conceitos e das ferramentas dos autores descritos no início do texto e sobre a
elaboração e a aplicação das entrevistas, entendidas como um dos principais métodos
e técnicas da pesquisa aqui apresentada.

A dissertação aqui apresentada se encontra estruturada da seguinte forma:

21
Após a introdução entraremos no segundo capítulo onde será explicado o recorte
físico e temporal utilizado para o estudo da Rua do Catete; serão tratados pontos
importantes da sua história que interferiram na evolução da Rua, como a saída da sede
da República e os impactos do espaço físico das obras do Metrô.

No terceiro capítulo apresentaremos toda a fundamentação e arcabouço teórico


utilizado como estudo para reconhecimento das teorias analisadas. Analisaremos a
ideia de corpo, enquanto estrutura que percorre cidades, de narrativas e de memória,
usando como base os estudos de Paul Ricoeur (2007). Abordaremos como foi
trabalhado e utilizado o conceito de “Cidade Texto”, tratado por Walter Benjamin
(2010). Ao final, será apresentado o conceito de ‘Palácio de Memórias’ e abordaremos
como foi trabalhado e utilizado o conceito de “Cidade Texto”, tratado por Walter
Benjamin (2010).

O quarto capítulo apresentará o desenvolvimento da metodologia utilizada para a


elaboração dessa dissertação. Serão selecionados personagens importantes dessa Rua
que através de entrevistas abertas contarão suas narrativas de memórias do espaço,
criando ‘Palácios de Memória’. Os lugares e personagens serão observados através de
relatórios etnográficos feitos por meio de anotações dos episódios observados no local
e croquis. A partir dos dados coletados com as entrevistas, relatórios e desenhos
etnográficos serão construídas narrativas de memória dos personagens através da
aplicação do método “Palácio de Memórias”.

As análises aparecem no quinto capítulo, ou seja, as Tessituras Cateteanas, onde se


confrontam as teorias (narrativas de memórias e Palácio de Memórias) e os teóricos
(Ricoeur, Benjamin, Moscovici, Le Goff, entre outros) com as respostas obtidas pela
ação experimental da metodologia. Será apresentada, ao final, uma narrativa
construída pela autora mostrando essa outra “estória” da Rua através da coesão das
narrativas descritas pelas personagens escolhidos, elencando pontos de ‘cicatrizes’ da
evolução urbana tanto no espaço como no indivíduo.

No ultimo capítulo apresentamos as Considerações Finais que consistem nas


conclusões. Chegamos ao final desta dissertação após o estudo do objeto a partir do
uso dos conceitos abordados.

22
A proposta deste estudo, após toda a introdução, é que uma “Outra Estória” denote, a
partir de uma nova perspectiva, a visão daqueles que viveram diferentes estórias e
podem, assim, contar sobre uma (nova) cidade, feita de muitas arquiteturas.

2. RUA DO CATETE, UM PASSEIO PELO TEMPO.

Originalmente, o Caminho do Catete era utilizado por índios para buscar água no braço
esquerdo do rio Carioca. Com a ocupação portuguesa, o caminho passou a interligar
engenhos de açúcar ao restante da cidade.

O termo Catete tem sua origem no tupiguarani caá-etê e significa 'mato


escondido', 'mato cerrado'. Outros autores afirmam que a denominação
pode se referir a um milho pequeno chamado batité. Na área que engloba os
atuais bairros do Catete, Glória e Largo do Machado, ocorreram eventos de
papel fundamental na História do Brasil. (PCRJ, 2017).

A história da Rua Catete remonta ao início do século XVIII quando a região era ocupada
por chácaras e olarias. Foi nessa época que o trecho passou a ser chamado Estrada do
Catete, essa que deixou para trás más lembranças, por que ao ser descrito a D. João VI
por padre Perereca, o eclesiástico não usou nem meia página em sua descrição:

A estrada do Catete é larga, e por um e outro lado poucas casas tem à frente
dela, sendo quase toda bordada de cercas das chácaras, que ocupam o
terreno, por onde passa a dita estrada, mas sobre os outeiros até a praia de
Botafogo, inclusivemente se veem muitas e boas casas de campo.(APUD
GERSON, 2013, p. 293)

Já no inicio do segundo reinado a rua é transformada, ficando estreita, curva e tomada


por residências de alto valor aquisitivo, onde buscaram habitar fidalgos e abastados
comerciantes. A mais famosa delas, a do desembargador Manuel Jesus de Valdetaro, já
antiga no local, onde a estrada se ampliava e formava um largo denominado
Valdetaro. Donos de muitas terras, os Valdetaros possuíam uma em especial, que se
transformaria após alguns anos em palácio presidencial. Porém, antes disso, entre
1856 e 1867, abrigou a residência urbana do Barão de Nova Friburgo, projetada pelo
arquiteto alemão Gustav Waehneldt e situada na esquina das ruas do Catete e Silveira
Martins. Através da leitura de Gerson (2013) descobre-se por que o arquiteto não

23
colocou o palácio no meio do parque e sim na estranha posição que se encontra, nas
esquinas das Ruas do Catete com Silveira Martins.

Relembrava há pouco Teófilo de Andrade que foi por causa da Baronesa, no


dia em que pela primeira vez viu seus alicerces sendo lançados: - Ó, Barão,
pensas que vou descer lá da Fazenda, no meio do mato, para viver aqui
cercada de mato também? Quero a casa dando de janelas para a rua!
(GERSON, 2013, p. 293)

Segundo Gerson (2013), no regime republicano, o Catete se foi bem depressa


aburguesando, no sentido que tem a palavra burguês de coisa vulgar e corriqueira. Já
não era mais o bairro aristocrático e sim de gente média e casas de móveis, condição
essa que nele, nesse século, se veio misturar com outra aposta, de bairro de
estudantes na sua maioria boêmios, de escritores e jornalistas propensos à boêmia.

FIGURA 1 – “O IMPONENTE PALÁCIO DO CATETE, ANTIGO PALÁCIO DE NOVA FRIBURGO. AO FUNDO NA ESQUINA COM A RUA
SILVEIRA MARTINS, VÊ-SE O PRÉDIO ECLÉTICO DA ESCOLA PÚBLICA RODRIGUES ALVES DEMOLIDO PELAS OBRAS DO METRÔ.
ENTRE POVO, MILITARES E POSSÍVEIS AUTORIDADES DESTACAM-SE, GARBOSA, EM PRIMEIRO PLANO, UMA GALINHA” (PAG.
295).
Fonte: GERSON, Brasil. Histórias das ruas do Rio. 6. ed. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2013.

24
FIGURA 2 – RUA DO CATETE, EM 24/01/1906. OBRA DE INSTALAÇÃO DOS TRILHOS DOS BONDES. DESTAQUE PARA O
PALÁCIO DO CATETE - HOJE MUSEU DA REPÚBLICA. FOTO DE AUGUSTO MALTA
Fonte:Acervo (IMS)

No ano de 1897, a sede da


República se instala no edifício
que passa a ser conhecido por
Palácio do Catete e todo o seu
entorno sofre mudanças de
ambiente e identidade. Políticos
começaram a se instalar em
hotéis e residências no bairro.
Aqueles que já desfrutavam de
prestígio, como o Hotel dos
Estrangeiros, localizado na Rua
Barão do Flamengo, onde
atualmente se encontra o
Condomínio do Edifício Simon
Bolívar, tornaram-se sede de
articulações políticas famosas.

FIGURA 3 – MAPA DA ÁREA DO CATETE NO ANO DE 1897


Fonte: https://imaginerio.org/

25
O Rio de Janeiro, Capital da República (1897-1960), reuniu no bairro do Catete o centro
das decisões do país, o que, por conseguinte, colocava seu entorno como um dos mais
atrativos do país à época. Sua ocupação ocorreu de modo gradativo, reunindo diversas
tipologias de edificação e de influências estilísticas. Posteriormente, com a
transferência da capital para Brasília, o bairro sofreu marcado esvaziamento.

O Catete testemunhou diversas etapas que configuraram a trama urbana e cultural do


Rio de Janeiro. Como aponta Paulo Knauss (2013) viu o aparecimento da Belle Époque,
construiu sobrados imponentes, condescendeu aos modernistas e aos traços
geométricos do Art Déco, assistiu a revolução política e social da década de 30, a
ditadura de Vargas e o início da real industrialização do Brasil, passou por toda a era
desenvolvimentista do período Juscelino Kubitschek que introduziu no país as fábricas
automotivas e realizou a construção de Brasília, mudando para a cidade o centro de
decisões do país.

Isso leva a uma percepção da história desgarrada da experiência do


presente e que não permite perceber o quanto estas áreas urbanas se
constituíram como espaços idealizados da cidade. Nesses termos é que se
pode dizer que os bairros históricos se constituem como lugares de
memória. (Knauss, 2013, p.14 ).

Um novo projeto de urbanização do Catete previa a reformulação completa da área.


Todas as casas, palacetes, prédios e sobrados seriam demolidos para que no local
fossem construídos edifícios baseados no Plano Agache5. Apenas um edifício, na
esquina da Rua Almirante Tamandaré, foi construído seguindo o modelo do Plano - o
restante do projeto não chegou a sair do papel.

5
“Na memória dos cariocas, ele não desfruta do mesmo prestígio de Pereira Passos ou Pedro Ernesto. Mas,
justiça seja feita: o paulista Antônio Prado Júnior foi o primeiro governante do Rio a patrocinar um plano-
diretor para o então Distrito Federal. Sua gestão, entre 16 de novembro de 1926 e 24 de outubro de 1930,
foi marcada pela abertura de ruas, calçamento, mudanças de alinhamento, obras de saneamento e
construção de escolas. Filho de uma família tradicional, nomeado pelo amigo e presidente da República
Washington Luís, Prado Júnior, que não tinha curso superior, contratou o urbanista francês Alfred Agache
para elaborar o Plano de Remodelação, Extensão e Embelezamento da Cidade. O projeto, que ficaria
conhecido como Plano Agache, pretendia organizar o crescimento do Rio, determinando áreas de expansão,
prevendo a criação de redes de serviço e tratando da instalação da infraestrutura urbana. O trabalho do
urbanista nunca foi inteiramente aplicado no Rio, embora tenha servido de base para meia dúzia de planos
diretores.” (Acervo Jornal O Globo, Publicado: 17/10/13 - 13h 01min)

26
FIGURA 4 - NA FOTOS ACIMA, VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO NA ESQUINA DA
RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ.
Foto da AUTORA, 2018.

FIGURA5 – LOCALIZAÇÃO EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO NA ESQUINA DA RUA
ALMIRANTE TAMANDARÉ.
Fonte: Indicação da Autora sobre Google Maps

O Projeto de reurbanização do Catete implica em uma tática de renovação


fundamentada na intervenção no espaço público em que o processo de elaboração
exige trabalhar a fragmentação da cidade. Existe, entretanto, uma fragmentação

27
negativa que é a exclusão, e uma fragmentação positiva que permite a multiplicidade
de identidades, sendo essa esta última a que se buscou trabalhar no Catete no ano de
1996 durante a execução do projeto Rio Cidade.

Com projeto de Jorge Mario Jáuregui6, a intervenção do projeto Rio Cidade (1996) na
Rua do Catete consistiu na reformulação do eixo viário/comercial/histórico que
conecta o centro da cidade com os bairros da zona sul, o que resultou em
transformações urbanísticas como a modificação do traçado e dos níveis das ruas e a
criação de praças. As transformações infraestruturais demandaram obras importantes
de drenagem (embora a Rua do Catete ainda hoje alague em alguns trechos em dias de
fortes chuvas), novo mobiliário urbano e plantio de renovação das áreas de jardins.

O projeto buscou planejar uma conexão entre o “lugar histórico” e o “lugar presente”,
onde o histórico registrado nos monumentos e nos sobrados recebeu tratamento de
materiais, equipamentos e iluminação diferenciados do resto, já o atual ficou
registrado na sequência de singularidades do bairro.

A Praça José de Alencar foi reformulada, a estátua do escritor que dá nome à praça,
sentado em uma cadeira no centro de uma rótula, é semelhante à que existia no local
no início do século. A rótula fica no início da Rua do Catete, dividindo os bairros do
Catete, Laranjeiras e Flamengo.

Anteriormente à reformulação da praça, o local era perigoso e de difícil trânsito para


os pedestres. A reformulação da via impôs limites à circulação dos automóveis
favorecendo o transeunte. O traçado das ruas foi modificado e ocorreu todo um
tratamento dos pisos, ao redor da praça foi instalado um “traffic calming” através do
uso de paralelepípedos com a finalidade de reduzir a velocidade da passagem dos
automóveis na área.

6
Jorge Mario Jáuregui é um "carioca" de origem Argentina. Entre seus principais trabalhos, todos na cidade
do Rio de Janeiro, estão a Requalificação Urbana da Rua do Catete (programa Rio-Cidade); o Mobiliário
Urbano para a zona sul e a Urbanização de mais de vinte favelas em diferentes locais da cidade (Programa
Favela-Bairro).

28
FIGURA 6 – PRACA JOSE DE ALENCAR 1906, FOTO DE AUGUSTO MALTA.
Fonte: Acervo (IMS)

FIGURA 7 – PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR, 1996.


Fonte: http://jauregui.arq.br/cidformal.html

29
O Largo do Machado também foi reformulado, tendo sido realizada a restauração do
projeto paisagístico de Burle Marx, e previsto o estacionamento subterrâneo (não
concretizado) e a elevação do nível da Rua que dá continuação a Rua Gago Coutinho, a
agrupando ao domínio dos pedestres.

Entre as Ruas Correa Dutra e Pedro Américo, onde se localiza a área histórica do bairro
com os sobrados do século XIX e o Palácio do Catete, foi feito um novo traçado da via
onde as calçadas receberam pisos de granito semelhantes ao já existentes na calcada
do palácio. Essa mesma calçada foi alargada com o intuito de criar uma praça 7 que, se
concretizada, seria usada como um lugar para extensão das atividades do centro
cultural do Museu da República.

Encontramos alguns desajustes na nova articulação urbana, como a praça8 surgida pela
demolição da escola Rodrigues Alves, vizinha do Palácio da República, onde foi
construída a Praça Fernando Pessoa, mais conhecida como Praça do Poeta.

FIGURA 8 – CROQUIS RIO CIDADE PARA A PRAÇA DO POETA


Fonte http://jauregui.arq.br/cidformal.html

Apesar da Rua do Catete ‘respirar história’, o projeto do Rio Cidade (1996) deixa claro
que não buscou reconstruir o passado, não buscou utilizar a memória coletiva como

7
Esta praça acabou não vingando, pois elaborada sem mobiliário urbano utilizável pela população, se
tornou somente um local de passagem e saída do metrô. Neste mesmo conjunto da reforma, a Rua do
Catete ainda possui duas “praças” que não deram certo, uma delas é o espaço localizado na entrada da Vila
Elite, vizinha ao antigo prédio da UNE; o espaço foi revitalizado e pensado em torno de uma grande boca de
ventilação do metrô, mas o mesmo não possui qualquer relação com as atividades locais ou com a escala do
corpo humano, estando em estado de abandono.

8
Acreditamos que a morfologia urbana não seja de uma praça e sim um lugar com uma saída do metrô, sem
mobiliário urbano, sem dimensionamento e sem uso cotidiano. No ano de 2019, encontrava-se cercada por
grades.

30
referência e, sim, resolver alguns lugares remanescentes da obra do metrô e da Rua do
Catete, o que fica claro nas palavras do arquiteto Jaurégui quando diz que “o projeto
trata-se de uma memória apontando para o futuro, para a práxis e não para o
passado” (JAURÉGUI,1996)

Apesar das inúmeras mudanças que a Rua do Catete passou após os planos
urbanísticos durante os anos, uma das suas maiores mudanças de identidade não se
deu por culpa de nenhum desses planos e sim pelo esvaziamento econômico que
ocorreu após a saída da sede da República do Palácio do Catete, como veremos no
capítulo a seguir.

2.1. UM PONTO DE INFLEXÃO: A SAÍDA DA SEDE DA REPÚBLICA

A mudança da capital do Brasil para Brasília não ocorreu de uma hora para outra, o
primeiro a ter um pensamento mais concreto sobre Brasília veio a ser Jose Hipólito da
Costa9 que, em 1813, sugeriu que a capital brasileira fosse transferida para algum
lugar no interior do Brasil, pois segundo ele, seguindo o que já havia dito o frei Vicente
do Salvador em 1627, os Portugueses e depois os brasileiros viviam como caranguejos,
só na costa, e quase todo o vasto interior permanecia desconhecido.

Segundo esta visão era necessário interiorizar ação brasileira no coração do seu
próprio território. José Bonifácio de Andrade e Silva10 concordava com essa ideia e não
apenas sugeriu que a capital fosse levada de fato para o interior do país, como a
batizou de Brasília. Quando a primeira constituição de 1824 é redigida, registra-se na
mesma que a capital do país deveria ir para o interior do Brasil.

Em 1855 o historiador brasileiro Francisco Adolfo Varnhagem começou a defender


firmemente a tese de que a cidade já chamada Brasília fosse construída em algum
lugar no interior. Além de historiador, Varnhagem conhecia muito bem o “corpo” do
Brasil e sugeriu que a capital fosse erguida no Planalto Central, chefiando em 1877

9
Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça (1774 -1823) foi um jornalista, maçom e diplomata
brasileiro, patrono da cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras.
10
José Bonifácio de Andrada e Silva Santos( 1763-1838) foi um naturalista, estadista e poeta luso-brasileiro,
conhecido pelo epíteto de Patriarca da Independência por seu papel decisivo na Independência do Brasil.

31
uma expedição que demarcou o local da futura capital entre as lagoas Feia e Formosa,
no Planalto Central, onde ele acreditava que deveria ser erguida a capital.

A Constituição de 1824 já sugeria a transferência da capital para o interior, o que foi


mantido pela primeira Constituição da República, em 1891, e pelas Cartas de 1934 e
1946.

Sendo assim Juscelino Kubitschek reacende a ideia que já vinha sendo arrastada havia
mais de cem anos, faz de Brasília uma promessa de governo reafirmada logo após sua
posse, em janeiro de 1956.

Segundo Vidal (2012) o operário que conduz meticulosamente a cerimônia dessa saída
é o próprio presidente Juscelino Kubitscheck. Se concordarmos com Merleau-Ponty
(1991) que a Política é “uma ação que se inventa”, a de Juscelino Kubitscheck é a
totalizada elucidação dessa afirmativa. Com sua candidatura lançada em novembro de
1954 pelo PSD, Juscelino Kubitscheck impôs já no início de sua campanha um estilo de
procedimentos que rompiam com os dos seus antecessores, multiplicando em
especial, o contato direto com a população.

Kubitscheck buscava uma grande adesão da população às suas ações e assim se


expressava toda a sua arte política. Para isso, apoiava-se em uma aptidão quase que
intuitiva de manifestar as expectativas do povo em gestos e em palavras, embora
tenha tido dificuldades para ser aceito. Apresentando um programa extremamente
técnico, organizado em trinta objetivos, acabou não conseguindo adesão das massas,
pois apresentava um discurso pouco mobilizador sobre a necessidade de um respeito
escrupuloso à Constituição. A construção de Brasília como nova capital determinou o
sucesso de sua candidatura.

Foi então que, em sua equipe de campanha, surgiu a ideia de incluir no


programa a construção de Brasília - nova capital do Brasil.[...] O projeto de
mudança da capital foi anunciado por ocasião de um comício organizado
numa cidade pequena e insignificante do estado de Goiás. Em três de
Outubro de 1955, por ocasião do primeiro turno, quatro candidatos se
apresentam ao sufrágio dos eleitores: [...] Kubitschek obteve 36% dos votos,
Távora, 30%, Barros, 26% e Salgado, 8%. Com esse escore de 36%,
Kubitschek foi eleito no primeiro turno. (VIDAL, 2012, p.25 a 31)

32
FIGURA 9 – NOVA CAPITAL. O PRESIDENTE JUSCELINO KUBITSCHEK (AO CENTRO) COM UMA DAS MAQUETES DE BRASÍLIA
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/21-de-abril-de-1960-dia-em-que-rio-de-
janeiro-deixou-de-ser-capital-federal-8898992#ixzz5mKPhfEKK Acesso em: 13 jan. 2019.

Em 19 de setembro de 1956, Juscelino aprovou a Lei 2.874 que estabelecia os limites


do futuro Distrito Federal e autorizou o governo a instituir a Companhia Urbanizadora
da Nova Capital. Ao deixar de ser a capital, o Estado Guanabara não perdeu só o poder,
mas também dinheiro. A cidade ganhou autonomia politica, porém sofreu um grande
esvaziamento econômico. Como consequência, a grande maioria dos funcionários
públicos precisou ser transferida para a nova capital, o que também ocorreu com
dezenas de empresas que preferiram estar perto do centro do poder. No caso dos
bancos, o destino foi diferente, estes preferiram a cidade de São Paulo que se
consolidava como a maior metrópole do país.

O Rio de Janeiro passou assim à condição de Cidade-Estado, o Estado da Guanabara. A


autonomia política, entretanto, viria a naufragar na década seguinte, durante a
ditadura militar. Em 1974, o presidente Ernesto Geisel promoveu a fusão da ainda rica
Guanabara com o Estado do Rio de Janeiro, que resistia a duras penas, com uma
economia basicamente ancorada na agricultura.

É mais que evidente que esse dia especial da transferência da capital para Brasília não
foi assimilado com facilidade, mesmo pelas testemunhas mais próximas. À distância
pode até parecer que o passado está enterrado, exaurido pela história, mas na
realidade é outra na memória de quem a viveu.

33
É como se um mecanismo maligno escamoteasse o acontecimento no
instante em que ele acaba de mostrar o rosto, como se a historia exercesse
censura nos dramas de que ela é feita , como se gostasse de se esconder, só
se entreabrisse para a verdade em breves momentos de confusão e no
restante do tempo se esforçasse para frustar as “superações”, em
reproduzir as fórmulas e os papéis do repertório e, em suma, nos persuadir
de que nada se passa. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 1).

FIGURA 10 – SEGUIDO DA FAMÍLIA E DOS MEMBROS DO GOVERNO, O PRESIDENTE DESCE OS DEGRAUS DO PALÁCIO DO
CATETE. DIVULGADA EM TODA A IMPRENSA, A IMAGEM VIRIA A SER A REPRESENTAÇÃO OFICIAL DA PARTIDA DO PODER.
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/rio-de-historias/inauguracao-de-brasilia-encerra-ciclo-de-dois-
seculos-de-poder-do-rio-de-janeiro-8929190 Acesso em: 13 jan. 2019.

Para alguns a transferência foi vista como um acontecimento grandioso e motivo de


orgulho para o país. Para outros, o esvaziamento de poder não foi visto com bons
olhos e sim como responsável pelo abandono do Rio de Janeiro e pela decadência do
bairro do Catete.

A população buscava respostas e se mobilizava através de publicações e debates


parlamentares, alcançando assim meios de comunicação de massa. O rádio, que era
um dos meios de comunicação de maior audiência na época, noticiava e debatia o
assunto a todo o momento, fazendo com que se propagasse.

34
Em 1960, a Rua do Catete, que antes era um lugar de pausa, se transformou em um
local de passagem e, apesar de seu forte comércio, ocorre um grande esvaziamento. A
população de classe média alta que ali vivia buscou lugares de maior poder aquisitivo
para habitar, os hotéis que recebiam grandes autoridades sobreviveram por um tempo
transformados em pensões, e fechando as portas com o tempo. A população de rua
tomou conta do bairro e a Rua do Catete, mesmo tendo todo seu glorioso passado,
acabou esquecida, mantendo somente seu estado simbólico que é sustentado pela
existência do Museu da República e as lembranças de quem viveu esses
acontecimentos.

Na representação de alguns moradores do entorno do antigo Palácio do Catete a


partida da capital para Brasília está guardada como uma despedida muito triste e
preocupante para a população. Muitas vezes uma imagem fala mais que um longo
discurso. No jornal “O Diário da Noite” de 20 de abril de 1960, uma charge representa
a “Cidade Maravilhosa” como uma mulher em farrapos. A cena se passa na Baía de
Guanabara, com o Pão de Açúcar e o Corcovado ao fundo. Em primeiro plano, com os
pés na água e os punhos erguidos, a mulher maldiz o avião presidencial que voa diante
de seus olhos gritando: “Vai, vai para a sua Brasília de uma vez, ingrato... Mas dor de
barriga não dá uma vez só”.

FIGURA 11– “VAI, VAI PARA A SUA BRASÍLIA DE UMA VEZ, INGRATO... MAS DOR DE BARRIGA NÃO DÁ UMA VEZ SÓ”
Fonte: Diário da Noite, 20 de Abril de 1960. Acervo fundação Biblioteca Nacional – Brasil

35
2.2 A PASSAGEM DO METRÔ / IMPACTOS NO ESPAÇO FÍSICO

Apesar de os estudos para sua implantação datarem de 1928, o metrô chegou ao Rio
de Janeiro no final dos anos 1970. Se compararmos com Estados Unidos e Europa,
podemos dizer que chegou com mais ou menos cinco décadas de atraso. Embora o
governo tenha tentado buscar auxílio do metrô de Paris e discutido sobre técnicas de
projeto, a sua inauguração só ocorreu em 5 de março de 1979.

Com inúmeras desapropriações de imóveis nas áreas do metrô, as obras cortaram ruas
da cidade e castigaram os moradores durante sua execução. O primeiro trecho
inaugurado, da Glória à Praça Onze, tinha 5,1 quilômetros e cinco estações e foi
inaugurado pelo presidente Ernesto Geisel, a dez dias de deixar o governo. Em 1980
ocorre a inauguração das estações Uruguaiana e Estácio, seguindo da estação Carioca
em Janeiro do ano seguinte. No mesmo ano foram inauguradas ainda as estações
Catete, Flamengo e Botafogo, e em novembro foi inaugurada a Linha 2, apenas com as
estações São Cristóvão e Maracanã. Em dezembro, foi a vez da estação Largo do
Machado.

FIGURA 12- O PRESIDENTE GEISEL, O GOVERNADOR DO RIO, ALMIRANTE FARIA LIMA, O GENERAL FIGUEIREDO E NOEL
ALMEIDA (PRESIDENTE DO METRÔ) INAUGURAM TRECHO GLÓRIA-PRAÇA ONZE 5/3/79
Fonte: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/com-50-anos-de-atraso-rio-ganhou-metro-em-
marco-de-1979-inaugurado-por-geisel-12092759#ixzz5mMJKhD3g ·.

O bairro do Catete foi um dos bairros que sofreu uma grande transformação em razão
das mudanças e interdições que as obras trouxeram para o ambiente. O tecido urbano

36
que se encontrava consolidado desde o meio do século XX, após passar por mudanças
desde a gestão do prefeito Pereira Passos, se esvaeceu. Entre as principais mudanças,
figura a demolição de grande parte dos sobrados que, durante o Brasil Colônia e o
Império, foram residências das elites, grandes referências do bairro e da cidade, como
a garagem dos bondes, o Cinema São Luiz e o Café Lamas, que faziam parte do casario
do lado ímpar da rua, sem esquecer a Escola Rodrigues Alves, vizinha do Palácio do
Catete, também colocada abaixo pelas obras do metrô.

A demolição de grande parte do casario de numeração ímpar da Rua do


Catete destruiu o cenário bucólico, embora sombrio, daquela rua. O largo
que se abria no espaço fronteiro ao Palácio do Catete, após um percurso
estreito em curvas, era de uma dramaticidade inigualável. Hoje, uma ampla
perspectiva se abre de longe, acabando com aquele fator que a urbanista
portuguesa Maria da Luz chama de espaço da surpresa. (PCRJ, 2017)

O bairro ficou totalmente sitiado durante as obras do metrô, os moradores viviam


entre as ruínas dos velhos prédios que antes abrigavam as mais tradicionais lojas de
moveis da cidade, bares boêmios e cinemas tradicionais. E vivendo entre os bares e
esquinas que restaram de pé enfrentavam problemas que duraram alguns anos, como
o lixo que se acumulava, a falta de luz, de gás, o telefone que falhava e o imenso
barulho. Apreensivos, os comerciantes aguardavam em suas lojas vazias o tão
esperado dia da reurbanização. O quarteirão que menos sofreu com demolições de
edifícios foi o que vai da Rua Correa Dutra ate a Rua Silveira Martins em frente ao
Palácio do Catete, pois os imóveis são tombados pelo Patrimônio Histórico Artístico
Nacional.

Segundo Gerson (2013, p.298) um turista americano, ao ver o centro do Rio tão cheio
de buracos, disse ironicamente: “Que cidade maravilhosa será esta quando ficar
pronta!” sendo que as obras do metrô nem haviam começado. Se ele voltasse em 1975
e passasse pela Avenida Presidente Vargas, pela Uruguaiana, pela Treze de Maio, pela
Cinelândia, pela Glória, pela Rua do Catete, por certo que sua pergunta seria outra:
“Mas que bombardeio esta cidade sofreu, se nenhum jornal de Nova York deu notícias
deles?”

37
Durante o dia, o bairro do Catete era considerado insuportável pelos moradores,
comerciantes e transeuntes, mas à noite para os moradores a situação era pior. Um
morador antigo, vamos chamá-lo de o Viúvo do Bonde, 82 anos de vida e 70 anos de
Catete. lembra que: “Não adiantava reclamar, eles paravam o barulho por alguns dias,
mas depois de um tempo as máquinas voltavam a trabalhar e faziam barulho 24 horas,
não existia nenhum respeito pela hora do sono, entravam madruga adentro. Era uma
loucura, não sei como a gente aguentou.”

FIGURA 13- A FOTO ACIMA MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DA RUA SILVEIRA MARTINS EM FRENTE AO PALÁCIO DO
CATETE, PODEMOS NOTAR O TERRENO VAZIO ONDE SE ENCONTRAVA ANTES A ESCOLA RODRIGUES ALVES.
Fonte: http://www.espengenharia.com/novo/wpcontent/uploads/2017/07/01-9.jpg

Segundo o Viúvo do Bonde, nada se compara à época da construção do metrô:

“Lamento comunicar que após as obras do metrô o Catete morreu, pode


anotar ai no seu caderninho. Um bairro que já teve seus tempos de glória foi
um antigo domínio da aristocracia, boêmio e pioneiro na história dos
transportes urbanos. O Catete teve a primeira linha de bondes puxada por
burro, ela fazia ponto ali no final do Largo do Machado. Hoje acho que o
Catete padece por força do seu pioneirismo (O Sr. Solta uma gargalhada).
Durantes as obras do metrô passar um dia nessa rua era um inferno, estava
tudo destruído. Longe de mim contestar o progresso, mas não precisava ter
feito tudo isso. Foi muito triste ver a Escola Rodrigues Alves que ficava ali na

38
esquina da Rua Silveira Martins ser demolida, ela foi construída pelo
prefeito Perreira Passos, era um primor de colégio, funcionava como
dependência burocrática do Palácio.”

FIGURA 14- A FOTO MOSTRA A ESCOLA RODRIGUES ALVES, NA ESQUINA DA RUA DO CATETE COM A RUA SILVEIRA
MARTINS. O IMÓVEL FOI DEMOLIDO DURANTE AS OBRAS DO METRÔ NA DÉCADA DE 1970.
Fonte: http://luizd.rio.fotoblog.uol.com.br/images/photo20150826065118.jpg

Em pesquisas em jornais da época ou conversas com antigos moradores realizadas no


âmbito da metodologia aplicada a esta pesquisa sobre as obras para a construção do
metrô, as respostas foram, quase sempre, bem parecidas: “Foi um período babélico!”

Ainda em seu depoimento, o Viúvo do Bonde também descreve a situação que passou
na época da construção do metrô: “Eu morava no prédio 101 da Rua do Catete e
lembro muito bem das explosões, um dia estava em casa e senti um barulho enorme
no quarto onde meus filhos brincavam, sai correndo e vi o quarto cheio de pedras e o
vidro da janela quebrado. O metrô tinha acabado de fazer mais uma explosão. O vidro
ficou lá, ninguém nunca apareceu para consertar.”

Os depoimentos são quase sempre pessoais. Segundo Ricoeur (2007, p. 107) “ao se
lembrar de algo, alguém se lembra de si”. Este é um traço que reforça o caráter
essencialmente privado e radicalmente singular da memória: minhas lembranças não
são as suas, como veremos no capítulo seguinte.

No jornal O Globo de 23 Julho de 1978 encontramos um fato interessante. Não eram


somente aos moradores que as obras incomodavam; os operários também não

39
estavam satisfeitos com a situação e reclamavam da longa jornada de trabalho, que se
estendia ate o período noturno. Em um dos tapumes, um deles escreve um suposto
pedido de desculpa aos moradores através de um recado: “Gente boa, não me olhe de
cara feia. O barulho do meu martelão arrebenta mais meu coração que o seu. E eu sou
obrigado a pegar nele”. Embaixo assinava Gilson Paraíba.

FIGURA 15– NO TAPUME UM PEDIDO DE DESCULPAS DE UM OPERÁRIO. E A ADVERTÊNCIA DE QUE NÃO PODE FAZER ZOADA.
Fonte:
https://acervo.oglobo.globo.com/busca/?tipoConteudo=pagina&pagina=1&ordenacaoData=relevancia
&allwords=metro+catete&anyword=&noword=&exactword=

As fotos abaixo mostram a verdadeira terra arrasada em que se transformou o Largo


do Machado e a Rua do Catete durante as obras do Metrô nos anos 1970.

40
FIGURA 16– ÁREA LOCALIZADA NA RUA DO CATETE NA ALTURA DA PRAÇA JOSÉ DE ALENCAR.
Fonte: http://www.rioquepassou.com.br/2009/04/01/largo-do-machado-obras-do-metro/

FIGURA 17– A IMAGEM MOSTRA A OBRA DO METRÔ NA ALTURA DO LARGO DO MACHADO, AO FUNDO VEMOS O QUE
RESTOU DO CINEMA SÃO LUIZ.
Fonte: http://www.rioquepassou.com.br/2009/04/01/largo-do-machado-obras-do-metro/

41
FIGURA 18 – RUA DO CATETE, 1976, DURANTE AS OBRAS DO METRÔ NA ALTURA DA RUA FERREIRA VIANA.
FONTE: ARQUIVO NACIONAL

O crescimento das cidades nos mostra que a questão da preservação está intimamente
relacionada a períodos específicos. Se, na ocasião da demolição do Palácio Monroe
(1975) a conservação se baseava em juízo arbitrário a respeito de beleza e do quanto o
objeto do tombamento era “bom” ou “ruim”, recentemente a conservação passou a
ter outros aspectos levados em consideração, como o afeto, a interpretação
construída e a relação com as pessoas.

Arrasamentos, modificações de ruas e avenidas, tudo isso tem a ver com ideias que
antes não eram consideradas, como imanência, permanência e memória.
Diferentemente da história, a memória é flexível e trabalha com as condicionantes
locais e suas sensações. A memória é uma ação da retórica, está permanentemente
em construção e reconstrução de acordo com as espacialidades em que se ancora
como fundamentaremos mais adiante.

42
2.3. UMA RUA E SEUS PERSONAGENS

FIGURA 19– ALGUNS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE


FONTE: AUTORA

O que é contar uma história? Ou o que seria contar A história? Por que temos
necessidade, mas ao mesmo tempo temos muitas vezes uma insuficiência de contar?
Qual seria esse prazer que Platão denunciava como perigoso que seria o ato de escutar
histórias?

Desde Platão, o diálogo oral representa a atividade de uma busca em comum da


verdade. A escrita, por sua vez, busca a perpetuação do vivo mantendo a lembrança
para gerações futuras afirmando e confirmando sua ausência. A memória dos homens
se constrói entre dois polos, sendo um deles o da transmissão oral viva e o outro
sendo o da conservação pela escrita, que vai desenhar o vulto da ausência.
(GAGNEBIN, 2006)

Vamos citar a obra da Odisseia de Homero onde nessa reconstrução da história da


razão se inscreve uma releitura, muito simbólica, como protótipo primeiro das buscas
e das erranças humanas, um modelo que será retomado, pelas grandes obras da
filosofia e da literatura ocidentais. Adorno e Horkheimer (1985) examinam essa obra
originária da tradição narrativa e descobrem na história do retorno de Ulisses a Ítaca
uma parábola da construção do sujeito. O conjunto ressalta a maestria de Ulisses
como narrador como aquele que não só sabe viajar, mas também sabe contar e cantar,
e que possuía a "arte de eloquente aedo” 11 como o constata o rei Alcino.

11
Canto IX, verso 368.

43
Segundo Gagnebin (2006), Ulisses demonstra desde o início a luta para voltar a Ítaca
que é, antes de tudo, uma luta para manter a memória, para manter a palavra, as
histórias, os cantos que ajudam os homens a se lembrarem do passado e, também, a
não se esquecerem do futuro. Mostra também que pode haver, por meio da narração
e da auto narração em particular, uma autoconstrução do sujeito que não se confunde
necessariamente com a renúncia ao próprio desejo.

Assmann (1999) apresenta a escrita como um símbolo de nossa concepção de


memória e de lembrança, este rastro privilegiado que o ser humano deixa de si
mesmo, sendo eles os papiros, os palimpsestos, a tábua de cera de Aristóteles, o bloco
mágico de Freud, os livros, as bibliotecas e os e-mails efêmeros, tentativas de
apresentar os organismos da memória e do lembrar.

A literatura e a história radicaram-se na ocupação com o lembrar para reconstruir um


passado que nos escapa ou para proteger alguma coisa do fim.

A narração apresenta uma grande importância para a composição do sujeito. Essa


importância da narração sempre foi reconhecida como a da rememoração e da
recuperação da palavra de um passado que estava prestes a desaparecer no silêncio e
no esquecimento.

A linguagem oral e a escrita se relacionam essencialmente com o fluxo narrativo que


constitui nossas histórias, nossas memórias, nossa tradição e nossa identidade.
Benjamim (1995) acreditava que esse crescimento da narração não era obra do si
consciente, mas sim obra da lembrança que de fato era a capacidade de inúmeras
interpolações naquilo que ocorrera um dia.

Nietzsche (2001) nos fala que a consciência é a última fase da evolução do sistema
orgânico e, por consequência, também aquilo que há de menos acabado e de menos
forte neste sistema. É do consciente que provém uma multiplicidade de enganos que
fazem com que um animal ou um homem pereçam mais cedo do que seria necessário.
Segundo Freud (1976) a consciência é a parte do superego12 que inclui informações

12
O superego segundo Freud e sua teoria psicanalítica da personalidade, é o componente da
personalidade composto por nossos ideais internalizados que adquirimos com nossos pais e a
sociedade. Ele trabalha para suprimir os impulsos do id e tenta forçar o ego a agir moralmente, e não se
comportar de forma realista. Na teoria de Freud de desenvolvimento psicossexual, o superego é o

44
sobre as coisas que são vistas como ruins pelos pela sociedade e/ou pelas percepções
de algum indivíduo, fato que frequentemente se torna regra para uma conduta. A
conduta, desta forma, pode se tornar uma lente pela qual o mundo passa a ser
visualizado.

A memória, de modo geral, chega ao emissor como discurso, se encontra na maneira


com que é expressa ou vivenciada, porém o discurso não é a única fonte da verdade; a
questão deve ser analisada em diferentes pontos. Imagens, pequenos instantes
representacionais de uma ideia, podem conter todo um sistema de valores.

Os habitantes na cidade são narradores de suas experiências vividas no contexto


urbano e, através da memória, os habitantes classificam sentidos de práticas coletivas.
O tempo vivido na cidade se torna a questão das narrativas que atuam na forma do
pensamento coordenar as irregularidades do cotidiano. Assim, ao narrarmos às formas
de viver do urbano reconhecemos os citadinos como uma sociedade interpretativa no
domínio de um campo semântico, onde o pesquisador é disposto diante de um
pensamento sobre a natureza do tempo vivido na cidade.

A abordagem de narrativas como registro da memória que habita os indivíduos que


vivem e viveram (ou não) os espaços. A ideia de narrativa (como instrumento de
composição temporal, causal, social e ambiental) fundamenta a mímese pensada no
campo arquitetural, particularmente esclarecedora no propósito de pensar a memória
coletiva de um espaço físico. A memória tem lugar, está inscrita no espaço, como
muitos teóricos referendam. Mas este, por sua vez, apresenta diferentes
temporalidades, valores e histórias, realizações e desejos que permanecem inscritos
na matéria (absortiva), o indivíduo.

Sendo assim através desses discursos, foram recolhidas algumas histórias de


personagens, pessoas, indivíduos que se apropriam e habitam o espaço da Rua do
Catete, personagens inseridos no contexto urbano. Os tipos de personagens foram

último componente da personalidade a se desenvolver. O superego para Freud pode ser dividido em
dois componentes: o ideal de ego e a consciência. O ego ideal é composto de todas as nossas regras de
bom comportamento. Fonte: Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980/1923, v. 19, p. 23-83.

45
identificados e analisados através da leitura da relação de cada um com o local através
de entrevistas e etnografia urbana.

Representações de cidade habitam nossas memórias; ao caminharmos pela cidade


compreendemos em nós sentimentos diversos sobre pessoas, ruas, espaços que nos
chamam a atenção. Estes inúmeros arranjos sociais nos configuram um sentido de ser
e estar na cidade. São nestas formas de entender a cidade que tecemos nossas rotinas,
delineamos nossos percursos, projetamos nossas tarefas, enfrentamos nossos medos e
constrangimentos.

Toda narrativa é a busca de um objetivo, e o que buscamos com isso é a leitura da Rua
do Catete nos dias de hoje através da pesquisa das narrativas de acontecimentos
passados. A narração tem uma parcela importante na construção do sujeito e essa
importância sempre foi reconhecida pela rememoração, a retomada salvadora pela
palavra de um passado que sem isso desapareceria no silêncio do esquecimento.

A história do Catete sempre foi contada nos livros pela visão dos mais abastados, dos
barões que moravam em suas chácaras e das grandes autoridades do tempo de
republica. Pouco se cita da parte mais importante da vida da Rua que eram seus
moradores, seu comércio e suas instituições de ensino. Benjamin (2009) defendia que
a história narrada nos livros estaria apenas confirmando a visão dos vencedores e sua
proposta é a de tecer uma narrativa histórica inspirada na crônica cotidiana, que busca
valorizar os pequenos e os vencidos.

Porem não se deve acreditar que os personagens sejam pequenos ou vencidos, todos
têm histórias de muita vitória e contam como passaram por inúmeros acontecimentos
que presenciaram na Rua do Catete. É com essas histórias dos “vencidos” que iremos
construir uma narrativa mostrando essa outra “estória” da Rua através da união das
narrativas desses personagens.

46
3.NARRATIVAS DE MEMÓRIA DA CIDADE: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.

3.1. MEMÓRIA: CAPACIDADE DE LEMBRAR E REMINISCÊNCIAS

As pessoas sempre falam como se houvesse uma linha bem definida entre
imaginação e a memória, mas não é assim, ao menos não para mim. Eu lembro de
coisas que imaginei e imagino coisas de que me lembro. (GREEN, 2017, pág.253).

A memória é uma questão que vem sendo estudada há muito tempo e que foi
interpretada de maneiras diferentes, pois existem vários conceitos que se agrupam ao
redor do tema memória.

Na história, na educação, na filosofia e na psicologia o cuidado com a memória fez dela


não só um objeto de estudo, mas também uma tarefa ética na qual o nosso dever
consistiria em preservar a memória, em salvar o passado onde se resgataria as
tradições de vida, falas e imagens.

Nietzsche já descrevia no fim do século XIX essas transformações culturais dos usos de
valor da memória, denunciava a acumulação obsessiva e a sabedoria vazia do
historicismo cujo maior efeito não consistia em uma conservação do passado, mas sim
em uma paralisia do presente.

Todos nós temos a faculdade da memória, a capacidade de lembrar, e temos as


imagens quem voltam à memória que conhecemos como reminiscências. Existem
vários tipos de conceitos, um conceito que é mais abrangente, psicológico ou psíquico
que é uma capacidade da memória e um conceito que é mais intelectual que é a
atividade do lembrar.

A memória é uma faculdade paradoxal, porque ao mesmo tempo é ligada a uma


atividade que se escolhe fazer, pois você quer se lembrar de algo, e também a algo que
não é ativo, é quase um afeto. As imagens vêm e me afetam e, muitas vezes, elas
voltam a minha memória sem que eu queira lembrar-me delas, ou por terem sido
vergonhosas ou por serem boas demais. Por isso, a memória é uma faculdade
paradoxal, pois comporta a atividade consciente do lembrar e, simultaneamente, o
afeto com a capacidade passiva de ser afetada por imagens.

47
Na filosofia tradicional, desde Platão, se tentou valorizar o aspecto mais consciente do
lembrar, os estudiosos mais ligados à filosofia e a psicologia tentaram decifrar o que
era o ato de lembrar, porém não deram muita importância a outra coisa que é
imprescindível, pois quando se lembra de algum fato, este é afetado por outras
lembranças que o indivíduo não necessariamente escolhe, essa mistura de passivo e
ativo atrapalha.

Gagnebin (2006) nos leva à reflexão sobre como a memória utiliza tão frequentemente
a imagem e o conceito de rastro. Segundo a autora, a memória vive essa tensão entre
presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido,
mas também presença do passado desaparecido que faz sua incursão em um presente
passageiro. Riqueza da memória, certamente, mas também fragilidade da mesma e do
rastro. Podemos também observar que o conceito de rastro rege igualmente todo o
campo metafórico e semântico da escrita de Platão e Derrida.

O conceito de rastro nos conduz à problemática da memória, onde notamos que o


primeiro rastro na tradição filosófica e psicológica sempre foi uma dessas noções
obscuras que procuram manter juntas a presença do ausente e ausência da presença.
Seja sobre tabletes de cera ou sobre uma “lousa mágica” o rastro se inscreve na
lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se
apagar definitivamente. Sua fragilidade ativa e essencial contraria assim o desejo de
plenitude, de presença e de substancialidade que caracteriza a metafísica clássica. É
por isso que esse conceito é tão importante para Derrida por exemplo. (GAGNEBIN,
2006, p.44)

Jaques Derrida (1972) trabalha o esvaziamento do significado, referindo-se aos objetos


e dados mais dissociados da sua significação ordinária. Sobre a significação da
diferença, observa:

A diferença é o que faz com que o movimento da significação não seja


possível a não ser que cada elemento dito “presente”, que aparece sobre a
cena da presença, se relacione com outra coisa que não ele mesmo,
guardando em si a marca do elemento passado e deixando-se já moldar pela
marca da sua relação com o elemento futuro, relacionando-se o rastro
menos com aquilo a que se chama presente do que aquilo a que se chama

48
passado, e constituindo aquilo a que chamamos presente por intermédio
dessa relação mesma com o que não é ele próprio. (DERRIDA, 1972 , p.45).

Esse esvaziamento, que Derrida (op. cit.) trabalha na questão linguística da Filosofia e
da Escritura, é problematizado também em relação à arquitetura. Uma vez que um
discurso é uma expressão, e a imagem se expressa como um símbolo, notamos aqui
um dado essencial: a imagem indica necessariamente o primado da enunciação, indica
que a linguagem tem lugar. Mas este dizer, antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre
si mesmo, é o movimento que expõe a presença de uma linguagem que impõe ao
mundo uma ordem, pois a enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir
da realização da presença do enunciador. Assim, seja pela oralidade ou pelo mundo
simbólico, ali está o enunciador.

Não por acaso, encontramos uma temática similar em outros autores franceses da
época, como Deleuze (Différence et répétition) e Lyotard (Le différend). Por isso,
Derrida pode dizer que o movimento da différence não é objeto de um sujeito
transcendental, ele produz toda e qualquer figura. O sujeito é o que está no lugar da
différence como movimento em direção à construção de uma memória global.

O rastro é verdadeiramente a origem absoluta do sentido em geral. O que


vem a afirmar mais uma vez, que não há origem absoluta do sentido em
geral. O rastro é a différence que abre o aparecer e a significação.
Articulando o vivo sobre o não-vivo em geral, origem de toda repetição,
origem da idealidade, ele não é mais ideal que real, não mais inteligível que
sensível, não mais uma significação transparente que uma energia opaca e
nenhum conceito da metafísica pode descrevê-lo (DERRIDA, 2008, p.80).

Ricoeur (2007) nos apresenta que os escritos platônicos relativos à memória dizem
respeito primeiramente à ausência de referência expressa à marca distintiva da
memória nas quais se significam as afecções do corpo e da alma às quais a lembrança
está ligada.

A lembrança/memória também pode se mostrar pouco confiável, isso precisamente


porque se trata do único recurso do indivíduo para significar o caráter passado daquilo
que declaramos nos lembrar. Ninguém sugere essa questão à imaginação, pois a
mesma tem como paradigma o irreal e o fictício e outros traços que podemos chamar

49
de não posicionais, porem não possuímos nada melhor que a memória para significar
que algo aconteceu antes que declarássemos nos lembrar dele. O testemunho
constitui a estrutura fundamental de transição entre memória e a história.

Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que,


em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos
buracos, ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações,
solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à
lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção
precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do
passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do
passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado,
não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. (GAGNEBIN,
2006, p.55).

Devemos sim lembrar o passado, mas não lembrar por lembrar, numa espécie de culto
ao mesmo. No texto de Adorno, judeu e sobrevivente, a exigência de não
esquecimento não é um apelo a comemorações solenes; é, muito mais, uma exigência
de análise esclarecedora que deveria produzir instrumentos de análise para melhor
esclarecer o presente.

No plano fenomenológico, no qual nos situamos aqui, dizemos que nos lembramos
daquilo que fizemos, experimentamos ou aprendemos em determinada circunstância
particular. Mas abre-se um leque de casos típicos entre os dois extremos das
singularidades dos acontecimentos e das generalidades, as quais podemos denominar
“estado das coisas”. Os fenômenos de memória tão próximos do que somos opõem,
mais que outros, a mais obstinada resistência à hubris da reflexão total. O primeiro par
de oposições é constituído pela dupla hábito e memória, que constituem os dois polos
de uma série contínua de fenômenos mnemônicos. (RICOEUR, 2007, p.43 e 44)

Segundo Ricoeur (2007) um passado reconhecido tende a se fazer valer como passado
percebido. Disso surge o estranho destino do reconhecimento, de poder ser tratado no
quadro da fenomenologia da memória e no da percepção.

O momento da recordação é então o do reconhecimento, sendo assim temos a


transição da memória corporal para a memória dos lugares que são asseguradas por

50
atos tão importantes como orientar-se, deslocar-se e, acima de tudo, habitar. Sendo
assim, as coisas que são lembradas são inerentemente associadas a lugares e não é por
acaso que dizemos sobre algo que ocorreu que ele teve lugar. O caráter coletivo da
memória traz os valores pressupostos pela comunidade, onde o tempo e espaço
acontecem. Quando se avolumam comentários acerca de fatos do passado, isso vira
um objeto edificado. Tal fenômeno relaciona-se àquilo que Pierre Nora postula em
seus escritores sobre Lugares de Memória: “os lugares de memória não são aqueles
dos quais nos lembramos, mas lá onde a memória trabalha” (NORA,1997,p.18).

Esses lugares de memória funcionam principalmente à maneira dos reminders, dos


indícios de recordação, ao oferecerem alternadamente um apoio à memória que falha,
uma luta contra o esquecimento, até mesmo uma inerência subentendida da memória
morta. Os lugares permanecem como inscrições, monumentos, potencialmente como
documentos, enquanto as lembranças são transmitidas unicamente pela voz.

O ato de habitar constitui a mais forte ligação humana entre momento e lugar. Os
lugares habitados são por excelência memoráveis. Por estar a lembrança tão ligada a
eles, a memória afirmativa se entretém em evocá-los e descrevê-los. Quanto aos
deslocamentos, os lugares que são percorridos servem de reminders aos episódios que
ali ocorreram, são eles que vão nos parecer hospitaleiros ou não.

Para Ricoeur (2007), a fenomenologia da lembrança está implicada nessas distinções e


nessas ramificações, a imaginação e a memória tinham como traço comum a presença
do ausente, e como traço diferencial a suspensão de toda posição de realidade de uma
visão de um irreal. A lembrança pertence ao mundo da experiência frente aos mundos
da fantasia e da irrealidade.

Podemos então abordar a “memória artificial” que consiste em lugares e em imagens,


onde a lembrança não consiste mais em evocar o passado, mas sim em efetuar
aprendizados agrupados em um espaço mental. Em termos bergsonianos entramos de
fato na memória hábito - uma memória exercitada, cultivada, educada e esculpida. São
verdadeiras proezas que agraciam a memória divina de verdadeiros atletas da
memorização. Nos dias de hoje esse processo de memória é conhecido como “Palácio

51
de Memórias” que abordaremos na próxima seção, e, que explicaremos e
apresentaremos o método criado e adaptado para essa pesquisa.

3.2. NARRATIVAS DA /NA CIDADE

O que seria contar uma história, ou o que é contar a história? O que isso significa? Para
que serve? Por que essa necessidade, mas também muitas vezes essa incapacidade de
narrar?

A resposta para essas perguntas define a questão que nos envolve e nos mostra a
importância da narração para construção do indivíduo. Essa importância sempre foi
reconhecida como a da rememoração, da retomada pela palavra de um passado que
se apagaria no silêncio e no esquecimento.

O ato de narrar, por sua constante presença em diversas configurações humanas ao


longo da história, e enquanto modo de expressão e de construção de sentido parece
ele mesmo carregar, através de palavras, sons e gestos, a própria sagacidade do
mundo. O processo de tecelagem de histórias tem como uma de suas mais notáveis
características o fato de colocar lado a lado elementos percebidos como diversificados.

No campo da teoria literária estão situadas algumas importantes contribuições acerca


da narrativa. Ainda nos dias de hoje, literatura e história se enraízam no cuidado com o
lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa ou para proteger
alguma memória da morte dentro da frágil experiência humana.

Segundo Gagnebin (2007), devemos partir da distinção entre Erfahrung e Erlebnis, que
podemos traduzir, respectivamente, por experiência e vivência ou experiência vivida.
O primeiro conceito, Erfahrung, é o mais antigo; ele remete no seu núcleo etimológico
(fahren, viajar, atravessar um país) às errâncias e provações de Ulisses, esse primeiro
viajante de nossa tradição ocidental. Se a Odisseia pode ser tida como um paradigma
do caminhar da vida e do pensamento, ela também é o modelo de uma narração bem
sucedida, aquela de Homero e, sobretudo, a do próprio Ulisses que conta suas
aventuras, nos cantos centrais do poema, a seus anfitriões na ilha da Feácia. Essa cena
demonstra não só a aptidão narrativa do herói, mas, também, a vontade, o desejo de
ouvir histórias dos seus ouvintes. Eles preferem passar uma noite em branco a perder

52
essas belas histórias. E Ulisses, por sua vez, aceita de bom grado postergar sua partida
para Ítaca e continuar narrando durante vários dias.

Da inserção entre passado e presente podem surgir condições que apontam para
outras modalidades de experiência. Nesse sentido, se há um laço entre os declínios da
Erfahrung e da narratividade, conforme assinala Benjamin, novas formas da arte de
contar devem acompanhar novas configurações de experiência. Já no artigo “A
imagem de Proust”, de 1929, Benjamin indica que, em sua obra, Proust teria
reintroduzido o infinito na vivência burguesa caracterizada pela individualidade,
particularmente pela atividade de rememoração. A isso, Gagnebin chama formas
“sintéticas” de experiência (GAGNEBIN, 1994, p.10).

Parece, pois, plausível ter como válida a cadeia seguinte de asserções: o conhecimento
de si próprio é uma interpretação - a interpretação de si próprio, por sua vez, encontra
na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada, - esta última
serve-se tanto da história como da ficção, fazendo da história de uma vida uma
história fictícia ou, se se preferir, uma ficção histórica, comparável às biografias dos
grandes homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p.2).

Em seu livro História e narração em Walter Benjamin, Gagnebin (2007) ao tratar de


história e narração, duas outras noções surgem também relacionadas: experiência e
transmissão. Em Benjamin, a questão da experiência está relacionada à infância, mas
também à grande cidade, a um tipo de experiência urbana moderna, seja de Berlim,
seja de Paris, ou ainda das várias outras cidades visitadas e comentadas por Benjamin.
A vida na grande cidade potencializa esses efeitos de aceleração e de anonimato pela
rapidez dos transportes, dos encontros, e pela aglutinação de pessoas em espaços
apertados de trabalho e de moradia.

É mérito da interpretação benjaminiana ter mostrado como estes dois temas, cidade e
modernidade, são ao mesmo tempo determinantes e inseparáveis. Em Rua de Mão
Única (2010) a cidade configura-se como um microcosmo de uma cidade-texto, em
que a ausência de linearidade e de coerência visível se torna uma forma de critica.
Ocorre um entrelaçamento entre forma e conteúdo, onde Benjamin coloca-se diante

53
da metrópole de maneira semelhante ao estudioso frente à escritura, de modo que
todo o ambiente urbano parece se converter em texto.

A minuciosa leitura dos “resíduos” da cidade pressupõe um mistério cifrado que se


expressa na concretude dos objetos urbanos. Rua de Mão Única (2010) se constitui,
dessa maneira, como retrato complexo das tensões que dominam a metrópole,
composto sob a forma da escrita da cidade. Transformada em texto, a cidade permite
a leitura de suas tensões. Toda narrativa é a busca de um objetivo, ou seja, a leitura da
Rua do Catete nos dias de hoje através de acontecimentos passados.

A partir do ponto de vista de Ricoeur e Benjamin, o espaço é narrado através do


tempo, daí podermos encontrar fatos reativos à memória através dos inúmeros
valores históricos e diferentes temporalidades colocadas nas ’falas’ de terceiras
pessoas. Ricoeur (1994) defende em “Tempo e Narrativa” a tese de que nossa
existência se torna temporal por meio da síntese que a narrativa é capaz de fazer da
sucessão dos acontecimentos. É a narrativa, com sua capacidade de ordenar e
homogeneizar o heterogêneo, que possibilita configurar e reconfigurar criativamente
acontecimentos dispersos em um todo, em uma história.

Segundo Ricoeur (2007) o passado percebido tende a ser validado. Daí o estranho
destino do reconhecimento que pode ser tratado no quadro da fenomenologia, da
memória e da percepção, citando a descrição de Kant (1980), da tripla síntese
subjetiva: percorrer, ligar, reconhecer.

Walter Benjamim, em seus textos “O Narrador” e “Experiência e Pobreza” (1986),


observa a importância de uma narrativa da memória ligada à difusão da experiência
pessoal. Benjamim chama de “perda ou declínio da experiência”, tradição
compartilhada por uma comunidade humana. E essa tradição é retomada e
transformada em cada geração, na continuação de uma palavra transmitida de pai
para filho. O que importa é algo que se passa adiante, que é maior que as experiências
particulares, algo maior que a simples existência individual, algo que transcende a vida
e a morte e que pertence a uma memória viva e pulsante.

54
O ensaio sobre “O Narrador” é uma tentativa de pensar simultaneamente, de um lado,
o fim da experiência e das narrativas tradicionais, e de outro, a possibilidade de uma
forma narrativa diferente das baseadas na prioridade do Erlebnis, qual o romance
clássico que consagra a solidão do autor, do herói e do leitor, ou qual a informação
jornalística, falsamente coletiva, que reduz as distancias temporais e espaciais a
mediocridade da novidade.

Benjamin (1986) trabalha com a noção de que a narrativa está sendo superada pela
modernidade, atribuindo a narrativa a um passado totalmente tradicional. Ele opõe
dois tipos de narrador: o agricultor sedentário que trabalha com aquela narrativa
tradicional de pai para filho, e o mercador marítimo, o marinheiro ou o viajante, que
sai do seu meio conhece novos lugares e volta trazendo as novidades.

É nessa tensão entre narrador mais tradicional e aquele que traz a modernidade que
Benjamin encontra o arcabouço da narrativa tradicional. Em seu texto ele trabalha
essa impossibilidade da narrativa perdurar no período moderno; e ele está falando
dessa modernidade massificada que o século XX conheceu, porque no entender do
Benjamin o excesso de informação e as mudanças tecnológicas impedem a experiência
conforme ela era vivenciada pelos narradores rurais e pelos narradores tradicionais.

Para Benjamin (1986), não existe mais espaço para a narrativa da vida moderna
porque existe a informação e existe também o modo de narrar. Ele identifica no
surgimento do romance moderno o fim dessa experiência coletiva de narração devido
ao surgimento da subjetividade e da individualidade que existe no romance. Então são
duas formas de narrar que se tornaram antagônicas e o romance passou a ser um sinal
dessa modernidade que acabou descartando a narrativa tradicional.

Benjamim (1986) acreditava no registro de longa duração, deduzindo a partir dos


avanços tecnológicos na produção e publicação de edições literárias. Uma experiência
individual de produção de texto, mas também de consumo desse texto, a leitura seria
uma experiência mais coletiva. Nesse sentido, para Benjamin a experiência individual
não pode ser considerada como construtora cultural de um ponto de vista coletivo.

55
Apresentado desde a primeira metade do século passado por Walter Benjamin (1986)
e salientado por Ítalo Calvino (1990) na metade da década de 1980 o excesso de
informação da cultura contemporânea nos faz encontrar e construir, ou tentar
reconstruir a partir do ponto de vista histórico, os personagens das “nossas” histórias.
Algum fato ou objeto sempre surge atraindo a atenção, fazendo com que se deva
checar a veracidade dos fatos e pesquisar para pensar sobre a forma de contar mais
uma de suas histórias.

A habilidade de contar histórias e de demonstrar as potencialidades informativas é


muitas vezes afetada pela pluralidade midiática, que acaba retirando o nosso tempo
de concentração sobre certo conteúdo, nos privando da “riqueza de significados
possíveis”, como expressou Ítalo Calvino (1990), pois a profusão de imagens e de
informações muitas vezes “se dissolve imediatamente como os sonhos que não
deixam traços na memória”.

Ricoeur e Benjamin compartilham assim a crença de que obras literárias são capazes
de transformar e engrandecer a experiência à configuração anterior à sua recepção.
Enquanto Benjamin adota uma perspectiva mais histórica, incidindo assim sobre
nossas relações com a rememoração e as transformações do século XX, Ricoeur
procura dar uma resposta no sentido da técnica literária. Para este, as narrativas
ficcionais aumentam nossa percepção da realidade, especialmente no que pertence à
dimensão temporal. Para tanto, a noção de narrativa, para Ricoeur, não está limitada
aos meios de constituição de uma trama literária.

Ricoeur efetivamente situa a narração em relação aos processos de identificação


pessoal, abrangendo um escopo variado de experiências, ainda que na obra “Tempo e
Narrativa” o campo literário seja privilegiado na sua análise. O autor enfatiza que a
narração é uma atividade fundamental e necessária à vivência do indivíduo e que
existem dois grandes conjuntos narrativos, que são a narrativa histórica e a narrativa
de ficção. Para ele, a composição da identidade narrativa era o lugar procurado para a
fusão entre o histórico e o ficcional, e as vivências tornam-se mais compreensíveis
quando lhes são aplicados modelos narrativos. Sabemos que esta noção, para
Benjamin, está conectada às práticas de troca e compartilhamento entre pessoas e

56
grupos, e não estritamente a um campo de produção artística em específico. Sendo
assim, podemos chamar a atenção para a análise que atenta Ricoeur quanto às
metamorfoses da intriga em relação à visão Benjaminiana de narrativa.

Parece, pois, plausível ter como válida a cadeia seguinte de asserções: o


conhecimento de si próprio é uma interpretação - a interpretação de si
próprio, por sua vez , encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos,
uma mediação privilegiada , - esta última serve-se tanto da história como da
ficção, fazendo da história de uma vida uma história fictícia ou, se se
preferir, uma ficção histórica, comparáveis às biografias dos grandes
homens em que se mistura a história e a ficção (RICOEUR, 2000, p. 2).

A construção da identidade e a construção da história estão ligadas à memória. A


identidade é ligada a história e, portanto a narração. A história no sentido amplo da
palavra, sempre é um processo narrativo, mesmo a história dita como disciplina
acadêmica. A identidade é sempre uma questão de narrar sobre si mesmo, e você
constrói sua identidade ou a transforma seguindo narrações diversificadas que faz da
sua participação na sua vida ampla.

Segundo Le Goff (2003) os elementos da memória, tanto nos seus aspectos biológicos
como nos psicológicos, não são mais do que decorrências de princípios dinâmicos de
organização. O ato de rememoração principal é o “comportamento narrativo” (JANET
apud LE GOFF, 2003, p.421), pois a narrativa da lembrança nada mais é que uma forma
de comunicar a outro uma informação na ausência do acontecimento ou do objeto
que constitui o seu motivo. Sendo assim a narrativa é a possibilidade de comunicar a
outro indivíduo um acontecimento na ausência do que constitui o seu motivo.

Para Gagnebin (2007), o tema do esquecimento fundador volta sob a pena de


Benjamin. Quando este fala sobre Marcel Proust, é necessário ressaltá-lo pois, para
grande parte da crítica, Proust seria o cantor da memória e do passado reencontrados.
Para Benjamin, a empresa Proustiana nasce justamente desta contradição essencial
entre o fim da memória e o desejo de conservar e resguardar o passado do
esquecimento.

57
Não é, portanto, por que Proust se lembra que ele conta, mas porque ele só
se lembra no mais profundo do esquecimento. Benjamin ressalta que “a
memória involuntária” é a mais próxima do esquecimento que da memória
e que no “tecido do lembrar no trabalho de Penélope da rememoração”, o
que transparece, o que também volta à superfície da narrativa são os
ornamentos do olvido”. (GAGNEBIN, 2007, pág 71).

Sendo assim notamos que há muito tempo, desde Platão, o diálogo oral representa a
vivacidade de uma busca em comum da verdade. A memória dos homens se constrói
entre dois polos, sendo um da transmissão oral viva que se apresenta mais frágil e
efêmera e o da conservação pela escrita que vem perdurando por mais tempo, porém
se desenhando no vulto da ausência. A partir do momento que ouvimos o apelo do
passado estamos também atentos a esse apelo de felicidade e, portanto, de
transformação do presente, mesmo que ele pareça estar sufocado e ressoar de
maneira inaudível.

3.3. REPRESENTAÇÕES SOCIAS: UM OLHAR DIFERENCIADO SOBRE O INDIVIDUAL E O


COLETIVO.

Segundo Moscovici (1995), a representação social ou coletiva é um fenômeno


psicossocial que nasceu na Sociologia clássica e na Antropologia, cuja teoria se
desenvolveu especialmente nas obras de Durkheim e Lévy-Bruhl. A Psicologia Social
colabora nesta formação, possibilitando o novo olhar sobre os indivíduos e sobre suas
interações sociais. De acordo com Farr (1995), a Teoria das Representações Sociais é
uma forma sociológica de Psicologia Social, reformulada na Europa através de uma
publicação feita por Moscovici, em 1961, da obra La Psychanalyse: Son Image et Son
Public.

A própria proposta teórica presente em La Psychanalyse: Son Image et Son Public, nos
mostra a dificuldade em conceituar as representações sociais ao aceitar que se, por
um lado, o fenômeno está sujeito à observação e identificação, por outro, o conceito,
dada sua complexidade, irá depender de uma maior “maturidade” e desenvolvimento
do próprio pressuposto teórico das representações sociais para que haja uma
definição do mesmo (MOSCOVICI, 1978).

58
O objeto de estudo da Sociologia são os fatos sociais. Para Durkheim (2007), "É fato
social toda maneira de agir, fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma
coerção exterior; ou então ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada,
apresentando existência própria, independente das manifestações individuais que
possa ter." A partir deste conceito Durkheim propõe que a Sociologia é responsável
pelo estudo das consciências coletivas, enquanto e a Psicologia deve se atentar em
entender os fenômenos psicológicos, provenientes da consciência dos indivíduos.

Podemos então considerar que as “as representações sociais são conhecimentos


práticos que se desenvolvem nas relações do senso comum, são formadas pelo
conjunto de ideias da vida cotidiana, construída nas relações estabelecidas entre
sujeitos ou através das interações grupais” (MOSCOVICI, 2002), ou seja, a
representação social não é construída somente pela vontade da coletividade, como
defendia Durkheim, mas pelas relações individuais e coletivas. A mesma deve ser
compartilhada e elaborada por um determinado grupo (MOSCOVICI, 1978), visto que
sua construção se dá na relação entre indivíduos e com objetos.

Sendo assim, se desconstrói uma realidade que não é única nem específica, mas sim
compartilhada pela comunicação dos indivíduos que interagem entre si, de tal modo
que não há representação social sem objeto e sem um sujeito social, coletivo ou
individual, pertencente a um determinado grupo, pois “uma representação é sempre
uma representação de alguém, tanto quanto de alguma coisa (MOSCOVICI, 1978, p.27,
63, 65).

Moscovici (1978) acredita que a relação de ideia de conhecimento particular pode ser
atribuída à representação, que nada mais é do que o senso comum com o qual o
indivíduo constrói as representações sociais de forma compartilhada e em uma regra
de comunicação.

Pode-se então compreender que o fato social é um conjunto de relações coletivas,


externo aos membros da sociedade e dotado de vida própria onde o mesmo exerce
sobre suas mentes uma autoridade que os leva a agir, pensar e a sentir de
determinada modo. Do ponto de vista de Durkheim, a representação coletiva ou social

59
traduz o modo como o grupo pensa nas suas relações com os objetos que o afetam.
(DURKHEIM, 1994, 2007)

Moscovici (2001) acredita que as representações são, ao mesmo tempo, construídas e


adquiridas, o que as caracteriza na visão psicológica clássica. Essa postura crítica
tornou-se o ponto de partida para construção de uma nova teoria, que afirma não
existir separação entre os universos interno e externo do indivíduo, que se
complementam. Na sua percepção as representações sociais devem ser vistas como
uma maneira específica de compreender e de se comunicar com a realidade social.
Assim, a representação social tem como objetivo abstrair o sentido do mundo e
introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma
significativa.

De acordo com Moscovici (2010) o objetivo maior de sua teoria é proporcionar um


olhar diferenciado sobre o individual e o coletivo, tornando-se uma alternativa
confiável para a compreensão social, onde o autor define as representações sociais
como entidades quase tangíveis. Elas circulam, se entrecruzam e se cristalizam
continuamente, através de palavras, gestos e reuniões do nosso cotidiano. Elas estão
presentes na maioria das relações estabelecidas, nos objetos que produzimos ou
consumimos e nas comunicações que estabelecemos. A finalidade de todas as
representações é tornar familiar algo não familiar, ou seja, o indivíduo precisa
conhecer o objeto ou sujeito para representar.

Para Moscovici (2010) são dois os processos que geram as representações sociais:
Ancoragem e Objetivação. Ancorar significa “classificar e dar nome a alguma coisa.
Coisas que não são classificadas e que não possuem nome são estranhas, não
existentes e ao mesmo tempo ameaçadoras” (MOSCOVICI, 2010). Seguindo a definição
de Jodelet a ancoragem “é um trabalho que corresponde a uma função cognitiva
essencial da representação e capaz também de se referir a todo elemento estranho ou
desconhecido no ambiente social ou ideal” (JODELET, 2001).

O segundo processo o de objetivação tem o trabalho de manifestar o conhecimento


absorvido pelos indivíduos. Por essa razão, Moscovici afirma que a “objetivação

60
transforma algo abstrato em algo quase concreto, transfere o que está na mente em
algo que exista no mundo físico” (MOSCOVICI, 2010).

Para Jodelet (2001) a compreensão de representação social se diferencia do


conhecimento científico tradicional, porque valoriza o senso comum. Mas, nem por
isso perde sua importância, este conhecimento tem objeto de estudo e é tão legítimo
quanto qualquer outro.

As representações sociais se apresentam não apenas como fatos coletivos, mas são
construídas através das interações sociais do sujeito, para quem a representação social
não é construída apenas pela vontade da coletividade, mas também pelas relações
individuais e coletivas.

A psicologia Social contribuiu para a formação de um novo olhar sobre os indivíduos e


sobre as suas interações socias, pois não existe separação entre o universo interno do
indivíduo e seu universo externo, pois ambos se completam. O que a mente do
indivíduo consegue identificar se relaciona aos aspectos físicos e o pensamento antes
imaginário se transfere para a realidade, transformando assim o que era estranho em
familiar.

Sendo assim compreendemos que existem dois mundos, o mundo objetivo e o mundo
subjetivo. O mundo objetivo é o que ele é, e o subjetivo é o que nós construímos a
respeito dele. Vamos utilizar nosso objeto de estudo como exemplo: A Rua do Catete.

Se sentarmos para conversar com alguém que frequenta, vive ou viveu algum tipo de
vivência ou experiência na Rua do Catete, esse indivíduo irá te apresentar várias
histórias sobre o lugar, fatos importantes históricos e pessoas sobre a rua, mas isso é
no subjetivo, onde é agregado um valor e um sentimento a essa rua.

Mas qual é o significado da Rua do Catete no mundo objetivo? No mundo objetivo ela
é apenas uma rua e todo o significado que é atribuído a ela é uma Representação
Social, ou seja, é a construção de um mundo subjetivo.

Todas as nossas experiências afetivas, nossas condutas e respostas corporais e verbais


são efeitos não de uma excitação exterior com tal, mas sim das representações que
nós possuímos dela, ou seja, não enxergamos o mundo como ele é, enxergamos o

61
mundo através das representações que nós construímos como sociedade acerca do
mundo.

Em suma, a construção das Representações Socias é o resultado da interação entre os


sujeitos que compõe o grupo social buscando uma forma de organizar a realidade
através da comunicação e nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos
anteriores que lhe são impostos por suas representações, linguagem ou cultura, pois
pensamos através de uma linguagem e organizamos nossos pensamentos de acorde
com o sistema que está condicionado tanto por nossas representações como por nossa
cultura.

3.4. PALÁCIO DE MEMÓRIAS

Durante um banquete oferecido por um nobre da Tessália, chamado Scopas, o poeta


Simônides de Ceos recitou um poema lírico em honra de seu anfitrião, mas
acrescentou uma passagem em louvor a Castor e Pólux. Scopas não gostou da
passagem que foi acrescentada por Simônides e disse ao poeta que pagaria somente
metade do que fora combinado pelo discurso e que se ele quisesse o restante que
fosse cobrar dos deuses gêmeos a quem havia dedicado metade do poema. Após um
tempo, Simônides foi avisado que dois jovens o aguardavam do lado de fora, para falar
com ele. Sendo assim retirou-se do banquete e deixou o salão atrás dos jovens, porém
não encontrou ninguém. Assim que Simônides saiu o teto do salão desabou, matando
Scopas e todos os convidados. Os corpos deformados não eram puderam ser
reconhecidos nem pelos parentes para conseguirem fazer os funerais. Simônides,
entretanto, lembrava-se dos lugares dos convidados à mesa e pôde identificar para os
parentes cada um de seus mortos. Castor e Pólux, os jovens invisíveis que chamaram
Simônides e foram homenageados pelo seu poema haviam pago generosamente sua
parte, a qual Scopas havia se negado, tirando-o do banquete pouco antes do teto
desabar. 13

Essa experiência sugeriu ao poeta os princípios da arte da memória, da qual se


afirmava inventor pois, ao notar que sua capacidade de lembrar dos lugares onde os

13
Cícero, (55 a.C.) De Oratore ad Quintum fratrem libri tres ("Sobre o Orador, três livros para seu irmão
Quinto"), p.351.

62
convidados estavam sentados lhe havia possibilitado identificar os corpos,
compreendeu que a disposição ordenada era essencial a uma boa memória. A esse
método deu o nome de memória artificial, ou seja, uma memória gerada a partir de
algum “gatilho” para gerar uma lembrança.

Cícero14 introduz sua exposição sobre a memória artificial com a história da sua
invenção por Simônides.

Essa realização de Simônides parece ter originado a observação de que ela é


uma ajuda à memória, se alguns lugares forem fixados na mente, no que
cada um pode acreditar a partir da sua experiência. Porque quando
retornamos a um lugar após uma longa ausência, não nos recordamos
apenas do lugar em si, mas das coisas que fizemos ali, das pessoas que
encontramos e até dos pensamentos não expressos que passaram por
nossas mentes quando ali estivemos anteriormente. Assim, como em muitos
casos, a arte nasce como experiência. (CÍCERO, 55ª.c apud YATES,2007,
p.40)

Poucos sabem que foram os gregos que inventaram a arte da memória que, como
muitas outras artes gregas, foi transmitida a Roma de onde passou à tradição
européia. Essa arte busca a memorização por meio de uma técnica de imprimir
“lugares” e “imagens” na memória. Uma memória treinada era de fundamental
importância antes da invenção da imprensa e, além disso, é uma arte que utiliza a
arquitetura da época para elaborar seus lugares de memória.

Simônides aprendeu com essa experiência que é a ordem que está na base dos
preceitos da memória. Esses devem ser considerados em lugares bem iluminados,
onde devem ser colocadas as imagens das coisas. O lugar dessas imagens, a forma
como foram depositadas, as devolverá à memória. Da mesma forma que o escrito está
fixado pelas letras na cera, o que foi confiado à memória está impresso nos lugares,
assim como em uma página, e as imagens guardam a lembrança das coisas, como se
fossem letras.

Simônides percebeu de modo argucioso que as imagens das coisas que


melhor se fixam em nossa mente são aquelas que foram transmitidas pelos

14
Marco Túlio Cícero foi um advogado, político, escritor, orador e filósofo da gens Túlia da República
Romana eleito cônsul em 63 a.C. com Caio Antônio Híbrida.

63
sentidos, e que, de todos os sentidos o mais sutil é o da visão e,
consequentemente, as percepções recebidas pelos ouvidos ou concebidas
pelo pensamento podem ser mais bem retidas se forem também
transmitidas a nossas mentes por meio dos olhos. (CÍCERO, 55ª.c, apud
YATES,2007, pag.20)

De acordo com o neurologista Leandro Teles15, da Academia Brasileira de Neurologia


(ABN), os modos e a quantidade de lembranças fixadas pelo indivíduo variam de
pessoa para pessoa. Existe um cabo de guerra de coisas que levam ao esquecimento
ou à fixação. Há vivências tão intensas que são retidas no ato, já outras ficam no
cérebro apenas por proximidade temporal e se perdem ao longo do tempo, a não ser
que se volte a vê-las. É o nosso cérebro quem decide o que vai e o que fica, um
processo que se inicia na infância e nos acompanha a vida toda.

Os antigos nos apresentaram como a memória se fixa melhor em nossas mentes


através de métodos desenvolvidos através do uso da disposição de lugares e imagens e
a esse método chamaram de Memória artificial. Esse método, adotado ainda hoje,
recebe o nome de Palácio de Memórias16. Trata-se de um lugar ou série de lugares na
mente de um indivíduo que permite armazenar uma informação para recuperação
posterior. Com tempo e prática, qualquer um pode construir um Palácio da Memória,
cuja utilidade não se limita a competições de memorização e trivialidades. Enquanto
um palácio da memória pode ser um lugar puramente imaginado, é mais fácil baseá-lo
em um lugar familiar já existente no mundo real. Um palácio básico pode ser seu
quarto, por exemplo. Palácios da Memória maiores podem ser baseados na sua casa,
uma catedral, uma caminhada para a loja da esquina, ou sua cidade inteira. Quanto
maior ou mais detalhado é o lugar real, mais informação você pode armazenar no
espaço mental correspondente.

Se você precisará lembrar de coisas em uma ordem específica, é essencial que você
siga uma rota específica através do seu palácio, ambas no mundo real e na sua mente.
Deste modo, uma vez que você tenha decidido o que seu palácio da memória é, decida
como você viajará através dele. Se você realmente não precisa lembrar das coisas em

15
TELES, Leandro. O cérebro ansioso: aprenda a reconhecer, prevenir e tratar o maior transtorno
moderno. 2018, ed. Alaúde.
16
https://theweek.com/articles/465649/10-superhelpful-mnemonic-tricks

64
ordem, esse passo é desnecessário, mas continua útil, já que ele torna mais fácil
memorizar seu palácio. Quando você usar seu palácio da memória você irá colocar
coisas individuais para serem lembradas (um número, um nome, ou uma parte de um
discurso que você fará, por exemplo) em localizações específicas. Deste modo, você
precisa identificar tantos locais quanto você acha que precisará. Ande através da sua
estrutura ou ao longo da sua rota e realmente a observe. Se seu palácio na verdade é
uma rota, como seu caminho para o trabalho, os locais de armazenamento podem ser
pontos de referência ao longo do caminho: a casa do seu vizinho, uma encruzilhada,
uma estátua, ou um arranha-céu, por exemplo. Se o palácio é uma estrutura, você
pode pôr coisas em salas diferentes. Dentro dos quartos, você pode identificar locais
menores, como pinturas, peças de mobiliário, e assim por diante. A chave é certificar-
se de que os locais que você escolheu são distintos um do outro, assim nenhum local
pode ser confundido com outro.

O mesmo método usado na Antiguidade, conhecido como memória artificial, era


usado em lugares que estavam fortemente impressos na memória como um
fundamento racional na teoria Aristotélica da reminiscência, baseada na ordem e na
associação.

Segundo Tomás de Aquino17 (2016) é necessário um ponto de partida para se iniciar o


processo da reminiscência. Por esse motivo, alguns rememoram a partir de lugares
onde foi dito, feito ou pensado algo, utilizando o lugar como se fosse o ponto de
partida da reminiscência, pois o acesso ao lugar é como um ponto de partida para
todas as coisas que ali se passaram.

Podemos perceber representações esquemáticas e processos que envolvem as ideias


de lugar, espaço e a organização de imagens, personagens e ação. Tal processo é
denominado processo mnemônico. As representações espaciais esquemáticas
obedecem a esquemas. Modelos mentais estruturados, denominados “Arte da
Memória”, são utilizados desde a Antiguidade clássica e têm sido “editados” e
aplicados em explorações artísticas de efeitos narrativos na construção de imagens. Tal

17
Tomás de Aquino foi um frade católico italiano da Ordem dos Pregadores cujas obras tiveram enorme
influência na teologia e na filosofia, principalmente na tradição conhecida como Escolástica e que, por
isso, é conhecido como "Doctor Angelicus", "Doctor Communis" e "Doctor Universalis".

65
ligação da arte da memória com os lugares vem desde seu surgimento, quando
Simônides faz a associação de pessoas (imagens) a espaços (lugares). Posteriormente à
experiência de Simônides, a Arte da Memória passou por várias transformações, mas
sempre conservou, em sua essência, a questão da interrelação de imagens e lugares
como base para estruturar processos de concepção.

A memória artificial constitui-se de lugares e imagens. Chamo lugar aquilo


que foi encerrado pelo homem ou pela natureza num espaço pequeno
inteira e distintamente, de modo que possamos facilmente percebê-lo e
abarcá-lo com a memória natural: como uma casa, um vão entre colunas,
um canto, um arco e coisas semelhantes. Já as imagens são determinadas
formas, marcas ou simulacros das coisas que desejamos lembrar. Por
exemplo, se queremos guardar na memória um cavalo, um leão ou uma
águia, será preciso dispor suas imagens em lugares determinados. Agora
mostraremos que espécie de lugares devemos descobrir e como encontrar
as imagens e colocá-las nos lugares. (CÍCERO, 2005, p. 183-4).

Neste sentido entendemos que também que o conceito “lugar” pode ser analisado
segundo perspectivas diversas. Sem entrar muito nesse conceito tão abrangente que é
“lugar”, abordaremos alguns dos pontos de vistas teóricos e críticos para situar o
conceito de lugar dentro da explicação de Memória artificial e Palácio de Memórias.

Zonno (2014) analisa que a arquitetura se ancora no debate da antropologia que


concebe o “lugar” a partir da presença de valores culturais que possuem permanência
simbólica e referencial, como o contrário dos chamados “não lugares”, não identitários
e não relacionais que caracterizam um mundo efêmero e de impermanência. Os “não
lugares” são definidos pelo etnólogo Marc Augé (1994) como espaços de anonimato,
do consumo e dos fluxos em velocidade que se contrapõem aos conceitos de
permanência e identidade próprias ao “lugar”.

Ao pensarmos os conceitos de memória artificial e Palácio de Memórias no momento


de criarmos em nossas mentes o lugar que irá servir de caminho para a lembrança
podemos considerar então que o Inferno de Dante pode ser considerado como um
Palácio de Memórias ou um lugar para aplicação da memória artificial. O mesmo pode
ser visto como uma espécie de sistemas de memória, destinado à memorização do

66
Inferno e de suas punições, a partir de imagens impressionantes colocadas em uma
série ordenada de lugares. Se considerarmos que o poema se baseia em séries
ordenadas de lugares no Inferno, Purgatório e Paraíso, e como uma ordem cósmica de
lugares nos quais as esferas do Inferno são as esferas do Céu invertidas, ele começa a
surgir como uma soma de semelhanças e exemplos dispostos em ordem e firmados no
Universo. Apesar de o Inferno de Dante não ser um lugar existente, mas apenas
ficcional, isso não causa impedimento para que o mesmo seja utilizado para os
métodos abordados, pois a obra é naturalmente um sistema de memória.

Podemos, portanto, ver como a arte da memória pode transformar-se em literatura,


como os lugares do Inferno podem ser transitados e se tornar cenários de um Palácio
de Memórias. A influência da arte da memória na literatura é uma abordagem
extremamente utilizada e o Inferno de Dante é um exemplo cuja ligação com a arte da
memória é inquestionável.

Após entendermos os conceitos e métodos de memorização abordados iremos


apresentar o significado do conceito Palácio de Memórias abordado nessa dissertação.
Após a leitura e os estudos da arte da memória desde os antigos até a arte de
memorização dos dias de hoje se chegou a um terceiro uso do conceito de Palácio de
Memórias.

A memória opera no campo do vivido participando ao mesmo tempo tanto dos


registros ocorridos no passado como das expectativas depositadas no futuro.
Instaurado no espaço fenomenológico, entrelaçando sujeito e objeto, o sentido
emerge no presente como atualidade e como partilha do passado. O campo do sentido
se abre à multiplicidade e entre a suposição artística de vivências e as vivências do
próprio indivíduo, culmina em uma partilha de sentido.

Durante a pesquisa de campo, através da captação das narrativas de memória dos


personagens, foi observado que muitos tinham sua memória ancorada de certo modo
em algum local da Rua do Catete, ou seja, cada narrativa de memória sobre a rua
começava sempre a partir de algum lugar, a partir do qual surgiam todas as
lembranças da rua.

67
Com essa análise chegamos à conclusão que muitos indivíduos possuíam seu Palácio
de Memórias na Rua do Catete, e esse era o lugar de onde emergiam suas lembranças
e onde elas se ancoravam, pois para cada um dos entrevistados não existiria a Rua do
Catete sem um lugar específico.

Não podemos, porém, confundir o método com o conceito de “Lugares de Memória”


de Pierre Nora. Para o autor, “Os lugares de memória são, antes de mais nada, restos.
[...] São rituais de uma sociedade sem ritual, sacralidades passageiras em uma
sociedade que dessacraliza, ilusões de eternidade.” (NORA, 1984)

Segundo Nora (1984), o lugar de memória existiria onde o simples registro acaba. Ele é
aquilo que o transcende, o sentido simbólico inscrito no próprio registro. Esses lugares
seriam os espaços onde a memória se fixou e transportariam o indivíduo como uma
nova forma de apreender a memória que não nos é natural, pois não vivemos mais o
que eles representam pela história como fonte. São, portanto, locais materiais e
imateriais onde se cristalizaram a memória de uma sociedade, de uma nação, locais
onde grupos ou povos se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um
sentimento de formação da identidade e de pertencimento.

O que não acontece com o método do Palácio de Memórias adotado nesta


dissertação, que se baseia em lugares simples, ordinários, onde simplesmente o
indivíduo tem sua memória ancorada por razão de alguma vivência ou acontecimento
do passado que faz com que esse lugar seja seu protagonista na Rua do Catete, seu
Palácio de Memórias.

4. METODOLOGIA

Sendo toda pesquisa um procedimento sistemático que busca fornecer respostas a


problemas previamente propostos, cabe sempre ao pesquisador, e ao tipo de
pesquisa, definir a metodologia mais adequada ao problema formulado. O dilema
inerente à memória e à narrativa no espaço urbano, questão proposta nesta
dissertação, aliado à carência de estudos no campo da Arquitetura e Urbanismo sobre
um espaço de grande importância para a história da cidade, a Rua do Catete, conferem
a este estudo, em diferentes etapas, características de pesquisa exploratória e

68
descritiva. Assim, do ponto de vista dos procedimentos, foram adotados a pesquisa
bibliográfica e a pesquisa de campo.

O presente estudo alinha-se às pesquisas empíricas que preconizam a abordagem


qualitativa de natureza aplicada pelo LASC/Proarq (Laboratório Arquitetura,
Subjetividade e Cultura), de modo a concretizar o cenário que permeará o ‘arquivo’, a
‘compreensão’ e, por fim, a ‘representação’ de (novas) narrativas na Rua do Catete.

Quando abordamos a confiabilidade e a validade dos dados, no caso das narrativas,


estamos falando da confiabilidade e da validade da memória. Flick (2009, p.171)
ressalta que “as lembranças dos eventos mais antigos podem ser influenciadas pela
situação na qual são contadas” e acrescenta que uma pergunta deve ser feita pelo
pesquisador: “É adequado *…+ confiar na eficácia dos constrangimentos narrativos e
embaraços de uma narrativa?”. Acreditamos que sim.

Claro que a memória é sempre pouco confiável, mitológica e ideológica. Mas isto,
afinal, é o que desejamos da memória-narrativa enquanto produção de algo novo, de
um outro espaço, de uma outra estória.

Para Ricoeur (2007), fazer história é uma ação de interpretação das memórias. Neste
composto ativo da construção, o autor chama atenção para o lugar onde a memória
está arquivada e de que modo começamos a fazer a nossa coleção. Quais são as
memórias acessadas (?), seria esta a primeira dúvida.

Nossa metodologia, portanto, passou pelas seguintes etapas após a pesquisa


bibliográfica:

1) Etnografias (Narrativas de Deriva);

2) Desenhos Etnográficos;

3) Entrevistas abertas.

Na primeira etapa foi utilizado o método etnográfico através da escrita de uma


narrativa de deriva praticamente monográfica da pesquisadora, que dedicou uma
parte considerável do seu tempo a observar, descrever, anotar e examinar o espaço de
estudo baseado na experiência em que a busca era a descoberta dos modos de usos,
da percepção do espaço e o entendimento sobre o caráter do lugar. Essa etapa foi

69
realizada através de observações em dias e horários variados no recorte de estudo, e
seu objetivo foi captar as informações dos usuários (sua vivência no local) e sobre o
caráter do lugar.

A segunda etapa, que foi realizada basicamente em conjunto com a primeira, foi
desenvolvida através de análises etnográficas através de desenhos feitos pela autora
no caderno de campo, em preto e branco, onde se buscou registrar informações
sensíveis das pessoas e do lugar. Os desenhos feitos em campo pela autora foram
usados como material para análise, apresentando eventuais descobertas da
investigação durante a observação da Rua do Catete.

A terceira etapa, na qual realizamos as entrevistas, foi realizada simultaneamente à


etapa de desenho. Muitas vezes, durante a confecção do desenho, as pessoas se
aproximavam para perguntar o que a pesquisadora estava fazendo e assim acabavam
dando seus relatos sobre o lugar em questão. Alguns eram gravados e outros anotadas
rapidamente no caderno.

Algumas entrevistas foram realizadas por meio de abordagem “na rua” ou através de
convites por mensagem eletrônica. Como exemplo de abordagem na rua temos a
entrevista feita com o Sr. Evaristo, o famoso “Homem da Rosca”; pela internet foram
feitos convites aos administradores de duas páginas de instagram sobre o bairro. Essas
entrevistas foram utilizadas para construção de narrativas da “outra estória” da Rua do
Catete e para a análise através do método do Palácio de Memória.

Em “Observando Personagens e Lugares” (seção 4.1), apresentaremos a forma de


seleção das personagens (a partir da interpretação dos dados documentais
proporcionados pela evolução histórica da Rua do Catete, e pela ‘notação gráfica’ dos
tipos identitários nesta evolução). Após esta apresentação, explicaremos como as
narrativas foram estruturadas através de entrevistas abertas, deixando as personagens
‘falarem’ e contarem suas experiências buscando referência no espaço físico.

Em “Composição de Narrativas” (seção 4.2) serão apresentados estudos de compilação


fenomenológica do espaço através do desenvolvimento das narrativas obtidas pelos
percursos realizados na Rua do Catete, com o objetivo de verificar de que forma as
modificações decorrentes das evoluções urbanas / rupturas são percebidas hoje e

70
como isso pode ser colocado como discurso Benjaminiano (2010), a partir do conceito
“cidade texto”.

Por fim, o subcapítulo “Aplicação do método Palácio de Memórias” ( seção 4.3) exporá
o método delineado e a forma de sua aplicação com as personagens previamente
definidas.

4.1. OBSERVANDO PERSONAGENS E LUGARES

Ferramentas utilizadas: Desenhos etnográficos, entrevistas e estudos


etnográficos do local.

Neste capítulo apresentaremos como as personagens surgiram pelo processo de


observação atenta e pelos croquis etnográficos. Os lugares não foram escolhidos por
relações meramente documentais (ou, pela história oficial e suas marcações de
importância espacial), mas pela vida cotidiana que fabrica essa rua: pelo olhar
etnográfico.

Ao iniciarmos uma abordagem etnográfica, lançamos nossa curiosidade sobre a cidade


e buscamos, assim, construir narrativas da condição urbana.

Segundo George Perec (1975) condenamos, há muito, o nosso ato de ver a cidade ao
puro condicionamento mercadológico e espetacular. Vemos o mundo com olhos
objetivos e mecanizados e procuramos decodificar apenas o funcional e o utilitário.
Laplatine (2013), por sua vez, aborda a etnografia não apenas como atividade de
observação, mas também como atividade linguística que se efetua do que se vê na
paisagem para a escrita. Descrever, escrever e construir fazem acontecer o que não se
compreendia.

O autor da Etnografia é respectivamente o seu próprio crítico e historiador e apesar de


suas fontes serem facilmente acessíveis, elas são também altamente duvidosas e
complicadas, pois as mesmas não estão em documentos concretos, mas sim no
comportamento e na memória dos homens vivos (MALINOWSKI, 1976). O etnógrafo se
lança no vazio dando valor ao “ordinário e ao inútil” com uma atitude que nos faz
enxergar a cidade na sua essência,

Através do estudo do local pelo viés etnográfico, foi proposto caminhar pela Rua do
Catete à procura de lugares que clamassem atenção. Durante a pesquisa pela rua,

71
entre setembro 2018 e janeiro 2020, a autora foi registando em seu caderno tudo o
que acontecia ao seu redor e lhe chamava atenção, anotando em diferentes ocasiões
acontecimentos cotidianos da rua, circulação de ônibus e veículos, animais, pessoas,
passagem do tempo, ou seja, o que estava ao alcance do seu olhar.

O intuito era que o caderno se transformasse em uma lista de fatos “ordinários e


banais” da vida cotidiana da Rua do Catete. Um texto composto por ‘fotografias
escritas’ onde se podia ver uma coleção de imagens de momentos e gestos, um
catálogo de ações onde encontramos pessoas caminhando, turistas, carros e ônibus
em movimento, elementos e disposições. Ocorre sem regra e sem compasso, e os
acontecimentos são registrados de acordo com a afetação de sentidos da autora. Na
forma de uma narrativa, se faz um convite para ir à Rua do Catete e contemplar a
experiência e a construção da vida cotidiana, com seus personagens.

DESENHOS ETNOGRÁFICOS18

FIGURA 20-CROQUI DA AUTORA DE ALGUNS PERSONAGENS OBSERVADOS DURANTE A PESQUISA NA RUA DO CATETE.
08/12/2019 A 04/01/2020.

A pesquisa desta dissertação se inicia metodologicamente com a análise documental


da evolução do bairro e da Rua do Catete (análise bibliográfica), já apresentado no
capítulo 2, que apresenta o objeto de estudo. Porém, após a configuração descritiva
18
Todos os desenhos e escritas etnográficas feitos pela autora estarão no Apêndice.

72
desse espaço, por um viés histórico e cronológico, o segundo passo foi imergir em
campo e aproveitar o corpo de pesquisador (inteiro, ambulante e questionador) para
produzir ‘relatos desenhados’, conforme o viés etnográfico permitiu compreender.

Através do uso do desenho etnográfico foi possível perceber o espaço através dos
detalhes que se materializam pelo tempo de desenho, de retratar o lugar para além
das palavras, buscando meios para realizar um estudo que mostrasse as características
daquele local para os outros e para a gente. Surgiu então a possibilidade de “desenhar
para conhecer”, desenhar como modo de estudar um local. O desenho também
apresenta compromisso com o objeto de estudo, ele é o olhar da pesquisadora, sobre
os objetos, pessoas e relações observadas no campo (KUSCHNIR, 2012).

Segundo Kuschnir (2016), pode-se perceber que é pelo viés da experiência artística que
o desenho se reaproxima do fazer antropológico, e não o oposto. A abordagem é feita
pela via de uma arte fortemente inspirada nos valores românticos, descolada de
molduras mercadológicas ou profissionalizantes. O caderno de campo, como suporte
para o registro gráfico, é o objeto que simboliza a ponte entre o mundo do desenho e
o da etnografia. O desenho de observação valoriza o “testemunho” de um autor
mergulhado não apenas numa paisagem (natural ou urbana), mas numa “experiência”
local e em diversos modos de vida.

Escolhido como uma das abordagens utilizadas, o desenho etnográfico foi adotado
pela autora (mesmo com todas as fragilidades da falta de prática) como uma forma de
entender o espaço através da concentração e da observação lenta e cuidadosa dos
lugares e pessoas ao seu redor.

O processo de desenvolvimento dos croquis etnográficos foi determinado da seguinte


forma: primeiramente era escolhido um dia da semana onde seria feito o percurso
pela Rua do Catete, procurando um acontecimento para registro e observação; depois
de encontrado, a autora permanecia nesse ponto pelo tempo aproximado de 1 a 3
horas (uma a três horas - dependendo da localização, em um bar ou uma calçada com
sombra o tempo poderia ser maior), intercalando desenhos e anotações etnográficas
(como sinalizações de eventos, ou falas) e logo depois de concluída esta etapa,
procurava outro ponto para fazer novos registros.

73
O objetivo dessa sistemática foi a prática de observação daquele espaço que se
expandiu para além do tempo que a pesquisadora levava desenhando, ocorreu uma
mudança de percepção do lugar que incidiu em uma maior compreensão às
expressões corporais das pessoas. O desenho acabou sendo a descoberta de um novo
caminho para formas narrativas e expositivas da etnografia. O diálogo entre a
observação etnográfica e a observação gráfica questiona o sujeito que
observa/desenha e coloca em foco a observação como parte de uma mediação do
olhar.

FIGURA 21- CROQUI DA AUTORA ONDE VEMOS O EDIFÍCIO QUE SEGUIU O MODELO DO PLANO AGACHE LOCALIZADO NA
ESQUINA DA RUA ALMIRANTE TAMANDARÉ, E UM PEDACO DO GRADIL DO TERRENO DO DETRAN, REVELANDO OS ‘RESQUÍCIOS
DE CIDADE’ APÓS A DEMOLIÇÃO DAS OBRAS DO METRÔ. 08/12/2019. DOMINGO.

74
FIGURA 22- CROQUI DA AUTORA NA SAÍDA do metrô do Catete, onde se percebe uma imagem
(ainda) paradigmática do bairro. RUA DO CATETE ESQUINA COM SILVEIRA MARTINS.
13/12/2019.SEXTA FEIRA

FIGURA 23- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO MACHADO ONDESE CONCENTRAM VÁRIOS GRUPOS DE
PESSOAS JOGANDO CARTAS, DAMA E XADREZ EM MESAS FIXAS, UMA DAS MARCAS SOCIAIS DA RUA DO CATETE.
ESTE GRUPO PARECIA O MAIS ANIMADO, DISPONDO DE PLATEIA PARA O JOGO. 06/12/2019 SEXTA FEIRA

75
FIGURA 24- CROQUI DA AUTORA NO LARGO DO
MACHADO ONDE SE LOCALIZA O POSTO DE BICICLETAS
DO ITAU, LOCAL DE MOVIMENTO CONTINUO DE PESSOAS
TIRANDO E DEIXANDO BICICLETAS, ESPAÇO ATUAL DE
BASTANTE IMPORTÂNCIA PARA A SOCIALIDADE DO
BAIRRO. 17/12/2019 TERCA FEIRA

FIGURA 25- CROQUI DA AUTORA DE UM DIA DE ENSAIO DO BLOCO ‘AMIGOS DO CATETE’ QUE ACONTECEU NA RUA DO
CATETE, ESQUINA COM RUA DOIS DE DEZEMBRO. O USO DA RUA DO CATETE COMO PASSAGEM E AGLOMERAÇÃO PARA
ATIVIDADES CARNAVALESCAS DATA DE DESDE O IMPÉRIO. 04/01/2020 SÁBADO.

76
FIGURA 26- PESSOAS NO PONTO DE ÔNIBUS NO MEIO DA TARDE EM FRENTE A GALERIA DO CINEMA SÃO LUIZ. 17/12/2019
TERCA FEIRA.

FIGURA 27- SAPATEIRO QUE FAZ PONTO NO LARGO DO MACHADO QUASE EM FRENTE AO SUPERMERCADO EXTRA.
ELE E DEFICIENTE, NÃO POSSUI AS PERNAS E ATENDE HÁ ANOS NA RUA EM FRENTE A UM DOS RESPIRADORES DO METRÔ.
19/12/2019 QUINTA FEIRA.

77
FIGURA 28- CROQUI DA AUTORA EM UM DIA DE CHUVA NA
RUA DO CATETE ESQUINA COM RUA DOIS DE DEZEMBRO.
QUARTA FEIRA 11/12/2019.

O que os croquis acima demonstram, no estudo da Rua do Catete de uma forma quase
que inerente ao processo de interpretar, é que se trata de um local onde a tradição e a
modernidade se misturam, enquanto resposta de colagens de tempos. Por lá, vemos
pessoas jogando carteado, skatistas que se apropriam das calçadas para fazerem
manobras, “boêmios” que abrem e fecham os bares todos os dias, o seu Evaristo que
vende suas roscas utilizando slogans irreverentes de duplo sentido, a forte presença da
musicalidade no local (rap, funk, hip hop, chorinho), a arte dos pichadores, os
estudantes e jovens que frequentam as casas de suco e as feirinhas de moda aonde
tudo vai se tornando cena e referência da cultura urbana carioca na Rua do Catete.

Kuschnir (2016) expõe que os ideais de um fazer antropológico que valoriza o trabalho
de campo intenso e imersivo e conectado às dimensões da subjetividade, da
criatividade, do fluxo e da experiência. Berger (2005, p.71) reafirma a centralidade do
sujeito e da sua singularidade na produção do desenho de observação quando
descreve que “uma árvore desenhada não é uma árvore, mas uma árvore desenhada
por alguém”.

O desenho é indelegável de seu autor, pois ali naquelas linhas estão o olhar, a
imaginação e as condições em que foi produzido. Aquela imagem irá demonstrar

78
exatamente o ‘olhar de quem olha’ e o que se pode sentir no momento que foi
executado.

Os lugares/cenas eleitas para a execução dos desenhos etnográficos casam com as


entrevistas feitas aos personagens escolhidos da Rua do Catete, sendo assim
conhecemos outra abordagem que foi utilizada, que foram as entrevistas abertas
cometidas a algumas pessoas que possuíssem alguma relação com a Rua do Catete.

FIGURA 29- MAPEAMENTO DOS LOCAIS ONDE FORAM REALIZADOS OS CROQUIS PELA AUTORA.

ENTREVISTAS

As entrevistas foram definidas de modo a orientar a maneira de moldar e planejar a


pesquisa, e não uma forma de engessar o pesquisador. Duarte (2009) diversas
tipologias de entrevistas, podem ser citados três tipos fundamentais dessa ferramenta
de pesquisa: entrevistas abertas (baseadas em questões não estruturadas),
semiabertas (questões semiestruturadas) e fechadas (questões estruturadas). As
entrevistas abertas se caracterizam por sua flexibilidade e por explorarem ao máximo
o assunto, são realizadas a partir de uma “conversa” sobre o tema central enquanto as
semiabertas seguem um roteiro como base.

Segundo Flick (2009), o uso das narrativas pode ser organizado em entrevista narrativa
ou episódica. Pensadas como uma alternativa às entrevistas semiestruturadas, as
narrativas abrem-se à subjetividade e “permitem ao pesquisador abordar o mundo

79
empírico até então estruturado do entrevistado, de um modo abrangente” (Op. Cit.
2009). O autor aborda também o uso de uma “pergunta gerativa de narrativa”, que se
refere a um tópico que será investigado e cujo objetivo é estimular a narrativa
principal do sujeito que contará a sua história. Quanto mais bem articulada for esta
pergunta gerativa maiores as chances de a narrativa ser relevante para a questão da
pesquisa.

Histórias de vida são geralmente obtidas por intermédio de narrativas, pelas quais os
indivíduos se definem. Narrar é construir um lugar imaginário para experiências do
pensamento.

Tanto a entrevista-narrativa quanto a entrevista-episódica possuem obstáculos que


não devem fugir aos pesquisadores e que são sintetizados na questão da validade dos
dados. Sobre isso Duarte (2009) afirma que essas condições dizem respeito à
competência do fornecimento dos resultados que o pesquisador se propôs obter, com
o rigor metodológico utilizado e também o contexto em que a entrevista foi aplicada
ajuda a esclarecer esses fatores indispensáveis para o sucesso da pesquisa.

Levando em consideração que esta pesquisa procurou demonstrar três pontos de


análise através das narrativas – memorial, simbólica e significante – foi elaborado um
questionário para ser usado através da experiência de uma entrevista aberta que,
como citado anteriormente, se caracteriza por sua flexibilidade e exploração máxima
do assunto e é realizada a partir de uma “conversa” sobre o tema central.

 Memória:
1. Qual sua relação com a Rua do Catete? Poderia contar uma história/fato que
considera importante sobre ela?

 Simbolismo:
2. O que você acha que a Rua do Catete de hoje reflete para a cidade?

 Significado:
3. Levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a mesma ‘cara’
que possuía no século XX, o que você acha que permanece e o que se perdeu?

4. Qual o significado da Rua do Catete nos dias de hoje para você?

80
As entrevistas foram iniciadas na fase da qualificação da dissertação, em que a
pesquisadora buscava dados mnemônicos dos moradores e frequentadores da Rua do
Catete sobre os acontecimentos mais marcantes que ali ocorreram. Muitos citavam as
obras do metrô, a demolição de grande parte do casario antigo e a saída da sede da
República do Palácio do Catete.

Foram realizadas ao todo 15 entrevistas no ano de 2020. Algumas fluíam melhor, pois
o entrevistado narrava inúmeros fatos de sua lembrança sobre a rua; em outras, as
pessoas demonstravam pouco interesse em participar e até mesmo um pouco de
vergonha, o que invariavelmente diminuía o tempo de entrevista realizada.

A abordagem aconteceu de várias formas: algumas entrevistas ocorreram com


conhecidos da pesquisadora, moradores do bairro, que se dispuseram a contribuir;
outras com personagens já “famosos” da Rua do Catete, e o restante das abordagens
ocorreu durante a deriva pelo lugar, nos momentos em que a pesquisadora fazia as
narrativas ou os desenhos etnográficos e algum “curioso” se aproximava.

A grande contribuição dessas entrevistas foi que possibilitou perceber que a Rua do
Catete, além de conter muitas histórias, também é repleta de estórias. Cada indivíduo
entrevistado tem a sua história com a rua e tem a Sua Rua do Catete. A Rua do Catete
representa um acontecimento, um marco, uma mudança e uma conquista diferente
para cada indivíduo, em tantos anos de história oficial e não oficial.

Desde cena do grafite do rap e hip hop, passando por lembranças de falência e perda
do prédio da família causada pela obra do metrô até lembranças horríveis da época da
ditadura militar.

Dentre os entrevistados foram escolhidos para esta dissertação os seguintes


personagens:

 RAPPER DO TTK: RP tem 52 anos e não nasceu no bairro do Catete, mas


tomou-o para si quando se mudou em 1983 vindo do Andaraí, encontrou
sua paixão e profissão no bairro e hoje vive de música. Ele não mora mais
no Catete, mas se considera “cria” do bairro como a galera do rapper
costuma dizer. É considerado o guru da galera do Rap e seu filho, sua mãe
e sua neta ainda moram no Catete.

81
 SAUDOSO DO ARMAZÉM: SA tem 37 anos e hoje em dia mora no
Flamengo. Sua família tem uma história muito forte com a Rua do Catete,
pois ela significava a vida de todos eles até a chegada da obra do metrô
quando tudo virou de cabeça para baixo. Apesar de não ter vivido essa
época e ter toda essa memória herdada do pai e dos tios, SA demonstra
muita tristeza ao contar toda a história. Tentamos fazer uma entrevista
com o pai de SA, mas este se recusou a responder as perguntas sobre esse
tempo alegando não querer tocar no assunto.

 SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR: Sócia tem 68 anos e foi a mais empolgada
ao dar seu relato. Contou sua história desde a época que chegou com sete
anos para morar no Cosme Velho até como ela vive hoje. Conheci Sócia na
Praça São Salvador e a mesma acabou com esse apelido, pois o próprio
filho a chama assim por frequentar muito a Praça. Foi através da
entrevista de Sócia que fiquei sabendo da época sombria da ditadura no
Largo do Machado e voltei a alguns entrevistados procurando saber mais
sobre o assunto.

 XARPI: Xarpi tem 32 anos, é famosa tanto no bairro do Catete como em


toda a cena da pichação do Rio de Janeiro e por que não dizer do Brasil.
Após passar por situações horríveis na vida da pichação como a perda de
pessoas muito queridas resolveu se dedicar mais à organização da sua
festa de Rap e Hip Hop que leva o nome do seu personagem nesta
dissertação.

 VIÚVO DO BONDE: Sr. VB tem 82 anos e não há ninguém que não o


conheça na Rua do Catete, seu personagem ganhou esse nome pois ele
fala o tempo inteiro sobre a época do bonde com bastante saudosismo.
Sr. VB foi um dos que abordaram sobre a época da Ditadura, mas não quis
falar muito pois sofreu muito na época e tem cicatrizes não só no corpo
como na alma.

 @BOMPRACATETE: Tem 31 anos e nem carioca é, mas veio morar no


Catete e se apaixonou de tal forma que criou uma conta no aplicativo de

82
rede social instagram em homenagem ao bairro. Nessa página, fala sobre
a história do bairro e a agenda social do local. Foi importante como uma
visão externa do lugar, uma visão de alguém que não nasceu nem cresceu
aqui, mas que em pouco tempo já tinha uma opinião bem formada e uma
ligação forte que foi capaz de fazer com que criasse a conta no instagram.

 DA ROSCA: “quem quer comer minha rosca”? “Ela tá pegando fogo” “Olha
quem comer minha rosca não vai se decepcionar que ela é bem larga.”
Essas algumas das famosas frases de marketing do Da Rosca. Ele tem 62
anos, veio de Crato no Ceará e se tornou tão famoso com suas roscas e
seu modo de vendê-las pela Rua do Catete que acabou aparecendo em
vários programas de televisão e até livro sobre sua estratégia de branding
e marketing já foi publicado. Da Rosca é patrimônio do Catete, é único e
não há quem não o conheça. Quando comecei a entrevistar os
personagens, seu nome foi o primeiro que me veio à cabeça.

 CATETEANA: Em 1974 mudou-se da cidade de Duque de Caxias, na


Baixada Fluminense, para o bairro do Catete para ficar próxima do
trabalho na garagem da CTC (Companhia de Transportes Coletivos do Rio
de Janeiro) no Largo do Machado - antiga empresa de ônibus do estado.
Frequentava o antigo Bar Lamas e mesmo após mudar de emprego
continuou morando no bairro, tem 73 anos e fala que os amigos que fez
no Catete são sua verdadeira família.

 O PROFESSOR: Tem 65 anos e é morador da Tijuca, porém possui


inúmeras memórias com a Rua do Catete de outras épocas de sua vida.
Durante a infância com sua mãe ia muito à Rua, onde visitavam os
sobrados para escolha de mobiliário. Mais tarde, estagiou no Museu de
Folclore Edison Carneiro. Sua relação com a Rua do Catete se dá no
âmbito das reminiscências e, portanto, da subjetividade e das afecções.
Seu personagem recebeu esse nome por ser professor na Faculdade de
Museologia da UNIRIO.

83
 VETERINÁRIA ZACCARIANA: VZ tem no Colégio Zaccaria o verdadeiro
significado de “Palácio de Memórias”. Tem 32 anos, morou quase toda a
vida no Catete, na Rua Pedro Américo.Estudou dos 3 aos 17 anos no
Colégio Zaccaria e só ficou longe do bairro no período da Faculdade
quando morou em Seropédica, tirando isso tem uma vida completamente
Cateteana. Hoje em dia tem um consultório veterinário no Catete e,
durante a entrevista, todas as suas lembranças da Rua começavam
atreladas ao Colégio Zaccaria.

Foram realizadas entrevistas com vários personagens na Rua do Catete, porém foram
escolhidos para serem citados nesta dissertação os que mais demonstraram ligação de
um “afeto memorial” com a rua, demonstrando em suas entrevistas que não estavam
ali naquele lugar somente de passagem, mas sim que o lugar tinha influência na sua
vida e no indivíduo que se tornou hoje em dia.

Eu cheguei no Catete em 83, saído do Andaraí, e não tinha rap em lugar


algum. No Rio deviam ter umas cinco pessoas que faziam rap, mas no Catete
tinha muito dançarino de break e já tinha o Baile Funk do Santo Amaro.
Nessa época, o funk tocava Afrika Bambaataa, Kurtis Blow... E depois eu
comecei a fazer rap. Acho que sou o primeiro rapper do Catete... Aliás, não:
o primeiro foi o Skunk. [...] Quando eu cheguei no Catete foi muito
impactante pra mim esse aspecto de contracultura que o bairro tem e a
herança da malandragem da Lapa. Geral falava disso, dos malandros, de
Madame Satã. Ali encontrei roqueiros, cineastas, artistas e isso me inspirou
muito. Eu morava no 90 da Rua do Catete e rolavam sessões de filmes
independentes no cinema do Palácio do Catete.[...] Eu botava nome, era
pixador, pixava ZIC, a pixação ali sempre foi forte. Sou da época do Vinga e
eu nem sabia que pixação e grafitti tinham a ver com a cultura hip hop, fui
descobrir essa ligação no Catete. Outra parada interessante era como geral
falava a Gualin do TTK, mudando a ordem das palavras, e virou uma língua
do bairro, da pixação. [...] O Catete ainda é muito importante para mim. Lá
moram minha mãe, meu filho, minha neta, a galera do futebol e vários
amigos. É um lugar propenso pro hip pop, é muito urbano, a molecada é rua
e tá sempre na rua. (Entrevista completa no Anexo – RAPPER DO TTK, 52
anos)

84
Minha família toda morava no Catete, e meu avô possuía um armazém que
foi herdado do seu pai, meu bisavô, na altura da Rua do Catete com Largo
do Machado. Eles moravam em um casario também na Rua do Catete
próximo a Rua Dois de Dezembro. O armazém era o sustento da família
inteira, que nunca teve problemas financeiros. Porém, por volta de 1970,
começaram as obras do metrô, ninguém passava direito na Rua e o
armazém começou a ficar às moscas. Quando meu avô achou que decretaria
falência chegou uma carta do metrô falando que uma área seria demolida
por causa das obras e essa área incluía o armazém e a casa onde eles
moravam. Claro que financeiramente foi bom para o meu avô acontecer a
demolição do armazém, pois ele recebeu um bom dinheiro tanto pela casa
quanto pelo comércio, mas ele tinha grande apego sentimental ao local e
assim que foi feito o negócio todos se mudaram para Copacabana, pois meu
avô pegou ódio pelo Catete, entrou em depressão e veio a falecer. Até hoje
falam que foi de tristeza por ter perdido o armazém para as obras do metrô.
(SAUDOSO DO ARMAZÉM, 37 anos).

[...] no Largo do Machado ainda não existia o chafariz, ele foi criado bem
depois, lá pra 68 ou 69 por aí que teve o chafariz. Naquela época de 64 era
época da ditadura, época do AI5 e eu já estava mais mocinha. Eu descia com
as minhas amigas, estudava por ali no Catete, e o Largo do Machado era
uma praça de guerra, porque nós estávamos na ditadura e ali só havia
tanques do Exército, tanques de guerra e a cavalaria da Polícia do Exército.
Tanto que a gente não podia fazer manifestação nenhuma, mas quando a
gente fazia a gente apanhava muito, eu mesma tenho uma cicatriz nas
nádegas por ter levado uma borrachada de um PE em cima de um cavalo [...]
(Entrevista completa no Anexo – SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR, 68 anos)

Eu moro na Glória e estudei no Catete. A cena da pixação aqui na área


sempre foi muito forte. O TTK sempre foi conhecido por difundir a língua de
trás pra frente, a famosa "Gualin do TTK". Eu cresci em meio a tudo isso.
Com 14 anos eu coloquei meu primeiro nome na rua e comecei a conhecer os
garotos da área que faziam acontecer, mas foi uma amiga que me
encorajou. Existiam bondes de meninas que pixavam, e uma amiga me
chamou pra entrar na sigla "Inferno Feminino". Aí eu comecei e logo depois
já estava entre os maiores pixadores do Rio. Eu admirava muito a galera das

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siglas FR (Filhos da Rebeldia), VR (Vício Rebelde), JR (Juventude Rebelde) e
TW (Trip Wave). Assim que comecei a pixar com as meninas em 2002, Naty,
a fundadora da sigla, faleceu (por motivo não relacionado à pixação), e
nenhuma das outras quis continuar praticando, mas eu resolvi continuar
mesmo assim pra fazer a vontade da Naty e dar orgulho a ela. Quem
conheceu sabe, devo tudo a ela! (Entrevista completa no Anexo – XARPI, 32
anos).

Como podemos ver nos trechos de entrevistas acima, cada uma das personagens
entrevistadas na Rua do Catete possui um tipo de lembrança que podemos reconhecer
nas Teoria das Representações Sociais, já abordada no capítulo 3. Segundo Moscovici
(2002), a Representação Social se relaciona à forma dos sujeitos sociais avaliarem um
objeto e construírem nele um significado, para então reproduzir tal significado
compartilhado pelo grupo.

A NARRATIVA ETNOGRÁFICA

Neste capítulo tornou-se escolha estrutural não interpretar as entrevistas de forma


‘crua’ ou direta, sem interceder em sua compreensão. Por isso, absorvendo o viés
etnográfico dessa etapa metodológica, e colocando o “Eu-pesquisador” como uma
fonte de respostas, decidimos filtrar as experiências obtidas através da audição das
entrevistas em uma narrativa-deriva da autora da dissertação.

Todas as frases em caixa alta reverberam uma reação da autora-narradora, que buscou
no campo da pesquisa da narrativa etnográfica uma tendência em que etnografia
serviria para entender as atitudes dos outros indivíduos através dos olhos do
pesquisador. Essa busca por todo tipo de informação relevante a ser coletada é
importante para que haja maior embasamento sobre a realidade do campo para que o
pesquisador possa encontrar as informações necessárias para entender a cultura e os
hábitos do indivíduo inserido no objeto estudado (CAVEDON, 2003).

Há uma preocupação com a demarcação espacial e o olhar atento voltado às situações


do dia-a-dia e com uma tentativa de questionar e descobrir novos objetos no cotidiano
através da etnografia de rua. Ao catalogar o espaço na inconstância do seu
movimento, o pesquisador descobre um patrimônio intangível de formas que tecem as
interações sociais de um lugar.

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O simples ato de andar pelo lugar se torna estratégia para igualmente interagir com
elementos da população com os quais cruzamos nas ruas. Moradores, frequentadores,
ou simples passantes, todos eles motivam o etnógrafo a perfilar personagens,
descrever ações e estilos de vida a partir de suas atuações cotidianas. E todos são bons
momentos para se retraçar os cenários onde transcorrem suas histórias de vida e,
sendo assim, delinear as ambiências dos inúmeros ramos de significados que abrigam
os territórios de uma cidade.

A pesquisadora então assume um papel de iniciação de um etnógrafo e estabelece a


sua presença no local como de um voyer urbano, um contemplador e narrador da
cidade, onde narra a realidade que nos escapa, se lançando no vazio e dando valor ao
ordinário. A narrativa etnográfica apresentada neste momento tenta explicar,
descrever e espacializar o tempo na Rua do Catete.

Data: 05 de Dezembro de 201919


Hora: 10h30
Local: Rua do Catete, calçada em frente ao Palácio do Catete.
Tempo: Calor!!!Bem quente!

- Inventário de algumas coisas escritamente visíveis.


 Vários letreiros do outro lado da Rua: Papelaria do Catete, Droga Raia, Hotel Riazor,
Bar Berbigão.
Um passante passa com NIKE escrito na mochila que carrega nas costas.
 Alguns números: Placa da Rua mostra que este trecho vai do 187 ao 153.
Alguns sobrados carregam na fachada seu ano de construção. O do Hotel Riazor 1891,
outro sobrado apresenta 1904.
 Vejo o piso do chão em vários tons de cinza e de um vermelho terroso.
 Vejo árvores frondosas na calçada em frente à entrada dos jardins do Palácio.
 Abaixo da árvore em frente ao ponto de ônibus, um respirador do metrô; resolvo
sentar.
 Passa um 434.
 Vejo um trecho de céu pelas árvores.
 Há três táxis no ponto do outro lado da Rua.

19
Transcrição de um relato etnográfico feito na Rua do Catete, em frente ao Palácio do Catete. A
etnografia durou em torno de três horas e a autora descreveu suas reações em caixa alta em negrito na
cor cinza.

87
 Uma senhora com uma sacola grande chega ao ponto de ônibus e se junta ao rapaz
que já estava ali.
 Uma garota atravessa a Rua correndo e quase é pega pela moto. SUSTO!
 Passa um 104 e logo atrás um 517.
 Para uma caminhonete e o motorista pede informação às pessoas do ponto de ônibus.
(duas moças, um senhor e a senhora da sacola que continua no ponto).
 Passa um 434 lotado.
 Sai um taxi do ponto com um rapaz engravatado de passageiro.
ESTOU COM MUITO CALOR.
 Passa outro 104 e um 775D.
 A senhora da sacola que estava ainda no ponto entra no 775D.
 Passa um grupo de adolescentes com uniforme escolar.
 Passa um 422.
 Começa a passar muitos grupos de estudantes pela calçada com uniforme.
JÁ DEVE SER MAIS DE 12h00
 Cheiro de pipoca! Passa uma carrocinha e para quase na minha frente me tirando um
pouco da visão do ponto de ônibus.
 Passam inúmeros carros o tempo todo na Rua.
 Passa uma senhora, ela para, olha para mim e acena, eu aceno de volta, mas não faço
ideia de quem seja.
 Vários estudantes entram nos jardins do Palácio do Catete.
ESSE CHEIRO DE PIPOCA ESTÁ ME MATANDO!!!
 Passa um 434.
 Passa um 775D.
 Passa um ônibus de turismo.
 Estudantes passam gritando e brincando uns com os outros.
 Passa um 422 e desce um cadeirante.
 Passa um 118.
 Passa um 434.
 Passa uma mulher de casa de lã.
PASSO MAL SÓ DE OLHAR, ESTÁ MUITO QUENTE.
 Passa de novo a senhora e acena para mim e sorri.
MEU DEUS, NUNCA VI ESSA SENHORA.
 Param dois taxis no ponto.
 Passa um 118.
 São 13h05

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 Passa uma garota carregando uma grande cartolina e com uniforme de escola.
 Uma senhora sentada ao meu lado na mureta do respirador faz crochê.
MEU DEUS SÓ AGORA REPAREI.
 São 13h 30
PAUSA
___________________________________________________________________________

Data: 05 de Dezembro de 2019.


Hora: 15h00
Local: Rua do Catete, esquina com Silveira Martins em frente ao Palácio do Catete.
Tempo: Muito Calor (Marca 33° no relógio da Rua)

- Após o almoço volto para a frente do Palácio e resolvo fazer algumas anotações, mas dessa
vez resolvo ficar mais próximo à esquina da Rua Silveira Martins. Fico em pé encostada ao lado
da porta de entrada do Palácio do Catete.
- Possuo a mesma visão que tinha pela manhã, porém de um ângulo diferente. Continuo vendo
os ônibus passando, o ponto de táxi, carros particulares passando aos montes na Rua,
bicicletas e triciclos de entrega, transeuntes, cães ... Tudo que via pela manhã.

 Vai começar algum evento/aula nos jardins do Palácio, deve ser aula de yoga, várias
senhoras entram com tapetinhos em mãos.
 O sinal de trânsito da Rua do Catete esquina com a Rua Silveira Martins não está
funcionando (pela manhã estava normal), um guarda está tentando organizar o
trânsito.
 Um menino usando um boné preto atravessa a Rua pulando e pisando somente nas
faixas brancas da faixa de pedestre.
 Passa uma senhora com dois cães vira-latas.
 Passa um carteiro puxando um carrinho com uma caixa azul.
ESTOU COMEÇANDO A SENTIR DORES NO PESCOÇO E NA LOMBAR. Olho para o
relógio da Rua do Catete e são 15h50 (pela manhã o ponto de ônibus me tirava a visão
do relógio).
 Uma criança tentando abrir uma bala acaba tropeçando e caindo, o adulto (acho que o
pai) vai acudir, mas ela sai no seu colo chorando.
 A lanchonete do outro lado da Rua está lotada
 Passa um rapaz no triciclo de entrega carregando um colchão.
 Todos os lugares do ponto de táxi estão ocupados.
 São 14h05min. CANSAÇO DOS OLHOS, DO CORPO E CANSAÇO DAS PALAVRAS.
PAUSA

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Data: 06 de Dezembro de 2019.
Hora: 11h00
Local: Largo do Machado.
Tempo: Temperatura Amena

- Andando pelo Largo do Machado, onde acontecia uma feirinha de roupas e objetos pra casa
vejo que há vários grupos de pessoas jogando cartas, damas e xadrez nas mesas de concreto
do local. Avisto um grupo bem animado e resolvo sentar em um banco quase em frente a eles.
 O grupo esta jogando algum jogo com cartas de baralho e tem até plateia assistindo.
 São seis pessoas, todos homens. Dois estão jogando e o resto assiste.
 Apesar de a mesinha ter quatro bancos, somente um homem calvo que está jogando
se encontra sentado, o restante est em pé só com um dos pés apoiado em um dos
bancos.
 Dois homens, um usando bermuda e o outro calça estão somente em pé olhando o
jogo com as mãos no bolso.
 O homem calvo sentado dá um grito e comemora.
 Um rapaz de terno e gravata falando no celular se senta na mureta do chafariz do lado
contrário onde eu estou e fica olhando na direção das mesas enquanto fala ao celular.
 Bate um vento e vem um cheiro forte de flores da barraca de flores que esta próxima
às mesas de jogos
ESSE CHEIRO ME LEMBRA CEMITÉRIO
 Passam alguns meninos correndo.
 Um homem com um isopor para no meio das mesas.
 Um dos homens que esta em pé olhando o jogo (o de bermuda e mão no bolso) se
aproxima do homem com isopor e pergunta se tem cerveja latão.
 Toca o sino da igreja. Já são 12h00.
 Passa seu Erisvaldo vendendo roscas e gritando: Paga três reais para comer minha
rosca, olha minha rosca é bem larga, tá quentinha a minha rosca.
ROSCA MAIS FAMOSA DO CATETE E ARREDORES.
 A mesa inteira grita e começa a zoar o homem calvo.
 Todos, menos o homem calvo começam a gritar e pular esfregando a cabeça do
homem calvo.
ESTOU COMECANDO A SENTIR FOME.
 Olho para o relógio, são 12h45 e resolvo ir embora.
PAUSA.

90
Os três relatos etnográficos acima seguem o modelo de roteiro de narrativa, como um
esquema para o desenvolvimento de uma estória. Seja qual for a modalidade, o
texto narrativo sempre dispõe de certos elementos primordiais, que são: tempo,
espaço, personagens, narrador e enredo – geralmente colocados em forma de roteiro
para que possam ser descritos em seguida, a partir de um tipo de narrativa. Os tipos de
narrativas são divididos, na literatura, em Romance, Novela, Conto, Crônica e Fábula.

Não é nosso interesse, nesta fase, utilizar algum desses tipos de narrativa para
construir interpretação; ao contrário, o ideal é fixar as etapas e elementos
compositivos do enredo que podem suscitar atenção. A narrativa, aqui, se presta a
estruturar uma compreensão, por isso aparece como roteiro que, por sua vez, serve
para suscitar uma espécie de estudo experimental sobre o espaço urbano, no campo
da arquitetura e do urbanismo.

Esses três estudos, além de diversos outros realizados, foram feitos em diferentes
horários e pontos espaciais, durante alguns dias de imersão na Rua do Catete. Através
dessas anotações, das respostas advindas das entrevistas e dos croquis etnográficos,
compusemos um cenário muito mais rico do que aquele apresentado pela história
fixada em acontecimentos fabulosos e distanciados da vida ordinária. Os três métodos
em consonância permitiram compreender que para se elevar pessoas ordinárias ao
papel de modificadoras da história é preciso estar na mesma história, é preciso
encontrar o ‘lugar de fala’.

De igual modo, o roteiro acabou demonstrando que para se construir narrativas é


necessário bem mais do que uma transcrição de entrevistas; é preciso voltar aos
pontos mais comentados, à proposta de enredo, delimitar os atores principais e
coadjuvantes para, então, encontrar o clímax e o desfecho (de toda estória).

Por isso, no próximo capítulo, investiremos na composição das narrativas, como etapa
final da construção desse método, e de modo a demonstrar como cada persogem
definida nos croquis etnográficos se comportou, frente à sua Rua do Catete narrada, e
permitiu-nos compreender um outro lado da ‘história’.

91
4.2. COMPOSIÇÃO DE NARRATIVAS

FIGURA 30- A FOTO MOSTRA UMA DAS ÁGUIAS DO PALÁCIO OBSERVANDO O CATETE.
FONTE: FOTO RICARDO BELIEL

A explicação da cidade que somos e que se encontra em nós é uma narrativa que se
decompõe através da memória de seus habitantes, tanto quanto do pesquisador
(neste caso, pesquisadora-arquiteta-urbanista) que reinterpreta os comentários dos
habitantes que pesquisa em suas trajetórias.

Podemos, então, abordar o conceito de “cidade texto” de Benjamin (2010) como um


método que, frente ao impacto da escrita da cidade e distinguindo a metrópole como
espaço textual, nos permite a leitura de diversas tensões modernas. Benjamim se
coloca perante a metrópole de modo análogo ao estudioso em frente à escritura, de
modo que o ambiente urbano se transforma em texto. O texto de Benjamim se
constitui em um retrato complexo dos conflitos que dominam a metrópole que,
transformada em texto, permite sua leitura.

Nessas circunstâncias, a verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de


desenrolar-se dentro das molduras literárias – isso, pelo contrário, é a expressão usual
de sua infertilidade.

92
Histórias de vida não são dados adquiridos, são obtidas por intermédio de narrativas
(construções) pelas quais os sujeitos se definem; narrar é instalar um lugar imaginário
para experiências de pensamentos.

Nossa metodologia, seguindo o ritmo do arcabouço teórico, buscou compor tais


narrativas. Ao experimentarmos o processo de encontro com os usuários numa
abordagem-piloto, vimos que há um antes e um depois da Rua do Catete: Antes do
metrô/ Depois do Metrô, Catete República/Catete Museu da República.

Como construir tal discurso através desse esvaziamento de significado? Como aplicá-lo
no estudo da memória na Rua do Catete? A resposta veio através da composição de
narrativas por seus personagens ordinários.

Lamento comunicar que após as obras do metrô o Catete morreu, pode


anotar ai no seu caderninho. Um bairro que já teve seus tempos de glória foi
um antigo domínio da aristocracia, boêmio e pioneiro na história dos
transportes urbanos, o Catete teve a primeira linha de bondes puxada por
burro, ela fazia ponto ali no final do Largo do Machado. Hoje acho que o
Catete padece por forca do seu pioneirismo (O Sr. Solta uma gargalhada).
Durantes as obras do metrô passar um dia nessa Rua era um inferno, estava
tudo destruído. Longe de mim contestar o progresso, mas não precisava ter
feito tudo isso. Foi muito triste ver a Escola Rodrigues Alves que ficava ali na
esquina da Rua Silveira Martins ser demolida, ela foi construída pelo prefeito
Perreira Passos, era um primor de colégio, funcionava como dependência
burocrática do Palácio. (Entrevista completa no Anexo – VIÚVO DO BONDE,
82 anos).

E: Para mim a Rua do Catete representa uma glória de outrora. A rua hoje
está bem decadente, mas é uma décadence avec élégance e o Palácio do
Catete continua como testemunha viva desse passado em que o Catete era o
centro da Política nacional. Resumindo: a Rua do Catete representa o ciclo
de mudanças que o Rio de Janeiro passou e vai continuar passando (meio o
que ocorre com Copacabana).

93
P: Levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a mesma
‘cara’ que possuía no século XX, o que você acha que permanece e o que se
perdeu?
E: Para mim o que permanece é o legado histórico, com alguns casarões
preservados e com o Palácio. O que foi embora é o seu significado político,
como sede do poder federal (e imagino que com isso seu prestígio). Para
mim, como disse antes, a Rua do Catete é um lugar extremamente pitoresco
e minha referência de uma vida carioca. (Entrevista completa no Anexo,
Proprietário do Instagram @BOMPRACATETE, 31 anos).

A Rua do Catete também tem suas personagens, que já são famosas não só na rua; é
caso do Homem da Rosca, um senhor cearense que vende rosquinhas fritas de modo
irreverente pela Rua do Catete e não há ninguém no bairro que não o conheça.

Eu nasci no Crato, no Ceará, e vim para o Rio de Janeiro em 2005 trabalhar


vendendo crediário nas portas, mas não deu certo. Aluguei uma casa para
morar na comunidade do Santo Amaro e moro lá ate hoje. Como vender
crediário não deu certo fui ver como poderia tirar sustento. Eu vendia
salgado lá no Ceará então fiz uma pesquisa e vi que pelo bairro do Catete
ninguém vendia rosquinha frita então eu vi uma oportunidade. Eu estava na
rua da amargura, com vinte reais no bolso, sozinho, pedindo a Deus que me
desse uma luz. Vendi água de coco por seis meses no Largo do Machado,
peguei o dinheiro e comprei o material para fazer a rosca. Antes eu fazia
pequenininha e vendia a 50 centavos hoje ela tá maior e eu vendo a 3 reais.
Vendo 200 roscas por dia, saio com 100 de manha e 100 a tarde, vendo tudo
pela Rua do Catete ate o Largo do Machado, faço as pessoas comerem
minha rosca que é bem boa e ainda faço eles rirem. Todo mundo me
conhece e tenho muito a agradecer à Rua do Catete por que é daqui que eu
tiro meu sustento. Vender minha rosca aqui na Rua do Catete me fez ficar
famoso, já fui no Jô Soares, na Ana Maria Braga e até livro sobre mim já
tem. (Entrevista completa no Anexo, DA ROSCA, 62 anos).

Da Rosca é praticamente um patrimônio da Rua do Catete, com sua irreverência


conquistou a todos não só do Catete. O vendedor é famoso e já foi a vários programas
de TV, falar sobre seu case de sucesso com a venda das rosquinhas. Como já falei
anteriormente, quando comecei as entrevistas para a pesquisa o primeiro personagem
que me veio à cabeça foi Da Rosca, pois a minha Rua do Catete não é a mesma se ele
não vier gritando suas frases de duplo sentido vendendo suas rosquinhas. Da Rosca foi

94
um dos entrevistados que aceitou de bom grado dar a entrevista mesmo ela sendo
durante seu tempo de trabalho. Respondeu às perguntas entre a venda de uma
rosquinha e um café que ele vende pelo nome de preto passado no saco, e respondeu
com seu humor característico a todas as perguntas.

Porem nem todas as entrevistas ocorreram de forma leve como a do vendedor.


Percebemos que, muitas vezes, quando durante a entrevista o narrador se sentia
constrangido com o que era perguntado, frequentemente entrava no recurso do
esquecimento; na maioria das vezes a resposta à pergunta era a negação da lembrança
do fato. Podemos citar como exemplo quando foi feita uma tentativa de entrevista
com o pai da personagem Saudoso do Armazém. A todo o momento ele se recusava a
falar sobre o fato de a família ter perdido a casa e o armazém para as obras do metrô.
Toda vez que a pesquisadora fazia qualquer pergunta sobre o assunto ele falava que
era muito criança e não lembrava dos fatos com clareza, mudando logo de assunto.

Porém, quando era iniciativa do próprio informante contar sua história, o mesmo
procurara os fios condutores por onde poderia resgatar as lembranças do relato –
geralmente, fios espaciais. Caso não conseguisse memorizar todos os detalhes,
começava a usar do recurso da imaginação.

Tanto a entrevista-narrativa quanto a entrevista-episódica possuem obstáculos que


não devem fugir aos pesquisadores e que são sintetizadas na questão da validade dos
dados. Sobre isso Duarte (2009) afirma que essas condições dizem respeito à
competência do fornecimento dos resultados que o pesquisador se propôs obter, com
o rigor metodológico utilizado e, também, o contexto em que a entrevista foi aplicada.

O julgamento da validade de uma investigação científica pode ser obtido


pela construção metodológica do trabalho, ao relacionar formulação
teórica, questão de pesquisa, perguntas, critérios de seleção dos
entrevistados – ou seja, é identificada já o exame do projeto. A triangulação
de dados com o acréscimo de fontes diversificadas de evidências, como
documentos, observação e literatura e seu encadeamento consistente na
etapa de análise ajuda a garantir a validade dos resultados suportados por
entrevistas em profundidade (DUARTE, 2009, P. 68).

95
Uma vez que a memória pode ser construída a partir de testemunhos e narrativas, que
constituem a estrutura fundamental de transição entre memória e história, a
construção de narrativas – como percebemos – não acontece somente através do uso
das entrevistas dos personagens, mas também da captação dos registros e dos
pormenores da lembrança.

A partir da pesquisa da literatura de época, pudemos entender o fato de que


interpretar um cenário atual de cidade, através de olhares diferenciados que se
pautam em narrativas visuais e fenomenológicas de apreensão desse espaço físico,
poderíamos evidenciar a Rua do Catete como resultado dessas mudanças do passado,
não apenas relacionada à definição fixada por seus edifícios e histórias, mas também
por seus fenômenos e desintegrações.

Com o uso do método delimitado a seguir, O ‘Palácio das Memórias’, teremos uma
experiência muito diferente, o ato de narrar que Benjamim (1986) afirmava ser uma
arte em extinção. Segundo Benjamin, são cada vez mais raras as pessoas que sabem
narrar devidamente. E apesar de termos captado tantas narrativas pelo processo da
entrevista-narrativa ou episódica, ainda que tivéssemos muitos relatos simbólicos e
afetivos, nos faltava entender como a memória estaria operando – e isto é, pela Teoria
da Narrativa, o ápice do roteiro. Saber aquilo o que relembrar, ou trazer à luz, ou
aquilo que deve ser esquecido e ocultado.

4.3. APLICAÇÃO DO MÉTODO ‘PALÁCIO DE MEMÓRIAS’

“Há coisas que nós simplesmente não sabemos nessa história. Vamos deixar
isso bem claro, de saída. Há fatos controversos. Mas isso acontece, muitas
vezes, quando você revisita o passado.”

DiMeo, Nate . O Palácio da Memória (2017, p.129).

Benjamim aborda em “O Narrador” (1986) uma crise no ato de contar histórias, onde
afirma que os fatos citados em sua época, vindos de todas as partes do mundo, não
favoreciam a experiência da narrativa, pois chegavam carregados de explicações sem
precisarmos ter uma escuta atenta e sensível de refletir sobre o ocorrido - porém isso
beneficiava o excesso de informação que ainda hoje é um dos temas mais abordados

96
por pesquisadores em diferentes áreas e campos do saber, como História, Sociologia,
Comunicação, Filosofia entre outros.

O Palácio da Memória, na contramão da crise do ‘contador de histórias’, é uma


experiência narrativa diferenciada que privilegia o que escapa à História oficial: o
cotidiano, o banal e o humano.

Memórias podem ser fortalecidas por histórias; nossos cérebros prestam mais atenção
à informação em forma de narrativa (por meio de cenas, elementos marcantes e
fatos), pois quanto mais associamos coisas de que queremos lembrar às estruturas que
já possuímos em mente, mais fácil será o ato de lembrar. Quando consultamos a
memória, é como se soubéssemos os caminhos certos para acessá-la. Construímos,
assim, narrativas.

A técnica do Palácio da Memória, também conhecida como método de Loci, (lugar, em


latim) era usada pelos grandes oradores da antiguidade para fazer discursos de cabeça,
sem precisar de nenhum tipo de apoio. Para começar a entender a técnica, é preciso
primeiramente definir qual será o seu Palácio (uma estrutura física, uma edificação).

Para explicar a técnica, peço que imagine como Palácio uma casa em que você tenha a
seguinte ordem dos cômodos: 1) Garagem, 2) Sala de estar, 3) Lavabo, 4) Sala de
jantar, 5) Cozinha, 6) Varanda, 7) Área de serviço, 8) Banheiro Social, 9) Dormitório I,
10) Dormitório II, 11) Suíte, 12) Banheiro da Suíte. Apresentado o palácio, vamos ao
exercício, que será feito com o objetivo de memorizar 12 itens que devem ser
comprados no supermercado. Para isso, vamos colocar cada item em um cômodo de
forma incomum, isto porque nosso cérebro tem facilidade para guardar informações
diferentes, não habituais, surpreendentes.

Use bastante, então, sua criatividade. Comece imaginando que, na Garagem, sobre o
carro, existe uma penca de bananas cobrindo todo o carro, como se fosse a capa
protetora do veículo. Depois, entre na sala de estar, e visualize no lugar do sofá uma
estrutura de caixas de sabão em pó onde você pode se sentar. Passe pelo lavabo e
faça a imagem da pia jorrando leite pela torneira. Na sala de jantar, tem um frango
sentado em uma das cadeiras. No meio da cozinha existe um pé de mamão plantado.
Você passa pela varanda e vê que está chovendo feijões. Na área de serviço, a
máquina de lavar está batendo uma massa de pão. Ao ligar o chuveiro do banheiro
social a água sai preta como café. A cama do primeiro dormitório está vermelha,
cheia de molho de tomate. No segundo dormitório você nem consegue entrar,
porque o chão está repleto de ovos, a cada passo, vários ovos se quebram. Na suíte,
os travesseiros são sacos de farinha. E o banheiro da suíte está cheiroso, pois as
paredes estão repletas de orégano. Uma vez criada a imagem absurda em cada um

97
dos cômodos, aos passear pelo Palácio, os objetos vão sendo resgatados facilmente.
Esta técnica cria relações espaciais com a informação a ser memorizada. Assim, ao
passear pelo Palácio, as imagens vão sendo resgatadas já de modo ordenado, ou
20
seja, nada mais é que a criação de uma narrativa.

As memórias podem ser fortalecidas por histórias, mas algumas coisas que fortalecem
nossas memórias também podem distorcê-las. Normalmente, com memórias
emocionais tendemos a lembrar do aspecto central do evento e essa lembrança pode
depender de outras informações, como o lugar onde ocorreu o acontecimento, por
exemplo.

Após realizarmos as entrevistas com alguns indivíduos descobrimos que a maioria das
lembranças estão ligadas a lugares da Rua do Catete. Quando a pessoa começava a
falar sobre a Rua nunca descrevia como um todo em sua lembrança, ela sempre focava
em algum lugar e desse lugar era de onde iam surgindo as suas memórias.

Alguns lugares ainda existentes como o Colégio Zaccaria e o Palácio do Catete que
foram bastante citados, mas também lugares que não existem mais, porém as pessoas
sabem exatamente onde se localizavam, como o Bar Lamas, a Escola Rodrigues Alves e
a garagem da CTC, antiga empresa de ônibus do estado.

Sendo assim foi desenvolvido para esta pesquisa o método do ‘Palácio de Memórias’,
onde as personagens que foram escolhidas para construírem seus ‘Palácios de
Memórias’ através dos lugares mencionados, onde haviam centrado suas lembranças:
em igrejas, edifícios, escolas ou no próprio Palácio do Catete.

Em 1974 mudei-me da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para


o bairro e frequentava o antigo Bar Lamas, que era centenário e onde se
encontravam diversos artistas e intelectuais. Lembro da garagem da CTC no
Largo do Machado - antiga empresa de ônibus do estado. (Entrevista
completa no Anexo, CATETEANA, 62 anos).

Eu morava na Rua Silveira Martins quando era criança, ao lado do Palácio do


Catete. Me lembro de escutar, da escola Rodrigues Alves, onde eu estudava
na época, a fanfarra presidencial e Juscelino saía na sacada para

20
Citação de Palácio da Memória: Técnicas de Memorização de E. Juliano, 2017.

98
cumprimentar a multidão. (Entrevista completa no Anexo, MOÇA DA
PAPELARIA, 73 anos).
Do ponto de vista pessoal dois momentos marcam minha relação com o
logradouro referido. O primeiro diz respeito às idas em minha infância com
minha mãe para escolha de mobiliário residencial. O segundo refere-se ao
meu primeiro estágio no Museu Edison Carneiro. Desse modo, minha relação
com a Rua do Catete se dá no âmbito das reminiscências e, portanto, da
subjetividade e das afecções. (Entrevista completa no Anexo, O PROFESSOR,
65 anos).

Minha relação com a Rua do Catete é de muito carinho e gratidão, afinal é o


bairro onde eu vivo, onde a maior parte da minha família reside e onde pude
fazer muitos amigos. Minhas maiores lembranças são da época de colégio,
estudei no Colégio Zaccaria minha vida inteira e nossa como aquele lugar me
fazia e ainda me faz feliz, fiz questão de colocar meu local de votação lá só
para ter uma desculpa para visitar a escola. Lembro que as sextas feiras era
obrigatório o almoço no Mac (McDonalds) no Largo do Machado. A resenha
da semana e a programação do final de semana eram feitas lá. (Entrevista
completa no Anexo, VETERINÁRIA ZACCARIANA, 32 anos).

Através desse método selecionamos histórias de pessoas comuns que enfrentaram os


dilemas oferecidos pela vida. Muitas não fazem parte daquela história oficial, com “H”
maiúsculo, mas suas trajetórias iluminam aspectos que nos ajudam a entender a vida
de todos nós graças ao encanto de suas narrativas de memórias do espaço, criando o
‘Palácio de Memórias’, que descreveremos nas análises.

5. ESTUDOS ETNOGRÁFICOS: OUTROS OLHARES SOBRE A RUA DO CATETE.

Para realizar as análises propostas neste capítulo vamos trabalhar com as abordagens
metodológicas descritas no capítulo 4 e com as respostas que alcançam nosso objetivo
geral, que é: analisar as mudanças de cenário da Rua do Catete através de narrativas
proporcionadas pelas personagens, em relação à vivência do espaço pelo ‘Palácio de
Memórias’, de modo a evidenciar um cenário atual complexo e reforçar a conexão
memória/espaço físico, e dos objetivos específicos.

Sendo assim, nossas análises serão realizadas a partir das seguintes diretrizes:

99
1) Identificar os usos e a caracterização dada ao lugar pelos usuários através da análise
das Etnografias (Narrativas de Deriva);

2) Entender o espaço através da concentração e da observação lenta e cuidadosa dos


lugares e pessoas ao seu redor através do uso do método dos Desenhos
Etnográficos;

3) Entender onde as pessoas concentram as suas memórias sobre o passado da Rua do


Catete e onde constroem seus ‘Palácio de Memórias’ através da utilização das
entrevistas abertas- Composição de Narrativas realizadas com os personagens da
Rua;

4) Delinear a evolução urbana da Rua do Catete no recorte temporal da pesquisa, de


modo a contemplar o viés fenomenológico e cultural possível do espaço físico;

5) Identificar como as relações cotidianas afetam e são afetadas pela/na Rua do


Catete, através do estudo da construção das narrativas das personagens do lugar;

6) Apresentar uma narrativa construída pela autora, mostrando essa outra “estória” da
Rua do Catete através da coesão das narrativas descritas pelas personagens
escolhidas, elencando pontos de ‘cicatrizes’ da evolução urbana, tanto no espaço
como no indivíduo.

5.1 TESSITURAS CATETIANAS

A Rua do Catete dos dias de hoje reflete aquilo que sobrou de uma história de Poder e
Aristocracia. O lugar ainda conserva certo ar bucólico causado por alguns sobrados que
resistiram ao tempo, porém o que resta hoje em dia é uma rua em estado de
decadência e esquecida pelo tempo.

Embora o bairro tenha passado por varias transformações urbanas, as memórias do


Catete em tempos de capital do país ficaram no passado. A Rua do Catete que
encontramos hoje se encontra descaracterizada, os últimos sobrados que ainda restam
foram tombados pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e
poucos são os preservados, apesar de não se encontrarem em mau estado de
conservação.

100
Como já apresentamos na configuração do objeto de estudo, a área apresenta duas
configurações bastante distintas. O trecho que vai do Largo do Machado até a Rua
Correa Dutra tem um perfil mais verticalizado, com grande parte de edifícios
construídos a partir da década de 1970 no lugar do casario demolido para a obra de
construção do metrô. Ainda hoje o local possui áreas remanescentes não edificadas e
“problemas de distribuição de espaço e acúmulo de atividades, enquanto o potencial
máximo não consegue se impor, por falta de uma estruturação de parcelamento e de
soluções para a viabilização do espaço ocioso.” (PINHEIRO e TÂNGARI, 2003).

No entorno do Museu da República o casario protegido pela APAC (Área de Proteção


do Ambiente Cultural) (PCRJ, 2005) configura um conjunto mais horizontal, com
passeios mais arborizados e comércio mais popular. As características morfológicas se
refletem no modo de apropriação dos passeios.

Tendo revisto essas condicionantes espaciais, e tendo analisado o local através dos
estudos etnográficos e as narrativas de deriva, nota-se que a Rua do Catete se modifica
no decorrer do dia. Nos dias úteis (manhã e tarde) o trânsito das calçadas é marcado
pela presença de estudantes uniformizados indo e vindo das escolas que se encontram
ao longo da Rua do Catete. Também podem ser reconhecidos outros transeuntes
habituais tais como moradores, pais e babás levando crianças para brincar e tomar sol
nos jardins do Museu da República (importante área de lazer do bairro), vendedores
ambulantes, funcionários e clientes do comércio formal e informal. Com o anoitecer, a
rua passa por uma mudança: os bares começam a funcionar, mesas são espalhadas
pelas calçadas, o barulho e a iluminação artificial criam a ambiência noturna.

Tendo experimentado todos os ritmos e horários, foi descoberta uma Rua do Catete
que poucos conhecem: um lugar importante para a cena da música e para a identidade
do Rap e do Hip Hop. Um lugar com grupos de pichadores e que também foi berço
para grandes nomes do rap e do hip hop, não só cariocas, como do Brasil. Rua onde o
grupo fala uma língua própria a “Gualin do Tetek” (Língua do Catete ao contrário),
onde falam uns com os outros com a ordem invertida das sílabas das palavras. Esta
Rua do Catete destoa daquela bastante caracterizada como um lugar rico em lojas
especializadas em mobiliário, no passado, e que também abrigava no Largo do
Machado uma praça de guerra durante a ditadura civil militar, em 1964.

101
A identidade de um espaço urbano vai se formando com o passar dos anos pela
associação do espaço construído com o espaço vivido. As manifestações próprias da
vida cotidiana, carregadas de sentidos e sentimentos, constroem a identidade do
lugar. Todos os dias passamos pelas ruas de nossa cidade para ir ao trabalho, à escola,
fazer compras, passear e, finalmente, voltar para casa. No percurso do nosso dia a dia
quase nunca paramos para pensar no que esses lugares significam para nossa vida,
nossa história e para a cidade.

Por excelência a cidade é um espaço coletivo e por isso participativo e multicultural,


porém nos esquecemos dos espaços construídos e do nosso pertencimento a eles. No
caso da Rua do Catete, o Palácio, os sobrados e mesmo os edifícios sem grande valor
arquitetônico ou artístico contam a história de diferentes momentos vividos pela
cidade. Nem todos os bens edificados podem ser classificados como de valor histórico
ou artístico; entretanto, podem ter um papel importante na construção da identidade
de um lugar por seu valor para a memória da população e a cultura de um local.
Durante quase todas as entrevistas, a narrativa de memória começava através da
saudade ou da lembrança de um lugar específico da Rua. É nesse ponto que ativamos o
método do ‘Palácio de Memórias’, pois constatamos que as memórias dos indivíduos
se encontram enraizadas em espaços e lugares e, sempre que começavam a citar suas
lembranças, estas eram construídas através de seus ‘Palácios de Memórias’.

Como podemos ver nas imagens e desenhos etnográficos apresentados no capítulo


anterior, a Rua do Catete já possui personagens “famosas” como o vendedor de
rosquinhas fritas, que faz seu marketing com linguagens de duplo sentido, e como o
sapateiro do Largo do Machado, que ficou deficiente após perder as duas pernas em
um acidente de trem e passou a ter seu ponto de trabalho como sapateiro na Rua do
Catete, na altura do Largo do Machado, onde todos do bairro o conhecem e sabem do
seu profissionalismo. Da Rosca e o Sapateiro do Largo do Machado são personagens
que constroem suas próprias narrativas, mas também, ajudam a construir outras,
como coadjuvantes.

Percebemos, com as derivas e entrevistas, que existem várias ruas dentro da Rua do
Catete, com grupos de rap, hip hop e pichadores com sua língua própria, com os
comerciantes informais famosos, com os skatistas que surgem do nada ocupando as

102
calçadas largas do bairro quando estão vazias, os coroas da jogatina do Largo do
Machado (assim chamados pela idade, embora nem sempre tão avançada), várias
personagens que foram entrevistadas ou somente observadas com a intenção de que
narrassem suas relações com a rua e, ao mesmo tempo, se escutassem, para que de
um certo modo, se reconhecessem como uma parte desse importante pedaço
histórico da cidade do Rio de Janeiro.

FIGURA 31- GALERA DO SKATE, HIP HOP E DA JOGATINA DO LARGO DO MACHADO, PERSONAGENS DO CATETE.

FONTE: AUTORA E MAURO M.KURY, 2020.

ETNOGRAFIAS (NARRATIVAS DE DERIVA)

FIGURA 32 - FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUNS DOS ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA
AUTORA. FONTE: AUTORA, 2019.

103
As imagens da cidade habitam nossas memórias e ao caminharmos por ela
despertamos inúmeros sentimentos em relação a algumas pessoas enquanto
estranhamos outras. Há ruas que nos são familiares porem evitamos outras; alguns
espaços que frequentamos e outros que ignoramos, transeuntes que atraem a nossa
atenção enquanto também evitamos alguns; enfim, essas disposições sociais
configuram um sentido de ser e estar na cidade. É nestas formas de perceber a cidade
que tecemos nossas rotinas, traçamos percursos, planejamos afazeres e enfrentamos
medos e repressões.

A partir desse raciocínio, buscamos desenvolver os exercícios etnográficos sobre as


mais diversas situações sociais do cenário urbano da Rua do Catete. Nos relatos de
vida dispostos pela autora em narrativas, que se direcionam à interpretação das
formas de viver, urbanidades tecem redes de interações nos ritmos da vida cotidiana.

A experiência etnográfica consistiu em observar, escutar, escrever e registrar os


acontecimentos que ocorriam ali à frente da autora, permitindo não apenas a leitura
da cidade por parte do pesquisador, familiarizado com o contexto urbano, mas de um
contrato de interlocução com os habitantes, como num jogo de reciprocidades que se
estabelece no tempo do convívio da pesquisa.

Se a experiência distante nos ensinou a descentrar nosso olhar, temos que


tirar proveito dessa experiência. O mundo da supermodernidade não tem as
dimensões exatas daquele no qual pensamos viver, pois vivemos em um
mundo que ainda não aprendemos a olhar. (AUGÉ, 1994)

Sendo assim, buscou-se através das observações elaborar, pelo estudo de viés
etnográfico, uma narrativa de deriva que fosse um convite à observação dos fluxos
visíveis e invisíveis que marcam os espaços da cidade. Um convite ao habitante da
cidade a enxergar o espaço que atravessa todos os dias, sem filtros ou outros aparatos.
Uma provocação que atravessa o tempo, as gerações, e se aproxima das nossas
relações atuais com o espaço urbano.

A autora da pesquisa, a partir da metodologia escolhida, adotou a tarefa de tirar do


lugar tudo que fosse possível. Foram feitas anotações em distintos momentos do dia,
tudo que se encontrava ao alcance do “olhar”. Podemos citar os acontecimentos

104
cotidianos da rua, a circulação de veículos, pessoas, animais, nuvens, a passagem do
tempo. Seu caderno vira uma lista de todos os fatos ordinários do nosso dia a dia.

As anotações não possuíam uma regra, os acontecimentos foram registrados de


acordo com os sentidos, sem ordem nem hierarquia. Não é possível saber quanto
tempo existe entre um acontecimento e outro, e apenas alguns elementos que são
registrados repetidamente servem como um “cronômetro” dos acontecimentos. Os
ônibus de transporte coletivo foram registrados somente pelos seus números de linha
(434,128, 422, 775) e acabaram se transformando em ritmo narrativo em um
marcador da passagem do tempo porque são regulares e assim acabam marcando o
tempo, são previsíveis.

No final, após algumas páginas de anotações e registros, surgiu uma coleção de


instantes, imagens, gestos, ou seja, um texto composto por fotografias escritas, um
catálogo de ações, momentos de mais ou menos luz, pessoas caminhando e
carregando coisas, carros estacionando ou partindo, ônibus objetos e jeitos.

Data: 17 de Dezembro de 2019


Hora: 14h30
Local: Praça do Largo do Machado
Tempo: Ameno e as vezes calor!

[...] Há três pessoas no ponto de ônibus, uma moça carrega um bebê no colo.

- Passa um 775D

- Passa um 422 e outro logo atrás

- Uma menina senta ao meu lado no respirador do metrô e puxa um cigarro

- O ponto de bicicletas do Itaú só possui uma bicicleta

- Passa um 434 e um 775D

105
Como podemos ver no recorte de um dois textos etnográficos realizados pela autora,
enquanto os fatos acontecem à sua volta e são registrados, ocorre um intervalo entre
um fato e outro em que ocorre a anotação da linha de ônibus que passa pelo ponto, o
que cria um ritmo e faz com que tanto a autora tenha uma noção de tempo quanto
quem está lendo. Ao mesmo tempo em que imaginamos os indivíduos que estão no
ponto de ônibus, pensamos na menina do cigarro, no ponto de bicicleta que está
quase vazio e no tempo que cada linha de ônibus demora a passar, qual passa mais
vezes e qual muitas vezes nem passa.

FIGURA 33- FOTOS DE TRECHOS DA RUA DO CATETE ONDE FORAM REALIZADAS ALGUMAS DOS ESTUDOS ETNOGRAFICOS DA
AUTORA MOSTRANDO O COTIDIANO DA RUA .
FONTE: AUTORA

106
DESENHOS ETNOGRÁFICOS

“o potencial do desenho não só para representar algo graficamente, mas


para revelar modos de ver, de se comunicar e de registrar utilizados por
antropólogos em campo” (Kuschnir, 2016).

Os desenhos etnográficos ou croquis de campo são considerados uma ferramenta


tanto de observação quanto de interpretação imediata e não possuem recomendação
prévia, ou seja, podem ser apresentados de maneira mais elaborada ou simples,
desenho perspectivado ou simples rabiscos, coloridos ou não. Sendo assim, sua
contribuição está relacionada com a descrição espacial das situações e sua visualização
no meio físico e não na forma de apresentação (DUARTE, 2010), como defende o
LASC/Proarq.

Após produzir os ‘relatos desenhados’, conforme o viés etnográfico permitiu


compreender, o croqui etnográfico se apresentou como um processo de pesquisa que
expõe o registro visual da pesquisadora e de suas sensações do lugar representado.

Esse processo de pesquisa através do desenho identificou várias apropriações de


lugares de alguns grupos específicos, o perfil de seus componentes, linguagens, gestos,
gênero, idade, gostos e foi se descobrindo “várias” Ruas do Catete.

Os desenhos gerados durante a pesquisa permitiram que pensamento da


pesquisadora conseguisse atingir um ponto de vista do qual ela pode contemplar não
somente o objeto-sujeito de sua pesquisa, que é a Rua do Catete, mas também as
formas de vivência do ambiente pelos seus personagens, pois o valor do desenho
habita na experiência de descoberta e percepção do Outro.

Muitas vezes, alguns elementos passam despercebidos durante um primeiro olhar.


Paul Valery (2013) observa que há uma enorme diferença entre ver alguma coisa sem
o lápis na mão e ver a mesma coisa quando se desenha. “Até mesmo o objeto mais
familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procuramos desenhá-lo:
percebemos que o ignorávamos que nunca o tínhamos visto realmente” (VALERY,
2013, p. 61).

De forma muito sintética, eu diria que, ao trazer o desenho para dentro da


antropologia, problematizam-se duas dimensões centrais da área: a
experiência etnográfica e a produção de narrativas a partir dela. Da
primeira, se desdobram questões como as do diálogo entre as
subjetividades de investigadores e interlocutores, da busca de

107
horizontalidade entre esses universos, da evocação de memórias, da
produção de trocas e colaboração, mas sobretudo do projeto de viver uma
experiência de campo num tempo alongado, de modo sensível, focada em
captar o momento e consciente das próprias limitações desse
empreendimento[...] Contra essas armadilhas, os textos e as imagens
artesanais evocariam fragmentos das múltiplas dimensões do processo
vivido, dando a ver as possibilidades e impossibilidades da produção (e
divulgação) do conhecimento etnográfico e antropológico. (Kuschnir, 2016).

Os desenhos foram surgindo durante as anotações das narrativas etnográficas e


durante algumas entrevistas. O fato de desenhar o local antes de escrever os relatos
etnográficos sobre o mesmo ajudavam a perceber melhor aquele espaço e como o
mesmo era ocupado tanto pelos seus transeuntes como também o ritmo dos caros e
ônibus que transitavam por ali.

FIGURA 34- DESENHOS DE INDIVIDUOS QUE TRANSITAVAM PELA RUA DO CATETE DURANTE A PESQUISA.
FONTE: AUTORA

Os desenhos feitos durante as entrevistas, em especial os desenhos de figuras


humanas, demonstravam um pouco da identidade da personagem entrevistada, pois o
indivíduo não estava posando e sim falando e gesticulando; sendo assim o desenho
buscou apresentar o que mais traçou a identidade da pessoa ilustrada, como o seu
modo de gesticular, seu meio de trabalho, modo de andar entre outras características.

108
FIGURA 35- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE
FONTE: AUTORA

O ato de desenhar as personagens e os lugares observados durante as anotações


etnográficas tornou a aproximação pesquisadora/personagens mais “íntima” apesar de
muitas vezes essa aproximação “íntima” não levar a realidades muito inspiradoras.
Algumas pessoas foram grosseiras, alguns lugares muitas vezes assustadores, porém a
experiência do estudo através do desenho foi decisiva para a pesquisa e para entender
o objeto e seus personagens a fundo.

Foi observado que durante as entrevistas dos personagens ocorreu o uso da memória
autobiográfica. Conforme estudos da City University of London21, no Reino Unido,
todos nós criamos impensadamente recordações que não correspondem à realidade,
mas que se adaptam à história que construímos sobre nossa vida e personalidade.

Essa memória autobiográfica, quando ocorre de ser resgatada de períodos mais


extensos, como anos ou décadas, servem mais para auxiliar a nos definir como
indivíduos, ou seja, muitas vezes a memória talvez não seja bastante precisa. O que
importa é que seja consistente, que se encaixe com a sua vida, com o que você
constrói sobre você mesmo.

Algumas pessoas entrevistadas não tinham idade suficiente para certas memórias que
apresentavam ou muitas vezes contavam o mesmo fato duas vezes, porém de duas

21
Pesquisa realizada por Martin Conway, diretor de centro de Direito e Memória da City University no
Reino Unido.

109
formas diferentes. Isso revela que o indivíduo apresenta uma memória que não
corresponde à sua realidade, mas que de alguma forma está enraizada em seu
subconsciente, seja como uma memória inventada ou herdada de algum outro
indivíduo com que compartilhou.

COMPOSIÇÃO DE NARRATIVAS

A explicação da cidade que somos e que se encontra em nós é uma narrativa que se
decompõe através da memória de seus habitantes, tanto quanto do etnógrafo que
reinterpreta as explanações dos habitantes que pesquisa em suas trajetórias.

Ao caminharmos pela cidade compreendemos, em nós, sentimentos diversos sobre


pessoas, ruas, espaços que nos chamam a atenção; estes inúmeros arranjos sociais nos
configuram um sentido de ser e estar na cidade. São nestas formas de entender a
cidade que tecemos nossas rotinas, delineamos nossos percursos, projetamos nossas
tarefas, enfrentamos nossos medos e constrangimentos.

Nessas circunstâncias, a atividade de pesquisa numa área de enfoque sócio-espacial


como a arquitetura, não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro das molduras
literárias – isso, pelo contrário, é a expressão usual de sua infertilidade. A atuação
literária significativa, nesta pesquisa só pode instituir-se em rigorosa alternância de
agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor à sua
influência nas comunidades ativas que o pretensioso gesto universal do livro, em
folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes. “Só essa linguagem de
prontidão mostra-se atuante à altura do momento” (BENJAMIN, 2010, p. 9).

A configuração (a intriga) das tramas narrativas permite que se pense a temporalidade


(como historicidade) face à impossibilidade de uma reflexão pura sobre os
acontecimentos e imagem da cidade. A intriga que a narrativa exibe permite a
compreensão da experiência do tempo humano e dos olhares sociais. A partir das
perspectivas, o espaço é narrado através do tempo e ao mesmo tempo, o tempo é
narrado através do espaço - por isso, a proposta das narrativas foi/é tão útil.

As ferramentas utilizadas no desenvolvimento da metodologia proporcionaram uma


base importante na pesquisa que associa arquitetura/memória/etnografia. Entretanto,

110
há uma consciência de que a visão da pesquisadora não seria capaz de reproduzir
fielmente as percepções do lugar das personagens da Rua do Catete. Por isso,
considera-se a entrevista uma maneira apropriada de se aproximar ainda mais do
objeto de estudo e de como ele é apropriado pelos indivíduos.

Sendo assim, a partir das entrevistas percebemos que as personagens ancoravam suas
memórias da Rua do Catete sempre a partir de algum lugar, ou seja, para relatarem
suas lembranças eles sempre citavam lugares da Rua que lhe eram saudosos e onde
estavam ‘talhadas’ a maioria de suas memórias.

Com o método Palácio de Memórias, cada entrevistado(a) construía seu palácio em


algum lugar da Rua do Catete, e suas memórias da Rua sempre partiam desse lugar.

Minha relação com a Rua do Catete é de muito carinho e gratidão, afinal é o


bairro onde eu vivo, onde a maior parte da minha família reside e onde pude
fazer muitos amigos. Minhas maiores lembranças são da época de colégio,
estudei no colégio Zaccaria minha vida inteira e nossa como aquele lugar me
fazia e ainda me faz feliz, fiz questão de colocar meu local de votação lá só
para ter uma desculpa para visitar a escola. Lembro que as sextas feiras era
obrigatório o almoço no Mac (McDonalds) no Largo do Machado, a resenha
da semana e a programação do final de semana eram feitas lá.
(VETERINÁRIA ZACCARIANA, 32 anos - Entrevista completa no APÊNDICE).

A entrevista acima foi uma das citadas no capítulo anterior; podemos notar que a
personagem tem o Colégio Zaccaria como seu ‘Palácio de Memórias’ da Rua do Catete
e, como ela, inúmeras outras personagens citaram os seus Palácio de Memórias que
existem na Rua do Catete – lugares presentes ou passados, muitas vezes já demolidos.
Era comum o fato de informantes apontarem para onde o mesmo deixou de existir,
como se ainda estivesse lá. Podemos citar a escola Rodrigues Alves, o antigo Café
Lamas, a Garagem dos bondes e a garagem da CTC- empresa de ônibus que se
localizava no Largo do Machado.

111
FIGURA 36- MAPEAMENTO PALÁCIO DE MEMÓRIAS PERSONAGENS CATETE. FONTE: AUTORA, 2020.

As entrevistas com as personagens possibilitaram o esclarecimento de dúvidas em


relação aos cenários analisados, o que colaborou para uma leitura menos individual e
mais complexa da Rua do Catete. Foi quando surgiu a escolha do método do Palácio de
Memórias, ao notarmos a peculiaridade das respostas: todos tinham uma memória
“ancorada” em algum lugar da Rua.

A pesquisa foi feita através de entrevistas que procuravam demonstrar três pontos de
análise através das narrativas – memorial, simbólica e significante – e com isso foi
elaborado um conjunto de perguntas abertas (apresentado no capítulo metodologia),
para ser usado como guia durante as entrevistas – caracterizadas por flexibilidade e
exploração máxima do assunto a partir de uma “conversa livre” sobre o tema central.

Foi feito então um mapeamento das áreas mais citadas nas entrevistas; identificamos
como o Palácio de Memorias das personagens:

112
 Palácio do Catete
 Colégio Zaccaria
 Bar Lamas
 Garagem da CTC no Largo do Machado
 Escola Rodrigues Alves
 Rua Silveira Martins
 Largo do Machado

Embora existam inúmeras formas de se traçar o estudo de um lugar arquitetônico-


urbanístico e desvendar as relações estabelecidas espacialmente, foi proposto o
conjunto dos métodos descritos, até aqui, por causa da eficácia de suas análises para o
contexto das narrativas. Tais instrumentos utilizados (derivas, entrevistas, croquis)
permitiram desvendar uma Rua do Catete cujo “passado sem tempo definido”
interfere em sua imagem e em seus moradores até os dias de hoje.

As análises aqui tecidas mostram que embora se tenha como maior crença que a Rua
do Catete se tornou uma rua abandonada após a saída do poder, a Rua mostra
totalmente o contrário, ela se encontra totalmente viva tanto quanto na memória
quanto na vivência dos indivíduos.

5.2 UMA OUTRA ESTÓRIA: NARRATIVAS QUE REFAZEM A RUA DO CATETE

Neste capítulo, pretende-se consumar um viés da narrativa literária que, auxiliando a


arquitetura e o urbanismo, promoverá a coesão das narrativas descritas pelas
personagens entrevistadas, e a criação de uma “outra estória” da Rua do Catete.

Se o conhecimento possibilita a representação (pela mente e pelo corpo) do mundo,


então o processo cognitivo – para além daquilo que se retém e desenvolve ao longo de
uma vida – pode ser entendido como a recepção de dados ambientais e sensíveis
externos que são confrontados com as representações internas de cada indivíduo,
exigindo um reconhecimento de realidade que só se explica no presente momento.

Representar a arquitetura por meio da experiência espaço-temporal de um indivíduo,


neste sentido, é propor também um novo código interpretativo que se aproxima da

113
linguagem histórica, como numa abordagem cinematográfica de espaço,
contemplando conceitos bastante enquadráveis por um olho-câmera como
“sequência”, “percepção” e “percurso”. O tempo ‘de hoje’ ganha fundamental papel
nesta proposta de fundar uma narrativa, e se aproxima do que Rocha-Peixoto (2013)
chamou de modo culturalista, ou seja, “operação literária” semelhante às narrativas
da literatura, que buscam estabelecer conexão com o presente.

Foram escolhidas algumas histórias de personagens que se apropriam e vivem o


espaço da Rua do Catete cotidianamente, pessoas descobertas por meio da pesquisa
aplicada desta dissertação. Através da leitura da relação de cada personagem com o
local, e pelas entrevistas e análises etnográficas realizadas, será desenvolvida uma
nova narrativa, mais coesa e empreendedora do espaço físico analisado.

Segundo Benjamim (2009), a história narrada nos livros estaria apenas confirmando a
visão dos vencedores, e sua proposta é a de “tecer uma narrativa histórica inspirada na
crônica cotidiana”, que busca valorizar os pequenos e os vencidos. É o que buscamos
através dessa “estória” que será narrada pela pesquisadora, como resultado
concatenador de uma análise.

Foram escolhidas oito personagens para construir essa “outra estória” na versão da
pesquisadora, a partir da narração de conquistas e acontecimentos que tais
personagens presenciaram na Rua do Catete, em toda a sua vida; é com as historias
dos “vencidos” que iremos construir essa outra (possível) estória/história da Rua do
Catete.

As personagens da Rua do Catete selecionadas, nesta pesquisa, foram:

• RAPPER DO TTK, 52 anos


• SAUDOSO DO ARMAZÉM, 37 anos
• SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR, 68 anos
• XARPI, 32 anos
• VIÚVO DO BONDE, 82 anos
• @BOMPRACATETE, 31 anos
• VETERINÁRIA ZACCARIANA, 32 anos
• CATETEANA, 62 anos

114
Esses oito personagens foram escolhidos por serem os que mais demonstraram uma
ligação não somente com a Rua do Catete, mas também com a sua história, e não com
a História da Rua do Catete sede do governo da República, mas a história de hoje, a
que está sendo construída por cada um desses oito personagens que demonstram que
existem várias Ruas do Catete e que cada um e protagonista da sua estória da Rua.

Neste capítulo serão escritos três contos com os personagens escolhidos, que nos
mostram as suas Ruas do Catete. A partir desses contos, veremos que a Rua do Catete
não é somente a lembrança de um passado Burguês e Republicano, ela vai muito mais
além disso; e cada personagem que vive e viveu uma história pessoal com a Rua tem
um jeito de narrar suas lembranças e contar o que é a Rua do Catete. A proposta
dessas três narrativas é construir uma estória fabulosa, não oficial e completamente
compromissada com a vivência e a proximidade do corpo ao espaço urbano.

A opção de escrever três contos que contam estórias diferentes e com protagonistas
diferentes da mesma rua conseguimos demonstrar realmente que não existe somente
uma Rua do Catete, cada conto aborda uma rua diferente.

Os contos foram elaborados a partir dos relatos das personagens, fatos que ocorreram
durante algumas análises etnográficas e alguns fatos criados pela autora através de
impressões durante as entrevistas. A grande maioria das falas escritas nos contos,
porém, foram ditas pelos nossos informantes.

Os contos são:

 TTK: OS POSTEM DE CABLIPÚRE CRAMCAFI NO DOSSAPA

No primeiro conto onde os protagonistas são Xarpi e Rapper do TTK vamos


abordar a Rua do Catete como palco da pichação e do hip hop e mostrar como
as personagens foram importantes para que a Rua do Catete assim fosse
conhecida.

115
 UM PALÁCIO DE MEMÓRIAS ZACCARIANO

Em “Um Palácio de Memórias Zaccariano” iremos abordar como a personagem


Veterinária Zaccariana transformou o Colégio que estudou a vida inteira em
seu Palácio de Memórias e como ela consegue passar essas memórias tão
delicadas e amorosas para o @Bompracatete. Embora seja de Minas Gerais, a
personagem tem uma página falando sobre o Catete no instagram, e é
apaixonada pelo bairro.

 LEMBRANÇAS E MEMÓRIAS: AS CICATRIZES DO METRÔ E DA DITADURA

O último conto fala sobre as dores da urbanização e da ditadura que passaram


pelo Catete. As personagens Saudoso do Armazém, Sócia da Pça São Salvador,
Viúvo do Bonde e Cateteana irão abordar como era a Rua do Catete nos
passado entre os anos de 60 a 80 e o que isso marcou em cada um deles. Cada
um aborda sua lembrança, por muitas vezes bem dolorida.

116
TTK: OS POSTEM DE CABLIPÚRE CRAMCAFI NO DOSSAPA22

Personagens: Xarpi e Rapper do TTK


-------------------------
- Corre, corre...
(HÁ HÁ HÁ HÁ HÁ)
- Caraca Xarpi você tá rindo, quase que o segurança pega a gente pichando o portão da
loja dessa vez, foi por pouco!
As meninas riam sentadas no meio fio da Rua do Catete esquina com Rua Dois de
Dezembro. Xarpi ria, mas ao mesmo tempo sabia que já tinha passado por muitos
problemas por causa da pichação.
Apesar de morar na Glória, estudou a vida toda no Catete onde a cena da pichação
sempre foi muito forte e ela fazia parte dessa galera. Cresceu em meio a tudo isso.
Com 14 anos começou a conhecer os garotos da área que ‘faziam acontecer’, mas foi
uma amiga que a encorajou. Existiam "bondes" de meninas que pichavam, e uma
amiga a chamou pra entrar na sigla "Inferno Feminino". Logo depois que começou já
estava entre os maiores pichadores do Rio. Conheceu os maiores da cena e namorou
um deles (o lendário C, falecido em 2005); passou muitos anos dedicando- se a essa
loucura que é o mundo da pichação.
- Acho melhor irmos para casa, Xarpi, amanhã tem aula e gente vai acabar perdendo a
hora de novo.
- Casa nada, eu vou encontrar a galera na Pedro Américo e curtir um hip hop; se você
quiser, ‘vai’ para casa.
A pichação sempre esteve muito presente na vida da menina, começou a pichar com
as meninas em 2002 e admirava muito a galera das siglas FR (Filhos da Rebeldia), VR
(Vício Rebelde), JR (Juventude Rebelde) e TW (Trip Wave), logo depois que a mesma
conheceu o hip hop e descobriu que os dois mundos se juntavam essa virou sua vida.
A Rua Pedro Américo fica na divisa do bairro da Glória com o bairro do Catete, esquina
com Rua do Catete e abriga a 9° DP em um prédio antigo bem na entrada da Rua. É o
point do hip hop no bairro, exatamente por ser bastante frequentada pelo famoso
Rapper do TTK e por seu filho morar nessa Rua, e é ali que a galera se encontra.
Ao chegar à Rua Pedro Américo, mais precisamente lá no alto da Rua, depois da Rua
Bento Lisboa, Xarpi encontra a galera do bonde da Pichação e do hip hop conversando
em frente a um botequim, entre eles estava o Rapper do TTK conversando com a
galera sobre a ultima batida policial que havia acontecido no ultimo evento de hip hop
organizado por eles. RT explicava que eles não tinham que desanimar e que o Catete é
um lugar propenso pro hip pop.
- Galera, não é para desanimar não, polícia sempre vai surgir e tratar a gente como
lixo, ainda mais que a maioria aqui é preto e favelado, mas o Catete é muito urbano, a
molecada é rua e tá sempre na rua. O catete é a gente! Meu filho já ia para a

22
“Catete: Os tempos de República ficaram no passado”, traduzido da Gualin do TTK.

117
festa Zoeira na Lapa com 10, 11 anos e começou a fazer rap nessa idade. Com 15, 16
anos ele tomou isso a sério. Vocês são a geração da parada do "do it yourself", de fazer
tudo mesmo, de abrir a própria empresa. Hoje em dia as gravadoras não tem mais
controle sobre vocês, e vocês tem que estar é muito feliz em ter suas próprias paradas.
Galera voltou a ser livre, vocês falam o que querem.
Todos gritam e batem palma para RT enquanto o mesmo acende um cigarro com uma
das mãos e balança a outra para a galera.
Xarpi então se aproxima de RT, dá os parabéns pela fala e pergunta:
- Nossa você deve amar mesmo o Catete e essa galera, falou bonito e deu uma grande
injeção de animo.
RT sempre defendeu as minorias e a arte, então quando soube que a polícia havia
mexido com a molecada ficou furioso, mas ao mesmo tempo ficou com medo que os
meninos largassem a arte que estavam construindo.
RT chegou ao Catete em 1983, saído do Andaraí, e não tinha rap em lugar algum. No
Rio de Janeiro devia ter umas cinco pessoas que faziam rap, mas no Catete tinha muito
dançarino de break e já tinha o Baile Funk do Santo Amaro. Nessa época, o funk tocava
Afrika Bambaataa, Kurtis Blow... E depois RT começou a fazer rap. O catete da década
de 1980 era ‘swing’ na veia.
- Xarpi, vou te falar uma coisa, quando eu cheguei ao Catete foi muito impactante, pra
mim, esse aspecto de contracultura que o bairro tem e a herança da malandragem da
Lapa. Geral falava disso, dos malandros, de Madame Satã. Aqui encontrei roqueiros,
cineastas, artistas e isso me inspirou muito. Eu morava no 90 da Rua do Catete e
adorava ir nas sessões de filmes independentes que rolavam no cinema do Palácio do
Catete. Eu botava nome, era pichador, pichava ZIC, a pichação aqui sempre foi forte.
Sou da época do Vinga e eu nem sabia que pichação e grafite tinham a ver com a
cultura hip hop, fui descobrir essa ligação no Catete. Outra parada interessante era
como geral falava a Gualin do TTK. O Catete ainda é muito importante para mim. Aqui
moram minha mãe, meu filho, minha neta, a galera do futebol e vários amigos. É um
lugar propenso pro hip hop, é muito urbano, a molecada é rua e tá sempre na rua.
- Acho muito legal que a gente poder se comunicar com a nossa própria língua e as
pessoas ficam se olhando, sem entender nada, a Gualin do TTK é da galera da
pichação, do hip hop e do Rap do Catete.
RT sorri abraça Xarpi e a manda ir para casa para não perder a hora da aula mais uma
vez.
A menina desce a Rua do Catete em direção à Glória, pensando em tudo que RT disse,
na molecada e em como O TTK ficou conhecido por difundir a língua de trás pra frente,
a famosa "Gualin do TTK", na mesma hora lembra de sua amiga N23 que foi que a
iniciou nesse mundo da pichação e que após falecer (por motivo não relacionado à
pichação), nenhuma das outras meninas quis continuar praticando. Ela lembra que
não aceitou e resolveu continuar mesmo assim para fazer a vontade de N e dar
orgulho a ela.

23
Amiga N apresentou a pichação a Xarpi e a inicio nesse mundo. Usaremos esse nome para não revelar
a identidade.

118
Xarpi sempre achou um absurdo a Rua do Catete estar relacionada somente ao bairro
histórico e à tradição da República, essa era a Rua do Catete do passado, a dos livros
de história que com certeza não foram escritos pela molecada da favela que faz arte e
que luta contra a repressão da polícia. A Rua do Catete de hoje é a Rua da galera da
pichação, do Rap e do Hip Hop e da galera que luta pra sobreviver a cada dia a Rua do
Catete dos poderosos ficou para trás e todos precisavam saber disso.
- Seu Antônio abre aqui o portão para mim, por favor – Xarpi chega ao seu prédio e
sobe correndo, afinal amanhã tem aula e tem mais vida a ser vivida na Aru do TTK( Rua
do Catete).

FIGURA 37- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE Xarpi e
Rapper do TTK. FONTE: AUTORA, 2020.

UM PALÁCIO DE MEMÓRIAS ZACCARIANO

Personagens: Veterinária Zaccariana e @bompracatete


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Faz um calor de sensação térmica acima de 40° no Rio de Janeiro e VZ se pega
pensando como seria o melhor modo de ir para casa nessas circunstancias. Entra na
estação do metrô de Ipanema, compra um bilhete e sai correndo ao escutar o barulho
do metrô, chegando a tempo de entrar no vagão. A sensação de gelado do ar
condicionado é uma delicia, pelo menos o caminho será refrescante até descer na
estação Catete.
Saindo da estação em direção à Rua do Catete, VZ vê o clarear aparecendo aos poucos
conforme vai se aproximando da saída, como saísse de uma caverna em direção à luz,
o que cinematizava o local, transformando aquele ponto em uma passagem entre dois
mundos.
A saída da estação na Rua do Catete é um conjunto de várias ações simultâneas, cada
uma implicando posturas, atos motores e energia específica. Discussão/conversa de

119
duas, três ou várias pessoas. Vários modos de locomoção: caminhando, veículos de
duas rodas, com ou sem motor, automóveis táxis ou particulares, ônibus.
Seu destino é o Colégio Zaccaria, local onde passou toda sua infância e adolescência e
que continua sendo seu colégio, porém agora eleitoral. É dia de votação e VZ já esta
correndo, pois já são quase 17h00min e ela se enrolou com o atendimento de
emergência de um de seus pacientes caninos.
Ao passar pelo portal de luz, VZ está entre Rua do Catete e Silveira Martins, o encontro
histórico Republicano de simbolismo e aparência vívida, o céu era uma explosão de
azul e calor e as poucas nuvens que ali se encontravam pareciam manchas de suor
remanescentes de uma grande aquarela. Essa esquina é um ponto chave, pois é nesse
local que ocorreram os grandes eventos da história, onde esta impregnada a maioria
das memórias relatadas pelos livros. Neste momento, a veterinária sente certa raiva, já
que as águias de asas abertas instaladas no pináculo do edifício sabem tudo o que se
passou por lá, mas não tem como contar.
Trazendo a lembrança das aulas de Literatura do Colégio quando a professora citava
Machado de Assis em “Esaú e Jacó”, de 1904, a cobiça de Santos ao olhar para o
palácio e relatar as águias, uma cobiça de possuí-lo, sem prever os altos destinos que o
palácio viria a ter na República; “tão exposta como aqui no Catete, passagem obrigada
de toda a gente, que olharia para as grandes janelas, as grandes portas, as grandes
águias no alto de asas abertas”. (Machado de Assis, 2004, p. 36)
Ao se dar conta, VZ sai correndo, pois se perder a hora não vai conseguir votar. No
entanto, ao passar pelo portão do colégio parece que o coração para e, quando volta,
parece bater muito rápido e forte. VZ não sabe explicar, e talvez não tenha explicação,
mas parece que toda sua vida passa a sua frente naquele momento, naquele lugar
onde ela passou a maior parte do seu tempo, entre os 4 e os 17 anos, aquele local que
congrega a Rua do Catete inteira. É tão mágico e nostálgico, que assim que ela passa
pela porta do prédio e avista a imagem de Santo Antônio Maria Zaccaria, no fundo, ela
não consegue conter as lágrimas.
É como voltar no tempo, parece que ela novamente está vestindo a camisa azul ou
branca abotoada na frente com o a flor de lis no bolso na lateral direita, mochila nas
costas e subindo as escadas, ainda sonolenta, para o primeiro tempo de aula.
Após o primeiro lance de escadas, se depara com o pátio visto através das grades.
Quantos recreios e aulas de educação física, e quantas vezes não ficou sentada na
escada, só que do outro lado do portão, esperando o segundo tempo porque tinha
perdido a hora vendo TV no dia anterior.
Agora ela estava ali, no Colégio, para votar, mas para ela isso era o que menos
importava; estava ali para reviver a melhor fase da sua vida, a partir de todas as suas
lembranças.
Ao chegar ao terceiro andar do prédio, andou até o corredor onde cursou a oitava
série do ensino fundamental – conseguiu ver-se ali, em uma de suas aulas favoritas, e
parou na fila que estava na porta para poder entrar e votar. Ainda chorosa e encostada
na parede com suas lembranças, um rapaz a cutuca no ombro.
- Está tudo bem com você? Pergunta o rapaz

120
- Oi, está sim.... Obrigada por perguntar. – Respondeu VZ.
- Se por acaso estiver chorando por medo de certo candidato ganhar a eleição, saiba
que estou quase chorando também.
Os dois caem na risada.
VZ entra pra votar e sai. Quando está quase virando o corredor para descer as escadas
escuta alguém gritando chamando por outro alguém. Ao se virar, vê que o rapaz que
estava atrás dela na fila corre pelo corredor para alcançá-la.
- Oi, nem perguntei seu nome, o meu é @bompracatete, eu tenho uma página de
instagram sobre o bairro do Catete. Você mora aqui pelo Catete?
- O meu é VZ, e sim moro por aqui, morei minha vida toda aqui no Catete.
- Que legal o que você acha da Rua do Catete? Por que para mim é um contato com
uma vida à carioca. Venho de MG então, minha impressão do Catete é de um
forasteiro. Para mim, ela representa toda a confusão do Rio, com seu comércio e sua
sujeira, mas ao mesmo tempo apaixonante (como a própria cidade). São tantas
pessoas diferentes circulando, o que não ocorre no lugar de onde venho.
Acho que é essa diversidade de pessoas que me impressiona na rua. Aspirantes a
atores de Laranjeiras, velhinhos, pedintes, artistas de rua, tudo misturado. Nunca me
esquecerei do dia em que vi duas pessoas brigando na rua e um correndo atrás do
outro, com um serrote na mão.
- Nossa que legal que você se envolveu tanto com o lugar, mesmo não sendo daqui. Na
hora que você me perguntou se eu estava bem lá na fila, eu estava imersa em minhas
lembranças; estudei aqui no Colégio Zaccaria toda a minha vida, e parece que todas as
minhas lembranças moram aqui.
- Mas você gosta de morar aqui pelo Catete? Insistiu o rapaz.
- Minha relação com a Rua do Catete é de muito carinho e gratidão, afinal é o bairro
onde eu vivo, onde a maior parte da minha família reside e onde pude fazer muitos
amigos. Minhas maiores lembranças são da época de colégio; estudei no Colégio
Zaccaria minha vida inteira e, nossa, como esse lugar me fazia e ainda me faz feliz! Fiz
questão de colocar meu local de votação lá só para ter uma desculpa para visitar a
escola. Lembro que às sextas-feiras era obrigatório o almoço no Mac (McDonald’s) no
Largo do Machado, a resenha da semana e a programação do final de semana eram
feitas lá.
Os dois saem do Colégio conversando sobre a Rua e VZ continua falando:
- Na minha cabeça, a Rua é uma mistura de passado e presente, pois na mesma rua
temos o palácio do Catete e o novo prédio do Hotel Flórida, como representantes
dessas diferenças temporais.
- Para mim, a Rua do Catete representa uma glória de outrora. A rua hoje está bem
decadente, mas é uma décadence avec élégance. E o Palácio do Catete continua como
testemunha viva desse passado, em que o Catete era o centro da Política nacional.
- Resumindo: a Rua do Catete representa o ciclo de mudanças que o Rio passou e vai
continuar passando (meio o que ocorre com Copacabana). – Responde
@bompracatete

121
- Concordo com você, mas é engraçado que toda vez que alguém fala Rua do Catete,
apesar de morar a minha vida toda na Rua Dois de Dezembro e trabalhar aqui no
bairro, a primeira lembrança que me vem à cabeça é a do Colégio Zaccaria; é a partir
dali que parece que surge a história da minha vida na minha cabeça, todas as
lembranças partem dali.
@bompracatete olha para VZ e dá um sorriso; os dois continuam caminhando quando
param para atravessar na Rua Correa Dutra, e ele fala para ela.
- VZ, uma coisa que eu aprendi depois que cheguei aqui no Catete é que essa Rua não
é simplesmente a Rua do Catete do marco dos acontecimentos históricos, essa Rua é
completamente sentimento e eu acabei de ter certeza disso agora conversando com
você. Cada indivíduo que vive ou viveu nessa Rua tem a sua estória e a sua Rua do
Catete e a sua VZ e a Rua do Catete do Colégio Zaccaria.
Os dois se olham sorriem e atravessam a Rua em direção ao McDonald’s do Largo do
Machado, apesar de hoje não ser sexta feira, dia de almoçar para combinar o final de
semana.

FIGURA 38- DESENHOS REALIZADOS DURANTE AS ENTREVISTAS COM OS PERSONAGENS DA RUA DO CATETE Veterinária
Zaccariana e Colégio Zaccaria. FONTE: AUTORA, 2020.

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LEMBRANÇAS E MEMÓRIAS: AS CICATRIZES DO METRÔ E DA DITADURA.

Personagens: Cateteana, Saudoso do Armazém, Sócia da Praça São


Salvador e Viúvo do Bonde.
-------------------------
Caminho em direção ao Palácio do Catete com certa pressa, marquei de encontrar um
senhor para uma conversa e já estou atrasada 15 minutos.
Desde que comecei a dissertação, ando pela Rua do Catete observando absolutamente
tudo e nesse momento a minha visão capta vários letreiros do outro lado da rua:
Papelaria do Catete, Droga Raia, Hotel Riazor, Bar Berbigão. Alguns números: a placa
da rua mostra que este trecho vai do 187 ao 153. Alguns sobrados carregam na
fachada seu ano de construção. O do Hotel Riazor 1891; outro sobrado apresenta
1904.
Vejo o piso do chão em vários tons de cinza e de um vermelho terroso.
Vejo árvores frondosas na calçada em frente à entrada dos jardins do Palácio.
Abaixo da árvore, em frente ao ponto de ônibus, avisto um senhor de bastante idade e
bengala lendo um jornal sentado na beirada do respirador do metrô, resolvo sentar ao
seu lado. O cumprimento e pergunto se é o senhor que havia marcado comigo, ele me
olha fecha o jornal e pergunta se eu costumo andar por ali pela Rua do Catete,
respondo que sim, ele dá um suspiro e diz:
- Lamento comunicar que após as obras do metrô o Catete morreu, pode anotar aí no
seu caderninho. Um bairro que já teve seus tempos de glória, foi um antigo domínio da
aristocracia, boêmio e pioneiro na história dos transportes urbanos. O Catete teve a
primeira linha de bondes puxada por burro, ela fazia ponto ali no final do Largo do
Machado. Hoje, acho que o Catete padece por forca do seu pioneirismo (o senhor solta
uma gargalhada). Durantes as obras do metrô, passar um dia nessa Rua era um
inferno, estava tudo destruído. Longe de mim contestar o progresso, mas não
precisava ter feito tudo isso. Foi muito triste ver a Escola Rodrigues Alves, que ficava ali
na esquina da Rua Silveira Martins, ser demolida; ela foi construída pelo Prefeito
Perreira Passos, era um primor de colégio, funcionava como dependência burocrática
do Palácio.
Enquanto o mesmo fala, fico observando como ele sente falta dessa Rua do Catete que
se foi e principalmente da época do bonde. Vejo como esse senhor sente-se como um
verdadeiro Viúvo do Bonde, e como para ele é triste essa lembrança desse tempo
passado.
Neste momento, um rapaz se aproxima e cumprimenta o senhor, que conta ao rapaz
sobre o que estamos conversando; o rapaz então abaixa a cabeça e relata:
- Minha família toda morava no Catete, e meu avô possuía um armazém que foi
herdado do seu pai, meu bisavô, na altura da Rua do Catete com Largo do Machado.
Eles moravam em um casario também na Rua do Catete, próximo à Rua Dois de
Dezembro. O armazém era o sustento da família inteira, e nunca teve problemas
financeiros. Porém por volta de 1970 começaram as obras do metrô, ninguém passava
direito na rua e o armazém começou a ficar ‘às moscas’; foi quando meu avô achou
que decretaria falência, chegou uma carta do metrô falando que uma área seria

123
demolida por causa das obras e essa área incluía o armazém e a casa onde eles
moravam. Claro que financeiramente foi bom para o meu avô acontecer a demolição
do armazém, pois ele recebeu um bom dinheiro tanto pela casa quanto pelo comércio,
mas ele tinha grande apego sentimental ao local e, assim que foi feito o negocio,
todos se mudaram para Copacabana, pois meu avô ‘pegou ódio’ pelo Catete; meu avô
entrou em depressão e veio a falecer. Até hoje falam que foi de tristeza por ter
perdido o armazém para as obras do metrô.
O Viúvo do Bonde (VB) dobra o jornal e dá um tapinha nas costas do Saudoso do
Armazém (SA) como forma de consolo. Olho para o Palácio do Catete, onde o brilho do
sol o emoldura nesse momento, e transforma aqueles elementos do edifício, águias,
portões, portas e janelas trabalhadas em imagens sobrepostas. Ao olhar para o edifício
é como se estivesse olhando uma fotografia feita de granito e mármore rosa, com
imagens sobrepostas que enaltecem seus ricos detalhes em ferro fundido. Ao longo do
monumento da fachada do Palácio havia vários outros monumentos menores, que
sustentavam o olhar. Porém ali eu percebo que a estória da Rua do Catete é muito
maior que o edifício do Palácio, pois uma estória não sobrevive sem personagens e ali,
sentada, eu tinha encontrado dois muito importantes.
VB pergunta a mim e a SA se aceitamos tomar um café próximo ao Largo do Machado
então levantamos e seguimos caminho pela calçada do Palácio em direção ao Largo do
Machado.
Vizinhos e no mesmo alinhamento do Palácio do Catete, dois sobrados imponentes e
bem conservados, o Museu do Folclore e o Centro de Convenções, na esquina com a
Rua Ferreira Viana. Na calçada oposta está o Hotel Florida, que foi ampliado nos anos
2000, ocupando um dos vazios deixados pelas demolições. O edifício destaca-se na
paisagem não por seus atributos estéticos nem por seu passado, mas sim pelo impacto
visual criado pelo volume ocupado e seu tratamento de fachada com vidros
espelhados e placas de alumínio.
Seguimos pela Rua do Catete em direção ao Largo do Machado, observo quatro
sobrados em diferentes estágios de conservação, enquanto um se encontra
abandonado e dois na iminência de cair; um parece sobreviver espremido no meio do
abandono e esquecimento, mostrando que nada está perdido, seus vizinhos ainda tem
chance não devem desistir. Olhando do outro lado da calçada, na altura da Rua Correa
Dutra, os sobrados se encontram em melhores condições, foram tomados pelo
comércio, não há nenhum vestígio de moradia; no térreo o comércio e em cima
estoque ou abandono. A única lembrança do passado são os detalhes das fachadas de
alguns sobrados que sobreviveram à ação do tempo.
Chegando ao Largo do Machado (a praça), está acontecendo uma feirinha de roupas e
objetos de decoração para casa; vejo que há vários grupos de pessoas jogando cartas,
damas e xadrez nas mesas de concreto do local. Passamos ao lado de um grupo bem
animado, então VB resolve sentar em um dos bancos e nos chama para acompanhá-lo.
Sentamos e começamos a observar um grupo que está jogando algum jogo com cartas
de baralho e possui até plateia assistindo. Nesse momento, sinto que Seu VB esqueceu
o café, mas também não comento nada.
Porém o do Armazém parece estar querendo mesmo tomar um café e indaga VB:

124
- Seu VB, o senhor esqueceu que iríamos tomar um café?
- Não meu jovem, só estou esperando Cateteana, uma amiga minha que vai nos
encontrar, contei para ela que a jovem aqui queria informações sobre a Rua do Catete
e ela falou que queria ajudar.
Nesse momento fico bastante animada, nada melhor do que escutar mais narrativas
para minha pesquisa, e pensar que tinha saído de casa para escutar a estória de seu VB
e voltaria com três estórias no caderno.
Após meia hora, vejo VB acenando e se levantando do banco em direção a duas
senhoras, cumprimenta-as e nos apresenta.
- Cateteana, essa é a menina que falei que está pesquisando sobre a Rua do Catete e,
olha, você está com sorte por que Cateteana trouxe a Sócia da Pça São Salvador e ela
sabe de tudo sobre esse lugar aqui.
Levanto e cumprimento as duas, logo após elas também cumprimentam SA e
resolvemos ir até a Galeria do Cinema São Luiz, tomar o esperado café.
Ao entrarmos na galeria VB dá um suspiro e fala baixo:
-Nossa, acabaram com o cinema São Luiz, era tão lindo esse cinema.
Nesse momento, Cateteana ri e fala:
- Homem, você só reclama, as coisas mudam e se modernizam, o cinema continua
muito bonito.
Sentamos em uma chocolataria e então pergunto à Cateteana o que a Rua do Catete
era para ela; ela olha para o balcão, chama a atendente e antes mesmo de me olhar,
começa a responder:
- Em 1974 mudei-me da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para o bairro
e frequentava o antigo Bar Lamas que era centenário e onde se encontravam diversos
artistas e intelectuais. Trabalhei anos na garagem da CTC no Largo do Machado - antiga
empresa de ônibus do estado. Quando ela fechou, fui para outra empresa perto da
Rodoviária Nova Rio e agora, aposentada, vivo de passear e jogar conversa fora pela
Rua do Catete.
Nesse momento ela me olha e ri, eu sorrio de volta e ela continua.
- A Rua do Catete representa a convergência entre as pessoas que residem em todas as
regiões da cidade. É uma mistura de moradores da zona norte, centro, baixado
fluminense e zona sul. Talvez seja a rua mais democrática da zona sul.
Nesse momento todos da mesa concordam balançando a cabeça em aprovação e a
mesa fica em silêncio; nesse momento, também, lanço a ela outra pergunta:
- Mas, Cateteana, levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a
mesma ‘cara’ que possuía no século XX, o que você acha que permanece e o que se
perdeu?
- O que se perdeu? – Ela dá um gole no café e olha para VB como se pedisse cola e logo
após me olha e responde - A arquitetura antiga permanece pelos tombamentos.
Perdeu-se a forma de vida do povo, mas faz parte do contexto de cidade.

125
VB me olha e pergunta se ele ter chamado elas para nos acompanhar no café está me
ajudando, olho para ele e abro um sorriso enorme.
- Olha, gente, ela está toda feliz, ser velho às vezes ajuda!
- VB fale por você, nós ainda somos jovens, ainda mais o SA que nem 40 o menino tem
ainda.
Todos na mesa começam a rir e é quando Sócia fala:
- Vêm cá, vocês não vão comentar os tempos sombrios que vivemos aqui em 64? Ela
precisa saber dessa época também. VB eu sei que você não gosta de lembrar, mas é
importante falar.
O Viúvo do Bonde se mostra extremante incomodado, mas fala - Acho importante que
todos saibam, mas já te falei que evito falar por que passei por momentos horríveis e
até hoje encontro o certo cidadão que povoa todos meus pesadelos algumas vezes ali
no Largo do Machado.
Esse cidadão dos pesadelos do VB é quem o torturou na época da ditadura, e ele até
hoje tem a infelicidade de encontrá-lo às vezes pelo bairro. Nesse momento, Sócia
termina o biscoito que vem junto com o café se inclina à mesa e começa a falar.
- Bom, antes de mais nada, eu tenho que começar com uma historinha do Cosme
Velho para chegar à Rua do Catete; então quando eu cheguei no Cosme velho para
morar eu tinha em torno de 7 anos, isso por volta de 1960, e o Cosme Velho não tinha
nada, só tinha uma quitandinha, uma farmácia pequenininha e a Basílica de São Judas
Tadeu ainda estava sendo construída. Só existia a gruta, tanto que eu fiz minha
primeira comunhão lá no refeitório onde os rapazes trabalhavam na obra, e tinha a
estação do Corcovado.
Como minha mãe trabalhava muito de segunda a sábado e no domingo não tinha mais
nada para fazer lá [no Cosme Velho] e eu só podia brincar com as minhas coleguinhas
na rua, minha mãe pegava eu e minha irmã e descíamos a Rua das Laranjeiras e íamos
para o Largo do Machado. Então, todo domingo, íamos ao Largo do Machado, nessa
época nem existia o chafariz, tinha um cinema que a gente chamava de pulgueiro que
só passava “A vida de Cristo” e “Marcelino Pão e Vinho” – a mesa inteira ri nesse
momento.
- Nossa, Sócia, ela nem deve saber o que é isso – responde VB antes de Sócia continuar
a falar.
- Nessa época tinha o bonde, lembra VB? Ele ama o bonde, morre de saudades. – VB
sorri e olha para baixo pensativo.
- Então, o bonde vinha do Cosme Velho e ia até o Largo do Machado onde era o ‘rodo
do bonde’. Ele fazia a volta aqui, onde hoje em dia é o São Luiz, e retornava para o
mesmo lugar, que no caso era o Cosme Velho. A Rua do Catete era estreita,
praticamente só para bonde e carros da época que eram poucos. Mas foi em 1964 no
ano do AI524, a época da Ditadura, que foi a pior na minha opinião, e para os
moradores, e quem andava pelo Catete. Eu já estava mais mocinha e estudava aqui

24
Devemos lembrara que o AI5 ocorreu em 1968 e não em 1964 conforme a memória da personagem,
em 1964 ocorreu o golpe militar.

126
pelo Catete, eu andava aqui pelo Largo do Machado com as minhas amigas e isso aqui
era uma praça de guerra, era cavalaria da policia do Exército, tanques de guerra, uma
coisa horrível. Tanto que a gente não podia falar nada e quando a gente resolvia se
manifestar, a gente apanhava muito. Eu mesma tenho uma cicatriz nas nádegas de ter
levado uma borrachada de PE em cima de um cavalo.
- Nossa nem fala, apanhei muito de PE aqui no Largo do Machado, escuto até menos
do ouvido direito por causa de uma cacetada que levei de um deles uma vez, e foi de
graça, porque eu não estava fazendo nada, estava voltando do curso - Se manifesta
Cateteana.
- Eu acho importante falar sobre essa época, porque ninguém fala, e a Rua do Catete,
principalmente aqui no Largo do Machado, era um local de muita repressão militar.
Seu VB nem gosta que a gente toque no assunto, porque ele foi torturado.
Nesse momento VB abaixa a cabeça e limpa os olhos com um lenço.
- Mas é importante falar Sócia, aposto que você nunca tinha ouvido falar que isso
acontecia aqui no Catete né? – me pergunta VB para logo após eu balançar a cabeça
em negativa.
A mesa novamente fica em silêncio, e Sócia o quebra continuando a falar.
- Então, a Rua do Catete que eu lembro era assim, era uma ‘Rua de mão única’ que
dava acesso ao centro, pois não existia ainda o Aterro do Flamengo. Era uma rua
lotada de sobrados, onde cada um vendia um tipo de coisa, a gente fazia as compras
nos sobrados, biquíni, maiô, roupa masculina ou feminina; era nos sobrados que
vendia. É isso, eu continuo vivendo aqui pela Rua do Catete e para mim é maravilhoso,
apesar de ter passado por momentos difíceis em 1964 esse lugar aqui é o melhor do
mundo, e eu não troco por nada.
- Gente vamos indo? Já são quase 18h00min e vai começar o chorinho na Praça São
Salvador, quer ir com a gente? – Pergunta Sócia da Praça São Salvador
- Nossa a Sócia não sai da praça, é a segunda casa dela, isso se não for a primeira. Ri o
do Armazém.
Eu recuso, agradeço e me despeço de cada um deles ao sairmos do café.
Ao colocar o pé para fora da galeria do cinema São Luiz me pego ainda pensando em
como a Rua guarda memórias tão fortes e tristes na cabeça de muitos indivíduos, mas
mesmo assim, alguns continuam a amando e afirmando ser o melhor lugar do mundo.
Como deve ser difícil para VB encontrar o individuo que o maltratou na época da
ditadura pela Rua, porque, com certeza, ele não lembra do Viúvo, mas o malfeitor
nunca lembra; só quem apanha.
Walter Benjamim (2009) estava completamente certo quanto à história dos livros
estarem ligadas aos vencedores, pois após sair dessa imersão na Rua do Catete ‘do
passado’ que eu experimentei, dentro daquele café, na Galeria do cinema São Luiz, eu
vejo que realmente devemos valorizar muito a história narrada pelos pequenos e pelos
vencidos.

“VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE” (?)

127
Os três contos apresentados demonstram que através das narrativas dos personagens
foram descobertas inúmeras Ruas do Catete, um lugar extremamente rico em
experiência e com diversas memórias ancoradas não somente na Rua do Catete em si,
mas sim nas suas ruas paralelas como a Silveira Martins que faz esquina com o Palácio
do Catete que foi citada varias vezes durante as narrativas.

Vários personagens ancoravam suas memórias na Rua Silveira Martins como uma rua
muito importante ao lembrar-se do movimento do Palácio, da demolição da escola
Rodrigues Alves e a partir dessas lembranças que as outras estórias narradas
evoluíram.

A cada momento se descobria uma nova Rua do Catete e um novo Palácio de


Memórias localizado na mesma. Dos personagens que ancoravam suas memórias no
antigo Bar Lamas, passando pelos antigos estudantes do Colégio Zaccaria e da Escola
Rodrigues Alves, de um antigo emprego na Garagem da CTC no Largo do Machado e
chegando a lembranças saudosas e dolorosas da roda do bonde e da época da
Ditadura no Largo do Machado.

No entanto, embora o objeto de estudo esteja inserido no contexto atual e moderno,


andar pela Rua Catete continua sendo um bom passeio pela história, mas não somente
pela história com H contada pelos livros e sim um passeio pela estória dos
espetaculares personagens que a rua possui e nos fazem emergir em varias Ruas do
Catete ao mesmo tempo e a todo o momento.

128
CONSIDERAÇOES FINAIS – cicatrizes de uma evolução urbana

O espaço urbano é o reflexo de movimentos transitórios e cotidianos, sendo que é


através do corpo que acontece a percepção do mundo em que corpo e espaço
configuram a sua existência. Avaliando que é através do corpo que negociamos a
relação com o espaço, entender como esses procedimentos acontecem e como se
constituem é importante para entendermos o nosso próprio espaço, pois é através
desse corpo e das relações diárias de uso que a cidade é construída.

A arquitetura, enquanto representação de tempos e grupos culturais, pode descrever


uma sociedade por meio dos espaços, das relações das pessoas com esses espaços e
das interferências em nossas sensações, como analogia com a nossa cultura e nossa
subjetividade. Sabemos que a experiência cognitiva é construída ao longo de nossa
vida, até antes de nascermos, pois construímos nossa espacialidade e nosso
conhecimento de acordo com o tempo e os acontecimentos. Ao longo da vida vamos
percebendo o espaço que nos envolve, experimentamos nosso corpo no espaço e com
isso criamos uma memória corporal.

O processo cognitivo, assim, tem início na espacialidade: o impacto do lugar, as


sensações produzidas pela experiência e pela sensibilidade inerentes a nosso corpo
físico nos tornam seres capacitados. O processo de identificação e triagem emocional
de cada uma dessas etapas faz com que se busque na memória algo que complemente
fisicamente ou abstratamente um determinado espaço.

Segundo Michel de Certeau (1994) a experiência do corpo é sempre uma experiência


no espaço e no tempo. Toda memória está presa ao espaço, então quando chegamos a
um ambiente somos imediatamente invadidos pela totalidade desse espaço, e a
compreensão dessa amplitude nos permite determinar quais são os nossos percursos
pelo lugar. Pinheiro e Uglione (2009) trabalharam esta afirmativa ao colocar o papel
dos múltiplos sentidos produzidos no corpo para fabricar uma memória:

Um corpo só é só um corpo; mas muitos corpos são uma rede. A imagem da


rede nos propõe uma multiplicidade de conexões em movimento constante;
o ir e vir das informações constitui importante processo de comunicação que
se desenvolve nos recortes espaciais (materiais ou imateriais) escolhidos
para seu desenvolvimento. Se assim a cidade contemporânea se apresenta,
também assim sua apreensão se faz: ambulante, multiplicadora,
desenfreada. Mas, ao passo que as imagens se proliferam, diminuem os
anseios por fidelidade. Ao fabricar mais e repetidos modelos de estruturas

129
públicas e privadas em sítios cheios de retalhos superpostos, a arquitetura se
insere na condição de transportadora da informação. É fato que diversas
imagens se espalham com facilidade por diversos cenários, ampliando o
sentido de desterritorialização do homem e trazendo a memória como uma
entidade de estudo. É fato, também, que existem vários casos de exceção.
(PINHEIRO E UGLIONE, 2009, p.194)

Para Michel de Certeau (1994) o caminhar é importante não apenas por ser uma
maneira de o indivíduo se apropriar dos lugares, pois a cada passo temos uma unidade
de negociação e de diálogo que se vai adquirindo com a cidade, mas também para o
exercício de abstração que permite a consolidação dos lugares, como também
Augoyard menciona (1998).

Ao penetrarmos determinados lugares da cidade sentimos que sua ambiência se funde


conosco e, sendo assim, corpo e espaço entram em consonância construindo a
realidade espacial que nos circunda.

A escala e proporção dos espaços pode favorecer uma rápida intimidade


com o lugar, mas a monumentalidade e o vigor arquitetônico também
podem proporcionar efeitos empáticos na medida em que eles se relacionam
com a essência de nossas aspirações. Espaço empático é, enfim, aquele que
permite que nossa memória trabalhe, que permita uma sempre renovada
construção de narrativas e uma eterna [re]descoberta de nós mesmos.
(DUARTE,2016)

Podemos dizer, então, que a experiência dos atos é uma fabricadora do Lugar - aqui
colocado como conceito, como nas proposições de Norberg Schulz, (1976), mas nem
sempre as atitudes são enquadradas positivamente. O Lugar muitas vezes não é
fundado pelo que ele tem, nem pelo que ele é, mas pelo que ele fez o corpo coletar. A
criação de experiências não depende do valor do espaço físico, mas sim do seu corpo e
da coleção de memórias.

Richard Sennet (1997), em “Carne e Pedra”, executa um percurso pela historia da


cidade. Sem o anseio de chegar aos pormenores da história mundial, o autor privilegia
algumas cidades e alguns momentos. A linha de pensamento do autor está entre o
corpo e cidade e de que modo esse corpo vivencia e constrói a cidade. O autor parte
do principio que a forma dos espaços urbanos deriva de vivências corporais específicas
a cada pessoa e que a cidade não comporta mais a pedra, as cidades precisam de
pessoas, o espaço precisa ser vivido.

130
Após passar por rupturas e evoluções urbanas, a Rua do Catete foi perdendo sua
identidade e se descaracterizando, e para esta pesquisa não pode haver modo melhor
de entender esse espaço atual do que o percorrendo e o entendendo pelos
corpos/pessoas/personagens que narraram o novo, o passado, as lembranças e os
esquecimentos.

Nessa região encontramos cicatrizes espaciais deixadas pelas obras do metrô, várias
áreas que foram desapropriadas e tiveram suas edificações demolidas, espaços que
viraram vazios urbanos ou espaços mal projetados, abandonados pela população. Após
mais de 70 anos desde a mudança da capital e mais de 30 anos de inauguração do
metrô, a região ainda possui uma área enorme de vazios subutilizados, como é o caso
do terreno do DETRAN atrás do cinema São Luiz, que somente no ano de 2018 foi
utilizado para a construção de um edifício residencial. Entre outros problemas, esses
vazios trouxeram a noção de insegurança para a área, como relatado pelos(as)
informantes. Para Jacobs (2000) a rua ou a atividade humana se mantem quando há
pessoas cuidando desse ‘reino’, se não há interação corpo e espaço, não existe Lugar.

FIGURA 39- MURO QUE CERCA O TERRENO DO DETRAN NA RUA DO CATETE.


Foto da Autora, 2018.

A Rua do Catete adquiriu fama de ser a ‘rua das enchentes’; sempre quando cai
qualquer chuva no local, muitos defendem que a culpa foi das obras do metrô, que
mexeram muito com o desenho da rua. No entanto, até isso são ‘estórias’, narrativas
que preservam ou ocultam outros episódios, pois o problema é bem antigo segundo
registro encontrado em uma foto de 1928.

131
FIGURA 40- IMAGENS DE ALAGAMENTO NA RUA DO CATETE EM 1928 E EM 2019
Fonte: Jornal o Globo e Arquivo da Cidade

Reforçando o valor das narrativas para a construção de uma ideia de lugar, buscamos
delinear nesta pesquisa que as cidades são portadoras de histórias (JODELET, 2002)
através de suas ruas, de suas casas, seus mitos, assim como através de seus símbolos e
paisagens, como suas edificações e lugares construídos, cada pedaço conta uma
historia e tem um significado para a memória de quem vivencia com o local.

Começou-se a falar de memória no século XIX, quando tornou-se visível que as cidades
passavam por um período de grandes mudanças ideológicas e econômicas. No campo
epistemológico, vários autores começaram a abordar a questão da memória naquele
momento, quando ocorreu uma inflação de discursos identitários reivindicando a
memória oficial.

Tal resgate de discursos espalhados por diversas versões – algumas tomadas como
oficiais – pode ser reencontrado a partir de uma coleção de narrativas que abordem as
historias pelas lembranças dos que vivenciaram, ou dos que souberam do mesmo
acontecimento, como demonstramos nesta dissertação. A narrativa surge dessa
“coisa” que ainda pulsa, onde não poderemos voltar ao evento acontecido, onde só se
tem acesso aos vestígios desse evento através de discursões, coleções de narrativas.

O passado então se torna essa virtualidade se coloca em uma condição de sondar


esses vestígios, para tentar dialogar com o discurso.

Onde esta memória estaria ancorada, então? Como se pode acessá-la? Os Palácios de
Memórias estão guardados na lembrança do individuo sobre aquele determinado lugar

132
ou acontecimento, e cada arquivo tem um motivo para que seja guardado, e isso se
estabelece a partir de uma lógica que não é neutra.

Algumas vezes o Palácio de Memórias de alguns não existe mais, ou é até mesmo uma
herança menmônica de algum familiar, como pudemos ver nas entrevistas realizadas.
A partir da pesquisa desenvolvida nesta dissertação, pudemos também notar que a
memória, em sua grande maioria das vezes, chega a nós em forma de discurso. As
experiências de memória acontecem com as relações temporais; toda experiência de
memória é uma relação temporal, mas não um tempo determinado e sim um tempo
que vamos levar através das convenções. A memória se encontra no mundo sensível,
cognitivo, não no campo perceptivo.

O estudo ordenado de Paul Ricoeur (2007) nos mostra que a memória não deve ser
compreendida somente como uma busca de uma imagem que muitas vezes corre o
risco de ser “inventada”. Porem a mesma deve ser compreendia como a busca de
alguma informação que estava guardada e vem à tona através de narrativas pessoais.

A compreensão de que a memória se liga à imaginação, não apenas enquanto fantasia,


mas também como representação pessoal de acontecimentos que de fato ocorreram,
ratifica o poder da narrativa.

A memória, assim, também pode ser encarada como justificativa para o esquecimento,
buscando assegurar através dos dados na memória que acontecimentos ruins do
passado não se repitam. O ato de lembrar é uma experiência de ressignificação,
reconhecimento e de recriação dos acontecimentos e de si mesmo. Através dessas
narrativas resgatadas dos personagens entrevistados, que o passado se faz presente
de forma transfigurada por meio de lembranças encobridoras de atos de memória, a
história é reinterpretada e explica-se pelo estado devaneador no qual se encontra o
fenômeno, em sua tradução para a linguagem.

Através da produção dessa narrativa, que faz uma “outra estória”, descobrimos várias
Ruas do Catete. A Rua do Catete possui a sua própria língua, a Gualin do Tetek, e é um
lugar extremante artístico e contemplativo, um lugar que vai muito além de pertencer
a um bairro onde outrora habitavam os representantes da República. A Rua do Catete
também é da galera do hip hop, dos ‘coroas’ da jogatina das mesinhas do Largo do

133
Machado, da galera do skate e da pichação, e dos famosos ambulantes como o Da
Rosca com seu marketing de duplo sentido.

As narrativas possibilitadas pelo Palácio de Memórias, expostas pelas personagens da


Rua do Catete, nos mostraram a importância do ‘narrar’ para a construção do sujeito,
e essa importância é reconhecida pela retomada salvadora de um passado.
Para Ricoeur o espaço é equivalente ao tempo contado, ou seja, é construído como um
arquivo da memória. O ponto de partida para essa afirmação encontra-se exatamente
na questão: “O tempo torna-se tempo humano na medida em que é articulado de um
modo narrativo, e a narrativa atinge seu pleno significado quando se torna uma
condição da existência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 85)

Na arquitetura a ordem narrativa instaurada se revela nos processos decorrentes da


ocupação edificação, nos procedimentos da leitura e interpretação, chegando à
compreensão do projeto enquanto uma narração ao mesmo, ou seja, memória tem
lugar, está inscrita no espaço, que por sua vez, apresenta diversas temporalidades,
carregada de valores e histórias, que continuam presas ao objeto.

A partir dos pontos de vista de Ricoeur (2007/2010) e Benjamin (1986/1987), o espaço


é narrado através do tempo e, simultaneamente, o tempo é narrado através do
espaço. No espaço contemporâneo, passado e futuro se encontram e a voz do passado
não pode ser contida por versões unificadoras; a voz do futuro tem grande
importância na compreensão de um horizonte de probabilidades e, neste ponto, as
modificações urbanas pelas quais a cidade passa por meio de sua arquitetura pode
produzir infinitas narrativas. Para que uma história surja e se ofereça como ponto de
articulação dos afetos, memórias e reminiscências que o ato de recordar produz, é
preciso buscar as outras estórias, essas, que revelam os vestígios por entre o concreto
que a arquitetura e o urbanismo deixam.

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http://www.rio.rj.gov.br/web/irph/apac. Acesso em: 24 out. 2017.
IPHAN-RJ.Apac Catete. 2004. http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/apac/apac_catete.shtm.
Acesso em: 26 nov. 2017.
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histórico do Rio de Janeiro. http://jauregui.arq.br/cidformal.html
O BRASIL recebe o Papa João Paulo II, um dos mais influentes líderes do século XX. O Globo, 27
jul. 2013. https://acervo.oglobo.globo.com/
10 SUPER-HELPFULL mnemonic tricks. The Weeh, 6 abr. 2013.
https://theweek.com/articles/465649/10-superhelpful-mnemonic-tricks
PSYCHOLOGICAL SCIENCE - Volume 14, Number 2, Mar 01, 2003. Association of Psychological
Science. https://journals.sagepub.com/toc/pss/14/2

140
Estudos Etnográficos
Entrevistas

APÊNDICE

141
Estudos Etnográficos

APÊNDICE

142
Data: 05 de Dezembro de 201925
Hora: 10h30min
Local: Rua do Catete, calçada em frente ao Palácio do Catete.
Tempo: Calor!!!Bem quente!
- Inventário de algumas coisas escritamente visíveis.
 Vários letreiros do outro lado da Rua: Papelaria do Catete, Droga Raia, Hotel
Riazor, Bar Berbigão.
Um passante passa com NIKE escrito na mochila que carrega nas costas.
 Alguns números: Placa da Rua mostra que este trecho vai do 187 ao 153.
Alguns sobrados carregam na fachada seu ano de construção. O do Hotel Riazor
1891, outro sobrado apresenta 1904.
 Vejo o piso do chão em vários tons de cinza e de um vermelho terroso.
 Vejo árvores frondosas na calçada em frente a entrada dos jardins do Palácio.
 Abaixo da árvore em frente ao ponto de ônibus um respirador do metrô,
resolvo sentar.
 Passa um 434.
 Vejo um trecho de céu pelas árvores.
 Tem três taxis no ponto do outro lado da Rua.
 Uma senhora com uma sacola grande chega ao ponto de ônibus e se junta ao
rapaz que já estava ali.
 Uma garota atravessa a Rua correndo e quase é pega pela moto. SUSTO!
 Passa um 104 e logo atrás um 517.
 Para uma caminhonete e o motorista pede informação as pessoas do ponto de
ônibus. (Duas moças, um senhor e a senhora da sacola que continua no ponto).
 Passa um 434 lotado.
 Sai um taxi do ponto com um rapaz engravatado de passageiro.
ESTOU COM MUITO CALOR.
 Passa outro 104 e um 775D.
 A senhora da sacola que estava ainda no ponto entra no 775D.
 Passa um grupo de adolescentes com uniforme escolar.
 Passa um 422.

25
Transcrição de uma etnografia feita na Rua do Catete, em frente ao Palácio do Catete. A etnografia
dura em torno de três horas e a autora escreve suas reações em caixa alta em negrito na cor cinza.

143
 Começa a passar muitos grupos de estudantes pela calçada com uniforme.
JÁ DEVE SER MAIS DE 12h00min
 Cheiro de pipoca! Passa uma carrocinha e para quase na minha frente me
tirando um pouco da visão do ponto de ônibus.
 Passam inúmeros carros o tempo todo na Rua.
 Passa uma senhora, ela para, olha para mim e acena, eu aceno de volta, mas
não faço ideia de quem seja.
 Vários estudantes entram nos jardins do Palácio do Catete.
ESSE CHEIRO DE PIPOCA ESTÁ ME MATANDO!!!
 Passa um 434.
 Passa um 775D.
 Passa um ônibus de turismo.
 Estudantes passam gritando e brincando uns com os outros.
 Passa um 422 e desce um cadeirante.
 Passa um 118.
 Passa um 434.
 Passa uma mulher de casa de lã.
PASSO MAL SÓ DE OLHAR, ESTÁ MUITO QUENTE.
 Passa de novo a senhora e acena para mime sorri. MEU DEUS, NUNCA VI ESSA
SENHORA.
 Param dois taxis no ponto.
 Passa um 118.
 São 13h05min
 Passa uma garota carregando uma grande cartolina e com uniforme de escola.
 Uma senhora sentada ao meu lado na mureta do respirador faz crochê. MEU
DEUS SÓ AGORA REPAREI.
 São 13h 30min
PAUSA

144
Data: 05 de Dezembro de 2019.
Hora: 15h00min
Local: Rua do Catete, esquina com Silveira Martins em frente ao Palácio do Catete.
Tempo: Muito Calor (Marca 33° no relógio da Rua)

- Após o almoço volto para frente do Palácio e resolvo fazer algumas anotações, mas
dessa vez resolvo ficar mais próximo à esquina da Rua Silveira Martins. Fico em pé
encostada ao lado da porta de entrada do Palácio do Catete.
- Possuo a mesma visão que tinha pela manhã, porem de um ângulo diferente,
continuo vendo os ônibus passando, o ponto de táxi, carros particulares passando aos
montes na Rua, bicicletas e triciclos de entrega, transeuntes, cães ... Tudo que via pela
manhã.

 Vai começar algum evento/aula nos jardins do Palácio, deve ser aula de yoga,
varias senhoras entram com tapetinhos em mãos.
 O sinal de transito da Rua do Catete esquina com a Rua Silveira Martins não
esta funcionando (pela manhã estava normal), um guarda de transito está
tentando organizar o transito.
 Um menino usando um boné preto atravessa a Rua pulando e pisando somente
nas faixas brancas da faixa de pedestre.
 Passa uma senhora com dois cães vira-latas.
 Passa um carteiro puxando um carrinho com uma caixa azul.
ESTOU COMEÇANDO A SENTIR DORES NO PESCOÇO E NA LOMBAR.
 Olho para o relógio da Rua do Catete e são 15h50min (pela manhã o ponto de
ônibus me tirava à visão do relógio).
 Uma criança tentando abrir uma bala acaba tropeçando e caindo, o adulto (
acho que o pai) vai acudir, mas ela sai no seu colo chorando.
 A lanchonete do outro lado da Rua está lotada
 Passa um rapaz no triciclo de entrega carregando um colchão.
 Todos os lugares do ponto de táxi estão ocupados.
 São 14h05min. CANSAÇO DOS OLHOS, DO CORPO E CANSAÇO DAS PALAVRAS.
PAUSA.

145
Data: 06 de Dezembro de 2019.
Hora: 11h00min
Local: Largo do Machado.
Tempo: Temperatura Amena

-Andando pelo Largo do Machado, onde acontecia uma feirinha de roupas e objetos
pra casa vejo que há vários grupos de pessoas jogando cartas, damas e xadrez nas
mesas de concreto do local. Avisto um grupo bem animado e resolvo sentar em um
banco quase em frente a eles.

 O grupo esta jogando algum jogo com cartas de baralho e tem até plateia
assistindo.
 São seis pessoas, todos homens. Dois estão jogando e o resto assiste.
 Apesar de a mesinha ter quatro bancos para sentar, comente um home, um
careca que esta jogando se encontra sentado, o restante esta em pé só com um
dos pés apoiado em um dos bancos.
 Dois homens, um usando bermuda e o outro calça estão somente em pé
olhando o jogo com as mãos no bolso.
 O homem careca sentado da um grito e comemora.
 Um rapaz de terno e gravata falando no celular se senta na mureta do chafariz
do lado contrario onde eu estou e fica olhando na direção das mesas enquanto
fala ao celular.
 Bate um vento e vem um cheiro forte de flores da barraca de flores que esta
próxima às mesas de jogos
ESSE CHEIRO ME LEMBRA CEMITÉRIO
 Passam alguns meninos correndo.
 Um homem com um isopor para no meio das mesas.
 Um dos homens que esta em pé olhando o jogo (o de bermuda e mão no bolso)
se aproxima do homem com isopor e pergunta se tem cerveja latão.
 Toca o sino da igreja. Já são 12h00min
 Passa seu Erisvaldo O Homem da Rosca vendendo roscas e gritando: Paga três
reais para comer minha rosca, olha minha rosca é bem larga, ta quentinha a
minha rosca.
ROSCA MAIS FAMOSA DO CATETE E ARREDORES.
 A mesa inteira grita e começa a zoar o homem careca.

146
 Todos menos o careca começam a gritar e pular esfregando a cabeça do
homem careca.
ESTOU COMECANDO A SENTIR FOME.
 Olho para o relógio e são 12h45min e resolvo ir embora.
PAUSA

Data: 08 de Dezembro de 2019.


Hora: 15h00min
Local: Rua do Catete esquina com Rua Almirante Tamandaré
Tempo: Temperatura Amena

-As lojas estavam fechadas e a Rua estava meio vazia. Decidi então ficar um tempo
observando abaixo do numero 66 da Rua do Catete com Rua Almirante Tamandaré
- Esse prédio possui altos pilotis e fica ao lado do terreno “vazio” que abriga o DETRAN.
O terreno do DETRAN está localizado em um dos locais que sofreram com a demolição
pelas obras do metrô.
 Passa uma moça mexendo no celular e rindo para tela.
 Alguns garotos chegam de skate e usam o lugar para praticar algumas
manobras.
 Passa uma senhora empurrando um carrinho com dois cachorrinhos dentro
 Passa um carro da Polícia e para próximo ao posto do DETRAN.
 Acho que atraio pontos de taxi, pois há um na minha frente novamente.
Penso em ir para o Bar do Elias, que fica na outra esquina COSTAS DOENDO DE
ESTAR EM PÉ, mas o bar tem uma fila de espera na porta.
 Começa a bater um vento frio, o que é super estranho para Dezembro no Rio
de Janeiro.
 Passa um senhor e me pergunta as horas
 São 16h10min
NOSSA JÁ?
 Os meninos andando de skate resolvem ir embora.
 O ponto de taxi está cheio
 As luzes do dia começam a se modificar.
 Um homem tenta entrar no antigo banco Itaú, porem só depois percebe que a
agência fechou e não existe mais, ele vem ate a minha direção e pergunta se sei
onde há outra agência e eu faço que não com a cabeça.

147
 Um mendigo empurrando um carrinho de mercado para em frente a antiga
agência do Itaú desativada e começa a se arrumar para ficar ali.
 Passa uma família com duas crianças correndo e uma em um patinete.
 Passa um casal de mãos dadas
CANSAÇO E DOR NAS COSTAS.
 Passa um home com uma sacola de compras.
 Bate uma rajada de vento.
 Vejo que o mendigo esta me olhando e vejo eu já são 16h45min
ESTOU COM MEDO VOU EMBORA

PAUSA

Data: 11 de Dezembro de 2019.


Hora: 13h00min
Local: Rua do Catete esquina com Rua Dois de Dezembro
Tempo: Choveu o dia todo.

-Esta frio, o que é muito esquisito para Dezembro e além de tudo a chuva não
deu trégua desde de hoje de manha, mesmo assim resolvo ir ate a Rua do
Catete para observa-la na chuva.
-Posso fazer isso pois cai uma garoa fina, caso contrario não poderia fazer
minha caminhada pois a Rua do Catete quase sempre enche durante as chuvas.
-Resolvo ficar na Rua do Catete esquina com Rua Dois de Dezembro. Como esta
chovendo me sento no bar Paraiso do Chopp, peço um a coca cola e uma
porção de batatas e me sento do lado do vidro com a visão para a rua.
 Passa um 118
 Um rapaz corre atrás de uma criança com um guarda chuva de joaninha
 Passa uma moto engraçada tocando musica árabe.
 Tem uma fila no Mcdonalds para comprar sorvete do outro lado da rua.
 Passa um 434 e para no sinal.
 Olho para o relógio do outro lado da rua e marca 24°
 Uma senhora com uma sacola e um guarda chuva roxo tenta atravessar
a rua fora do sinal, mas esta complicado, pois quando fecha o sinal da
Rua do Catete abre o sinal da Rua Dois de Dezembro.

148
 Passa um rapaz de boné e mochila preta.
 As pessoas gostam mesmo de sorvete, a fila do Mcdonalds não diminui.
 Chove sem parar uma garoa fina.
 Passa um 434.
 Passa um 422.
 Passa uma senhora puxando um carrinho de feira com um guarda chuva
amarelo.
 Passam dois carros de bombeiros e uma ambulância do Samu. (QUE
SUSTO)
 Passa um 775D.
 O garçom vem me perguntar se quero mais alguma coisa, peço mais um
coca.
 Olho o relógio da rua, são 14h10min e percebo que o restaurante está
vazio.
 Passa um carro de som anunciando ofertas de um hortifrúti
 Passa uma senhora com um objeto comprido que parece ser um varal
de cortina.
 Passa um guardador correndo usando uma capa de chuva
 Passa um carro de auto escola e entra na Rua Dois de Dezembro.
 Passa um homem carregando uma lata de tinta.
 Passa um 434.
 Olho para o relógio e são 14h30min, chamo o garçom e peço um café.
 Passa um garoto com um cachorrinho.
 Passa um catador com papelão.
 Bebo o café e peço a conta, são 14h50min já, vou embora antes que me
expulsem do restaurante.

PAUSA

149
Data: 13 de Dezembro de 2019.
Hora: 15h00min
Local: Rua do Catete saída do metrô
Tempo: Calor!!!

-Resolvo voltar hoje para anotações na Rua do Catete na altura do Palácio do


Catete esquina com Silveira Martins. Porem resolvo ficar do outro lado da rua ,
em frente a saída do metrô. Tenho a visão do Palácio de frente e da esquina da
Rua Silveira Martins quadra praia.
 Há dois taxis no ponto parados.
 Passa um 422.
 Há vários triciclos de carregar colchão na calçada
 Estou em frente a Papelaria do Catete e a uma loja de colchão.
 Passa um 434.
 Uma senhora sai com varias sacolas da Papelaria do Catete
 Um rapaz vem correndo pela Rua Silveira Martins na quadra do Palácio,
atravessa a rua correndo e entra rápido em um dos taxis do ponto.
 Passa outro 422.
 Passa Da Rosca gritando e para em frente a Papelaria do Catete.
 Da Rosca me pergunta se a entrevista dele me ajudou e me aproximo
para conversar e comer uma rosca.
 Pessoas se aglomeram ao redor do Da Rosca para comprar rosquinhas.
 Passa um 775D.
 Passa um senhor maltrapilho gritando Lula Livre e a rua grita de volta
Lula Livre. QUE LINDO A RUA NÃO É BOLSOMINIA.
 Passa um 434.
 Aproveito o ar condicionado da papelaria que estou “roubando” parada
na porta e resolvo desenhar Da Rosca.
 São 16h10min
 Da Rosca pergunta se terminei o desenho , pede para ver e bate uma
foto, fala que ficou mais moço e vai embora após me dar tchau.
 Passa um rapaz com vários cachorros
 Passa um 434.

150
 Um carro particular ultrapassa o sinal vermelho e por sorte ninguém se
machuca.
 São 16h55min
 Passa uma senhora com carrinho vendendo bolo e café.
 Passa um 422.
MINHAS COSTAS COMECAM A DOER QUERIA SENTAR!
 O bar do lado da papelaria começa a por as mesas na calcada. Olho para
o relógio e já são 17h30min.
 Resolvo pegar o metrô e voltar pra casa.

PAUSA

Data: 17 de Dezembro de 2019.


Hora: 14h30min
Local: Praça do Largo do Machado
Tempo: Calor, mas não muito.

-Várias ações simultâneas, cada uma implicando posturas, atos motores e


energia especifica .
-Discussão/ conversa de duas, três ou varias pessoas.
-Vários modos de locomoção: caminhando, veículos de duas rodas, com e sem
motor, automóveis ( particular e taxis), ônibus.
- Três senhoras esperam junto ao ponto de taxi, descobri que a Rua do Catete
possui vários.
 Há três pessoas no ponto de ônibus, uma moça carrega um bebê no
colo.
 Passa um 775D
 Passa um 422 e outro logo atrás.
 Uma menina senta ao meu lado no respirador do metrô e puxa um
cigarro.
 O ponto de bicicletas do Itaú só possui uma bicicleta.
 Passa um 434 e um 775D.
 Um grupo de quatro pessoas atravessa a rua correndo.

151
 Varias pessoas ocupam os aparelhos de ginastica da praça, algumas
usam como lugar para sentar e outras para realmente se exercitar.
 Passa um 118.
 Uma menina vem anadando e olhando no celular e tropeça.
 Há cinco taxis no ponto de taxis.
 Passa um 434.
 Uma senhora joga pedaços de pão no chão e vários pombos aparecem
do nada.
 Pessoas aos montes passam de um lado para o outro
 Uma caminhonete dos correios
 Um homem segurando um jornal
 Uma senhora com um cãozinho
 Passa um 434 e um 118 logo atrás
 São 15h22min.
ESTOU COM FOME VOU COMER

PAUSA

152
Entrevistas26

APÊNDICE

26
Entrevistas realizadas pela pesquisadora durante o ano de 2020.

153
VIÚVO DO BONDE, 82 anos.

Lamento comunicar que após as obras do metrô o Catete


morreu, pode anotar ai no seu caderninho. Um bairro que já
teve seus tempos de gloria foi um antigo domínio aristocracia,
boêmio e pioneiro na historia dos transportes urbanos, o Catete
teve a primeira linha de bondes puxada por burro, ela fazia
ponto ali no final do Largo do Machado. Hoje acho que o Catete
padece por forca do seu pioneirismo (O Sr. Solta uma
gargalhada). Durantes as obras do metrô passar um dia nessa
Rua era um inferno, estava tudo destruído. Longe de mim
contestar o progresso, mas não precisava ter feito tudo isso. Eu
morava no prédio 101 da Rua do Catete e lembro muito bem das
explosões, um dia estava em casa e senti um barulho enorme no
quarto onde meus filhos brincavam, sai correndo e vi o quarto
cheio de pedras e o vidro da janela quebrado. O metrô tinha
acabado de fazer mais uma explosão. O vidro ficou lá, ninguém
nunca apareceu para consertar.
Não adiantava reclamar, eles paravam o barulho por alguns dias,
mas depois de um tempo as máquinas voltavam a trabalhar e
faziam barulho 24 horas, não existia nenhum respeito pela hora
do sono, entravam madruga adentro. Era uma loucura, não sei
como a gente aguentou.
Foi muito triste ver a Escola Rodrigues Alves que ficava ali na
esquina da Rua Silveira Martins ser demolida, ela foi construída
pelo prefeito Perreira Passos, era um primor de colégio,
funcionava como dependência burocrática do Palácio.
Passamos por maus bocados também na época da ditadura,
desde aquela época não gosto muito de ir ate o Largo do
Machado, e ainda hoje só vou lá por extrema necessidade, pois
às vezes encontro o cidadão que me torturou, sei que ele não
lembra de mim, mas lembro perfeitamente dele, mas não gosto
de falar desse assunto.

154
RAPPER DO TTK, 52 anos.

Eu cheguei no Catete em 83, saído do Andaraí, e não tinha


rap em lugar algum. No Rio deviam ter umas cinco pessoas
que faziam rap, mas no Catete tinha muito dançarino de
break e já tinha o Baile Funk do Santo Amaro. Nessa época,
o funk tocava Afrika Bambaataa, Kurtis Blow... E depois eu
comecei a fazer rap. Acho que sou o primeiro rapper do
Catete... Aliás, não: o primeiro foi o Skunk. Nos conhecemos
no bairro e ele já tinha uma letra que era a de "Puta
Disfarçada" que ele escreveu em inglês e eu traduzi e fiz a
rima.
Quando eu cheguei no Catete foi muito impactante pra
mim esse aspecto de contracultura que o bairro tem e a
herança da malandragem da Lapa. Geral falava disso, dos
malandros, de Madame Satã. Ali encontrei roqueiros,
cineastas, artistas e isso me inspirou muito. Eu morava no
90 da Rua do Catete e rolavam sessões de filmes
independentes no cinema do Palácio do Catete. Assisti
muito David Lynch: "Coração Selvagem", "Twin Peaks"... Alí
o skate era bom pra caramba, a gente andava muito pelo
Palácio, era o bicho. Nesse tempo também a galera
alternativa era pequena, andavam todos juntos, tinham uns
cinco caras do rap, quatro do rockabilly, seis do punk e geral
ouvia os sons um dos outros, era muito interessante. Minha
musica tem muito dessa mistura, até dos mais velhos que
curtiam Pink Floyd e King Crimson.
Eu botava nome, era pichador, pichava ZIC, a pichação ali
sempre foi forte. Sou da época do Vinga (considerado o
pichador mais lendário do Rio), e eu nem sabia que
pichação e grafitti tinham a ver com a cultura hip hop, fui
descobrir essa ligação no Catete.
Outra parada interessante era como geral falava a Gualin
do TTK, mudando a ordem das palavras, e virou uma língua
do bairro, da pichação. Quem começou isso no bairro foram
os turistas pobres, os argentinos que chegavam de Buenos
Aires e não tinham grana para ficar em Copacabana. Eles lá
já falavam ao contrario, já traziam isso, tu vê até mesmo no
nome do grupo Gotan Project, e disseminaram essa língua e
geral absorveu.
O Catete ainda é muito importante para mim. Lá moram
minha mãe, meu filho, minha neta a galera do futebol e
vários amigos. É um lugar propenso pro hip pop, é muito
urbano, a molecada é rua e tá sempre na rua. Meu filho já
ia para a festa Zoeira na Lapa com 10, 11 anos e começou a
fazer rap nessa idade. Com 15, 16 anos ele tomou isso a
sério. Essa geração toda tem a parada do "do it yourself",
de fazer tudo mesmo, de abrir a própria empresa. Hoje em
dia as gravadoras não tem mais controle sobre essa galera,
e essa molecada tá muito feliz em ter suas próprias
paradas. Galera voltou a ser livre, eles falam o que querem.

155
SAUDOSO DO ARMAZÉM, 37 anos.

Minha família toda morava no Catete, e meu avô possuía


um armazém que foi herdado do seu pai, meu bisavô, na
altura da Rua do Catete com Largo do Machado. Eles
moravam em um casario também na Rua do Catete
próximo a Rua Dois de Dezembro. O armazém era o
sustento da família inteira, e nunca teve problemas
financeiros. Porem por volta de 1970 começaram as obras
do metrô, ninguém passava direito na Rua e o armazém
começou a ficar as moscas, quando meu avô achou que
decretaria falência chegou uma carta do metrô falando que
um área seria demolida por causa das obras e essa área
incluía o a armazém e a casa onde eles moravam. Claro que
financeiramente foi bom para o meu avô acontecer a
demolição do armazém, pois ele recebeu um bom dinheiro
tanto pela casa quanto pelo comercio mas ele tinha grande
apego sentimental ao local e assim que foi feito o negocio e
todos se mudaram para Copacabana, pois meu avô pegou
ódio pelo Catete, meu avô entrou em depressão e veio a
falecer. Até hoje falam que foi de tristeza por ter perdido o
armazém para as obras do metrô.

156
DA ROSCA, 62 anos.

Eu nasci no Crato no Ceará e vim para o Rio de Janeiro em 2005 trabalhar vendendo crediário nas
portas, mas não deu certo. Aluguei uma casa para morar na comunidade do Santo Amaro e moro lá
ate hoje. Como vender crediário não deu certo fui ver como poderia tirar sustento. Eu vendia
salgado lá no Ceará então fiz uma pesquisa e vi que pelo bairro do Catete ninguém vendia rosquinha
frita então eu vi uma oportunidade. Eu estava na rua da amargura, com vinte reais no bolso,
sozinho, pedindo a Deus que me desse uma luz. Vendi água de coco por seis meses no Largo do
Machado, peguei o dinheiro e comprei o material para fazer a rosca. Antes eu fazia pequenininha e
vendia a 50 centavos hoje ela ta maior e eu vendo a 3 reais. Vendo 200 roscas por dia, saio com 100
de manha e 100 a tarde, vendo tudo pela Rua do Catete ate o Largo do Machado, faço as pessoas
comerem minha rosca que é bem boa e ainda faço eles rirem. Todo mundo me conhece e tenho
muito a agradecer a Rua do Catete por que é daqui que eu tiro meu sustento. Vender minha rosca
aqui na Rua do Catete me fez ficar famoso, já fui no Jô Soares, na Ana Maria Braga e ate livro sobre
mim já tem.

MOÇA DA PAPELARIA, 73 anos.

Apesar da papelaria ser aqui no Flamengo eu sempre morei no Catete, fiz normal e era professora, ai
quando papai ficou doente eu vim trabalhar aqui na papelaria. Eu morava na Rua Silveira Martins
quando era criança, ao lado do Palácio do Catete. Me lembro de escutar da escola Rodrigues Alves,
onde eu estudava na época, a fanfarra presidencial e Juscelino saía na sacada para cumprimentar a
multidão. Era outra época, outra vida, hoje está tudo muito mudado, mas as coisas mudam é a vida.
Hoje estou morando com meu marido na Rua Dois de Dezembro, gosto muito de lá , não me mudo
não, gosto muito do Catete, sou feliz ali.

157
XARPI, 32 anos.
Eu moro na Glória e estudei no Catete. A cena da pixação aqui na área sempre foi muito forte. O
TTK sempre foi conhecido por difundir a língua de trás pra frente, a famosa "Gualin do TTK". Eu
cresci em meio a tudo isso. Com 14 anos eu coloquei meu primeiro nome na rua e comecei a
conhecer os garotos da área que faziam acontecer, mas foi uma amiga que me encorajou. Existiam
"bondes" de meninas que pixavam, e uma amiga me chamou pra entrar na sigla "Inferno
Feminino". Aí eu comecei e logo depois já estava entre os maiores pixadores do Rio. Eu admirava
muito a galera das siglas FR (Filhos da Rebeldia), VR (Vício Rebelde), JR (Juventude Rebelde) e TW
(Trip Wave). Assim que comecei a pixar com as meninas em 2002, Naty, a fundadora da sigla,
faleceu (por motivo não relacionado à pixação), e nenhuma das outras quis continuar praticando,
mas eu resolvi continuar mesmo assim pra fazer a vontade da N. e dar orgulho a ela. Quem
conheceu sabe, devo tudo a ela!
Logo depois conheci os maiores da cena. Comecei a namorar um deles (o lendário C., falecido em
2005) e passei muitos anos me dedicando a essa loucura que é o xarpi. O xarpi sempre esteve
muito presente na minha vida e logo depois eu conheci o hip hop, que me fascinou muito
também.
Em 2010 eu já estava muito abalada com as perdas que tive na pixação e resolvi fazer uma festa de
aniversário misturando esses dois mundos (hip hop e pixação) e deu super certo. Chamei o Ret (na
época do Numa Margem Distante) e os amigos do Comando Selva pra cantarem num antigo
sobrado na Lapa. Naquela época pixador gostava de funk; hip hop pra eles era só Racionais MC's e
MV Bill. A partir dessa festa resolvi começar a fazer o evento de verdade porque a cidade tava
carente disso. E o evento não podia ter outro nome, batizei de Xarpi. Lançamos muita gente
importante do cenário nacional.
A pixação me deu tudo isso de bom, mas muita coisa negativa também. É uma relação de amor e
ódio. Foi preciso eu perder duas pessoas que eu gostava muito pra eu amadurecer. Vou sempre
admirar a cultura, mas hoje em dia estou bem afastada da cena. Muitas amizades continuam,
claro. O xarpi é uma cultura que passa de geração pra geração.

A JORNALISTA, 34 anos.
Eu morava no subúrbio e nunca tinha circulado pelo Catete até meus 19 anos. Por acaso precisei
colocar aparelho e a clínica ficava bem na Rua do Catete (na altura da Rua Ferreira Viana). Daí
aprendi a chegar na clínica para as manutenções e ao longo dos anos comecei a frequentar o
bairro por diversos motivos: uma amiga começou a trabalhar na Praia do Flamengo, comecei a
namorar e ele morava na Marquês de Abrantes, até que eu consegui me mudar pra ficar mais
perto do trabalho, e fiquei na Ferreira Viana. O bairro inteiro gira em torno da Rua do Catete, rua
que praticamente delimita o bairro, tem todo o comércio, o metrô e pontos de ônibus, enfim.
Dizem que bairros como o Catete são bairros de passagem, mas mesmo sendo pequeno ele tem
muitas atrações.
Na infância cheguei a visitar o Museu umas 2 ou 3 vezes, sempre achei muito interessante. Foram
visitas que me marcaram.
Só o fato de abrigar uma ex-sede da República, já é de se levar em conta. Fora isso, o casario que
está até que bem preservado, ocupando lojas e mantendo a fachada, é bem interessante. No
centro/lapa há isso, mas estão em piores condições. Gosto muito desse modelo de preservação,
loja com fachada antiga.
O que se perdeu creio que foi a relevância pra cidade, geralmente só se falam da Rua do Catete
quando alaga, algo que acontece há décadas sem previsão de melhora. Mas permanece muito da
história, algo que podia ser mais resgatado.
Pra mim a Rua do Catete significa lar, significa conhecer tudo, acompanhar as mudanças, mesmo
que lentas, do bairro.

158
@BOMPRACATETE, 31 anos .
A Rua do Catete para mim é um contato com uma vida à carioca
Venho de MG então, minha impressão do Catete é de um forasteiro. Para mim ela representa toda
a confusão do RJ, com seu comércio e sua sujeira, mas ao mesmo tempo apaixonante ( como a
própria cidade). São tantas pessoas diferentes circulando, o que não ocorre no lugar de onde
venho.
Acho que essa diversidade de pessoas que me impressiona na rua. Aspirantes a atores de
Laranjeiras, velhinhos, pedintes, artistas de rua, tudo misturado. Nunca me esquecerei de um dia
que vi duas pessoas brigando na rua e um correndo atrás do outro com um serrote na mão
Para mim a Rua do Catete representa uma gloria de outrora.
A rua hoje está bem decadente, mas é uma décadence avec élégance, e o Palácio do Catete
continua como testemunha viva desse passado em que o Catete era o centro da Política nacional.
Resumindo: a Rua do Catete representa o ciclo de mudanças que o RJ passou
E vai continuar passando (meio o que ocorre com Copacabana)
Para mim o que permanece e o legado histórico, com alguns casarões preservados e com o Palácio.
O que foi Embora é o seu significado político, como sede do poder federal (e imagino que com isso
seu prestígio).
Para mim, como disse antes, a Rua do Catete é um lugar extremamente pitoresco e minha
referência de uma vida carioca.

O PROFESSOR, 65 anos.
Do ponto de vista pessoal dois momentos marcam minha relação com o logradouro referido. O
primeiro diz respeito às idas em minha infância com minha mãe para escolha de mobiliário
residencial. O segundo refere-se ao meu primeiro estágio no Museu Edson Carneiro. Desse modo,
minha relação com a Rua do Catete se dá no âmbito das reminiscências e, portanto, da
subjetividade e das afecções.
Não tenho como avaliar. A "cidade" refere-se a uma universalidade atravessada por uma
expressiva heterogeneidade, conflito e diferença. Pessoalmente, mesmo considerando sua
importância patrimonial, a rua possui importância relativa.
O que permanece são os fluxos das vidas e o encontro do passado com a atualidade.

EX ZACCARIANA, 28 anos.
Estudei muitos anos no colégio Zaccaria. Gostava de passear no museu da república. Na minha
época havia uma biblioteca no museu na qual eu podia estudar.
Embora ainda mantenha muitos dos sobrados, estes viraram lojas e restaurantes e agora acho que
a Rua do Catete virou um centro comercial.
Hoje ela é só uma rua de comércios na qual se tornou quase impossível transitar, com muitos
pessoas de rua e ambulantes.

159
VETERINÁRIA ZACCARIANA, 32 anos.
Minha relação com a Rua do Catete é de muito carinho e gratidão, afinal é o bairro onde eu vivo,
onde a maior parte da minha família reside e onde pude fazer muitos amigos. Minhas maiores
lembranças são da época de colégio; estudei no Colégio Zaccaria minha vida inteira e, nossa, como
esse lugar me fazia e ainda me faz feliz! Fiz questão de colocar meu local de votação lá só para ter
uma desculpa para visitar a escola. Lembro que às sextas-feiras era obrigatório o almoço no Mac
(McDonald’s) no Largo do Machado, a resenha da semana e a programação do final de semana
eram feitas lá.
Tenho no meu armário ate hoje as blusas principais do uniforme, a branca que usávamos no
ensino fundamental e a azul quando a gente entrava pro ensino médio. Na verdade todas as
minhas lembranças da Rua do Catete vem muito do Zaccaria, eu morei minha vida inteira aqui no
Catete, tirando a época de faculdade que morei em Seropédica e hoje em dia meu consultório é
aqui no bairro também, mas a lembrança do Colégio para mim é muito forte.
Mas falando sobre a minha percepção da Rua, na minha cabeça, a Rua é uma mistura de passado e
presente, pois na mesma rua temos o Palácio do Catete e o novo prédio do Hotel Flórida, como
representantes dessas diferenças temporais.

CATETEANA, 73 anos.
Em 1974 mudei-me da cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, para o bairro e
frequentava o antigo Bar Lamas que era centenário e onde se encontravam diversos artistas e
intelectuais. Trabalhei anos na garagem da CTC no Largo do Machado - antiga empresa de ônibus
do estado. Quando ela fechou, fui para outra empresa perto da Rodoviária Nova Rio e agora,
aposentada, vivo de passear e jogar conversa fora pela Rua do Catete.
A Rua do Catete representa a convergência entre as pessoas que residem em todas as regiões da
cidade. É uma mistura de moradores da zona norte, centro, baixado fluminense e zona sul. Talvez
seja a rua mais democrática da zona sul.
P: Levando em consideração que a Rua do Catete não possui mais a mesma ‘cara’ que possuía no
século XX, o que você acha que permanece e o que se perdeu?
A arquitetura antiga permanece pelos tombamentos. Perdeu-se a forma de vida do povo, mas faz
parte do contexto de cidade. Mas assim tenho tem 73 anos e acho que esse bairro é maravilhoso,
não saio daqui os amigos que fiz no Catete são minha verdadeira família.

160
SÓCIA DA PÇA SÃO SALVADOR, 68 anos.
Bom, antes de mais nada, eu tenho que começar com uma historinha do Cosme
Velho para chegar à Rua do Catete; então quando eu cheguei no Cosme velho
para morar eu tinha em torno de 7 anos, isso por volta de 1960, e o Cosme
Velho não tinha nada, só tinha uma quitandinha, uma farmácia pequenininha e
a Basílica de São Judas Tadeu ainda estava sendo construída. Só existia a gruta,
tanto que eu fiz minha primeira comunhão lá no refeitório onde os rapazes
trabalhavam na obra, e tinha a estação do Corcovado.
Como minha mãe trabalhava muito de segunda a sábado e no domingo não
tinha mais nada para fazer lá [no Cosme Velho] e eu só podia brincar com as
minhas coleguinhas na rua, minha mãe pegava eu e minha irmã e descíamos a
Rua das Laranjeiras e íamos para o Largo do Machado. Então, todo domingo,
íamos ao Largo do Machado, nessa época nem existia o chafariz, tinha um
cinema que a gente chamava de pulgueiro que só passava “A vida de Cristo” e
“Marcelino Pão e Vinho”, você nem deve saber o que é isso mas tudo bem
(risos). Dai nessa época tinha o bonde, Então, o bonde vinha do Cosme Velho e
ia até o Largo do Machado onde era o ‘rodo do bonde’. Ele fazia a volta aqui,
onde hoje em dia é o São Luiz, e retornava para o mesmo lugar, que no caso era
o Cosme Velho. A Rua do Catete era estreita, praticamente só para bonde e
carros da época que eram poucos.
Então, mas antes deixa eu falar do Largo do Machado, não existia o chafariz, ele
só foi surgir bem depois lá pra 68/69. Mas foi em 1964 no ano do AI527, a
época da Ditadura, que foi a pior na minha opinião, e para os moradores, e
quem andava pelo Catete. Eu já estava mais mocinha e estudava aqui pelo
Catete, eu andava aqui pelo Largo do Machado com as minhas amigas e isso
aqui era uma praça de guerra, era cavalaria da policia do Exército, tanques de
guerra, uma coisa horrível. Tanto que a gente não podia falar nada e quando a
gente resolvia se manifestar, a gente apanhava muito. Eu mesma tenho uma
cicatriz nas nádegas de ter levado uma borrachada de PE em cima de um
cavalo.
Voltando, então a Rua do Catete era uma rua única, que dava acesso para o
centro, por que ainda não existia o aterro do Flamengo. A Praia do Flamengo só
tinha um lado da rua, ia e voltava em mão dupla, como era a Rua do Catete
também. Até para atravessar a rua era horrível naquela época pra gente. Então
a Rua do Catete era lotada de sobrados, as únicas lojas que eu lembro de lá era
uma loja que tinha ali onde hoje é a Rio Farma e onde a calçada era bem
estreitinha. Mal dava para passar uma pessoa, e ali bem nessa esquina tinha
uma loja de roupa que se chamava Seleção Modas, ao lado tinha a Raviolândia
que era um restaurante de massas que minha mãe como Italiana adorava e
levava a gente sempre para comer lá. Tinha o Bar Lamas, que era uma lojinha
pequenininha que agora ta la na Marques de Abrantes, ficava aberto dia e
noite, isso me lembro. Lembro que a gente passava carnaval no Largo do
Machado e na Rua do Catete.
Nos sobrados cada um vendia um tipo de coisa, você subia e fazia suas
compras, você queria um biquene ou um maiô, uma roupa masculina ou
feminina você ia nos sobrados e comprava entendeu.

27
Devemos lembrara que o AI5 ocorreu em 1968 e não em 1964 conforme a memória da personagem,
em 1964 ocorreu o golpe militar.

161
Até sandália tipo sapataria era tudo nos sobrados, não tinha loja como hoje em
dia. Inclusive tinha o Instituto Monteiro Lobato de Musica onde eu estudei
acordeom, era quase na esquina da Rua Machado de Assis. Não existia esses
calçadões , não existia nada disso. A Rua do Catete era mão dupla e de lado a
lado eram sobrados, muito pouco prédio , muitas casas, sobrados e casarões,
como também era no Cosme Velho. Tanto que eu na casa que eu morei, era
tipo casa de cômodos, então cada quarta era uma família.
Tinha muito disso no Catete, as casas de cômodos, as vilas e o Museu da
republica que todo mundo já conhecia devido ao suicídio de Getúlio Vargas que
foi algo que marcou muito o Catete.
Frequentei muito o Museu quando era criança, minha mãe me levava, nós
tínhamos que colocar ate um filtro como chinelo para não arranhar o chão. Mas
deve ter mudado muita coisa ali dentro por que tem muito tempo que eu não
vou lá.
Então a Rua do Catete ela foi e é importante, as pessoas se orgulham de morar
no Catete, ela não é um simples bairro da zona sul, ela é muito mais conhecida
do que qualquer outro bairro.
Se você falar: Eu moro na Rua das Laranjeiras, vão perguntar, mas aonde? É ai
você responde: Sabe a Rua do Catete? O Largo do Machado todo mundo vai se
achar.
E naquela época era maravilhoso, era época de carnaval e a gente ia para Rua
brincar e ia nos casarões para comprar fantasia, sabe eu vivi minha infância
toda na Rua do Catete e mais tarde quando fui morara já com meus 14 anos fui
morar no 310 em frente a Machado de Assis e nessa época já tava ficando
diferente quando eu já tava na puberdade já tava ficando diferente.
Os prédios já estavam começando a serem construídos e os sobrados a serem
derrubados, muito pela obra do metrô e também para aumentar as calçadas. A
Rua do Catete foi aumentando absurdamente, a rua como já disse não era tão
larga como está hoje em dia entendeu.
Eu continuo vivendo na Rua do Catete durante muitos anos e que eu saiba para
mim tem uma importância maravilhosa, apesar de ter passado por momentos
ruins na época da ditadura em 64 que a gente não podia falar nada que
qualquer coisa a gente tomava mesmo porrada de PE, eu tomei e ate hoje
tenho uma cicatriz horrível, mas tudo bem foi um tempo que passou e eu não
me arrependo de nada do que eu fiz.

162
PLATAFORMA BRASIL

ANEXO

163
UFRJ - CENTRO DE FILOSOFIA
E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP

DADOS DO PROJETO DE PESQUISA

Título da Pesquisa: Uma outra estória, Representações da Rua do Catete pelas narrativas do "Palácio de
Memória".
Pesquisador: PAMELA PARIS AVILA
Área Temática:
Versão: 2
CAAE: 27832819.3.0000.5582
Instituição Proponente: Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
Patrocinador Principal: FUND COORD DE APERFEICOAMENTO DE PESSOAL DE NIVEL SUP

DADOS DO PARECER

Número do Parecer: 3.973.862

Apresentação do Projeto:
Segundo o que o foi apresentado pela pesquisadora: "A evolução da cidade do Rio de Janeiro foi
pontuadapor influências e impactos que se refletem em sua historia. A construção do metrô , na década de
70, e a transferência da capital para Brasília são casos de intervenção urbana esvaziamento econômico que
marcaram de forma significativa historia e a memória da Rua do Catete. A atual configuração da Rua do
Catete é o resultado da combinação de trechos preservados, com edifícios
construídos nos terrenos remanescentes das demolições e persistência de vazios urbanos. O objetivo deste
trabalho é analisar as mudanças de
cenário da Rua do Catete através de narrativas proporcionadas pela justaposição de diferenciados
enfoques, de modo a evidenciar um cenário atual complexo e reforçar a conexão memoria / espaço físico /
usos e práticas locais. A metodologia de pesquisa
será realizada a partir de três vertentes
principais: a evolução urbana da área para compreender como a Rua do Catete chegou a sua configuração
atual, dos autores que darão embasamento teórico à pesquisa para ajuste das premissas conceituais, e
através das narrativas de memória servindo de instrumentos e métodos de trabalhos para a pesquisa de
campo."

Endereço: Av Pasteur, 250-Praia Vermelha, prédio CFCH, 3º andar, sala 30


Bairro: URCA CEP: 22.290-240
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E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
Continuação do Parecer: 3.973.862

Objetivo da Pesquisa:
"Objetivo Primário:
A pesquisa tem como objetivo geral analisar as mudanças de cenário da Rua do Catete através de
narrativas proporcionadas pelo uso dos arcabouços teóricos apresentados através do emprego dos mesmos
na coleta de narrativas de personagens
e da própria autora em relação à convivência e vivência do espaço, de modo a evidenciar um cenário atual
complexo e reforçar a conexão memória/espaço físico/usos e práticas locais."

Avaliação dos Riscos e Benefícios:


Segundo o informado:
"Riscos:
O único Risco que pode ocorrer e do entrevistado se sentir ofendido ou incomodado com a entrevista
realizada, porem isso será evitado a todo custo.
Benefícios:
Resgate da memória narradas por aqueles que vivenciaram (direta ou indiretamente) os acontecimentos dos
quais a Rua Catete foi palco ao longo do seculo XX."
Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:
Depois de reformulada, a pesquisa passou a atender as exigências do CEP.
Considerações sobre os Termos de apresentação obrigatória:
Depois de reformulado, o RCLE (TCLE) passou a cumprir o exigido pelo CEP.
Recomendações:
No RCLE, explicitar que, devido à pandemia do SARS-CoV-2, existem riscos à saúde inerentes a interações
copresenciais necessárias à realização de entrevistas. Conforme as "Orientações para condução de
pesquisas e atividade dos CEPs durante a pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2" (de
01/04/2020), do Ministério da Saúde: "[a]conselha-se a adoção de medidas para a prevenção e
gerenciamento de todas as atividades de pesquisa, garantindo-se as ações primordiais à saúde,
minimizando prejuízos e potenciais riscos, além de prover cuidado e preservar a integridade e assistência
dos participantes e da equipe de pesquisa." E ainda: "[e]m observância às dificuldades operacionais
decorrentes de todas as medidas impostas pela pandemia do SARS-CoV-2, é necessário zelar pelo melhor
interesse do participante da pesquisa, mantendo-o informado sobre as modificações do protocolo de
pesquisa que possam afetá-lo, principalmente se houver ajuste na condução do estudo, cronograma ou
plano de trabalho."

Endereço: Av Pasteur, 250-Praia Vermelha, prédio CFCH, 3º andar, sala 30


Bairro: URCA CEP: 22.290-240
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Conclusões ou Pendências e Lista de Inadequações:


Projeto aprovado, e reforça-se o cumprimento da recomendação acima.
Considerações Finais a critério do CEP:

Este parecer foi elaborado baseado nos documentos abaixo relacionados:


Tipo Documento Arquivo Postagem Autor Situação
Informações Básicas PB_INFORMAÇÕES_BÁSICAS_DO_P 12/02/2020 Aceito
do Projeto ROJETO_1487327.pdf 22:16:58
Cronograma Cronograma.pdf 12/02/2020 PAMELA PARIS Aceito
22:16:16 AVILA
Cronograma Cronograma.docx 12/02/2020 PAMELA PARIS Aceito
22:14:16 AVILA
TCLE / Termos de tcle_revisado.pdf 12/02/2020 PAMELA PARIS Aceito
Assentimento / 22:13:50 AVILA
Justificativa de
Ausência
TCLE / Termos de tcle_revisado.docx 12/02/2020 PAMELA PARIS Aceito
Assentimento / 22:13:41 AVILA
Justificativa de
Ausência
Folha de Rosto folhaDeRosto.pdf 10/12/2019 PAMELA PARIS Aceito
23:10:03 AVILA
Declaração de cartaapresentacao.pdf 10/12/2019 PAMELA PARIS Aceito
Pesquisadores 22:51:11 AVILA
Outros autorizacao_img_voz.docx 10/12/2019 PAMELA PARIS Aceito
19:36:04 AVILA
Outros curriculo.docx 10/12/2019 PAMELA PARIS Aceito
19:35:36 AVILA
Projeto Detalhado / pesquisa.docx 10/12/2019 PAMELA PARIS Aceito
Brochura 19:35:12 AVILA
Investigador
TCLE / Termos de tcle.docx 10/12/2019 PAMELA PARIS Aceito
Assentimento / 19:28:44 AVILA
Justificativa de
Ausência

Situação do Parecer:
Aprovado
Necessita Apreciação da CONEP:
Não

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E CIÊNCIAS HUMANAS DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO
RIO DE JANEIRO
Continuação do Parecer: 3.973.862

RIO DE JANEIRO, 15 de Abril de 2020

Assinado por:
ERIMALDO MATIAS NICACIO
(Coordenador(a))

Endereço: Av Pasteur, 250-Praia Vermelha, prédio CFCH, 3º andar, sala 30


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