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Domingo do Fósforo

Autor não identificado.


1971
Acervo MAM Rio
Ana Chaves

Mãos à obra:
A construção da imagem do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no
pós-incêndio de 1978

RIO DE JANEIRO
2019
Ana Chaves

Mãos à obra:
A construção da imagem do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no
pós-incêndio de 1978

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPGAV-
EBA/UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do título de Doutora em Artes Visuais com
ênfase em História e Crítica da Arte.

Orientadora Profª Drª Maria Luisa Luz Távora

RIO DE JANEIRO
2019
Ana Chaves
À Olga Chaves.
AGRADECIMENTOS

Ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da


Universidade Federal do Rio de Janeiro - PPGAV-EBA/UFRJ e à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, pela concessão da bolsa integral
para realização do Doutorado.

À minha orientadora Profa. Dra. Maria Luisa Luz Távora pelo aceite da pesquisa, pela
confiança nas escolhas do meu percurso investigativo e pelas constantes reuniões de
orientação que sequer notávamos o tempo passar. Foi um privilégio conviver com tanta
sabedoria de vida e de profissão docente.

À disciplina Seminários de Andamento de Pesquisa I, II, III, espaço dedicado ao debate,


em que alunas e alunos, professoras e professores colaboraram mutuamente para o
amadurecimento dos objetos de pesquisa. Agradeço aos professores que orientaram
estas conversas: Profa. Dra. Cybele Vidal que ao ler meu projeto lançou a única,
significativa e reverberante pergunta: “Ana, onde estão as imagens do seu trabalho?”
Esta pergunta me acompanhou todo o Doutorado e, não por acaso, concluo esta tese
com um capítulo totalmente dedicado às imagens; Profa. Dra. Marize Malta que
colaborou para o recorte temporal da pesquisa e para as mudanças no modo como
percebo as obras de arte nos lugares e ao Prof. Dr. Ivair Reinaldim, que não somente
contribuiu para o andamento da pesquisa, mas aceitou compor a Banca de Qualificação
e Defesa da Tese. Agradeço, especialmente, a oportunidade do trabalho conjunto na
organização do Indisciplinas: arte frente ao urgente no 4o Encontro de Pesquisadores
dos Programas de Pós-Graduação em Artes Visuais do Estado do Rio de Janeiro.

Às aulas da Profa. Dra. Patricia Correa que fomentaram e reafirmaram meu campo
teórico e ao aceite em compor a banca de defesa da tese. À Profa. Dra. Sonia Gomes
Pereira presente e atenciosa às apresentações da pesquisa nos seminários internos e
externos.

À Profa. Dra. Maria Angélica Melendi e ao Prof. Dr. Luiz Claudio da Costa pelo aceite
em compor a Banca de Defesa. E à Profa. Dra. Viviane Matesco e Profa. Dra. Ana
Maria Tavares Cavalcanti pelo aceite da Suplência.

Ao Programa de Pós-Graduação de História Social da Cultura da Universidade Católica


do Rio de Janeiro (PUC-RJ) pelo aceite como aluna especial ao longo de 1 ano,
especialmente ao Prof. Dr. Sérgio Hamilton Barra e a Profa. Dra. Flávia Maria Schlee
Eyler.

Às amigas e amigos que conquistei nesse percurso, cujas trocas dentro e fora da
universidade animaram as ideias e a vontade de seguir a diante: Thiago Ferreira,
Mariana Estellita, Iaci D’Assunção, Márcia Valéria, Patrícia Pedrosa, Luana Manhães e
Iriê Salomão.
Ao Núcleo de Experimental de Educação e Arte do MAM Rio (2010-2013),
representado pelos coordenadores, Jessica Gogan e Luiz Guilherme Vergara e equipe,
pela oportunidade de conviver com a história do MAM Rio e, dessa partilha, nascer a
ideia do objeto de pesquisa. Agradeço à equipe da Pesquisa e Documentação: Elizabeth
Catoia Varela, Verônica de Sá Ferreira, Flávio Augusto, Cláudio Barbosa e,
especialmente, à Aline Siqueira que atendeu e colaborou prontamente para as constantes
idas e solicitações dos arquivos. À equipe de Museologia: Claudia Calaça, Veronica
Cavalcante, Cátia Louredo, que sempre estiveram solícitas às dúvidas e questões
apresentadas sobre o acervo museológico.

À minha família do coração, amizades fortalecedoras, de Mara Pereira, Taisa Moreno,


Gleyce Kelly Heitor, Daniela Mattos, Anna Thereza, Maira Dias e Andreza Bittencourt.

A Leonardo Stefano que caminhou comigo até o momento de “preparar o salto”.

Aos meus pais, em memória, que dedicaram parte de suas vidas à minha formação
física, emocional e intelectual.

E um agradecimento especial às minhas irmãs, amor maior, Ana Claudia Chaves Mello
e Karla Chaves Mello, pelo apoio, pela amizade, incentivo, estímulo, ajuda material,
emocional e compreensão nos momentos de concentração para que este trabalho
pudesse ser finalmente concluído.
“Há uma pequena porta de saída da modernidade que obriga o
visitante a passar pelos fundos da casa. Nesse trajeto algumas
pessoas entram em estado de remorso profundo e morrem, ali
mesmo, antes que a porta se abra. Suas almas, no entanto,
atravessam a porta com enormes cartazes de pedido de socorro.
Ninguém sabe o que fazer com eles.

Outras passam tão rápido que não se dão conta de que


atravessaram uma porta que alguém por pura distração deixou
aberta.

Ainda mais afobadas são as que evitam o corredor saem pela


janela e caem no fim da história.”

[Telegrama de Laura Erber enviado ao “Senhor MAM”, 2012.


Acervo MAM Rio]
RESUMO

Chaves, Ana. Mãos à obra: A construção da imagem do Museu de Arte Moderna do


Rio de Janeiro no pós-incêndio de 1978. Tese (Doutorado em História e Crítica de
Arte) PPGAV-EBA, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2019.

“Mãos à obra” é uma coleção de narrativas, visuais e textuais, formada com base no estudo
dos acervos documentais do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. A partir do
incêndio de 1978, esta tese buscou pôr em relação a produção de uma ‘vontade construtiva’,
por meio da formação do Museu, do acervo, dos artistas e do público e um modo de se fazer
história sob a égide de uma política da memória. Sustentamos que o fortalecimento do
MAM RJ como um espaço de vanguarda artística se mostrou contraditório com o
afastamento das práticas artísticas experimentais dos processos de reconstrução, porém
estratégico para a sobrevivência da imagem do Museu na história e crítica da arte brasileira.

Palavras-chave: coleção; museu de arte moderna; imagem; política da memória; história da


arte
ABSTRACT

Chaves, Ana. Dig in: The construction of the image of the Museum of Modern Art in
Rio de Janeiro in the post-fire of 1978. Thesis (Doctorate in History and Art Criticism)
PPGAV-EBA, Federal University of Rio de Janeiro, 2019.

“Dig in” is a visual and textual collection of narratives, based on the research of documents
from Modern Art Museum of Rio de Janeiro archive. Since the fire of 1978, this thesis
sought to relate the production of a 'constructive will', through the formation of the
Museum, the collection, artists and the public and a way of making history under the aegis
of a policy of memory. As we sustain, the strengthening of MAM RJ as a space of artistic
vanguard proved to be contradictory, as distant as the experimental art practices were from
the museum reconstruction process, nevertheless it was strategic for the survival of the
Museum's image in the Brazilian art history and critique.

Keywords: collection; modern art museum; image; politics of memory; art history
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 14

1 A IMAGEM COMO ATO ....................................................................................... 34

2 “AS RAZÕES DE SER DO MUSEU” ................................................................... 132

2.1 “terra-a-terra” ...................................................................................................... 141

2.2 A “índole” brasileira em exposição...................................................................... 150

2.3 O Museu de Arte Moderna e a sua missão pedagógica ......................................... 166

2.4 Construção de uma iconografia da ordem e do progresso ..................................... 176

2.5 “Não fui eu que botei fogo no museu” ................................................................. 203

3 A MEMÓRIA É CONSTRUÍDA ........................................................................... 219

3.1 Arquivo vivo ....................................................................................................... 225

3.2 Queima de arquivo .............................................................................................. 239

3.3 Arquivo morto..................................................................................................... 254

3.4 Reconstrução com reformulação? ........................................................................ 266

3.5 Um outro MAM ................................................................................................. 280

CONSIDERAÇÕES FINAIS OU QUAL É A FÁBULA QUE NOS INTERESSA? .. 292

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 299


INTRODUÇÃO

O emprego da expressão “mãos à obra” possui muitos sentidos. De um modo geral, é


utilizada para dar início a um trabalho que pode se dar no âmbito coletivo ou individual e que
exige empenho e esforço com a finalidade de se construir um produto. No que tange à
experiência concreta, “mãos à obra” está intimamente ligada ao trabalho manual, à
manufatura e à produção industrial. Não por acaso, ao pesquisarmos o significado da
expressão, a variação “mão de obra” vem associada e se define tanto à prestação de serviço
quanto aos abusos deste uso, por exemplo, à sua exploração. Nesse ponto, a expressão “mãos
à obra” esteve sempre a serviço dos processos de modernização, afinal é com base na força de
trabalho que estão associadas as ideias de desenvolvimento e progresso, de uma busca
contínua pelo novo, mas também pelo desenraizamento dos corpos, das tradições, dos objetos
e das relações. Nas palavras de Jonathan Crary (2012, p. 19): “a modernização torna-se uma
incessante e autoperpetuante criação de novas necessidades, novas maneiras de consumo e
novos modos de produzir.”
Na condição de ofício, o termo “obra” se vincula à técnica e, neste sentido, mais do
que seu emprego no senso comum, o par obra/técnica concorreu a uma práxis cultural, uma
vontade de se construir mobilizada pela ação do fazer interposta a um conjunto de condições
sociais e econômicas de uma dada realidade material. Parte dessa cultura material, isto é, parte
do destino dado à produção de objetos, é composta por obras de arte que, no contexto entre
guerras, por exemplo, foram criadas em consonância com projetos urbanísticos
compromissados com o mundo político e estético. Nesse âmbito, enquadra-se o movimento
construtivista russo e, em parte, as vanguardas artísticas europeias, que além do programa
arquitetônico, conjugaram o design e a produção artística abstrato-geométrica como
postulados estéticos aplicados à esfera social, tendo o meio industrial como referente.
No contexto brasileiro, como nação dependente, a ação de construir se constituiu como
algo profundo e complexo e precedeu a absorção de alguns postulados do movimento
construtivo europeu na produção artística nacional. O desenvolvimento de diferentes
metodologias de trabalho, portanto de diferentes modos de se construir um objeto ou uma
obra (de arte ou de arquitetura), constituíram uma historiografia de colonizações, explorações,
apropriações, ocupações, reproduções, invenções e criações em que a reconhecida “vontade

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construtiva” mostrou-se dominante e determinante para construção de uma narrativa histórica
da arte brasileira contornada pelo eixo hegemônico Rio-São Paulo.
Para Frederico Morais (1978, p. 13), o fato de não haver uma “cultura definida como a
europeia”, a assimilação das teorias de Le Corbusier, da pedagogia da Bauhaus, da vanguarda
russa e do concretismo de Max Bill, mostrou-se inevitável para formação desta “vontade” na
produção artística e arquitetônica brasileira na década de 1950. Em outra perspectiva, a
formação do Brasil como território colonizado se constituiu como um “lugar de produção”,
como menciona Francisco de Oliveira (1997); portanto, não foi uma absorção inevitável, mas
as condições periféricas que aqui se encontravam, somadas a uma vontade de instituir um
projeto de modernidade, foram convenientes para a importação de modelos políticos,
econômicos, culturais e artísticos.
No auge da Abstração Geométrica no Brasil (concretismo paulistano, carioca e o
movimento neoconcreto), procurou-se demarcar um posicionamento intelectual, político e
estético diante da vasta produção de obras de arte figurativas, de temática nacionalista,
levando em consideração as premissas de cada grupo e contexto. Com o devido
distanciamento, foi possível perceber na historiografia da arte brasileira uma assimilação das
tendências construtivas, das conquistas plásticas do movimento concreto e neoconcreto a
partir da década de 1970 em diálogo com a apropriação das linguagens gráficas de diferentes
etnias indígenas. A exemplo disso, identificamos no livro publicado junto à exposição
América Latina: Geometria Sensível (1978), organizada por Roberto Pontual no MAM RJ,
uma página dupla com a imagem de um “Metaesquema”, de Hélio Oiticica, ao lado de um
grafismo indígena do Alto Xingu, em que é possível perceber em ambas as imagens
modulações geométricas – e apenas isso.
Nessa mesma publicação, o texto Brasil: as possíveis geometrias, de Pontual, aponta
tentativas de mapear uma “disposição construtiva” na história da arte brasileira, localizando-a
na Semana de Arte Moderna de 1922, especialmente em algumas pesquisas de orientação
cubista de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Vicente do Rego Monteiro. O crítico de arte
orienta sua análise considerando que, em virtude do contexto social e político da primeira fase
do modernismo, houve necessidade de se produzir uma iconografia calcada nas “pressões do
real imediato”, sobrando assim, “pouco espaço para só construir”, inclusive da arte “falar de si
própria, de fazer-se dela mesma” e justifica este longo distanciamento com a produção
artística de Cândido Portinari, cuja influência predominava nos meios sociais, políticos e
artísticos como referência estética de arte moderna. A referência à Semana de 1922 e à

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antropofagia de Oswald de Andrade foi colocada anteriormente por Hélio Oiticica ao
enumerar os movimentos artísticos no Brasil investidos em uma “vontade construtiva” no
catálogo da exposição Nova Objetividade (1967). No texto, o artista reforça a expressão com
o termo ''geral'' considerando o presente histórico de algumas visualidades, da arquitetura
moderna, dos movimentos concreto e neoconcreto e da busca contínua, desde a pauta
modernista, de uma procura por “características nossas”. O artista idealiza uma
“superantropofagia”, considerando uma abolição completa de um “colonialismo cultural”,
mesmo que se reconheça sua contínua entrada e influência na produção artística. Desse modo,
sugere uma objetividade geral no trabalho criador, mesmo que por “métodos anticulturais”,
que se oriente por uma consciência, sobretudo histórica.
Ainda nesta publicação, Frederico Morais (1978) examina que os esforços, políticos e
artísticos, empregados ao longo da história para a construção de um projeto de nacionalidade
absorverá, em diferentes momentos, operações construtivas ideais – figurativas e abstratas –
para formulação de uma nova conjuntura social pautada por diferentes (e convenientes) vieses
da arte moderna. E seus respectivos programas permearam não só a produção artística e
arquitetônica, mas políticas institucionais, que, para ambos os críticos de arte, anteciparam
definitivamente a marca de uma modernidade no país.
Para esta introdução, selecionamos a produção discursiva dos críticos de arte Frederico
Morais e Roberto Pontual contidas na proposta conceitual da exposição América Latina:
Geometria Sensível, que praticamente desapareceu no incêndio de 1978 junto à parte do
acervo, pois além de atuarem como coordenadores do departamento pedagógico e de artes
plásticas, respectivamente, construíram diferentes posicionamentos quanto à política
institucional do MAM RJ na década de 1970 e a permanência de uma vontade construtiva
e/ou de um estado experimental.
Após o incêndio que devastou praticamente todo o Salão de Exposições do Museu,
Pontual publicou um artigo no Jornal do Brasil chamado MAM. Mãos à obra. Parte desse
título nomeia esta pesquisa que se aventura em narrar, por meio de imagens fotográficas e
narrativas textuais, a reconstrução da imagem do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
Para tanto, acessamos os arquivos do próprio Museu que contém uma série de dossiês sobre o
incêndio, o que automaticamente nos colocou em contato com os processos de criação e
construção da sede oficial do MAM RJ, além de outros períodos históricos que vieram à tona
por ser tratar de um momento de revisão dos próprios sentidos de um museu de arte moderna

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na cidade do Rio de Janeiro. Portanto, abordamos ao mesmo tempo a construção e
reconstrução material do Museu e da imagem do MAM RJ.
Constatamos nos arquivos que, a partir do incêndio, vinculou-se a ideia de que 90% do
acervo foi perdido e o Museu, considerado vazio, carecia de esforços nacionais e
internacionais para a sua reformulação e ocupação. Contudo, ao verificarmos o arquivo
fotográfico, outra situação nos foi apresentada: havia um acervo desconhecido, uma parte, de
fato, desaparecida e outra parte sobrevivente.
Sheila Leirner (1982, p. 55) à época do incêndio, ao colocar em questão o quanto a
crítica de arte se desestabiliza com a perda definitiva de uma obra de arte, escreve: “não
obstante, como explicar o sentimento de dor e perda que nos invade ao saber da destruição
real dos valores por nós tão contestados?” Com o desaparecimento de uma obra, de uma
coleção, de um acervo, o museu também não estaria fadado ao desaparecimento? E diante de
um acervo sobrevivente? O que fazer com uma produção material deformada,
descaracterizada de sua aparência inicial? O que fazer com as imagens das obras
desaparecidas?
No artigo, Pontual (2013, p. 464) compara a experiência do incêndio ao processo de
criação do artista, considerando que ambos os fenômenos participam de um “dado de
purgação, de purificação: passagem de um estado de desordem e impureza [...] a outro de
união e equilíbrio”. Favorável à reconstrução a partir de novos parâmetros com o objetivo de
“repensar todo – absolutamente todo – o Museu”, convoca a população “a pôr mãos à obra” e
a “degluti-la, em memória”, considerando “o passado como aprendizado, o futuro como
redenção.”
Sua narrativa descreve algumas impressões sobre a primeira assembleia geral ocorrida
uma semana após o incidente nos pilotis do Museu, em que uma grande mobilização a favor
da reconstrução reuniu mais de três mil pessoas, dentre artistas, estudantes, intelectuais,
representantes de instituições culturais e o público em geral. O artista, menciona a
performance do Grupo Teatro Ur-Gente, formado por alunas e alunos da Escola de Artes
Visuais do Parque Lage, que homenageou a obra O Peixe, de Joaquín Torres Garcia,
desaparecida no incêndio. Um “gesto antropofágico” culminou na retirada do interior de um
boneco, na altura de seu ventre, laranjas, bananas e sacos de leite que consumidos pelos
jovens atores, geraram metáforas lidas pela imprensa como “nem só de pão vive o homem,
mas de arte e cultura.”1 Diante dessa experiência, Pontual cita as comemorações do

1
Três mil pessoas na reunião do MAM. A Notícia: Rio de Janeiro, 17 jul 1978. Acervo MAM Rio.
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cinquentenário do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade (1928), e os dez anos do
lançamento do álbum Tropicália (1968), de Caetano Veloso, que deu origem ao movimento
no final da década de 1960.
Na sua perspectiva, certamente amparada pela comoção pública gerada pelo incêndio,
a reconstrução do MAM RJ deveria ser planejada a partir da expectativa de “todo um povo”,
isto é, construir um amplo debate, convertido numa espécie de ‘eu’ nacional, mobilizando a
população a participar dos processos de reconstrução do Museu. Ao reconhecer na tragédia a
oportunidade de purificação e renovação, imprime em seu texto um “modus vivendi”
antropofágico para pensar não só a reformulação física do MAM RJ, mas dos seus próprios
estatutos. O pensamento oswaldiano se torna uma justificativa da ação do fogo, ao considerar
o momento uma oportunidade de reformular o Museu sob outros parâmetros. Percebe-se, nas
palavras de Pontual, a intenção de posicionar a reconstrução do MAM RJ a uma esfera
pública e, sobretudo, coletiva no sentido de creditar à experiência do rito um caráter não
somente transformador, mas “purificador” daquilo outrora consumido: “não mais pelo fogo; e
sim com a luz, a prática da cultura e da arte entre nós.”2 Ou seja, a utopia modernista se
renovava àquele momento: no final da década de 1970.
Se o Manifesto Antropofágico reconheceu um mal-estar gerado por insatisfações de
uma República Velha, de uma economia agroexportadora, de uma “elite vegetal”, a sua
atualização colocada por Pontual, no ano do seu cinquentenário, correlaciona-se ao contexto
do incêndio na medida em que o envelhecimento do Museu e de sua política institucional
revelam incômodo similar, sobretudo se formos analisar a sua política interna durante os anos
que precederam o incêndio. Ao final do seu artigo, o crítico de arte, contraditoriamente,
condena seu isolamento e reconhece a necessidade de revisar seus estatutos, dinamizar suas
ações, além de modernizar e recuperar os arquivos e o acervo, “sem dar tanto valor de fetiche
à obra de arte”. Propõe ainda uma atualização do Museu, nas “circunstâncias de hoje, nesta
cidade, neste país”, além de provocar um questionamento sobre que condições “físicas e
espirituais”, o “trabalho de inteligência” e criação coletiva para a reconstrução do Museu se
desenvolverá se não considerar “um povo que somos nós, brasileiros, neste momento.”3
Sabemos, no entanto, que a reconstrução do Museu não resultaria de um ato
mobilizado por uma vontade geral, da crítica de arte, da classe artística, do povo, mas de um
seleto grupo de pessoas, dentre fundadores, gestores e colecionadores, interessados nas
circunstâncias em que o próprio MAM RJ, supostamente vazio, oferecia àquele momento.
2
PONTUAL, 2013, p. 466.
3
Idem.
18
Perguntamo-nos: não haveria nas afirmações de Pontual uma contradição sobre o
sentido de se reconstruir um museu, especialmente de arte moderna reconhecendo seu
envelhecimento? Mesmo que se tenha constatado a defasagem dos estatutos, da
administração, das suas próprias diretrizes trinta anos depois da sua fundação, outras questões
são colocadas quando as palavras ‘envelhecimento’ e ‘arte moderna’ são associadas. Ao
trazermos a pauta dos manifestos das vanguardas históricas, encontraremos a condenação do
‘velho’, logo de um passado para instituição do novo, apontando para um ideal de futuro.
De que modo um museu de arte moderna envelhece, se uma de suas atribuições
fundamentais é não se deixar envelhecer? Mas há na definição tradicional de museu de arte a
missão de salvaguarda, conservação e preservação das fontes de uma narrativa histórica. Se
envelhecer estiver associado à passagem do tempo sobre as coisas, cuja própria materialidade
inevitavelmente se altera, então, de fato, museus de arte moderna podem envelhecer. Mas,
nesse caso, o uso do termo está atribuído à ideia de ultrapassado, pois, nas projeções
realizadas para o MAM RJ, as palavras ‘vivo’ e ‘novo’ eram argumentos centrais dos
discursos oficiais de fundação, construção e, não por acaso, retornam nos processos de
reconstrução.
Na década de 1980, Arthur Danto (2006, p. 14), em contato com o Museu de Arte
Moderna de Nova York, problematiza a finalidade desse espaço enquanto lugar que absorve
uma produção artística que estava sendo realizada no seu tempo, considerada ainda moderna,
e aquela que, em alguns anos, começaria a ser nomeada de contemporânea, mesmo que os
“imperativos estilísticos do modernismo” continuassem a ser seguidos. Ao traçar uma
distinção entre o moderno e contemporâneo, Danto questiona os objetivos do museu de arte
moderna e as escolhas estilísticas ou temporais acerca dessas diferenças. Nas suas palavras:
“[...] o Museu de Arte Moderna deve decidir se pretende adquirir arte contemporânea que não
seja moderna, e assim se tornar um museu de arte moderna no sentido estritamente temporal”,
ou se representará um “acervo exclusivo de arte estilisticamente moderna, cuja produção se
tornou rarefeita até o ponto, talvez, de uma escassez, deixando de ser representativa do mundo
contemporâneo”.
Ao verificarmos esses perfis anunciados por Danto na história do MAM RJ,
identificaremos os dois sentidos: temporal e estilístico, sobretudo diante das anotações iniciais
de Mário Barata sobre os propósitos do Museu quanto às conquistas “seguras” do
modernismo e a adesão à produção artística do seu próprio tempo. Há nas diretrizes iniciais
do programa institucional do Museu uma aposta na manutenção de uma continuidade

19
histórica da arte moderna, embora afirme continuamente seu interesse pela produção
contemporânea.
Ao retomarmos a opção pela alegoria oswaldiana de Pontual sobre o incêndio, outro
ponto nos remete ao que o historiador Luiz Costa Lima (1991, p. 32), em Antropofagia e
Controle do Imaginário, coloca sobre a “ruptura e a descontinuidade” configurarem ao
mesmo tempo interpretações possíveis para uma “exigência histórica”. Para o autor, mesmo
contrária a ideia de continuidade histórica, a metáfora oswaldiana não recusa “o acervo
ocidental”. O argumento antropofágico simboliza o consumo e a deglutição “do que não é
nosso”, metamorfoseando-o em um sentido próprio, apostando nessa ação a formulação de
uma autonomia brasileira diante das creditações externas. Posto isso, Costa Lima indaga até
que ponto a descontinuidade foi, de fato, elaborada no Manifesto, sendo a ação devoradora
evocada por aquilo que justamente expressa sua atração: nos valores ocidentais, na afirmação
dos sincretismos, na “transformação permanente do Tabu em totem.”
Ao considerar que o Manifesto produziu uma ruptura, porém restrita, do processo de
assimilação cultural centrado na Europa, Costa Lima problematiza seus limites ao atualizar os
imperativos de Oswald à fundação de certo valores que fomentaram as catástrofes históricas,
como o regime nazista na Europa e ditatorial na América Latina, ocorridas na primeira e
segunda metade do século XX. Como imaginar devorações, deglutições, destruições em meio
aos apagamentos compulsórios ocorridos ao longo de todo o século XX? Como imaginar um
“estado de purificação” após um longo período (e que ainda perdurava) de uma ditadura
violenta e coercitiva?
O século XX foi considerado a “era dos extremos”4, dos avanços tecnológicos, das
grandes guerras, dos genocídios, do fluxo contínuo de destruições em massa. Na América
Latina, especificamente no Brasil, houve violência institucional, permeada por projetos
políticos autoritários que foram todo o tempo contornados por processos de reforma. O
empenho para as reconstruções foi constante e, em muitos casos, colocadas como símbolos do
“espírito moderno”, produziram no processo de construção da memória muitos apagamentos e
esquecimentos. Posto isso, é forçoso refletir sobre o modo como a manutenção de
determinados discursos históricos abrandou qualquer crítica sobre a própria conjuntura, ou

4
“A destruição do passado — ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das
gerações passadas — é um dos fenômenos mais característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos
os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado
público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que outros esquecem,
tomam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milénio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm
de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores.” (HOBSBAWM, 1995, p. 13.)
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melhor, ressignificaram, a seu modo, uma tradição modernista junto a um projeto de
reconstrução do MAM RJ recorrentemente mediado pelos anúncios antropofágicos de
redenção e renovação.
Ao acentuarmos a relação do pensamento de Pontual aos processos de reconstrução do
MAM RJ e da construção, ou melhor, do consumo de uma prática histórica da arte, podemos
compreender que a experiência do incêndio pode ser analisada sob o viés de uma
aproximação crítica à alegoria modernista oswaldiana, utilizada pelo crítico de arte diante das
razões construtivas – estéticas, arquitetônicas e políticas – do MAM RJ, situada em dois
momentos distintos, porém relacionais: na construção e reconstrução da sede definitiva do
Museu, entre o fim das décadas de 1950 e 1970 no Aterro do Flamengo, mais especificamente
entre os anos de 1958 e 1978.
Diante isso, é forçoso pensar que somado o ano de fundação, 1948, os trinta anos que
marcaram os diferentes nascimentos do MAM RJ até a sua “morte” no incêndio, e aqui leia-se
o fim de uma narrativa, pontuaram diferentes absorções de uma estética modernista, em que a
própria história do Museu acompanhou o modo como uma história da arte moderna aqui, na
cidade do Rio de Janeiro, foi formulada e oficializada. Coube-nos analisar de que modo essa
mesma história se encerra (ou não) nos processos de reconstrução do Museu e quais resíduos
ou escombros de uma tradição da arte moderna são encontrados ou notados na construção da
sua imagem pós-incêndio, considerando o acervo que resta.
Que história da arte moderna foi reconstruída pelo MAM RJ após o incêndio?
Pergunta que nos conduz a outra problematização: que modelo de museu de arte moderna foi
reconstruído? O que nos leva a uma terceira questão: que produção discursiva sobre a arte
moderna se optou por consumir à época de sua construção?
Frederico Morais (1978, p. 25) reconhecerá que, embora os aspectos formais do
movimento construtivo europeu ganharam mais acento na produção artística brasileira,
localizou-se no fazer artístico “uma presença política ou o desejo utópico de renovar e
transformar a sociedade.” Para a pesquisa, essa ênfase não se aplica apenas à participação dos
artistas, sobretudo aos representantes do movimento concreto e neoconcreto, mas pela via
institucional, pela formação discursiva da criação de um museu que ocupou e foi ocupado por
diferentes interesses.
As ideologias positivistas que permeavam a fase em que Juscelino Kubitschek esteve à
frente da presidência do país e do conselho do MAM RJ mobilizavam a ambição de
transformar definitivamente a imagem do Brasil, essencialmente agroexportador, em uma

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nova realidade operada por ideais desenvolvimentistas, cujo Plano de Metas do Governo
previa a consolidação da indústria e a construção de Brasília que, em alguma medida,
colocava-se em consonância à própria instituição do MAM RJ. 5 A partir do consumo de uma
historiografia da arte moderna, que produziu diferentes formas de modernismo absorvidas
pelo Museu, vemos a formulação de um modus operandi ajustado à imagem de um programa
político de estabilidade econômica e política nacional.
Na apresentação da reedição do Projeto Construtivo Brasileiro na Arte em 2015, Ivo
Mesquita (2005, p. 5), ao apontar que “a experiência com a abstração geométrica torna-se um
dos paradigmas para articular diferentes produções nas margens da Modernidade”, reitera um
caminho discursivo corrente sobre a formulação de uma arte concreta e neoconcreta ter
baseado a formação de um pensamento contemporâneo e, supostamente, emancipatório da
produção artística no Brasil. Ao complementar a afirmação, enfatiza a importância desses
movimentos no reconhecimento da “arte brasileira como uma linha relativamente
independente dos modelos internacionais e capaz de lograr sua originalidade diante deles.”
Esta “linha relativamente independente” da qual se reserva fortalece a constatação de que há
na historiografia da arte no Brasil uma ausência de análise crítica dos contextos institucionais
em que algumas tendências artísticas se desenvolveram e circunscreveram uma narrativa. Pois
se houve na arte moderna brasileira esse movimento de emancipação, o mesmo não ocorreu
com as instituições das quais a representavam. Pelo contrário, verificaremos na formação do
programa institucional do MAM RJ dependências políticas e econômicas a outras instituições
internacionais.
A ideia para a exposição foi em decorrência do ensaio sobre o neoconcretismo de
Ronaldo Brito e o interesse do MAM RJ pela proposta, cuja participação da Comissão
Cultural do Museu adensou o projeto, ampliando-o para uma retrospectiva. Vale lembrar que,
em 1974, foi criada a Comissão de Planejamento Cultural do MAM RJ. Formada pelos
críticos de arte Olívio Tavares Araújo, Roberto Pontual e Ronaldo Brito, pelos artistas Sérgio
Camargo e Carlos Vergara e por José Carlos Avellar, Karl Heinz Bergmiller e Sidney Miller
responsáveis pela Cinemateca, Instituto de Desenho Industrial e Sala Corpo e Som,
respectivamente. Mesmo em meio às disputas e contradições, o grupo esteve durante quatro

5
“Chegaremos lá com força e boa vontade, e somando as parcelas de cada contribuição para essa...meta
(Desculpe, Presidente). Quem sabe se neste momento não estamos completando uma dessas parcelas?”
Discurso de Niomar Moniz Sodré na cerimônia em sua homenagem realizada pela Associação Comercial do Rio
de Janeiro na “presença do Presidente Jucelino Kubitschek, Ministros do Estado, altas patentes militares,
membros do Poder Judiciário, Corpo Diplomático, jornalistas e personalidades do mundo político, social e
industrial.” Boletim MAM, 1958. Acervo MAM Rio.
22
anos à frente da programação do Museu e, consequentemente, das orientações de sua política
cultural.6
Em depoimento para esta pesquisa, o crítico de arte Ronaldo Brito e o artista Carlos
Vergara divergiram opiniões quanto ao viés conceitual do programa institucional do MAM RJ
na década de 1970.7 Para o artista, a tentativa de unir diferentes concepções estéticas indicava
um modo de resolver as ambiguidades conceituais que se apresentavam àquele período no
Museu. Para o crítico de arte, não era uma questão de ambiguidades, mas de articulação de
interesses decorrentes da continuidade de um projeto de modernidade calcado em uma
vontade construtiva e de implementação da atividade artística experimental. Para Ronaldo
Brito, as dissensões internas não tinham tanta relevância dada a limitação e precariedade dos
espaços dedicados às artes na cidade do Rio de Janeiro, especialmente àquele período da
ditadura militar, em que os investimentos aos programas artísticos e culturais eram cada vez
mais rarefeitos.
Diante das ressonâncias causadas pelo incêndio e os questionamentos sobre como
reconstruir um museu de arte moderna na cidade do Rio de Janeiro, sob os parâmetros
construtivistas, partimos para uma análise arqueológica, a fim de revolver os aterros que
alicerçaram a fase em que a sede do MAM RJ definitivamente foi edificada na cidade.
Analisamos também alguns discursos em torno da construção do acervo com base nas
narrativas históricas da arte moderna presentes no Museu que pautaram não só a formação do
artista, como também o seu próprio afastamento após o incêndio.
A tese foi organizada em quatro partes: um capítulo de imagens, dois capítulos
textuais e a última parte destinada às considerações finais. A opção por um capítulo de
imagens veio da necessidade de estabelecer uma narrativa constituída por um conjunto
imagético selecionado ao longo de toda a pesquisa. Diferente dos tradicionais cadernos de
imagens que acompanham as histórias da arte, esta coleção tem por objetivo deflagrar o tema
da tese, que trata da construção da imagem do Museu pós-incêndio, primeiramente com
imagens identificadas nesse percurso. Para tanto, arriscamos desassociá-las da narrativa
textual a fim de inseri-las como protagonistas de todo este processo de investigação, pois o
texto foi formulado a partir do enfrentamento a elas, coletadas nos arquivos do Museu e,
também, fora dele.

6
“Estiveram em choque, ao longo da existência da Comissão, não apenas ideias concernentes à atuação do
MAM, mas também métodos de trabalho, perspectivas críticas, teorias, gostos e concepções diversas de
política cultural.” (VERGARA, 2013, p. 280.)
7
Depoimento de Ronaldo Brito e Carlos Vergara concedido à autora em 08 de novembro e 01 de novembro de
2016, respectivamente.
23
A seleção de imagens sofreu o mesmo rigor que a escolha das palavras que compõem
essa escrita e não obedecem necessariamente a uma linha cronológica, tampouco a uma
edição textual. Pretende-se aqui narrar com imagens e textos uma análise, dentre outras
possíveis interpretações, dos processos de construção da imagem do MAM RJ após as
rupturas e rompimentos provocados pela ação do fogo e das suas políticas institucionais.
A frase que nomeia o segundo capítulo “As razões de ser do Museu” foi retirada de
uma publicação referente ao período em que o Bloco Escola estava sendo inaugurado. Àquela
altura, era preciso justificar a construção da sede definitiva junto a um grande
empreendimento na cidade do Rio de Janeiro que veio a ser identificado como Parque do
Flamengo. As camadas históricas que envolvem a formação do Aterro do Flamengo nos
apontam outras conclusões sobre uma política da memória que produziu indistinções entre o
que se compreende por “resíduo”, “vestígio” e “ruína” e o quanto a reconstrução do MAM RJ
acentuou esses aspectos.
A imagem fotográfica que conclui o primeiro capítulo e inicia o segundo alude aos
esforços empregados na construção de uma estrutura que fosse capaz de desempenhar e
conformar as novas aspirações do Museu, sendo sua sede definitiva como marco dessas
mudanças. A experiência fixada pela imagem fotográfica antecipa o aço e o concreto –
arautos da arquitetura moderna – com as armações ainda em madeira. Essa experiência nos
oferece não só uma dimensão monumental ao percebermos um único trabalhador no alto da
edificação, mas também a imagem de uma vontade construtiva provocada não apenas pela
ação de se construir em si, mas a formação de qual programa estético e institucional o Museu
viria a ser delineado. Ao contrário das revisões historiográficas acerca das tendências
construtivas delimitarem seus exames aos domínios do campo artístico, percebemos que a
criação do MAM RJ demarca outras posições nesse processo histórico, não apenas com a sua
programação cultural, mas sua adequação e cumplicidade à conjuntura política nacional,
especialmente no entre décadas 1950/1960/1970/1980.
Construímos uma narrativa em que os processos de construção do MAM RJ e da sua
imagem vão correspondendo às expectativas não somente de um projeto nacional, mas local,
referente aos contínuos projetos de reforma da cidade do Rio de Janeiro. As reformas
institucionais do Museu concordavam com as reformas urbanas que buscavam modernizar a
cidade. Da formação do acervo a uma educação estética, moderna e contemporânea, veremos
que há diferentes razões, que permearam todas as três sedes do MAM RJ, para a manutenção
de uma iconografia canônica modernista em convivência com os experimentalismos que

24
ocuparão os espaços definitivos de um museu de arte moderna à beira-mar até o seu consumo
no incêndio de 1978.
A partir deste momento, uma noção de memória começa a ser formulada. Tema do
terceiro capítulo, a eleição de algumas teorias sobre memória conduz as análises sobre os
esforços em reconstruir o Museu, a sua imagem após o incêndio e a imagem do Estado
brasileiro em diferentes momentos históricos. Portanto, apresentam-se argumentos que vão
delinear uma política da memória em que os pares construção e destruição, lembrança e
apagamento, ficção e realidade, monumento e documento, condição e consciência histórica
contornaram este momento.
O conjunto de imagens nos faz refletir também sobre os processos de reconstrução do
MAM RJ pelo viés da abordagem da noção de “imagem sobrevivente”, de Georges Didi-
Huberman. O contato com essa questão desenvolvida pelo historiador da arte em suas
pesquisas nos ofereceu algumas chaves interpretativas sobre a formulação conceitual do
Museu e da sua imagem na cidade do Rio de Janeiro. E de que modo o uso, o fazer e a
convocação da memória recaem sobre os múltiplos sentidos dados à noção de museu, obra de
arte, prática artística e da própria história da arte no pós-incêndio.
Com base no acervo documental pesquisado, desenvolvemos uma análise a partir das
narrativas da imprensa, boletins e relatórios produzidos pelo MAM RJ com o objetivo de
refletir sobre diferentes momentos do Museu: fundação, formação do acervo, incêndio e
reconstrução. Procuramos através dos arquivos reconhecer algumas narrativas preservadas ou
esquecidas e, a partir destas, problematizar os processos de formação e renovação do Museu
por meio das suas três sedes: Banco Boavista, Antigo Ministério da Educação e Saúde e
Aterro do Flamengo.
Procuramos evidenciar o afastamento das práticas artísticas experimentais ocorrido ao
longo dos processos de reconstrução do MAM RJ, que se mostrou contraditório ao
fortalecimento da imagem do Museu como um espaço de vanguarda artística; uma vez que, tal
fortalecimento mostrou-se fundamental para a construção de uma noção de memória e,
portanto, de afirmação histórica do Museu.
Acentuamos um conjunto de imagens que evidenciam tipos de mortes geradas no
Museu tanto pelo fogo quanto pela ação seletiva do esquecimento, portanto, pela construção
de um determinado tipo de narrativa histórica. Uma vez desaparecidos os vestígios materiais,
o que fazer com a imagem que sobrevive? Com o incêndio, algo ameaça desaparecer, mas o
quê? Objetos cremados, incinerados, deformados, desaparecidos nos conduzem a uma

25
reflexão sobre a fronteira entre objeto de arte e imagem, história e os traumas desencadeados
pelos sentidos dados às diferentes compreensões do conceito de memória não estarem
centrados apenas na reconstrução do acervo, mas na restauração da própria imagem do Museu
de Arte Moderna na cidade do Rio de Janeiro.
A montagem, com imagens e textos, a qual nos interessa, é a que faz emergir novos
arranjos discursivos e que possam provocar uma reflexão crítica e, consequentemente, uma
abertura da narrativa histórica da arte no âmbito do Museu. O estudo da memória, portanto,
mostra-se fundamental, pois ao estar diretamente associada à gênese conceitual de um museu,
para além de um depósito de imagens referenciais de um passado, apresentaremos as
estruturas mnemônicas identificadas nas imagens como fenômenos produtores de discursos.
Esboçamos a atmosfera artística e política do período de reconstrução do MAM RJ,
realizando incursões na década de 1970, ao observar o reflexo de disputas e antagonismos que
efetivamente constituíram a atividade pedagógica e experimental nos seus espaços. Fizemos
uso do material discursivo da própria crítica de arte que esteve presente no Museu, com o
objetivo de compreender a reconstrução do projeto estético do MAM RJ pós-incêndio ocorrer
concomitantemente ao período de transição política entre o regime militar e a chamada “Nova
República”.
A afirmação “Eu acho o MAM um serviço cívico”, de M. F. do Nascimento Brito,
presidente do MAM RJ na segunda metade da década de 1980 – período definitivo para
conclusão das reformas do Museu – foi marcado por preocupações em relação ao papel que o
Museu, supostamente renovado, desempenharia na cidade do Rio de Janeiro. Alguns
questionamentos a respeito da definição do conceito de arte e da absorção da prática artística
no planejamento cultural do novo Museu serão apresentados. Analisamos mais detidamente se
houve um redimensionamento das práticas e discursos relativos à noção de moderno e
contemporâneo e os reflexos da passagem de museu “vivo” ao status de “museu de
patrimônio” – termo utilizado criticamente por Lygia Canongia – com a chegada da Coleção
Gilberto Chateaubriand e, posteriormente, com a própria formação da Coleção MAM.
A pesquisa que temos conhecimento de ter se debruçado profundamente no processo
de fundação do MAM RJ e, que nos auxiliou a compreender os anos iniciais de formação do
Museu, foi a tese Construindo a memória do futuro: uma análise da fundação do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Sabrina Marques Parracho Sant’Anna (2008).
Identificamos, posteriormente, o estudo de Maurício Parada (1993) sobre o MAM RJ e a
década de 1950, que também abordou o período inicial de formação do Museu. O recorte

26
temporal de ambas pesquisas compreendeu o final da década de 1940, da criação do Museu
até a década de 1950, período de inauguração da sede definitiva.
Os autores empreenderam uma análise do perfil dos atores que participaram da criação
e instalação do Museu nos primeiros anos de formação. Parada (1993) investiga a biografia da
primeira formação do Conselho Deliberativo, e Sant’Anna (2008) dedica um capítulo para a
análise do “Museu de Raymundo Ottoni de Castro Maya” e do “Museu de Niomar Moniz
Sodré”. Privilegiaram os arquivos do Centro de Documentação do MAM RJ, assim como
nossa pesquisa, em que é possível acessar, além dos artigos da imprensa, grande parte da
documentação produzida pelo próprio Museu: relatórios, atas, cartas, boletins, dossiês etc.
Incluímos um conjunto significativo de imagens, em sua maioria, proveniente do acervo
fotográfico do CEDOC, a fim de contribuir para o campo da história e da crítica da arte à
imagem como dispositivo central do debate.
Sob o título A fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: a elite carioca
e as imagens da modernidade no Brasil dos anos 50, Parada (1993) examina, através de uma
abordagem sociológica, o Museu como representação de um modelo cultural articulado a um
projeto de modernidade urbana, cosmopolita, americanizada em substituição aos princípios
europeus outrora utilizados para realização de reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro.
Articula três fatores que irão definir o Museu como um dos representantes de modernidade na
década de 1950: o crescimento econômico em virtude da parceria norte-americana, a
hegemonia das tendências abstracionistas e a finalidade pedagógica. Maria Cecília Lourenço
(1999) também reitera o argumento do MAM RJ adotar o modelo norte-americano,
enfatizando o interesse e apoio estratégico de alguns intelectuais aos Estados Unidos no pós-
guerra contra a legalidade do Partido Comunista.
Sant’Anna (2008), por sua vez, partirá da primeira proposição enunciada por Parada
(1993) e desenvolverá uma argumentação com base em um estudo comparativo, em que é
desconstruída a ideia de o MAM RJ afirmar-se como um modelo congênere ao MoMA Nova
York. Para a autora, a iniciativa norte-americana, representada pela figura de Nelson
Rockefeller, ao colaborar para a fundação de um Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro,
deu-se apenas no plano das relações e interesses de um projeto de internacionalização do
MoMA NY em consequência de uma política de expansão norte-americana pós-guerra na
América Latina.
Essa questão também é apontada por Parada (1993), que associa a esse processo, a
criação do MAM RJ, junto à exportação de outros signos americanos referentes ao consumo e

27
ao entretenimento como o cinema hollywoodiano, a coca cola, as produções musicais etc.
Porém, Sant’Anna (2008) constata que as expectativas quanto à vontade política para auxílio
financeiro por parte da iniciativa norte-americana não foram à frente. O que ocorreu foi que o
modelo do MoMA NY, em parte, constituiu-se como referência para a formulação do MAM
RJ no que se refere à missão educativa, à construção de uma imagem democratizante, além da
representação do moderno como a arte do seu tempo. Porém, a diferença, segundo a autora,
estaria no modo como as manifestações artísticas estariam sendo absorvidas pelos Museus. O
MoMA NY propunha colecionar obras que representassem uma recente história da arte,
formando um acervo de nomes exponenciais da arte moderna europeia e americana de base
cubista e abstracionista selecionadas por Alfred Barr. Enquanto que o MAM RJ, por razões
financeiras, foi sendo constituído à medida que a produção artística ia se desenvolvendo,
justificando no futuro a construção de um programa institucional voltado para oficialização da
modernidade e não apenas para a aquisição de obras de um passado recente. Diferentemente
do museu americano, o carioca inaugura sua coleção com a doação de uma pintura de Ives
Tanguy, artista participante do movimento surrealista, intitulado Ocean pour les orseaux.
Sant’Anna (2008) e Parada (1993) desenvolveram suas pesquisas sobre o MAM RJ a
partir da perspectiva da sociologia, da antropologia e da história. Porém, convém ressaltar
que, mesmo interessados em relacionar a fundação do Museu a um debate sobre cultura,
política e memória com ênfase à intenção civilizadora em um contexto de modernização da
cidade do Rio de Janeiro, ambos dedicaram parte de seu trabalho à orientação estética do
MAM RJ. Voltada essencialmente para os parâmetros do abstracionismo geométrico
(concretismo e neoconcretismo), transformando o MAM RJ em um espaço de formação de
público e métier de artistas, o tema do abstracionismo geométrico também foi abordado pela
tese de Elizabeth Catoia Varela (2016) ao operar uma revisão historiográfica da arte concreta
e neoconcreta, para além das referências europeias, através das produções argentina e
brasileira, tendo o MAM RJ como base desse intercâmbio.
Eleito sob a paradoxal associação à noção de vanguarda, o MAM RJ assumia para a
sua política institucional e, portanto, para os seus espaços, a prática da “liberdade de criação”,
“missão revolucionária” e “missão social” fomentada por artistas e pela crítica de arte. Com
isso, o Museu passaria de representante de uma elite burguesa à cultura de massas, pois
convicto do apoio popular se transformaria em uma “instituição da vanguarda” e não o
contrário, musealizando-a. É dentro dessa relação estabelecida com o público e a vertente
estética do MAM RJ que propomos para a segunda parte deste trabalho construir uma

28
argumentação pautada pela construção de uma vontade geral que se desdobrou em diferentes
justificativas estéticas e sociais no processo de construção e, sobretudo, reconstrução do
Museu. Nesse percurso, identificamos diversos modos de “vontade” que foram sendo
ressignificadas à medida que o Museu foi constituindo seu projeto artístico-cultural. Nessa
etapa da pesquisa, o retorno às sedes do MAM RJ foi necessário para que pudéssemos
entender as consequências geradas pelo incêndio, do ponto de vista da sua política
institucional e, consequentemente, da conceituação do seu programa estético.
Desse contexto, os estudos de Fernanda Lopes (2013) e Giselle Ruiz (2013) nos
orientaram quanto à compreensão das iniciativas artísticas experimentais que compuseram a
programação do MAM RJ no final da década de 1960 até o momento do incêndio. Através da
relação das artes visuais e o experimental, do corpo e espaço, respectivamente, as autoras
desenvolveram uma análise das manifestações artísticas ocorridas nesse período em meio à
censura e à coerção política da ditadura militar por diferentes vieses. Lopes (2013) nos
apresenta um debate sobre o pensamento da crítica de arte e a sua inserção no ambiente
artístico através da produção não só de críticos reconhecidos, como Roberto Pontual,
Frederico Moraes, Francisco Bittencourt, mas da iniciativa e do consenso de um determinado
grupo de artistas também atuante no MAM RJ. Seu estudo foi concentrado na Área
Experimental, com base na documentação do Museu em que narra com riqueza de detalhes
todo o processo de constituição da Área até a sua extinção com o incêndio de 1978.
Ruiz (1993) analisa a “vocação alternativa e cênica” do MAM RJ como um centro
gerador de experimentações não só no campo das artes visuais, mas da poesia, música, teatro
e dança aliado ao binômio arte e vida. A repercussão da Sala Corpo/Som é evidenciada pela
autora como constituição de um espaço de experimentação das linguagens artísticas e,
sobretudo, o trânsito entre elas e, muitas vezes, é colocada como fundadora de uma nova
concepção estética, como o exemplo dado sobre a criação de “uma dança contemporânea
carioca”.
A propósito das abordagens pós-incêndio, Lopes (2013) coloca em evidência os
questionamentos, as contradições entre artistas e críticos de arte sobre os rumos conceituais
do MAM RJ e do problema da escassez de espaços alternativos para dar continuidade às
experimentações na cidade do Rio de Janeiro. A breve conclusão de Ruiz (2013) sobre o
incêndio, refere-se à dimensão paradoxal do arquivo ao empreender uma tentativa de
memorializar a efemeridade da ação do corpo em movimento, fruto de diversas ações
correspondentes ao teatro e a dança desenvolvidas nos espaços do Museu.

29
Contribuíram também para os estudos sobre o MAM RJ, além dos catálogos e
publicações realizadas pelo próprio Museu, os livros Francisco Bittencourt: arte-dinamite,
organizado por Fernanda Lopes e Aristóteles A. Predebon (2016), e Roberto Pontual: obra
crítica, organizada por Isabela Pucu e Jacqueline Medeiros (2013).
Após o incêndio, havia a expectativa de se construir o teatro do MAM RJ para
continuidade da programação da Sala Corpo/Som, porém encontrava-se até aquele momento
ainda nas fundações. Sobre esse assunto, a pesquisa de Rafael Barcellos Santos (2009) nos
ofereceu uma análise instigante sobre o estado incompleto de um edifício – que se tornou
referencial da arquitetura moderna – à construção efetiva do teatro somente nos anos 2000
que, embora aprovado pelos órgãos públicos, contrariava parte do projeto original de Eduardo
Affonso Reidy.
A abordagem de Maria Cecília Lourenço (1999) sobre o incêndio explora a relação da
tragédia com a perda de grande parte do acervo, com o que resumiu como “dilapidação do
moderno consagrado”. A autora utiliza a expressão “raro testemunho” para se referir ao único
exemplar editado pelo MAM RJ sobre o seu patrimônio anterior ao incêndio e ressalta a
importância da doação de parte da Coleção Gilberto Chateaubriand a fim de amenizar “a
ferida aberta na arte brasileira”. Sobre esse ponto, encontramos na recente pesquisa
desenvolvida por Thiago Vinícius Ferreira (2018) outros argumentos quanto à entrada da
Coleção no momento em que o Museu encontrava-se, supostamente, sem acervo.
A questão que nos interessa na pesquisa de Lourenço é o momento em que aponta as
diversas modalidades de moderno que o MAM RJ irá abarcar. A autora pontua a fase do
Museu no Palácio Gustavo Capanema dedicada às retrospectivas de artistas nacionais
referenciais, como Candido Portinari, Di Cavalcanti, Oswaldo Goeldi, Cícero Dias, Alberto
da Veiga Guignard, Alfredo Volpi, José Pancetti, Lívio Abramo, como o momento de
divulgação e aproximação do público ao Museu. Embora a imagem do Museu tenha se
estabelecido pela divulgação da arte moderna brasileira já reconhecida e que, em certa
medida, diferenciava-se da primeira mostra em 1949, com apenas artistas das vanguardas
europeias, esta primeira fase do modernismo é logo suplantada pelo debate da abstração. Para
Lourenço (1999), os movimentos renovadores no âmbito do Museu ocorreram com a exibição
do Projeto Cães e Caça, de Hélio Oiticica em 1961. O que não é uma coincidência, pois a
aproximação das questões contemporâneas começou a ganhar forma no mesmo período em
que a sede definitiva do MAM RJ foi concluída com a inauguração do Bloco de Exposições
em 1967.

30
Acrescentamos ao título das Considerações Finais, a pergunta “Qual é a fábula que nos
interessa?”, em razão da reflexão crítica que a atual imagem do MAM RJ gera àqueles,
artistas, crítica de arte, historiadores da arte, marchands, que reconhecem as camadas
discursivas que formaram uma história da arte brasileira emblemática nos seus domínios.
Tomamos o termo “fábula” de empréstimo do contato com a exposição “Musa sem cabeça: a
fábula do contemporâneo”, de Laura Erber com curadoria de Luiz Camillo Osório no Museu
em 2013. Aliás, importa notar que a ‘vontade’ de pesquisar o pós-incêndio do Museu nasceu
durante os três anos (2010-2013) em que atuei como educadora-pesquisadora no Núcleo
Experimental de Educação e Arte, coordenado por Guilherme Vergara e Jessica Gogan, que
tinha como uma das premissas rememorar o programa pedagógico experimental que os
artistas e os espaços do Museu produziram e/ou abrigaram.
O projeto expográfico de Laura Erber e de Luis Camilo Osório trazia telegramas
enviados pela artista ao “Senhor MAM”, motivada pela vontade de “inventar formas
alternativas de contar a história da arte contemporânea” em um cenário historicamente
construído com base em perspectivas modernas, mas que, tradicionalmente, apresentou
importantes exposições de arte. Uma série de poesias, frases, perguntas, pequenos relatos,
dentre uma delas que compõe a epígrafe deste trabalho, formaram uma análise crítica do
espaço do museu e das histórias escritas e inscritas sobre a arte moderna e contemporânea do
tempo, do gosto, da norma, da forma, do estilo.
O conteúdo dos telegramas evidenciava alguns dilemas conceituais que cercam as
fronteiras entre o moderno e o contemporâneo na atual conformação do Museu, mas que
poderiam ser apresentados igualmente em outra instituição museológica na cidade do Rio de
Janeiro. As suas questões nos levaram a formular reflexões sobre o que vemos, o que
consumimos e que histórias da arte esperamos encontrar dentro e/ou fora do MAM RJ. Como
pesquisadores, artistas, críticos de arte, historiadores da arte, espectadores, qual é a fábula que
nos interessa?
As teses de Andreas Huyssen (2014, 2000, 1991), com base nas referências de Paul
Ricoeur (2008, 2010, 1997) sobre o conceito de política da memória e a relação entre os
conceitos lembrança, esquecimento e história presente nas pesquisas do filósofo e historiador
Paolo Rossi (2010), apoiaram o debate em torno das diferentes composições temporais –
passado, presente e futuro – e como se refletem em outras tantas formas de se pensar a
narrativa histórica no que se refere ao conceito de memória no âmbito de um museu de arte
moderna. Também fomentaram nossa investigação autores que construíram suas análises

31
sobre o campo da arte com base nas questões que envolvem as estruturas mnemônicas,
presentes não só nos espaços museológicos, mas nas obras de arte e, sobretudo, nas imagens e
nas estruturas narrativas, como Márcio Seligmann-Silva (2003), Hal Foster (2016), Susan
Buck-Morss (2018), à luz das teses de Walter Benjamin [1940]. A produção discursiva olhada
“a contrapelo” norteia uma noção de descontinuidade presente no discurso historiográfico das
últimas décadas do século XX em torno da paradoxal “potência fantasmagórica da imagem”,
que, ao estilhaçar cronologias, esquematismos estilísticos, arranjos formais e estetizantes,
põe-se a revelar a rede complexa de relações temporais que a constitui.
Ainda com Huyssen (1999), refletimos sobre o reconhecimento da memória como
nostalgia do passado, expresso nas insatisfações quanto à perpetuação do modernismo, como
único parâmetro convincente, especialmente para as políticas culturais, como estratégia para
subtrair as críticas surgidas nos anos 1960 de certas “formas de modernismo”. A questão para
o nosso trabalho é compreender como o Museu de Arte Moderna, no processo de
reconstrução, portanto de revisão conceitual, deu continuidade ou não a essas “formas”.
Aproximaremos a esse debate os limites que tais noções, relativas ao processo de
reformulação do MAM RJ, produziram um problema de representação, quando esta foi
repensada com a construção do “novo” Museu de Arte Moderna após o incêndio.
A noção de enquadramento da arte, da narrativa linear, dos cânones é confrontada com
os novos parâmetros estéticos da arte contemporânea e, portanto, utilizamos as pesquisas de
Hans Belting (2012) e Arthur Danto (2006) que discutem a crise da primazia das narrativas
mestras e o sentido de uma práxis intelectual-artística nos parâmetros da condição pós-
moderna. Não temos a intenção de associar a ideia de fim da arte ao desaparecimento das
obras, mas avaliar criticamente o que restou enquanto vestígio com o objetivo de analisar as
estratégias do MAM RJ junto aos debates sobre a continuidade das narrativas oficiais, que
ocorrem, coincidentemente, no mesmo momento em que uma concepção de museu também se
finda ou se reformula.
Além das imagens, as produções discursivas e seus agentes, que estiveram presentes
em diferentes momentos do planejamento cultural do MAM RJ, balizaram nossa pesquisa,
tais como Mário Barata, Carlos Flexa Ribeiro, Flavio de Aquino, Mario Pedrosa, Hélio
Oiticica, Roberto Pontual, Frederico Morais, Paulo Herkenhoff, Wilson Coutinho, Agnaldo
Farias, Fernando Cocchiarale, Reynaldo Roels, Luiz Camillo Osorio, Ronaldo Brito, Roberto
Conduru, Paulo Sergio Duarte, Carlos Zílio, Daisy Peccinini, Paulo Venâncio e Glória
Ferreira.

32
Por fim, cientes das primeiras lições de Gaston Bachelard (1994, 1990, 1989) sobre “o
que se conhece primeiramente do fogo é que não se deve tocá-lo”, ainda assim, resolvemos
revolvê-lo acreditando que o fogo, nesse caso, ilumina outras reflexões sobre o tema do
incêndio no MAM RJ que ainda hoje é mencionado com reservas pela própria instituição e
por aqueles que testemunharam esse episódio.

33
1 A IMAGEM COMO ATO

Revista Arte Hoje, n.4, ano 2, agosto de 1978. Fotografia de André Papi. Acervo
pessoal.

34
Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.
Acervo MAM Rio.

35
Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.
Acervo MAM Rio.

36
Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.
Acervo MAM Rio.

Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.
Acervo MAM Rio.

37
Imagens das obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de
Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Coleção Paulo
Roberto Leal. Acervo MAM Rio.

Imagens das obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de


Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Coleção Paulo
Roberto Leal. Acervo MAM Rio.
38
Imagens das obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de
Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Coleção
Paulo Roberto Leal. Acervo MAM Rio.

Imagens das obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de


Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Coleção
Paulo Roberto Leal. Acervo MAM Rio.

39
Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de
julho de 1978. Acervo MAM Rio.

40
Passarela Paulo Bittencourt. Fotografia de Marcel Gautherot, s/data. Acervo MAM Rio

41
“Morro de Santo Antônio. Tomada do Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 21 out 1920.” Fotografia de
Augusto Malta. Acervo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

42
“Panorama da localização do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no Aterro do Flamengo.”
Fotografia de Marcel Gautherot. Acervo MAM Rio, s/data.

43
“Construção do Bloco Escola do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, out. 1955.” Acervo MAM RJ.

44
“Casebres no Morro de Santo Antônio, 3 out 1914. Fotografia de Augusto Malta.” Acervo Arquivo Geral
da Cidade do Rio de Janeiro.

45
“Morro de Santo Antônio. Rio de Janeiro, 14 jun 1918. Fotografia de Augusto Malta.” Acervo Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro.

46
GUERRA, Domingos Martins. Os morros do Castelo e Santo Antônio são úteis ou
nocivos à saúde pública? Tese de Doutorado apresentado na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typographia Universal de Laemmert,
1852. Acervo Biblioteca Nacional.

47
“Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de
1978.” Acervo MAM Rio.

48
“Obras do desmonte do Morro de Santo Antônio, 1956.” Acervo MAM Rio

49
“Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960) fora do Palácio do Catete planta palmeiras nos
jardins do Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro, RJ.” Acervo Arquivo Nacional.

50
“Desmonte do Morro de Santo Antônio, 1954.” Acervo MAM Rio.

51
“Vista geral do terreno para construção, baía da Guanabara ao fundo, 1954.” Acervo MAM RJ

52
Domingos da Criação. Um domingo de papel, 24 janeiro de 1971. Acervo MAM Rio.

53
“Aspecto externo da sede provisória do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no Ministério da
Educação, 1952.” Acervo MAM Rio.

54
Domingos da Criação: Domingo terra à terra, 25 de abril de 1971. Fotografia de Raul Pedreira.
GOGAN, Jessica. MORAIS, Frederico. Domingos da Criação: uma coleta poética do
experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto MESA, 2017, p.87.

55
“Operário trabalhando nas fundações do Museu de Arte Moderna do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, jun. 1955.” Acervo MAM RJ.

56
“Colocação de lastro no subsolo do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, out. 1956.” Acervo MAM
Rio.

57
“Preparação da laje de cobertura do Bloco Escola do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nov.
1956.” Acervo MAM Rio.

58
“Galeria de circulação do Bloco Escola do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 4 nov. 1957.”
Fotografia de Aertsens Michel. Acervo MAM Rio.

59
“Os operários trabalham na iluminação sugestiva e adequada da sede provisória do
Museu no Ministério da Educação. Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

60
“Os operários trabalham ativamente para instalação da sede provisória do Museu no Ministério da
Educação. Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

61
“Aspecto geral do salão no dia do "vernissage" da exposição de Goya do Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro na Rua da Imprensa, 16A. Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

62
“Raymundo Ottoni de Castro Maya, Carmem Portinho, Niomar Moniz Sodré,
Santiago Dantas. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM
Rio.

“Raymundo Ottoni de Castro Maya, Carmem Portinho, Niomar Moniz Sodré,


Santiago Dantas e Walter Moreira Sales. Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

63
“Pessoa não reconhecida, Lourdes Rosenbourgo [?], Darcy Vargas, Jayme Maurício, Niomar Moniz
Sodré, Ramundo Ottoni de Castro Maya.” Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952. Acervo
MAM Rio.

64
“Exposição Artistas Brasileiros. [?], Lasar Segall, Niomar Moniz Sodré, [?], Darcy Vargas e Paulo
Bittencourt. Autor não identificado. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

65
“Palestra de Onofre Penteado Neto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro com obras de obras
expostas. Autor não identificado. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

66
“Exposição do Acervo e Premiados da Bienal de São Paulo. Mario Barata, Niomar Moniz Sodré, Pedro
Correa de Araújo, Candido Portinari e Di Cavalcanti. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.”
Acervo MAM Rio.

67
“Raimundo Ottoni de Castro Maya, Embaixador Negrão de Lima, Ministro João Neves da Fontoura,
Niomar Moniz Sodré e Ministro Horário Lafer com a obra Composição (1951) de Mathieu e parte da
escultura O Oitavo Véu (1949) de Maria Martins. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.”
Acervo MAM Rio.

68
“Os visitantes que em grande número acorreram ao museu no dia da inauguração, na sede provisória, e
contemplam as belas obras expostas. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM
Rio.

69
“Exposição Artistas Brasileiros. Marlene diante da obra definiu esta escultura de Maria Martins como
seca, fome, criatura magra, infinita miséria.” A escultora intitulou sua obra como Brouillard noir, 1949.
Autor não identificado. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952.” Acervo MAM Rio.

70
“Imagem de obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de Exposições do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.” Fotografia de André Papi. Acervo MAM Rio.

71
“Imagens de obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de Exposições do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.” Fotografia de André Papi. Acervo MAM Rio.

72
“Imagens de obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de Exposições do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.” Fotografia de André Papi. Acervo
MAM Rio.

73
“Bruno Giorgi junto à sua obra "Fiandeira”. O famoso escultor participará
brevemente da Bienal de Veneza.” Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, 1952. Acervo MAM Rio.

74
“Exposição Artistas Brasileiros. Oswald Goeldi, Murilo Mendes, Saudade Cortesão e Djanira conversam e
admiram as obras expostas. Museu de Arte Moderna, 1952.” Acervo MAM Rio.

75
“O Sr. Flávio de Aquino conversando com um grupo de estudantes no salão do museu.” Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, 1952. Acervo MAM Rio.

76
“Exposição Artistas Brasileiros. Sr. Marcelo Grasmann, Vera Bocaiúva e o Sr. Jayme Maurício diante de algumas
litografias de Vera, podendo se ver ao fundo os quadros “Coletora” Nº1 e Nº2 de Oswald de Andrade Filho.”
Autor não identificado. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1952. Acervo MAM Rio.

77
“Imagens de obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de Exposições do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.” Isaura de
Carvalho em pé. Serigrafia de José Tarcísio. Fotografia de José Vidal. Acervo MAM
Rio.

78
"Sinto um choque quando pego uma moldura,
olho e não vejo nada." Isaura de Carvalho.
Revista Arte Hoje, Ano 2, Nº 14, Agosto, 1978.

Livro do Patrimônio do MAM RJ, 1952. Fotografia da autora. Acervo MAM Rio.

79
“Presidente Artur da Costa e Silva (1967-1969) no Estado da Guanabara presente na
instalação solene da 22ª Reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI), MAM RJ”,
25 set 1967. Autor não identificado. Acervo MAM Rio.

80
"Vernissage da exposição do Grupo Frente, 14 jul 1955." Acervo MAM Rio.

81
"Carlos Flexa Ribeiro, Simeão Leal, Mario Pedrosa e Milton da Costa." Vernissage da exposição do
Grupo Frente, 14 jul 1955." Acervo MAM Rio.

82
“Exposição Cândido Portinari. Max Bill, Niomar Moniz Sodré e Sra. Max Bill". Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, 1953. Acervo MAM Rio.

83
“Exposição Cândido Portinari. João José da Silva Costa, Ivan Serpa, Tomás Maldonado, Décio Vieira,
Lygia Clark, Max Bill , Lygia Pape Abraham Palatnik, e Aluísio Carvão.” Autor não identificado. Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1953. Acervo MAM Rio.
84

“Exposição Candido Portinari. "[?], Carmem Portinho, Nicolás Guillén, Cândido Portinari e [?], Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1953.” Acervo MAM Rio.

85
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 27 abr 1985. Acervo MAM Rio.

86
“A Sulamérica Seguros mantém acesa a velha chama.” Tribuna da Imprensa: Rio de Janeiro, 25 jul 1978.
Acervo MAM Rio.

87
Capa do catálogo da Exposição Arte Moderno en Brasil, 1957. Acervo MAM Rio.

88
Tarsila do Amaral, Paisage (1929) y La negra (1927). Muestra Arte Moderno en Brasil, 1957. Acervo
MAM Rio.

Lasar Segall, Paisaje brasileño (1953) y Di Cavalcanti, Figura (1952). Muestra Arte Moderno en
Brasil, 1957. Acervo MAM Rio.

89
Cícero Dias, Composición, nº11 (1951) y Ivan Serpa, Ritmos en fondo negro (1953). Muestra Arte
Moderno en Brasil, 1957. Acervo MAM Rio.

Alfredo Volpi, Composición blanco e verde (1956) y Lygia Clark, Superficie Modulada, nº 20.
Muestra Arte Moderno en Brasil, 1957. Acervo MAM Rio.

90
Ausstellung brasilianischer künstler, set 1959. Acervo MAM Rio.

91
Cândido Portinari, Cangaceiro, 1958. Ausstellung brasilianischer
künstler, set 1959. Acervo MAM Rio.

92
Inaugurado ontem o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 16
jan 1952. Acervo Fundação Castro Maya.

93
Estatutos do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1949. Acervo Funarte.

94
“César Oiticica, Vicente Ibberson, Lygia Pape, Ivan Serpa, Eric Baruch, Abraham Palatnik.” Vernissage
Grupo Frente, 14 jul 1955. Acervo MAM Rio.

95
“Aluísio Carvão e a obra Construção Nº 7. Exposição do Grupo Frente, 1955.” Acervo
MAM Rio.

96
“Maria Leontina da Costa e Franz Weissmann. Exposição do Grupo Frente, 1955.” Acervo
MAM Rio.

“João José da Silva Costa e sua obra. Exposição do Grupo Frente, 1955.” Acervo MAM Rio.

97
“Domingos da Criação: O Tecido do Domingo, 28 mar 1971.” Acervo MAM Rio.

98
Domingos da Criação: Domingo do Fósforo, 1971. Acervo MAM Rio.

Domingos da Criação: Domingo do Fósforo, 1971. Acervo MAM Rio

99
“Ivan Serpa e sua obra Pintura Nº 95. Exposição do Grupo Frente, 1955.” Acervo MAM Rio.

100
“Ivan Serpa com os alunos Evilásio, Antonio Vinhaes, José, César Oiticica e Hélio Oiticica. Curso
Pintura para adultos. As aulas aconteciam no Edifício Municipal na Avenida Treze de Maio, 1954.”
Acervo MAM Rio

“Analuce Estrella pintando um quadro, vendo-se ainda outras crianças. Pintura para crianças –
Profº Ivan Serpa. As aulas aconteciam no Edifício do IPASE, 1952.” Acervo MAM Rio.
101
“Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte do Rio de Janeiro, 1978.” Acervo MAM Rio.

102
Carta de Miriam Dolinger ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
24 set 1978. Acervo MAM Rio

103
“Doação de um popular ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1978.” Acervo MAM Rio.

104
Carta de Glauco Rodrigues ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 26 maio
1981. Acervo MAM Rio.

105
"Movimento Popular e Artístico para Reconstrução do MAM RJ após o incêndio de 1978.” Acervo MAM
Rio.

106
“Niomar Moniz Sodré, [?], Mário Pedrosa, [?] após o incêndio do MAM RJ, 1978.” Acervo MAM Rio.

107
“Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Arte do Rio de Janeiro, 1978.” Acervo MAM
Rio.

108
Glauco Rodrigues, Índio verde e amarelo, série Pau Brasil, 1975, óleo sobre tela, 47,5 X
56,5 cm/ 53 X 62,2 cm. Fotografia da autora. Acervo MAM Rio.

109
Folha de contato com imagens de obras danificadas no incêndio ocorrido no Salão de
Exposições do MAM RJ, 1978. Fotografias de José Vidal. Acervo MAM Rio.

110
Folha de contato com imagens de obras danificadas no incêndio ocorrido no Salão de
Exposições do MAM RJ, 1978. Fotografias de José Vidal. Acervo MAM Rio.

111
Exposição Em Polvorosa: um panorama das três coleções do MAM Rio. Curadoria de Fernando Cocchiarale e
Fernanda Lopes, 2016. Acervo MAM Rio.

112
“Quadros para inauguração do Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro, RJ, 27 abr 1949.”
Acervo Arquivo Nacional.

“Imagem de obras danificadas pelo incêndio ocorrido no Bloco de Exposições do Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro em 08 de julho de 1978.” Acervo MAM Rio.

113
Yves Tanguy. Ocean pour les orseaux, óleo s/ tela, 38 x 46 cm, doada por Nelson Rockefeller.
Acervo IPHAN.

114
MAURÍCIO, Jayme. O Renascimento do Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro: o
maior acontecimento da vida artística da cidade. Correio da Manhã, Rio de Janeiro,
1954. Acervo Biblioteca Nacional.

115
“Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1960-1961) na Guanabara inaugura
exposição automobilística no Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro, 1961.”
Acervo Arquivo Nacional.

116
Por um MAM para a cidade do Rio de Janeiro, 22 abr 1980. Acervo MAM Rio.

117
Projeto Fênix. Marco Gastini, Sem título, 1989, pigmento, pedra, folha de palmeira e vidro sobre
madeira, 300 X 500 X 100 cm. Doação do artista. Acervo MAM Rio.

118
Joaquin Torres Garcia, Composición constructiva, 1932. [fragmento]
“Así que esta exposición es una invitación al redescubrimiento de algo que a pesar de
todo está vivo, y que en cierta manera puede ser nuestro, si podemos mirarlo.”
Exposición Tiempo de mirar Museo Torres García.

119
Farnese de Andrade, O ser memória, 1974-76, objeto em madeira, 105 x 52,5 x
39cm, Acervo MAM Rio.

120
Claudio Tozzi, Cor, pigmento, luz (1975), s/ referências. Acervo MAM
Rio.

121
Lygia Clark, Composição, 1952, óleo sobre tela, 73 x 99,5 cm. Doação da artista. Acervo MAM Rio.

122
Cícero Dias, A espera, s/referências. Acervo MAM Rio.

123
Homenagem a Fontana, 1967, tecido e zíper, 183 X 127 X 3,3 cm, doação do
artista. Acervo MAM Rio.

124
“Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1960) fora do Palácio do Catete assiste a
abertura da exposição de escultora Maria Martins, Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro,
1956.” Acervo Arquivo Nacional.

125
Suplemento do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 out 1976. Acervo MAM Rio.

126
Suplemento do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 31 out 1976. Acervo MAM Rio.

127
“Cubism and Abstract Art, March 2, 1936 - April 19, 1936. Photographic Archive. Photograph by Beaumont
Newhall. The Museum of Modern Art Archives, New York.”

128
“Incêndio no Salão de Exposições do Museu de Artre Moderna do Rio de Janeiro, 1978.” Acervo MAM Rio.

129
"Estrutura do Bloco de Exposições em obra", s/data. COELHO, Frederico. Museu de
Arte Moderna: arquitetura e construção. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p.117.

130
“Construção do Bloco Escola do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, out 1955.” Acervo MAM Rio.

131
2 “AS RAZÕES DE SER DO MUSEU”

Um museu de arte moderna é um museu que respeita a creação estética do homem


onde quer que esteja e quem quer que a faça. Esta é a condição sine qua non de sua
existência. Acolhendo as obras contemporâneas, divulgando-as e explicando-as – e
nesse tríplice trabalho auxiliando a sua creação – ele deve deixar ao tempo o poder
de excluir o que falhou, de provar o que foi engano crítico. Humildade, amor e
creação artística do homem e dedicação ao público e à cultura são as bases dos
museus de arte moderna, que estão cumprindo sua missão no nosso tempo. O do Rio
de Janeiro, que inaugura hoje sua estrada definitiva, está animado dêsse ideal, única
razão de ser de sua existência.8

Com essas palavras, Mario Barata conclui sua apreciação no catálogo de apresentação
do acervo do MAM RJ para a segunda sede, ainda provisória, instalada no térreo do Palácio
Gustavo Capanema, ainda Ministério da Saúde e Educação. Inaugurada em 1952, refletia-se
sobre seu sentido e necessidades amparadas pelas “relações pessoais e nacionais com a
Europa e Estados Unidos” e o intercâmbio com outras instituições no país. 9 Podemos afirmar
que as primeiras “razões de ser” do MAM RJ estavam sendo elaboradas pela via da
visibilidade pública ao formar o gosto pela arte moderna, por meio de exposições e cursos,
além do estabelecimento de redes de relacionamento nacionais e internacionais para obter os
recursos necessários para a construção definitiva da sua sede.10 Em contrapartida, o Museu
colaboraria para o restabelecimento da imagem democrática e política do Estado, àquele
momento ainda tolerante à formação de organizações sociais, sobretudo vinculadas aos
grupos de esquerda, cuja bandeira nacionalista ainda representava sinais de avanço no país.
Dessa colaboração, resultaria uma retroalimentação MAM e Estado que se manteria até o
início da ditadura militar.
Em menos de dois anos, na manhã do dia 9 de dezembro de 1954, ocorreria o ritual de
cravação da primeira estaca para edificação da sede definitiva do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro em uma vasta área que viria a se tornar o Aterro do Flamengo. Um ato
simbólico que afirmava a construção do Museu sobre “solo novo, recém-conquistado ao

8
BARATA, Mario. Necessidades do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro, 1952, p.14. (Catálogo do acervo). Acervo MAM Rio.
9
Idem.
10
“Como instituição cultural o Museu sempre encontrou apoio e compreensão por parte dos poderes públicos
federal e municipal quanto à ajuda financeira que lhe deve ser proporcionada para o prosseguimento de sua
missão.” Boletins do MAM RJ, 1952. Acervo MAM Rio.
132
mar.”11 Sobre as terras do Morro de Santo Antônio, utilizadas para o processo de aterramento
de parte da baía, o recém-empossado Presidente da República João Café Filho (vice-
presidente de Getúlio Vargas que àquele momento morria com a justificativa pública de
suicídio), junto a uma “pequena e seleta multidão”, deu início ao funcionamento da
maquinária que pôs a estaca fundamental a investir “contra o solo, num ritmo profundo” signo
representativo “do progresso, do funcionamento.”12
Após o início das obras para construção da sede oficial do Museu, o Bloco Escola foi
o primeiro prédio a ser concluído e inaugurado com o Seminário de Estudos da Unesco sobre
a função educativa dos museus. Em fins da década de 1950, o discurso de abertura do
Professor Carlos Flexa Ribeiro, então diretor-geral do MAM RJ, foi marcado por duas
questões colocadas a respeito da função social dos museus na contemporaneidade: “Pode o
projecto do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro ser considerado como uma nova
concepção dada à ideia tradicional de museu, seja no tempo, seja no espaço?” Em seguida,
complementa: “Em que medida o nosso projecto corresponde às exigências da vida nos
meados do Século Vinte, na América Latina e atende às condições sociais particulares do
nosso continente?”13
Ribeiro elabora uma resposta ao analisar que a criação de um “museu moderno” na
capital federal só se estabelecerá mediante o acordo com as ideias em curso acerca da reforma
da educação nacional, cuja finalidade pretendida se realizava no preparo de trabalhadores para
a transição de uma economia agroexportadora para uma economia industrial. Afirma o
estabelecimento de um acordo entre o “programa do museu e as ideias correntes no nosso
país”, postulando premissas para a construção de um “museu activo” a capacidade de superar
os distanciamentos entre arte e vida, dedicando-se ao “bem-estar, material e espiritual” dos
indivíduos, para, enfim, ultrapassar a tarefa que julga difícil no plano cultural: “recuperação
da consciência da Arte Actual.”14
No mesmo ano, em 1958, o discurso do então Presidente da República Juscelino
Kubitschek corrobora a narrativa de Ribeiro, ao confirmar o compromisso do Museu com a
formação do artista ao estimular a autonomia da sua produção sob os “moldes modernos”, isto

11
Inauguração da Pedra Fundamental do M.A.M. Boletins 1954. Acervo MAM Rio.
12
Inauguração da Pedra Fundamental do M.A.M. Boletins 1954. Acervo MAM Rio.
13
RIBEIRO, Carlos Flexa. As razões de ser do Museu. In: O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Lisboa:
Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Lisboa, s/data.
14
Idem.
133
é, reitera a condição do MAM RJ em não se apresentar apenas como um “mostruário passivo,
uma coleção de finas produções”, mas “essencialmente, uma escola”. 15
Presente nas comemorações que envolviam a construção da sede oficial do MAM RJ,
a imagem emblemática do Presidente da República, reproduzida em diversos meios,
plantando a primeira palmeira nos jardins do Museu que era, dentre outras oito palmeiras,
netas daquelas oferecidas a D. João VI, há exatos 150 anos. O gesto de Kubitschek, segundo
os Boletins do Museu, marcou simbolicamente o “verdadeiro início da realização do Brasil
como nacionalidade e como cultura.”16 Além da beleza, do ganho de altitude e grandeza, o
plantio das palmeiras representou na história dos governos diversos atos inaugurais. Há
exemplos desses atos realizados pelo Conde D’EU, General Francisco Craveiro Lopes,
Getúlio Vargas, Jucelino Kubitschek e o mais remoto, D. João VI, que plantou a primeira
palmeira no Jardim Botânico “com as suas próprias mãos, a fim de inaugurar mais
solenemente a nova instituição que acabara de criar.”17
A dimensão monumental do projeto arquitetônico da sede do MAM RJ chamou a
atenção da crítica internacional sobre a extensão do projeto parecer mais ambicioso que a sua
modesta coleção. O argumento dado por Ribeiro foi sobre a construção do Museu se realizar
antecipadamente à própria constituição de um acervo, dada as suas próprias contingências,
sobretudo financeiras, porém converte este aspecto a uma reflexão conceitual do próprio
sentido de se construir um museu de arte moderna àquele tempo. Desse modo, justifica:
“Parece-nos de facto muito importante para um museu da América Latina ter tomado essa
decisão de viver no presente e se projectar no futuro, constituindo colecções da arte criadora
da nossa época, no mundo inteiro.”18 Defesa esta que reitera a constatação de Alberto
Tassinari (2001, p. 24) sobre a apropriação do termo moderno como uma adjetivação, mais
temporal do que investida dos códigos estéticos, formais, que normatizaram o que viemos a
compreender por arte moderna: “Moderno passa a ser então um tempo não apenas atual mas
impregnado de futuro.”
O MAM RJ, por meio do seu porta-voz na imprensa, especialmente no Correio da
Manhã, o jornalista Jayme Mauricio, anuncia seu primeiro “renascimento” (longe de saber

15
Discurso do Presidente Juscelino Kubitschek na inauguração de parte da sede oficial do MAM RJ. Boletins,
1958. Acervo MAM Rio.
16
O Museu em casa própria. Boletins, 1958. Acervo MAM Rio.
17
As primeiras mudas foram trazidas pelo português Luiz de Abreu Vieira e Silva que, aprisionado pelos
franceses, conseguiu fugir para o Brasil com numerosas plantas, dentre as quais se encontrava a palmeira real.
A “palma-mater” plantada por D. João VI morreu em 1972 atingida por uma “faísca elétrica”. (CORREA, 1931.)
18
RIBEIRO, Carlos Flexa. As razões de ser do Museu. In: O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Lisboa:
Escritório de Propaganda e Expansão Comercial do Brasil em Lisboa, s/data.
134
que haveria outro) com a construção da nova sede. A resenha no Almanaque do Correio da
Manhã trazia em caixa alta: “Renascimento do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro: o
maior acontecimento da vida artística da cidade”. O novo Museu foi considerado uma
renovação da própria instituição que outrora se encontrava instalada, nas palavras do
articulista, ainda sob “ranços aristocráticos no alto de um edifício bancário, praticamente sem
a menor atuação, decepcionando meio mundo com a sua inércia” 19.
Àquele momento, a proposta do MAM RJ se destinava à latência do seu tempo
presente, cujos princípios estavam voltados à nascente industrialização do país que
necessitava, nas palavras de Ribeiro, de “homens capazes pelas suas qualidades imaginativas
e pela preparação técnica, [...].”20 Para tanto, vislumbrava-se um amplo programa de
educação, capaz de fornecer todos os meios para formar artistas encarregados de criar uma
nova concepção estética e artística, sobretudo aplicada à vida moderna. Formação esta que se
diferenciava do modo como a Escola Nacional de Belas Artes conduzia o seu programa
curricular ainda sobre bases academicistas, embora as constantes reformas intentavam
modernizar seu programa curricular. A Reforma na ENBA promovida por Lúcio Costa, por
exemplo, foi apontada como uma das primeiras adesões institucionais ao movimento da arte
moderna.
Em dez anos, entre 1948 e 1958, as sedes provisórias já representavam um passado
recente, das quais a última, seus gestores se orgulhavam do projeto institucional ter-se
estabelecido e reconhecido publicamente. O emblema “Museu no futuro”, marcado em outro
artigo de Ribeiro, apostava na sede definitiva a construção de um projeto integrador das artes
com ênfase na “aliança arte-técnica”, considerando a Escola Técnica de Criação como a
principal iniciativa para essa realização. Nas suas palavras, o “Museu no passado”, vinculado
à imagem de Castro Maya, reduziu-se a poucas obras, em local pouco acessível, portanto com
baixa repercussão; enquanto que o “Museu no presente”, de Niomar Moniz Sodré, investiu na
formação de acervo, em um programa de exposições itinerantes que promovessem a sua
internacionalização, além das retrospectivas de artistas nacionais representativos do
modernismo.
As duas primeiras “fases” do MAM RJ investiram na construção de uma imagem
associada a uma iconografia que, de algum modo, contornasse uma noção de arte moderna
associada a nomes em destaque no cenário nacional e internacional. Enquanto que a terceira

19
MAURÍCIO, Jayme. Almanaque do Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1954, p. 54. Acervo Fundação Biblioteca
Nacional – Brasil.
20
Idem.
135
“fase” oficializaria o espaço para o ensino e a criação entremeada a uma produção de
conhecimento com a intenção de formular um pensamento e uma “atitude” moderna em busca
de soluções novas para as transformações do próprio sistema de arte em sintonia com a
construção de uma “nova cultura brasileira.” 21
Dentro dessa convicção, veremos de que modo o Museu articulou a absorção de uma
iconografia modernista para a construção da sua imagem junto às iniciativas artísticas que
buscavam nos espaços do MAM RJ outros sentidos de experimentação. Estas
experimentações responderam a dois momentos distintos. O primeiro corresponderá à
inauguração dos ateliês que, entre as décadas de 1950 e 1960, estiveram concentrados nas
linguagens artísticas específicas. O programa de cursos foi organizado com ênfase à
autonomia dos meios de expressão e da pesquisa artística através das práticas de ateliê,
especialmente da pintura e da gravura. E no segundo momento, as práticas passam a
problematizar a noção tradicional de obra de arte e das vinculações institucionais, em que as
questões sobre a arte, o circuito artístico e a integração do público nesse debate passam a ser
centrais.
Quando foi aberto ao público pela primeira vez, o MAM RJ ocupou um enorme salão
cedido pelo Barão de Saavedra, diretor do Banco Boavista e tesoureiro do Museu no período
de sua criação e inauguração. O Museu nascia nesse contexto, ocupou o 11º andar de um
prédio recém-construído por Oscar Niemeyer, situado no centro da cidade, na Praça Pio X
com a Avenida Presidente Vargas, compondo na cidade um cenário de modernidade. 22 Diante
de um depoimento identificado em arquivos de imprensa sobre esse espaço, “[...] assentado
em uma das poltronas do bonito Salão medito sôbre a espantosa riqueza da estética
moderna”23, parece-nos que o público que visitava o novo museu contemplava do alto uma
visão panorâmica da paisagem carioca, tendo a sensação de estar em pleno exercício de
apreciação e reflexão sobre a arte moderna e a sua inserção na “alta” cultura.
O museu carioca foi idealizado com base no paradigma do museu de arte moderna,
especialmente do MoMA de Nova York, cuja expografia foi inicialmente pensada para
enfatizar a neutralidade do espaço, autonomização da obra de arte e a disciplinarização do
conhecimento e da formação artística por meio de uma programação de cursos teóricos e
práticos. Contudo, o MAM RJ idealizado se distanciava a passos largos do Museu instalado

21
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1958. Acervo MAM Rio.
22
A sede do Banco Boavista foi planejada pelo arquiteto Oscar Niemayer em 1946 e inaugurada em 1948.
23
Iniciativa de alto sentido cultural: a criação do Museu de Arte Moderna do Rio. Correio da Manhã, Rio de
Janeiro, 03 maio 1949. Arquivo Fundação Castro Maya.
136
no interior de um salão em uma instituição bancária. Em pouco tempo, o MAM RJ era
reinaugurado no térreo do edifício Palácio Gustavo Capanema, sob o consentimento e as
“vistas” do Governo.24
Noticiado pelo Correio da Manhã, o jornalista Jayme Maurício descreveu com
entusiasmo, “apesar do tempo chuvoso”, a recepção do público na abertura do Museu nos
pilotos do MES localizado na Rua da Imprensa, ainda no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
O jornalista reproduz a preocupação da diretoria em criar um ambiente em que os visitantes se
sentissem acolhidos, à vontade, confortáveis nas novas instalações do Museu, “[...] forrado de
tecido, com iluminação tecnicamente calculada e grandes árvores tropicais, ar renovado,
dando uma agradável sensação de bem-estar ao visitante.”25 O tecido, do qual o jornalista se
refere, funcionava tal como cortinas aparentemente brancas ou de cores neutras bem claras,
pois obedecia a um plissado característico, dava acabamento à estrutura de madeiras que
encobria as curvas dos painéis de azulejo, criando um espaço atemporal, como uma espécie de
“cubo branco”, típico dos museus modernos. Conforme as palavras de Marize Malta (2012),
“tal disposição, tão comum nos museus de arte moderna, estabeleceu um modo ideal de olhar
e auxiliou a institucionalizar a autonomia da arte”. Ao atuar nos processos de autonomização,
uma das pretensões do museu de arte moderna se incide sobre o moldar experiências,
“atuando na percepção, comportamento e juízo estético do espectador, buscando uma
hegemonia no modo de olhar e encarar a obra de arte.”26
O espaço construído e adaptado para sediar uma galeria de arte no térreo de um
edifício, sem uma única janela para que o visitante observasse a movimentação do centro da
cidade, remete-nos às palavras de Brian O’Doherty (2002, p. 4) sobre o espaço ideal criado
para enquadrar a obra de arte moderna: “A galeria é construída de acordo com preceitos tão
rigorosos quanto os da construção de uma igreja medieval. O mundo exterior não deve entrar,
de modo que as janelas geralmente são lacradas [...].”
O confinamento das obras e da relação do espectador com o entorno do museu foi
alterado pelo projeto de Eduardo Affonso Reidy, arquiteto responsável pela edificação do
MAM RJ, para a sede definitiva onde lançou o conceito de “espaço fluente” com o objetivo
de substituir o espaço cúbico. Em seu relato, demonstra preocupação com a valorização do
entorno, pretendendo construir um edifício que não viesse a comprometer a relação do

24
Sobre a fase de fundação do MAM RJ consultar a publicação Construindo a memória do futuro: uma análise
da fundação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, de Sabrina Marques Parracho Sant'Anna (2008).
25
MAURÍCIO, Jayme. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Correio da Manhã, 19 jan. 1952. Acervo
MAM Rio.
26
MALTA, 2012, p. 114.
137
público visitante com a paisagem onde estava sendo construído o Museu. Os diferentes
ângulos de visão do espectador foram esboçados pelo arquiteto, prevendo que em qualquer
lugar que se posicionasse diante das “paredes” de vidro, obteria uma percepção do entorno e
fundamentalmente da paisagem. Porém, no interior do Museu, ainda assim, as janelas
produzem um enquadramento da paisagem. Ao pensarmos na conceituação corrente do
“espaço moderno” no plano pictórico, por exemplo, sobre a quebra do espaço perceptivo,
naturalista, renascentista, a janela de Reidy nos faz, de algum modo, refletir sobre esses
limites. Até que ponto, o projeto arquitetônico do MAM RJ desconstruiu esses modelos
representacionais, calcados em uma tradição artística?
Sabemos que as questões que permeiam a arquitetura, a pintura e a escultura moderna
em alguns pontos tratam de diferentes operações. Porém, convém nos perguntar de que modo
a relação desses espaços – no plano arquitetônico, pictórico e escultórico – estão sendo
ressignificados quando os colocamos em relação à construção de um museu de arte moderna
inserido no cartão postal da cidade? Notamos, com o Bloco Escola e com o Salão de
Exposições, a garantia, através do vidro, da transparência, a visualização da paisagem e a
imagem de uma paisagem carregada de aspectos simbólicos, acrescentada a um arranjo onde
se estabeleceu outra relação bem dinâmica do que ver, como ver e como ser visto.
Esse tipo de construção visual nos remete, em certa medida, ao modo como as
Exposições Universais (séc. XIX) dispunham o testemunho do público sobre as formas de
poder expostas nas coleções reais e nos produtos da elite industrial. Tony Benett (2015)
ressalta que “[...] enquanto todo mundo podia ver, havia também pontos de vista a partir do
qual todos poderiam ser vistos, combinando assim as funções do espetáculo e da vigilância.” 27
Sendo um espaço dedicado ao público, mas também à evidência das elites e do Estado,
podemos considerar que o MAM RJ produziu um tipo de visibilidade em que o público
assumiria outra condição de observador, conforme distingue Crary (2012, p. 15): “[...] um
observador é aquele que vê. Mas o mais importante é que é aquele que vê em um determinado
conjunto de possibilidades, estando inscrito em um sistema de convenções e restrições”. E a
sua inscrição como observador se estrutura a partir do que caracteriza como um “sistema
irredutível heterogêneo de relações discursivas, sociais, tecnológicas e institucionais”.
As transparências, a princípio, presentes na estrutura do Museu, tornam visível uma
natureza artificialmente elaborada, isto é, uma paisagem, tendo como plano de fundo o Pão de

27
BENNETT, Tony. The Exhibitionary Complex, Journal: New Formations, 4: Cultural Technologies , 1988, p.78.
Disponível em http://www.columbia.edu/itc/anthropology/schildkrout/6353/client_edit/week1/bennett.pdf
Acesso em 11 fev. 2015. [Tradução livre].
138
Açúcar e a baía da Guanabara como cartão postal legitimadores de um projeto de cidade ideal
e, portanto, de uma arquitetura que emoldurou essa perspectiva. A permanência dessa imagem
diariamente no interior do Museu corrobora para as estratégias que marcaram a construção de
uma sede monumental comprovar as tecnologias modernizadoras empregadas para tal
empreendimento, sobretudo quando “permite que as coisas permaneçam as mesmas”.28 É o
paradoxo instaurado por uma instituição nomeada de arte moderna, que implicaria a mudança
contínua do novo, mas que estrategicamente fixa o que está enraizado na cultura de uma
“cidade maravilhosa” determinada pela construção de uma “invenção de paisagem”.
A expressão “invenção de paisagem” que aqui nos referimos foi utilizada por Anne
Cauquelin (2007, p. 49) em que estabelece uma série de análises sobre as equivalências entre
a arte e a construção de uma noção de natureza que se dará pela via da paisagem. A
construção de códigos estéticos ocidentais que contornam nossa percepção, na condução da
autora, remontam a produção literária da Antiguidade Clássica e da Renascença que instaurou
métodos analíticos de construção de uma dada realidade que se fazem presentes, no modo
como percebemos o mundo, até os nossos dias. Esse modo de perceber uma realidade não foi
determinado apenas por uma “emoção estética”, mas instala-se em uma ordem discursiva
operada por uma rede de interesses que normatizaram o modo como percebemos a natureza
pela via da imagem.
Para uma publicação em que é apresentado todo o projeto do conjunto arquitetônico
do MAM RJ, Carlos Flexa Ribeiro, embora não apresente nenhuma narrativa sobre os
princípios estéticos formadores do acervo, seleciona um grupo de imagens de obras de artistas
brasileiros a fim de compor sua narrativa. O conjunto expressa uma narrativa histórica de
representantes da arte moderna, cuja iconografia centra-se em temas populares de referenciais
figurativos entre algumas telas de tendência abstrato-geométrica. Destacam-se as imagens em
cores das pinturas: Cangaceiro (1958), de Portinari; Procissão (1953), de Elisa Martins da
Silveira; Cidade Vermelha (1959), de Antonio Bandeira; e Abstracção (1958), de Inimá de
Paula. As imagens em preto e branco das pinturas alternam a figuração e abstração: Em forma
de palmeira (1958), de Aloísio Magalhães; Composição (1950), de Cícero Dias; Batedores de
Arroz (1956), de Djanira; Retrato de Niomar Moniz Sodré (1957), de Flavio de Carvalho;
Recordações de Viena (1917), de Lasar Segall; as gravuras Xilogravura (1958), de Arnaldo
Pedroso d’Horta; Segundo Estudo (1956), de Vera Mindlin; Favela (1958), de Rossini Perez;

28
CRARY, 2012, p. 19.
139
Família (1958), de Paulo Becker; as esculturas Guerreiros (1957), de Bruno Giorgi; e apenas
uma escultura Brûlant de ce qu’il brûle [Prometheu] (1959), de Maria Martins.
Esse conjunto de imagens nos dá a impressão de terem sido colocadas a fim de se ter
um parâmetro das alianças do Museu à construção de uma narrativa oficial da história da arte
no Brasil, considerando a constituição de uma iconografia modernista em que se enfatiza uma
figuração contaminada pela iconografia popular, do trabalhador rural, da valorização de uma
estética pautada por valores nacionais, da terra, mas também demarcada pelas apostas, mesmo
que tateantes, de um caminho da abstração em curso no campo da produção artística àquele
momento.
Ao colocarmos em relação essas “razões de ser Museu” diante de uma consciência da
historiografia da arte no Brasil, especialmente contornada pelo contexto carioca, há pelo
menos três posições que anunciam diferentes filiações discursivas no que tange à construção
de um museu de arte moderna na cidade do Rio de Janeiro. A menção à vinda da Família Real
para o Brasil como marco inaugural do território brasileiro como nação, ou melhor, a
consideração dos moldes europeus, neoclássicos, como parâmetros fundamentais para
constituição de uma nacionalidade; a afirmação de um museu na condição de escola, portanto,
responsável pela formação de público e, sobretudo, do artista condizente com o
desenvolvimento cultural e econômico do país; a construção de uma historiografia da arte
com base na paradoxal atualização de uma alegoria antropofágica oswaldiana em que a
contínua assimilação e deglutição de referenciais internacionais se colocam, continuamente,
basilares para a formação e reforma das instituições culturais no país.
Do que se tratavam os discursos oficiais acerca das razões que tentavam definir uma
nova concepção de museu de arte moderna a serviço da sociedade não somente brasileira, mas
atenta também às necessidades culturais e políticas da América Latina? De que modo o novo
museu atenderia a essas condições, tendo como base um consumo “directo e imediato” de
uma produção artística constituída de parâmetros universais junto à absorção de uma pauta
modernista? Como as especificidades do contexto cultural, econômico, social da cidade do
Rio de Janeiro se encaixariam nesse processo?

140
2.1 “terra-a-terra”29

A construção histórica da sede definitiva do Museu de Arte Moderna do Rio de


Janeiro nasce dos embates entre o mar e a terra. Grande parte do desmonte do Morro de Santo
Antônio foi depositado sobre um recorte da baía da Guanabara onde um novo espaço se
conformava sobre as águas. Segundo o depoimento da engenheira Carmem Portinho: “Nós
começamos o Museu de Arte Moderna quando era mar ainda.” 30 O MAM RJ foi edificado
sobre as memórias do Morro de Santo Antônio que jazem nas águas da baía da Guanabara.
Paradoxalmente, esse mesmo projeto idealizado sobre o novo aterramento outrora celebrado,
sucumbe após vinte anos na forma de “carcaça de metais retorcidos, vidros quebrados e
concreto chamuscado.”31
Ao verificarmos os discursos ideológicos incorporados ao projeto de modernização
integrado às reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro na década de 1950, perceberemos
que o gesto de demolir para construir se apresentou como prática inerente à criação de novas
áreas urbanas que se propunham, além de outros argumentos, reforçar uma noção de
progresso e desenvolvimento. A Prefeitura, doadora do terreno, indicava o arquiteto Eduardo
Affonso Reidy, membro do corpo técnico do Departamento de Urbanismo que foi responsável
pela Urbanização da Esplanada de Santo Antônio, a desenvolver o projeto da sede do MAM
RJ. Porém, foi no Departamento de Habitação Popular, dirigido por Carmem Portinho, que
nasceram os primeiros traçados do futuro Museu. “Edificado como vitrine para a cidade” 32, o
projeto apresentava uma noção de espaço arquitetural alinhado às próprias transformações
relativas à arquitetura e à arte moderna, tendo como expoentes Le Corbusier, Walter Gropius,
Mies Van der Rohe e Max Bill. 33
Reidy, como urbanista, confirmaria sua aproximação com o funcionalismo
arquitetônico de Le Corbusier, cuja relação do “objeto-edifício” e do “objeto-natureza” deve
responder à concepção de “espaço contínuo”. Giulio Carlo Argan (1992, p. 266) sintetiza as

29
Subtítulo dos Domingos da Criação – o domingo da terra – realizado por Frederico Morais em 1971.
30
Parte do depoimento de Carmem Portinho presente no filme Reidy: A construção de uma utopia (2009),
direção de Ana Maria Magalhães.
31
PONTUAL, 2013, p. 467.
32
LOURENÇO, 1999, p. 35.
33
Importante ressaltar que o arquiteto Frank Lloyd Wright também esteve no Brasil na década de 1930 e,
certamente, faz parte dos referenciais dos arquitetos brasileiros desse período. Em 1932, compôs um júri
internacional e realizou uma conferência na Escola Nacional de Belas Artes sobre a integração entre
arquitetura e natureza. (MORAIS, Frederico. Cronologia das Artes Plásticas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
TopBooks, 1995, p. 148).
141
ideias do urbanista francês da seguinte forma: “Não é abstração nem formalismo: a construção
ideal do espaço torna-se a construção material do edifício.” E prossegue, “é a natureza que
entra na construção, [...] a partir da concepção cubista do espaço contínuo, plástico,
praticável, de diversas direções e dimensões. Le Corbusier desdobra esse espaço em todas as
escalas de grandeza.” Junto a essa concepção, percebe-se a integração do “racionalismo
metodológico-didático” da Bauhaus de Walter Gropius, em que se conjuga forma e formação,
desenho industrial e escola de arte, cujos espaços externo e interno são mediados também
pelas transparências.
O projeto do Bloco Escola e do Bloco de Exposições do MAM RJ foi formulado
segundo essas orientações. Reidy escrevia à época a Le Corbusier: “O senhor se lembra
daquela pequena colina, no coração da cidade, onde existe um convento antigo? Esta colina
vai ser demolida e eu estudo a urbanização do sítio.” Em resposta ao empreendimento, o
arquiteto francês ressalta: “uma verdadeira jóia da arquitetura moderna inscrita sobre um
terreno bem escolhido.”34
O desmonte da “colina” da qual Reidy se referia foi acompanhada pela imprensa,
especialmente pelo jornal Correio da Manhã, cuja demolição foi transmitida sob outra
perspectiva: “[...] As escavadeiras parecem um monstro moderno de mandíbulas de ferro:
atiram-se contra o gigante de terra, mordem-no, arrancam-lhe um pedaço, rompem, mastigam,
trituram.” No artigo, são apontadas as necessidades de se registrar através da imagem
fotográfica os resquícios do Morro de Santo Antônio como um vestígio que não deve ser
perdido pelo “homem do amanhã, estudioso destas questões da cidade do Rio de Janeiro.” A
fim de que se atenda as “exigências do progresso”, as imagens representam e testemunham a
passagem dessas exigências, demarcando os processos de demolição, logo, de remoção, para
que ao menos saibamos, nas palavras do jornal, “como se figurava um aspecto do Santo
Antônio, que ainda se vê ao fundo neste flagrante.”35
A memória cultural desse lugar sobrevive nas imagens, pois à medida que o desterro ia
ocorrendo, as impressões, as marcas postas ali em outros tempos históricos eram demolidas
junto ao montante de terra, árvores e casas. A memória topográfica conecta as imagens de
determinado local às narrativas sobre esse mesmo espaço, produzindo, deste modo, uma
relação entre memória, narrativa e história. As imagens do desmonte, do desmoronamento, da

34
NOBRE, 2010, p. 112.
35
Flagrantes da cidade. Rio de Janeiro: Correio da Manhã, 22 de janeiro de 1956. Disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=089842_06&PagFis=86&Pesq=morro%20santo%20ant
%C3%B4nio Acesso em: 2 nov. 2018.
142
destruição simbolizam um apagamento, mas ao mesmo tempo restituem uma lembrança, pois
acabam sendo enquadradas, mesmo que pela via da imagem, em uma noção de ruína, conceito
que retornará na segunda parte deste trabalho.
As reformas urbanas e, especialmente, os processos de desterro e aterro constituem a
formação histórica da cidade do Rio de Janeiro. Os monumentos públicos criados e
preservados, como igrejas e museus (sendo este último justificativa para monumentalizar e
musealizar as intervenções nas cidades), tendo como contrapartida a finalidade cultural e
artística, instituem-se como signos fundamentais do planejamento urbano para afirmação da
colonização do território, exploração do solo, expansão das tecnologias industriais e da
construção. É contraditória a afirmação de uma política de memória que salvaguarda os
signos eclesiásticos, da ordem, do progresso e da modernidade pautada pela destruição a favor
da construção de uma instituição icônica como o projeto da sede do MAM RJ? Talvez não.
As propostas do Plano Agache (1927-1930)36 e a presença de Le Corbusier na cidade
do Rio de Janeiro remontam os processos de construção e reconstrução da cidade do Rio de
Janeiro como cidade-capital, cujas estratégias para então qualificá-la com tal emblema
definiam, além das intenções políticas e econômicas, a forma estética da sua geografia,
instituindo a paisagem como um dos argumentos centrais para tais operações urbanas. Outro
argumento para essa mesma paisagem, de vales e montanhas, de sinuosidades, justifica os
projetos de intervenção urbana: a integração das áreas da cidade. A questão da mobilidade,
higiene, insalubridade e “emoção estética” provocada pela paisagem carioca são temáticas
constantes na construção dos enredos para tais operações.
Importa considerar que as transformações dos contornos topográficos e culturais da
cidade do Rio de Janeiro foram motivadas por diferentes objetivos, dos quais perpassa o
legado de um pensamento eugênico como uma das justificativas públicas para defesa das
reformas sociais e, logo, urbanas para modernização da capital federal. O movimento
eugênico no país foi organizado a partir dos esforços para o embranquecimento da população
desde os fins da escravidão, que decorreram de políticas de incentivo à imigração europeia,
apostando em uma “mestiçagem redentora”, tendo o médico e diretor do Museu Nacional do
Rio de Janeiro, João Batista de Lacerda, o principal defensor de um cruzamento racial em que
se visava o desaparecimento do negro do corpo social brasileiro.

36
Donald Agache, urbanista francês, contratado pela Prefeitura do Distrito Federal para elaborar o Plano
Diretor da capital, teve como assistente Eduardo Affonso Reidy. Porém, após sucessivos problemas que
marcaram a descontinuidade da urbanização da área fruto do desmonte do Morro do Castelo, Reidy se tornou
o arquiteto responsável pelo plano de urbanização, adaptando-o aos ideais modernos.
143
A pintura A redenção de Cam (1895), de Modesto Brocos, pertencente ao acervo do
Museu Nacional de Belas Artes. Foi utilizada pelo cientista no Congresso Universal das
Raças (1911), ocorrido em Londres, para ilustrar os processos de depuração, sendo lida pela
ótica de um darwinismo social, para formação da raça brasileira, hegemonicamente branca
pretendida para se afirmar ao longo do século XX. O conteúdo dessa obra mesclava os
interesses do programa estético modernista ao tratar das questões especificamente nacionais,
relativas à formação do povo brasileiro, ao mesmo tempo em que fortaleceu as teses sobre o
seu branqueamento ou de um “catolicismo popular” praticado pela velha negra milagreira. 37
De um modo ou de outro, a associação dessa tela aos anúncios do movimento
eugênico nos parece problemática, sobretudo ao tomarmos ciência da conferência do médico
intitulada “Sur le métis au Brésil”, escrito em Paris em 26 de julho de 1911, em que afirmava
“tal é a triste herança que recebemos da raça negra. Ela envenenou a fonte das gerações
atuais; ela irritou o corpo social, aviltando o caráter dos mestiços e abaixando o nível dos
brancos”. E em comparação à manutenção da distância em que o povo anglo-saxão impôs no
contato com os negros, continua: “Para a desgraça do Brasil, é justamente o inverso que aqui
tomou lugar; o branco se misturou ao negro com tão pouca discrição que se constituiu uma
raça de mestiços, hoje dispersa por uma grande parte do país.” Lacerda pondera em sua fala a
contribuição de alguns mestiços à vida política, literária e artística, com a justificativa do
“cruzamento da raça negra com a raça branca não resulta, em geral, em produtos de uma
intelectualidade inferior” e conclui sua conferência considerando que “a população mista do
Brasil deverá então ter, dentro de um século, um aspecto bem diferente do atual”, confiando
na imigração europeia a missão de diminuir os “traços do negro” na formação da população,
tornando, assim, o Brasil em um “dos principais centros civilizados do mundo.”38
É possível reconhecer parte do legado do movimento eugênico no país nas
justificativas das reformas da cidade do Rio de Janeiro, lembrando que foi sob seus domínios
que o Cais do Valongo se tornou o maior porto de entrada de pessoas negras escravizadas no
país até meados do século XIX. Pelas condições de pobreza, miséria e insalubridade que
viviam e ainda vivem, sobretudo a população que mantinha residência nos morros, fortaleceu-
se um sistema contínuo de apagamento e invisibilidade gerado por adoecimentos, mortes e
expropriações das regiões centrais da cidade. Pela via da gentrificação, remoções de

37
SCHWARCZ, 2011, p.228.
38
LACERDA, João Batista. Sobre os mestiços no Brasil. In: SCHWARCZ. Lilia Moritz. Previsões são sempre
traiçoeiras: João Baptista de Lacerda e seu Brasil branco. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v.18, n.1, jan.-mar. 2011, p. 234-242.
144
populações negras e pobres de áreas concorrentes à especulação imobiliária ocorrem até os
nossos dias. Foi assim com o plano de desmonte do Morro do Castelo, do Morro de Santo
Antônio, da Vila Autódromo e da Zona Portuária.
As buscas pela contínua construção de uma identidade nacional calcadas em
aspirações positivistas, idealistas e funcionalistas e, também, estéticas mobilizaram gerações
de urbanistas responsáveis pelas obras realizadas desde o final do século XIX até a década de
1940 na cidade do Rio de Janeiro. As razões eram renovadas a cada reforma no intuito de
modernizar a imagem da cidade como capital federal, edificando, assim, monumentos
públicos para sua manutenção.
As características topográficas da cidade do Rio de Janeiro foram fonte de interesse
secular, cujo nascimento da “cidade maravilhosa” e as constantes reformas para renovação de
tais atributos reforçaram os históricos “processos de acumulação e de parcelamento do
patrimônio fundiário.”39 Os empreendimentos coloniais, arregimentados pela Igreja,
ganharam relevo quando revolvemos outras histórias fundadas sobre as terras pelas quais o
MAM RJ foi erguido. É o que ocorre com a fundação da sua sede definitiva qualificada como
o “germe” da criação do Aterro do Flamengo.40
O terreno doado para edificação da sede do MAM RJ foi alvo de lutas jurídicas e
políticas, dentre as quais a Igreja Católica participou requerendo o local para construção de
uma catedral, pois já havia utilizado a área para o Congresso Eucarístico. Porém, parte do
sítio aterrado acaba sendo destinado, por lei sancionada pela Câmara Municipal, à construção
do Museu. Mesmo que no período colonial a ocupação religiosa nas demarcações do solo
tenha sido mais expressiva, vemos a sua contínua influência e permanência na ocupação do
solo, sobretudo quando o par Igreja/Estado se articula para especulação de interesses mútuos.
Outro par a ser considerado é o da desordem/ordem nos processos de demarcação da
cidade. Segundo Fania Fridman (1999, p. 19), “do ponto de vista da forma e do desenho, o
Rio de Janeiro era, quando de sua fundação, a cidade jesuítica ou a cidade da desordem.”
Questão esta, pontua a autora, discutida por muitos historiadores que irão contrapor essa
consideração diante de uma “coerência orgânica”, fruto das heranças fundadas sobre uma
noção de como as cidades medievais e mulçumanas se organizavam de acordo com traçados
curvos e montanhosos. No contexto das reformas urbanas do século XX, a menção à
desordem permanecerá, mas sob outro argumento. As prefeituras irão combater as ocupações
residenciais nas encostas dos morros consideradas irregulares, insalubres, especialmente
39
FRIDMAN, 1999, p. 13.
40
PEREIRA, 2015, p. 26.
145
aquelas localizadas no centro da cidade, em que existiam os interesses fundiários e
imobiliários sobre essas regiões alinhadas às políticas higienistas.
As sucessivas prefeituras que acompanharam o plano de urbanização da Esplanada do
Morro de Santo Antonio, de Reidy, criticavam a falta de aproveitamento das áreas
desaterradas no projeto, sobretudo para produção de recursos que seriam utilizados para
continuidade das “desapropriações e obras de arrasamento do morro.”41 Em seu estudo para
urbanização da área resultante do desmonte do Morro de Santo Antônio, o urbanista
demonstra preocupação e responsabilidade com a repercussão de todas as mudanças que
gerariam na cidade e, consequentemente, para a população. Com base em outros planos de
urbanização (Senado e Castelo), que, em sua opinião, fracassaram, pois grande parte das áreas
permaneceu obsoleta e condenada, alertou: “trata-se da última oportunidade de introdução de
um elemento totalmente novo, no centro de gravidade, cujas consequências poderão ser de
incalculável benefício para as mesmas, ou irreparavelmente funestas.” 42 Seu projeto para a
Esplanada do Morro Santo Antônio previa uma unidade residencial, que não foi levada
adiante, dedicada a cerca de “8 mil habitantes” (não há informações se parte dessa área estava
destinada à população que habitava o Morro), que, segundo sua projeção, se localizaria na
Rua do Lavradio. O arquiteto, notoriamente inspirado pela cultura benfeitora de Le Corbusier,
considerava o plano de habitação “a primeira e a mais importante das funções urbanas”43, por
esse motivo previa para a Esplanada do Morro Santo Antônio diversos serviços que se
assemelhavam aos do Conjunto Residencial Pedregulho, tais como residências, escolas, um
centro de saúde, comércio local etc.
A conveniência instaurada na aplicação e na ‘viabilidade’ dos projetos urbanistas,
anunciou diferentes interesses que concordaram para os rumos da modernização da cidade. Os
modelos franceses de Agache e Le Corbusier, intermediados por Reidy, inevitavelmente
redefiniram a movimentação do terreno considerando igrejas, palácios, obeliscos e museus
como acentos topográficos, onde apenas algumas heranças históricas poderiam conviver e
sobreviver à presença da modernidade para a construção da imagem de uma cidade-capital.
No projeto do MAM RJ, as ressonâncias dessas contradições não atravessaram o
desenho arquitetônico. Como museu, mas também como lugar de memória, Reidy projetou
um lugar de mirar, pois destituiu as paredes da função de elemento estrutural para a função de
ordenar os espaços, conferindo maior liberdade de movimentação da área expositiva. Como já

41
BONDUKI, 1999, p. 114.
42
REIDY, 1999, p. 118.
43
REIDY, 1999, p. 120.
146
vimos aqui, substituiu, desse modo, “a antiga noção do espaço confinado dentro dos limites
de um compartilhamento cúbico”44, onde apenas as obras de arte eram dadas a ver a um
ambiente em que o acesso a área externa complementaria essa visualidade.
Essa complementação seria dada por Roberto Burle Marx, responsável pelos jardins,
onde instituiu a palmeira real, aqui comentada, como “elemento ordenador” do espaço,
plantada de forma a oferecer “um contraponto visual” em relação às linhas horizontais criadas
pela estrutura arquitetônica e pela baía da Guanabara. O projeto dos jardins previu locais que
produzissem intensa circulação, como “locais de estar”, voltados para o público permanecer
mais tempo na área externa do Museu, onde foram criados “terraços, jardins, pátios com
fontes, locais para exposição de esculturas ao ar livre e grandes gramados que conduzissem à
vista para a baía, além de emprego de árvores que darão sombra [...].”45 Desse modo, a
paisagem oficial da cidade do Rio de Janeiro, tendo o Morro do Pão de Açúcar como um
desses expoentes, estaria permanentemente acessível às experiências visuais do público
visitante na área externa e interna do Museu.
Retomamos as análises de Cauquelin (2007, p. 66) sobre a instituição de jardins como
espaços de fruição, meditação e recolhimento à atmosfera insalubre das cidades. Embora o
jardim de Burle Marx ofereça um ambiente de agradável sensação, “prazenteiro”, assim como
também podemos perceber na Esplanada do Morro Santo Antônio, seu projeto corrobora os
processos de apagamentos de uma parte da memória da cidade. Nas palavras da autora, “o
jardim desenha uma das dobras da memória e ali permanece, ao lado da paisagem, como um
modelo de naturalidade.” A construção desse modelo de jardim produz uma imagem análoga
à forma do simulacro e/ou da retórica. E, nesse caso, é possível associar as duas estruturas à
construção do complexo paisagístico do MAM e do Parque do Flamengo. Compõem-se um
referencial à imagem e semelhança do natural e, ao mesmo tempo, faz-se uso desta imagem
para persuadir sobre a eleição do lugar, da sua construção e edificação. E novamente citando
as palmeiras, que estão presentes em diversos monumentos públicos na cidade do Rio de
janeiro, sua fabricação, seu ordenamento, sua representação icônica na paisagem acentuam a
imitação da natureza para fins de reconhecimento público e, sobretudo, divino pela sua
verossimilhança às colunas das ordens clássicas.
A engenheira Carmem Portinho (1999), companheira e colaboradora dos projetos de
Reidy, afirmava e, é notável em seus projetos, que o urbanista e arquiteto era “cônscio da
responsabilidade social da arquitetura.” Seus planejamentos pautavam as necessidades das
44
REIDY, 2014, p. 39.
45
MARX, 2014, p. 46.
147
populações que sofreram as reformas urbanistas, dado que pode ser confirmado com a lista de
projetos arquitetônicos, tais como o Conjunto Residencial do Pedregulho e a Escola Primária
Rural Coelho Neto, por exemplo.46
Indagado pelo Inquérito Nacional de Arquitetura (1961) sobre o papel do arquiteto no
momento socioeconômico do país, Reidy reitera a histórica consciência social vinculada a
projetos de urbanismo, quando se refere, mesmo sem citar, o “Modulor”, a forma pitagórica
que indica a dimensão humana como medida de todas as coisas formulada por Le Corbusier.
Nas suas palavras: “o elemento humano deverá ser o centro de todas as suas preocupações e o
módulo a que deverão referir-se todas as medidas.” Para o arquiteto, a sua função compete em
viabilizar “ambientes físicos que facilitem o pleno desenvolvimento das atividades
relacionadas com a vida da comunidade”; e, desse modo, conclui que o seu papel é
proporcionar “condições adequadas para morar, trabalhar, cultivar o espírito e o corpo, e
transportar-se.”47
A construção da sede definitiva do MAM RJ aliada à consciência social de Reidy e à
direção de Portinho no Departamento de Habitação Popular da Prefeitura do Distrito Federal
conferia aos gestores do Museu e do Estado notável confiabilidade e consentimento público.
O Museu integraria um projeto mais amplo destinado, exclusivamente, nas palavras da
engenheira, “às atividades esportivas, recreativas e culturais”. Contudo, verifica-se nos
relatórios sobre a construção da sede, a atenção ao “habitante da zona sul”, que teria privilégio
não somente em acompanhar as obras, como “diariamente encontrar-se com o belo terreno, e
sua faceira e bonita placa, ao lado da Avenida Beira-Mar”, isto é, o projeto do MAM RJ junto
ao Parque do Flamengo se destinava à população, mas a um grupo seleto, socialmente
privilegiado.48
Ainda sobre o Inquérito, Reidy foi questionado sobre “o problema de habitação no
Brasil”, especificamente sobre a favela, a casa popular, as habitações coletivas e afirma ser
um tema ignorado pelo poder público, sobretudo “as classes menos favorecidas” que não
possuem recursos para financiar uma casa, mesmo que construída sob moldes modestos.
Reconhece que a habitação popular, não tendo fins lucrativos, não interessa ao capital privado
e, ao pertencer ao domínio público, deveria ser considerada “unidade básica de planejamento
dentro da cidade”. O arquiteto ainda constata que a “habitação é um problema fundamental do

46
PORTINHO apud VARELA, 2014, p. 47. [In: VARELA, Elizabeth Catoia (Org.). MAM: sua história, seu
patrimônio. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 2014].
47
VARELA, 2018, p. 122.
48
Idem, p.33.
148
urbanismo” e com o Plano-Diretor deverão ser enfrentadas soluções para dificuldades de
mobilidade e moradia em proximidade ao trabalho e aos serviços essenciais à população. 49
Nota-se, porém, que na ordem discursiva dos projetos de reformas urbanas na cidade do Rio
de Janeiro, por exemplo, os processos de captação de recurso contam com investimento de
capital privado e, com esta aliança, os anseios do arquiteto quanto à habitação popular
permanecem ainda hoje como formas utópicas de se imaginar a tríade arquitetura-urbanismo-
comunidade.
Ao fim ao cabo, Reidy acabou compactuando com um projeto de cidade integrado às
aspirações nacionais, em que parte da memória cultural da cidade foi construída e preservada
e outra apagada rumo a desejada e definitiva modernização. Diante das suas palavras, o MAM
RJ comporia “uma extensa área que, num futuro próximo será um belo parque público,
debruçado sobre o mar, frente à entrada da barra e rodeada pela mais bela paisagem do
mundo, [...].”50 Poderíamos reconhecer alguns aspectos contraditórios ao justapormos à
imagem da única árvore ao pé do Morro de Santo Antônio que anuncia a demolição de um
território prestes a desmoronar e a sequência de mudas de palmeiras reais que demarcam a
construção artificial de outro. As palmeiras reais presentes no projeto paisagístico do
Convento de Santo Antônio e do MAM RJ comportam-se como signos de uma modernização
que se apresenta ambígua, em que não há quebra com a tradição, pois mesmo onde há
promessa de uma nova ordem, de novas aspirações, não há uma ruptura simbólica com um
passado.51
O par destruição/construção característico de um projeto civilizatório moderno
substitui aquilo que se apresentava ultrapassado ou não condizente com a nova realidade da
cidade, determinada pela instituição do novo diante de ideais progressistas, de ordenamento,
de disciplina, da lógica “marco zero”. A palavra “vivo” esteve impressa nos principais
documentos de inauguração do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. O termo foi
intensamente utilizado para contrapor a ideia de museus concebidos como relicários
destinados a conservar e oferecer à contemplação “obras de arte do passado”: “[...] o museu
graças a essa nova orientação, deixou de ser um mausoléu, para se tornar um órgão educativo,

49
Idem, p. 124.
50
REIDY, Affonso Eduardo. Memorial Descritivo. In: COELHO, Frederico (Org.). Museu de Arte Moderna:
arquitetura e construção. Rio de Janeiro: Cobogó, 2010, p. 22.
51
“[...] Pindorama, ‘país das palmeiras’, era como se denominava o Brasil em língua nheengatu.” Em tupi, terra
de palmeiras; designa, por extensão, o Brasil, cuja costa litorânea era coberta pela planta; a palmeira, desde o
poema canção do exílio, do poeta romântico Gonçalves Dias (1823/1864), transformou-se em um dos ícones do
país. (SCHWARTZ, 1995, p. 141).
149
vivo, criador de padrões de julgamento estético, aperfeiçoador do gosto artístico, [...].”52 Com
essa justificativa, constrói-se um museu composto por um “Bloco de Cursos” e um “Bloco de
Exposições” que expusesse e abrigasse, paradoxalmente, não somente a produção artística
contemporânea, mas a moderna – a iconografia da favela, do trabalhador rural, da cultura
popular expostas e salvaguardadas na Coleção –, mas que também atendesse a missão
educativa e formativa das novas gerações de artistas e de público. A construção da imagem do
Museu à época da edificação da sua sede carrega não só a marca de uma tradição modernista
voltada para uma valorização do nacional, como ainda reconhece em sua estrutura a vinda do
europeu que aqui “plantou” as bases da sua missão civilizadora.

2.2 A “índole” brasileira em exposição

A despeito dos critérios de valor que presidem, acima de todas as fronteiras, a


apreciação da arte contemporânea, é evidente que, tanto para a crítica como para os
artistas, o enfoque europeu e enfoque do Novo Mundo não são inteiramente
idênticos quanto às maneiras de participar da nova visualidade que se instaura neste
século. [...] Esses fatores, entre muitos outros, se refletem na índole e nas
características gerais desta exposição que exprime um processo cultural intenso de
sensibilidade brasileira, muitas vezes desordenado no seu modo de caminhar, porém
extraordinariamente rápido no tempo.53

O período compreendido entre os anos de 1947 e 1958 marca uma importante fase de
fundações institucionais do ensino e da crítica de arte. Em 1947, foi criado o Museu de Arte
de São Paulo por iniciativa do jornalista e mecenas Assis Chateaubriand. Em 1948, instala-se
o Museu de Arte Moderna de São Paulo, orientado pelo crítico de arte Léon Degand, e a
Escolinha de Arte do Brasil criada pelo artista pernambucano Augusto Rodrigues junto à
artista gaúcha Lúcia Alencastro Valentim e a escultora norte-americana Margareth Spencer.
No ano seguinte, o MAM RJ é aberto ao público sob a jurisdição de Raimundo Ottoni Castro
Maya junto à direção executiva de Niomar Moniz Sodré que, posteriormente, manteria um
canal de relacionamento com a Bienal de São Paulo, criada por Francisco Matarazzo Sobrinho
em 1951. Ocorre ainda em 1949, a criação da Associação dos Artistas Plásticos
Contemporâneos (ARCO) e a da Associação Brasileira dos Críticos de Arte (ABCA).

52
Uma cidade a espera de um museu. Jornal O Globo: Rio de Janeiro, 20 maio 1953. Acervo MAM Rio.
53
Texto datilografado para o catálogo da 1ª exposição coletiva de artistas brasileiros na Europa atribuído a
Carlos Flexa Ribeiro, 1959. Acervo MAM Rio.
150
A fase em que o MAM RJ esteve localizado nos pilotis do MES foi marcada por um
conjunto de exposições coletivas e individuais que, historicamente, foram consideradas
relevantes para a formação de uma história da arte moderna no Brasil: Premiados da 1ª Bienal
de São Paulo (1952), Cícero Dias (1952), Candido Portinari (1953), Di Cavalcanti (1954),
Grupo Frente (1955), Léger (1955), Almir Mavignier (1956), Retrospectiva Alfredo Volpi e
Lívio Abramo (1957).
A inauguração da nova fase do MAM RJ que se concentrava na segunda sede
provisória e finalmente, na sua sede definitiva, intensificou as colaborações com a Divisão
Cultural do Ministério das Relações Exteriores, tendo Niomar Moniz Sodré como mediadora,
cujas relações diplomáticas favoreceram mostras itinerantes como Arte Moderno en Brasil
(1957) e a Exposição de Arte Moderna Brasileira na Europa (1959).
O MAM RJ, através das articulações diplomáticas entre Sodré e o Departamento
Cultural do Itamaraty, assumia o papel de organizador da mostra panorâmica de arte moderna
brasileira na América Latina, reunindo obras de colecionadores e museus, como o acervo do
MAM de São Paulo destacando a obra A Boba (1917) de Anita Malfatti e Ritmo (1957) de
Ivan Serpa como a apresentação de um “Brasil contemporâneo”. A mostra ainda considerava
que “[...] nenhum movimento, nenhum artista relevante deixou de ser representado, sendo a
mostra saudada por toda parte como impressionante demonstração da forma criadora do
Brasil.”54 A ideia da exposição nasceu dos encontros entre Sodré e o “governo, organizações e
personalidades argentinas”, que, segundo os Boletins do Museu, “fizeram-lhe sentir,
insistentemente, a necessidade e a oportunidade de intensificar as relações culturais argentino-
brasileiras estagnadas havia vários anos, mediante uma exposição artística de vastas
proporções.”55
A exposição percorreu as cidades de Buenos Aires, Rosário, Santiago e Lima e reuniu
pinturas, esculturas, desenhos e gravuras pertencentes à Coleção MAM, Coleção MAM de
San Pablo e coleções privadas de Tarsila do Amaral, Antônio Bandeira, Geraldo de Barros,
Aldo Bonadei, Iberê Camargo, Flávio de Carvalho, Aluísio Carvão, Milton Dacosta, Di
Cavalcanti, Cícero Dias, Hermelindo Fiaminghi, Sanson Flexor, Alberto da Veiga Guignard,
Franz Krajcberg, Anita Malfatti, Maria Leontina, Djanira, Hélio Oiticica, Pancetti, Cândido
Portinari, Heitor dos Prazeres, Ione Saldanha, Tomás Santa Rosa, Lasar Segall, Ivan Serpa,

54
“[...] la exposición ha sido visitada durante un mes por 30.000 personas, lo que constituye una cifra “record”
em nuestro pais. Y no solo se ha visitado la muestra sino admirado al pais hermano y conversado largamente
sobre este medio magnifico de estrechamiento entre pueblos amigos.” Carta de Jorge Romero Brest ao Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Buenos Aires, 22 set. 1957. Acervo MAM Rio.
55
Boletins MAM, 1957. Acervo MAM Rio.
151
Elisa Martins da Silveira, Volpi, Sérgio Camargo, Bruno Giorgi, Felícia Leirner, Maria
Martins, Zélia Salgado, Franz Weissman, Lívio Abramo, Edith Behring, Burle Marx,
Oswaldo Goeldi, Marcelo Grassmann, Fayga Ostrower, Lygia Pape, Rossini Perez, Arthur
Luiz Piza, Aldemir Martins, entre outros.
Foi na gestão de Juscelino Kubitschek que as relações diplomáticas entre o Brasil e a
Argentina se fortaleceram, uma vez que os projetos nacionais convergiam para o
desenvolvimento de uma independência econômica através de um plano de industrialização e
do fortalecimento do mercado interno.
As duas mostras internacionais foram organizadas por Carlos Flexa Ribeiro que,
segundo a imprensa, afirmou em suas conferências que um dos principais objetivos da
exposição, além dos intercâmbios culturais, era “traduzir um estado de espírito que se
desenvolvia no Brasil no sentido de modernizá-lo. Essa mentalidade se cristalizaria em certas
instituições que atuam no ambiente brasileiro. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro é
uma delas.”56 A escolha discursiva do conjunto de obras que percorreu por alguns países da
América do Sul assemelhou-se à mostra da Europa e, inclusive, foi observado que a recepção
crítica dos países de língua espanhola se alinhava às impressões da crítica europeia,
especialmente na valorização dos artistas figurativos reconhecidamente precursores e
representantes de uma “expressão nacional”.
As influências das vanguardas europeias presente nas obras que representavam um
abstracionismo geométrico sofreram diversas críticas, sobretudo chilenas, dentre as quais
algumas combativas à arte concreta, percebidas nas palavras de Ana Helfant como “un error
filosófico”. Suas análises partem de uma perspectiva também encontrada na crítica de arte
brasileira sobre a rigidez formal, racional, carente dos elementos expressivos e narrativos, ou
seja, reiterando a querela entre figurativos e abstratos. Helfant, interessada nos estudos sobre a
dependência da arte chilena do formalismo europeu, argumenta em sua crítica que a pintura
concreta representa “la expresión quinta-esencia de lo que podria ser un estado dictatorial, o
sea: carência absoluta de libertad de pensar y libertad de expression.”57 Em contraponto, as
impressões do artista e crítico chileno Ricardo Bindis também abordou o tema das influências,
reconhecendo um vocabulário formal europeu, porém reconheceu que a atividade artística
brasileira estava consciente de que a nacionalidade de uma pintura não se restringe à temas

56
MAURÍCIO, Jayme. O homem e a arte de hoje – conferência de Flexa Ribeiro. Rio de Janeiro, Correio da
Manhã, 05 jul. 1957. Acervo MAM Rio.
57
HELFANT, Ana. Arte moderno del Brasil. Política y Espíritu. Revista Quinzenal, n. 187, 01 nov 1957. Acervo
MAM Rio.
152
regionalistas ou paisagens típicas. 58 Neste caminho, o historiador e crítico de arte espanhol
Antonio Romera considera que as características vernaculares presentes nas produções
figurativas não podem ser confundidas com populismos e, por esse motivo, lastima o envio de
obras pouco representativas da produção de Di Cavalcanti e Portinari. Este último artista
estava representado na mostra com o maior número de obras, nove, no total, em seguida, Ivan
Serpa com oito obras e Di Cavalcanti e Lygia Clark com seis trabalhos.
O texto de apresentação de Enrique Bello, à época diretor da Revista de Arte da
Universidade do Chile, realizada para o catálogo da exposição que ocorreu em Santiago,
marca a relevância das pesquisas formais empreendidas pelos artistas representantes do
abstracionismo geométrico, como Lygia Clark e Ivan Serpa, mas enfatiza a importância da
obra de Portinari como “el más completo artista plástico del Brasil.” Seu argumento se
desdobra ao associar a produção do artista à “família Picasso” e ao muralismo mexicano,
mas, ao invés de contrapor as diferentes tendências artísticas apresentadas na exposição,
coloca o conjunto de obras como reflexo de vitalidade e atualidade no panorama das artes
plásticas latino-americanas. O crítico percebe o interesse dos artistas brasileiros em busca de
uma unidade formal e, assim como a América Latina (aqui se verifica um descolamento do
Brasil ao conjunto que forma uma cultura latinoamericana), empreende uma tentativa de se
distanciar “sociologicamente” do passado colonial. Destaca o “ritmo brasileño” no
desenvolvimento de projetos como a construção de Brasília e todo o potencial da arquitetura
moderna brasileira investida em inovações por meio de construções monumentais. Embora o
projeto arquitetônico de Reidy para o MAM RJ também tenha essa característica monumental,
apenas os nomes de Oscar Niemeyer e Lucio Costa são mencionados. 59
Em seguida, às análises de Bello, Ribeiro desenvolve sua narrativa histórica da arte
moderna no Brasil, posicionando a Semana de Arte Moderna de 1922 como marco inicial.
Alinha-se às considerações do crítico de arte chileno ao considerar a obra de Portinari a maior
referência popular da arte moderna, sobretudo a sua participação na formulação dos
fundamentos estéticos necessários à construção da imagem de determinadas instituições
públicas. Destaca o artista Guignard como um dos patriarcas da arte moderna e a sua “pintura
viril, decorativa sin fragilidades superficiales, espontánea en sus estrechas relaciones com la
tierra [...].” E confia nas pesquisas de Ivan Serpa: “la aptitud creadora y la indagación de lo

58
Ferreira-Braga, A. de Vilhena. Exposição de Arte Moderna do Brasil. Santiago, 04 de dezembro 1957.
Relatório emitido ao Ministro do Estado das Relações Exteriores Embaixador José Carlos de Macedo Soares.
Acervo MAM Rio.
59
Arte moderno en Brasil. Museo de Arte Contemporáneo, 16 set -6 out 1957. Catálogo de exposição. Acervo
MAM Rio.
153
inédito en el campo de la visualidad. El trabajo de los jóvenes que inician su estilo que
tenderá en el tiempo a la consolidación personal de disciplina y coherencia plástica.”60
Dois anos após a itinerância pela América Latina, outra exposição internacional foi
realizada pelo MAM RJ com a proposta de reunir um grupo de obras de artistas que pudessem
representar a arte moderna brasileira na Europa. A exposição esteve em Paris, Amsterdã,
Barcelona, Lisboa entre outras cidades com o objetivo de divulgar o que o Brasil tinha de
“mais representativo”. Segundo o relatório da exposição, a iniciativa foi operacionalizada a
partir dos “entendimentos” das representações diplomáticas Brasil-Alemanha e a Divisão
Cultural do Itamaraty junto à Direção Executiva do MAM RJ.
Cabe mencionar que o intercâmbio entre o Brasil e a Alemanha remonta a criação da
Sociedade Pró-Arte de Artes, Ciências e Letras (Pró-Arte), fundada em 1931 pelo alemão
Theodor Heuberger, a pianista Maria Amélia Rezende Martins, Frei Pedro Sinzig, entre outros
artistas e intelectuais no Rio de Janeiro. A Pró-Arte promovia exposições de artes plásticas,
concertos e cursos. A fusão do modernismo e do nacionalismo como tema mobilizou as
atividades da Pró-Arte, especialmente a relação entre os dois países. Nas palavras de Marcelo
Lacombe (2008): “é o nacionalismo que dá a tônica da ideia de intercâmbio como relação
simbólica entre culturas, buscando articular a relação entre o nacional e o estrangeiro como
uma relação entre duas nacionalidades.”61 A Embaixada Alemã apoiou a programação
cultural até 1942, ano que a Pró-Arte encerrava suas atividades devido ao apoio da Força
Expedicionária Brasileira (FEB) aos norte-americanos na Segunda Guerra Mundial. A Pró-
Arte retoma as atividades em 1947 com a reconstrução da República Federal Alemã e o fim
do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Para a mostra que itinerou por alguns países da Europa, a comissão organizou 280
obras entre pinturas, gravuras, esculturas e desenhos com o mesmo grupo de artistas da
mostra anterior, com algumas pouquíssimas exceções. Diferentemente do processo de seleção
da mostra para a América do Sul, coube aos artistas a escolha de aproximadamente seis obras
que julgassem mais importantes para a exposição internacional. Estas deveriam ser
fotografadas e enviadas à Comissão de Exposição que avaliaria a pertinência do conjunto para
a mostra. Alguns artistas encontravam-se fora do país, em estudo ou como residentes. O
artista Flavio Shiró, por exemplo, estava em Paris e, embora responda entusiasmado ao
convite, parece-nos contrapor, de certo modo, à ênfase impressa nas palavras da diretora
executiva sobre o pedido de “seis entre as melhores, repito”, no que continua: “Nestes últimos
60
Idem.
61
LACOMBE, 2008.
154
tempos trabalhei a todo vapor, e os resultados conseguidos revelam maior simplicidade
técnica, assim como variedade nas cores.”62
Almir Mavignier que havia concluído seus estudos em Ulm, onde continuava a residir,
sugeriu que seus trabalhos fossem selecionados por Max Bill diretamente do seu ateliê e não
através de fotografias, com a condição que não ferisse “a susceptibilidade do júri.” A
Comissão não apenas concordou, como avaliou que “ninguém melhor que êle” para selecionar
as obras do artista brasileiro, afinal, sua ‘validação’ é conferida, inclusive, por carta pelo
próprio artista: “[...] lutei e ganhei o diploma no qual se encontram as assinaturas de Max Bill,
Richard P. Lohse, Scheidegger, prof. Debus (Stuttgart) e Max Bense.” 63
Iberê Camargo questiona a ausência do seu nome na lista final divulgada no jornal
Correio da Manhã, que, segundo o artista, havia sido convidado e, conforme solicitado, todo o
material necessário para avaliação fora enviado: “Surpreso porque o envio dos meus quadros,
bem como o da relação dos colecionadores que cederiam as obras de sua propriedade, [...]”.
Reitera a mensagem, solicitando “[...] o favor de esclarecer a razão de minha exclusão.” 64
Sodré sinaliza, em carta a Iberê, uma série de contratempos (sem mencioná-los) que
antecederam a lista final divulgada pelo jornal. Afirma um “mal-entendido” na conjugação
dos interesses do artista e o da Comissão e argumenta que os dois óleos enviados pelo artista
eram insuficientes “em número”. Como solução, sugeriram que fosse representado por quatro
gravuras que estiveram na exposição Pinturas e Gravuras 1955 a 1958 na Galeria GEA no
ano anterior, das quais julgava imprescindíveis para a mostra na Europa.
Muitos artistas, assim como Iberê, migraram para o Rio de Janeiro na década de 1940
por considerar a cidade “incontestavelmente, a capital política e intelectual do Brasil”, para se
lançarem nas mostras promovidas pelo Salão Nacional de Arte Moderna com o objetivo de
conquistar um prêmio de viagem ao “estrangeiro”. Foi, desse modo, que Iberê continuou sua
formação artística na Europa ao ser premiado pela Divisão Moderna do 52o Salão Nacional de
Belas Artes. Em entrevista à Lisette Lagnado, afirma ter participado da inauguração do MAM
RJ no Ministério da Educação, mas logo constata o “domínio absoluto”, “intocável” de
Portinari, que, para Iberê Camargo, impossibilitou a inserção de muitos artistas na cena
artística carioca, principalmente quando parte dessa cena estava vinculada aos órgãos oficiais
do governo Vargas junto ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que tinha como

62
Carta datilografada de Flávio Shiró a Niomar Moniz Sodré. Paris, 18 jan 1959. Acervo MAM Rio.
63
Carta datilografada de Almir Marvignier a Niomar Moniz Sodré. Ulm, 2 fev 1959. Acervo MAM Rio.
64
Carta datilografada por Iberê Camargo a Niomar Moniz Sodré. Rio de Janeiro, 23 mar 1959. Acervo MAM Rio.
155
principal objetivo centralizar, coordenar e censurar qualquer serviço de comunicação cultural,
política e social que difamasse a imagem do Governo.
A sua ausência na mostra internacional não inviabilizou sua participação na
programação cultural do MAM RJ. Três anos após a mostra itinerante, o artista faria uma
exposição retrospectiva no Bloco Escola, correspondendo a vinte anos de atividade com obras
pertencentes a colecionadores particulares e pela obtenção do Prêmio Nacional de Pintura na
VI Bienal de São Paulo (1961). Aliás, as premiações realizadas pela Bienal também serviam
de parâmetro para o Museu constituir seu programa de exposições individuais e influenciava
também as escolhas de artistas e obras para as mostras internacionais. Ribeiro e Maria
Martins, como representantes do MAM RJ, por exemplo, compunham o júri da Bienal de São
Paulo, reiterando o apoio, o intercambio e o “controle de qualidade” entre as cidades e as
instituições.
No catálogo da exposição internacional, Ribeiro interessado em justificar o caráter
panorâmico da mostra, estabelece uma periodização para que o leitor/espectador europeu
tivesse uma noção dos principais marcos da história da arte brasileira. Inicia sua narrativa pelo
desenvolvimento de uma arquitetura e pintura religiosa, destacando a escultura de
Aleijadinho. Aponta a chegada da Família Real Portuguesa e a contratação da Missão
Artística Francesa que instaura o “ideal neo-clássico” tornando o Brasil tributário das
tendências artísticas do século XIX: “Na prática um produto de modelo geral europeu e, para
muitos, particularmente francês.”65
Informa que o Brasil só veio a tomar conhecimento da arte moderna com a
repercussão das exposições de Lasar Segall e Anita Malfatti em 1913 e 1917 respectivamente
e descreve os anseios do movimento modernista ditados por renovações estéticas com base na
valorização de uma arte “nacional” 66, que, segundo o autor, foi apenas um dos argumentos em
repúdio ao academicismo oficial. Constata que a “subversão estética” continuava subordinada
às tendências europeias uma vez que Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, Lasar Segall e Di
Cavalcanti traziam os modelos estéticos fauvistas, cubistas, expressionistas e surrealistas
diretamente das “alfândegas do Rio de Janeiro e de Santos sem pagar direitos.”
Ribeiro credita aos anos 1930 uma maior liberdade na execução de temas impressos
pelas novas soluções plásticas e cita Lasar Segall, Di Cavalcanti na exploração de temas
sociais e o caso de Portinari que torna a arte moderna um ato público ao conduzir a “liderança

65
Texto datilografado, sem título, assinado por Carlos Flexa Ribeiro para o catálogo da mostra coletiva de arte
contemporânea brasileira na Europa, abr 1959. Acervo MAM Rio.
66
As aspas duplas da palavra nacional foram inseridas pelo próprio autor no texto.
156
catequista da nova visão.” Nota o desenvolvimento da arquitetura moderna e a criação de
novos museus – MAM RJ, MASP e MAM SP, este último, sede de cinco Bienais com
mostras da “arte universal de conteúdo”, ampliando os horizontes da atividade artística
nacional. Argumenta que o propósito da mostra, assim como a exposição que itinerou pela
América Latina, foi reunir diversos artistas de diferentes interesses estéticos em plena
produção. Dedica um único parágrafo à participação dos representantes figurativos oficiais,
destacando a “autodidata vitoriosa” Djanira pela sua espontânea “visão da terra e autonomia
das soluções plásticas”. Por fim, enfatiza a seleção de artistas, cujas pesquisas pessoais
encontram-se consolidadas e bem definidas segundo as derivações geométricas ou
“geometrizantes” provindas das vanguardas construtivas europeias.
A apresentação de Ribeiro se estende em análises sobre o grupo de obras abstratas não
geométricas, “de natureza variada e livre”, referentes ao artista Antonio Bandeira e Manabu
Mabe e prossegue com o que considera mais revelador na produção artística do país nos
últimos anos: a gravura representada por Oswaldo Goeldi, Fayga Ostrower, Lívio Abramo,
Rossini Perez, Arnaldo Pedroso d’Horta e Anna Letícia. Sua preferência pelos artistas
gravadores se referia à recente inauguração do Ateliê de Gravura que, naquele mesmo ano, de
acordo com o artigo de Maria Luisa Luz Tavora (2012, p.60), “acabou virando a menina dos
olhos do Museu”. O Ateliê mesclava técnica e liberdade de criação e deu suporte ao
desenvolvimento da linguagem da gravura, em diferentes abordagens, cuja ênfase centrava-se
em uma prática experimental do meio em si.
Em suas últimas linhas, descreve brevemente o conjunto de escultores composto por
Bruno Giorgi, Maria Martins e Franz Weissmann e a justificada participação de Aldemir
Martins através de seus desenhos que alcançaram reconhecimento nacional e internacional por
meio do Prêmio Internacional de Desenho da Bienal de Veneza (1956).
O professor, historiador da arte e diretor-geral do MAM RJ conclui sua apresentação
acreditando que a exposição cumprirá seus objetivos ao demonstrar o quanto a arte nacional
avançou diante dos “tímidos reflexos acadêmicos das tradições artísticas precedentes”,
especialmente através das diferentes obras de tendências abstratas que confirmam na
juventude artística o interesse em superar “as considerações folclóricas, regionais ou
localistas, em favor de uma conceituação universal da arte do nosso século”. Nesse ponto, a
ênfase às produções abstrato-geométricas se diferencia dos propósitos da exposição que
circulou pelos países da América Latina. Para a Europa, houve a tentativa de avizinhar a
produção artística brasileira da produção internacional, afinal as tendências não figurativas, ou

157
o chamado Informal, ainda era vigente na cultura americana, europeia e japonesa, com o
grupo Gutai, por exemplo, que estava diretamente ligado ao Expressionismo abstrato ou a
action painting.
Ribeiro refende os núcleos abstratos diante das oposições dos “remanescentes do
Modernismo de 1922” quando afirma o surgimento de uma “nova sintaxe das formas” que
deflagram liberdade e autonomia à arte em comparação às “velhas servidões de natureza extra
artística.” Avalia que a nova produção se dará com o tempo, “ao sabor de um processo de
maturação natural”, cuja linguagem plástico-formal está em plena formação.67
Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger (1984) afirmam que as divergências no
âmbito plástico-formal entre figurativos e abstracionistas foram deslocadas para um debate
ético-político. A ação estratégica dos defensores do realismo social foi combater a propagação
estético-ideológica dominante da esquerda intelectual que rompia com determinados
princípios formais ainda predominantes na arte moderna brasileira.
Mesmo no intervalo de dois anos entre uma mostra e outra, é evidente que Carlos
Flexa Ribeiro considerou em suas elaborações o legado modernista, as influências das
pesquisas formais das vanguardas artísticas europeias e as recentes práticas voltadas para uma
vontade construtiva, no âmbito das artes plásticas, de emancipação dos modelos hegemônicos
das artes. No entanto, verificaremos na recepção da crítica europeia, questionamentos sobre
esta construção linear, marcada por uma lógica evolutiva do figurativo ao abstrato formulada
pelo MAM RJ através da própria construção discursiva da exposição.
“L'art brésilien d'aujourd'hui ou est le Brèsil?” é o questionamento de uma resenha
crítica publicada no “O Jornal” sobre a recepção da exposição de artistas brasileiros em Paris.
Traduzida pelo artista, crítico de arte e professor Quirino Campofiorito, o texto informa que o
público em geral percorreu a exposição sem demonstrar grandes interesses pelo conjunto de
pinturas, esculturas, gravuras e desenhos. Observou uma apatia do visitante pela profusão
diária de exposições ofertadas por dezenas de galerias parisienses, porém anuncia como
hipótese o desinteresse do espectador parisiense estar associado à falta de novidade na arte
brasileira. Para Campofiorito, os artistas brasileiros apenas exibem “com rigoroso capricho” o
que veem nas últimas revistas de arte europeias.
Como crítico de arte, reitera que o ponto principal da crítica parisiense foi sobre a
“falta de originalidade” da produção artística brasileira apresentar obras em sua maioria
filiadas a um processo rigoroso de “internacionalismo da arte moderna” que uniformizou a
67
Texto datilografado, sem título, assinado por Carlos Flexa Ribeiro para o catálogo da mostra coletiva de arte
contemporânea brasileira na Europa, abr 1959. Acervo MAM Rio.
158
atividade artística. Constatação que se justifica pela observação de um crítico francês em que
diz “[...] se as etiquetas e o catálogo não nos dissessem de onde vêm estas pinturas, seria
impossível adivinhá-lo [...], as escolas engendram um academismo do abstracionismo ou do
semi-abstracionismo.”68 Para a crítica internacional, o conjunto de obras representa apenas o
percurso tardio dos processos de abstração na produção artística brasileira.
Embora os artigos dos jornais não tenham reproduzido o formato da exposição,
percebemos pela ordem do discurso crítico e do próprio texto de apresentação de Ribeiro uma
organização da exposição por núcleos formais. Uma sala concentrou os representantes
figurativos, em outra os abstratos geométricos e possivelmente Manabu Mabe, Flávio Shiró,
Antonio Bandeira, considerados pelas resenhas críticas “informais”, “tachistas” ou somente
“abstratos”; estavam próximos ao conjunto associado à gravura e aos desenhos que, na
maioria das resenhas, concluíam a apreciação crítica ou o final da exposição.
Muitos jornalistas e críticos de arte brasileiros traduziram alguns artigos para a
imprensa brasileira, especialmente para o interessado Correio da Manhã, que favoráveis ou
não à abordagem da mostra traçaram um perfil da recepção crítica da mostra brasileira onde
esteve exposta. Jayme Maurício avaliou no final do ano de 1959 os exames minuciosos que
cada cidade europeia produziu sobre a mostra brasileira, identificando uma avalanche de
impressões nem sempre afirmativas, mas que se colocaram exteriores ao próprio
reconhecimento da crítica brasileira: “[...] parece que de repente sentimos violentamente a
fome da crítica mais experimentada, sem compromissos e intolerante. É um bom sinal. Afinal
de contas a louvação doméstica fatiga também.” 69
Como previsto, Portinari e Di Cavalcanti foram, de um modo geral, exaltados quanto
ao conteúdo formal e temático de suas obras apresentar alguns aspectos nacionais em
concordância ao que se reconhecia como “elementos originalmente brasileiros”, “motivos
folclóricos” e “narrativas primitivas” presentes nas obras das “ingênuas” Djanira e Elisa
Martins da Silveira e do autodidata José Antônio da Silva.
Percebe-se que tais impressões contrapõem de imediato as ambições de Flexa Ribeiro
quanto à universalização no campo da arte em detrimento dos “folclorismos” associados à
produção artística brasileira. Para alguns críticos de arte europeus, a exposição panorâmica de
artistas brasileiros representa com fidelidade à consolidação dos vínculos “que prendem o

68
CAMPOFIORITO, Quirino. Onde está o Brasil? O Jornal: Rio de Janeiro, 30 set 1960. Acervo MAM Rio.
69
MAURICIO, Jayme. Arte Brasileira de Munique a Viena. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 03 out 1959.
Acervo MAM Rio.
159
Brasil” 70 aos valores artísticos tradicionais da cultura europeia. Percebem um domínio seguro
de todos os movimentos terminados em “ismo”, mas lamentam a “ausência quase total de
elementos que pudessem chamar de especificamente brasileiros ou que possuam as reais
qualidades da espontaneidade, do criado e do elementar.”71
A crítica alemã, mais áspera, considera decepcionante toda a mostra, classificando a
pintura de Portinari como “colonial-romântica”. A sua obra Cangaceiro (1958) foi a mais
divulgada pelos jornais europeus, seguida de Esposa (1950), de Di Cavalcanti, Procissão
(1953), de Elisa Martins, e Debulhador de arroz (1957), de Djanira. Ainda associa a produção
abstrato-geométrica à expressão “painéis decorativos concretistas”, cujo destaque das obras
Tema circular n.2 (1958), de Aluísio Carvão, e Faixas ritmadas (1953), de Ivan Serpa, foram
usados como exemplos de um concretismo enfraquecido na Europa, mas que no Brasil parece
encontrar “um asilo, e o seu Eldorado.”72
Observamos, em algumas críticas, um esforço em compreender por que os artistas
brasileiros absorveram, sem restrições, o concretismo considerado “gélido” em um país de
natureza “tropical”, “exuberante” e “exótica”. A crítica internacional estava pouco interessada
em identificar filiações formais entre artistas brasileiros e europeus, pois apenas considerava
“avançada e ousada” a arquitetura moderna brasileira. 73 As análises ressaltavam que a
exposição era aguardada com grande expectativa, visto que os projetos urbanísticos e
arquitetônicos ganhavam admiração e notoriedade internacional. Assim como na apreciação
crítica latino-americana, os pareceres europeus enfatizaram os monumentos edificados sob os
preceitos fundamentais da arquitetura moderna, como o Ministério da Educação e Saúde e a
construção de Brasília, como nova capital federal, erguida literalmente “do nada, no meio da
floresta virgem”.74 Desapontada, pontua sem diplomacias: “[...] Não se encontra um único
pintor, gravador ou escultor que se pudesse comparar nem de longe, a um arquiteto do nível
de um Niemeyer.”75

70
MACIEL, Artur. A Exposição de Arte Moderna Brasileira no Palácio Foz. Diário de Notícias: Rio de Janeiro, 28
set 1960. Acervo MAM Rio.
71
MAURÍCIO. Jayme. Folclore e consequências abstratas. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 29 nov 1959.
Acervo MAM Rio.
72
Correio da Manhã. Complementos e decepções: Brasil na Schillerplatz. Rio de Janeiro, 22 nov. 1959. Acervo
MAM Rio.
73
Em 1954 a exposição Arquitetura Brasileira Contemporânea foi promovida também pelo MAM Rio e causou
admiração na Europa.
74
MAURÍCIO. Jayme. Folclore e consequências abstratas. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 29 nov. 1959.
Acervo MAM Rio.
75
Idem.
160
Por outro lado, a crítica alemã apresentou impressões elogiosas ao grupo de
gravadores presentes na exposição, o que não nos parece uma surpresa, já que a própria
exposição foi fruto dos entendimentos entre o Brasil e a Alemanha. Tradicionalmente
reconhecida pela expressão gráfica, a crítica alemã avaliou as gravuras com “excepcionais
qualidades que, conjuntamente com os principais aspectos de toda a exposição, confirmam a
forte impressão deixada pelas criações artísticas contemporâneas brasileiras.” 76
O recém-inaugurado Ateliê de Gravura marcaria a posição do MAM RJ no plano
pedagógico de modernização não só dos parâmetros educacionais nacionais, mas da
aproximação definitiva do público na absorção dos postulados modernos com base na
experimentação dos meios. O Ateliê foi fruto do empenho de Carmem Portinho em busca do
gravador franco-alemão, Johnny Friedlaender, de quem obteve as orientações necessárias para
a sua montagem junto às colaborações da artista Edith Behring que, posteriormente, assumiu a
sua direção. Segundo Távora (2012), os investimentos para montagem do Ateliê – materiais e
mobiliário importados, professores e a “ilustre presença” do curso inaugural de Friedlaender –
não tiveram precedentes no campo da arte, especialmente na gravura. O Ateliê de Gravura do
Museu conjugava técnica e liberdade, tornando-se referência internacional para os artistas que
buscavam outras expressões plásticas no que se referia às tendências contemporâneas da
linguagem.77
A crítica alemã destacou ainda as xilogravuras e litogravuras de Lasar Segall, “as finas
gravuras” de Fayga Ostrower; e enalteceu as xilogravuras de Arnoldo Pedroso d’Horta e
Marcello Grassmann.
A artista Fayga Ostrower não poderia deixar de ser notada pela crítica, já que um ano
antes recebera o Grande Prêmio Internacional de Gravura na XXIX Bienal de Veneza, tendo a
xilogravura 5831 notada em meio às gravuras de temática social dos artistas Lasar Segall e
Oswaldo Goeldi. Em 1954, o próprio Goeldi questionara a artista em sua exposição no MES
sobre os rumos da sua produção: “Mas para onde você vai com esses trabalhos?” 78 A artista
tinha consciência de que a sua produção, ao contrário de Goeldi, não iria absorver
completamente a estética cubista, afinal seu interesse se incidia nos problemas apresentados
pelo cubismo às experiências da não figuração. Segundo a artista, entre 1952 e 1954, seu
76
MAURÍCIO. Jayme. Folclore e consequências abstratas. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 29 nov. 1959.
Acervo MAM Rio.
77
O Ateliê de Gravura funcionou até 1967 com algumas reestruturações realizadas pelo coordenador de
Cursos, Frederico Morais, mas a sua manutenção sofreu uma série de deficiências, sobretudo em decorrência
de problemas financeiros enfrentados pelo Museu desde 1961 e acabou concluindo suas atividades
definitivamente em 1969. (TÁVORA, 2012).
78
COCCHIARALE; GEIGER, 1984, p. 171.
161
trabalho começa a se apresentar “estilisticamente mais abstrato” a respeito da forma, “[...]
sobretudo com a estrutura de espaço e sua relação com o conteúdo expressivo.” 79 Considera
que no Brasil, a arte informal teria desenvolvido obras mais autênticas em vista do contexto
artístico da época que tendia para a arte concreta, embora já datada encontrava-se
devidamente referendada por teorias e por parte da crítica de arte brasileira.
Fayga Ostrower teve um papel importante, não só como artista referencial das
investigações informais na gravura, mas como professora na programação de cursos teóricos
do MAM RJ. Responsável pelo curso Composição e Análise Crítica na década de 1950,
concentrava seus esforços em desenvolver a “sensibilidade e compreensão" de artistas e
público em geral, interessando na linguagem visual e na interpretação da história da arte
ocidental por meio de análises iconográficas. A bibliografia do curso apresentava um viés
teórico centrado nos estudos da Teoria da Visualidade Pura, de Heinrich Wölfflin; A vida das
formas, de Henri Focillon; Sentimento e Forma, de Susanne Langer; Arte e sociedade, de
Herbert Read; O Museu Imaginário, de André Malraux; A cultura do Renascimento na Itália,
de Jacob Burckhardt; entre outras referências como Totem e Tabu de Sigmund Freud. 80 No
relatório do seu curso, há uma tradução do texto de Focillon (editado no Brasil apenas na
década de 1980), possivelmente utilizado nas aulas, em que há o destaque para a obra de arte
apresentar-se como resultado da “atividade inteiramente independente”, ou seja, no campo do
pensamento estético a prática artística deve corresponder à busca pela autonomia formal.
O abstracionismo informal, ao contrário dos movimentos concretos e neoconcretos,
não formalizou teorias, limites ou estabeleceu normatizações para sua execução. Movido pela
liberdade individual, cada artista pôde desenvolver segundo os seus próprios interesses
plástico-formais os caminhos que a sua obra tomaria. No entanto, vemos a princípio as
pinturas de Antônio Bandeira associadas aos códigos informais, sendo escolhido para criação
do cartaz da Bienal de São Paulo de 1953, como “uma interrupção na sequência de obras
filiadas à vertente geométrica. Seu autor é figura destacada no panorama do abstracionismo
informal brasileiro, e é natural que essa importância ganhasse visibilidade nos cartazes.”81 No
entanto, a mostra que viria a expor uma quantidade significativa de representantes da arte

79
Idem.
80
Bibliografia do Curso de Composição e Análise Crítica de Fayga Ostrower, s/d. Cópia de documento
datilografado. Acervo MAM Rio.
81
O cartaz da II Bienal de São Paulo (1953) foi criado por Antônio Bandeira. Citação disponível em
http://www.bienal.org.br/exposicoes/2bienal/cartazes/4228. Acesso 07 dez. 2018.
162
informal e do tachismo foi a Bienal de 1959, não por acaso considerada a “Bienal do
Informalismo.”82
É possível notar, por meio dos artigos publicados nos jornais, as diversas tentativas da
crítica em enquadrar os artistas abstratos na mostra internacional: “Samson Flexor e Tanaka
apresentam boas contribuições na corrente tachista”83; “[...] misteriosas caligrafias dos nipo-
brasileiros Manabu Mabe e Tanaka”;84 “Os abstratos chamados “líricos” como os de origem
japonesa Tanaka e Manabu Mabe.”85 A associação ao tachismo e ao informalismo lírico
também era realizada no Brasil com o adendo negativo da crítica presente nos discursos de
Ferreira Gullar e Mario Pedrosa defensores das tendências abstrato-geométricas. Contrária a
essas críticas, havia a defesa do crítico de arte Antonio Bento que afirmava não haver
distinção entre a abstração geométrica e abstração informal. Dizia que a abstração era dividida
em duas vertentes: “uma vem mais da mente, a outra vem mais da alma, de um impulso, de
um gesto.” Assume sua predileção pela arte abstrata informal por se tratar de uma “arte
aberta”, consideração extensiva à tarefa da crítica que não deve tomar partido de uma
tendência ou outra.
Outras definições para a abstração geométrica e informal foi dada pelo poeta e crítico
de arte Theon Spanudis (2011) que reflete sobre o usual antagonismo conferido a essas
tendências, descrevendo-as como “arte das formas” e “arte das formações”. Desse modo,
observam-se características comuns, por exemplo, o interesse pelo meio estritamente formal e
a rejeição por conteúdos alusivos à realidade, pois identifica em ambas as tendências o
interesse totalmente voltado para os “dados e acontecimentos internos da obra [...].” A única
diferença, segundo o crítico, está no “ponto de partida”, no momento em que a obra é
deflagrada. O artista concreto parte de “formas controláveis” e o artista informal, de “formais
ocasionais”; contudo, analisa que essa diferença inicial se desfaz com a dinâmica impressa em
ambas as obras que convergem segundo o “caráter tempórico dinâmico da captação e
realização do tempo de formação, do tempo orgânico-vivencial-criativo.”86
Importa notar ainda que, no mesmo ano da mostra na Europa, o MAM RJ realizou a
exposição de obras de George Mathieu. Com trabalhos de grandes dimensões, provocou-se

82
TAVORA, 2013, 122.
83
MAURICIO, Jayme. Arte brasileira em tournée europeia. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 6 dez 1959.
Acervo MAM Rio
84
MAURICIO. Jayme. Brasileiros em Paris: primeiras fotos e críticas. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 09 set
1960. Acervo MAM Rio
85
MAURICIO, Jayme. “Le Monde” focaliza a Exposição do Museu do Rio. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 14
set 1960. Acervo MAM Rio
86
SPANUDIS, 2011, p. 143.
163
grandes expectativas no público e na imprensa, sobretudo, ao trazer grafado em seu catálogo
impressões da crítica de arte, como Clement Greenberg “O pintor europeu que eu mais
admiro” e André Malraux, “Enfim, um calígrafo ocidental”, além de artistas como Salvador
Dali, “Os quadros de Mathieu são os decretos reais da descontinuidade da matéria”.
Contrariando as polarizações ideológicas ainda em ressonâncias àquele período, Mathieu
expõe pinturas com títulos que tratam das manifestações religiosas de matriz africana, como
candomblé e umbanda, Nanã; Yemanjá; Iansã; e personagens que marcaram a história do
Brasil, Hommage a Antonio Conselheiro; Hommage a Lampeão e Mort anthropophagique de
l’êveque Sardinha.87 Este último trabalho foi realizado pelo artista no Museu junto ao Ballet
Folclórico de Mercedes Baptista, em que aparece vestido com indumentárias que remetem às
culturas indígenas e africanas. A performance do artista junto aos bailarinos ressalta o olhar
estrangeiro, reforçando um olhar exótico, extravagante da cultura brasileira, além de
distanciar-se do pensamento da arte informal calcada nas investigações experimentais do
suporte, dos materiais e técnicas, solicitando o espectador a compreendê-la de outro modo.
Maria Luisa Luz Távora (2013) analisa ainda que a desqualificação da crítica,
sobretudo aquela que defendia as produções abstrato-geométricas como legitimadoras da
busca pela autonomia do campo artístico na década de 1950, inibe a possibilidade da arte
informal ocupar o lugar que lhe é justo pelo teor experimental a que chegaram seus artistas
representantes. De todo modo, a intencionalidade do MAM RJ em divulgar
internacionalmente a produção artística brasileira com ênfase no abstracionismo geométrico e
informal cumpre a agenda estabelecida pelo MAM SP e a Bienal de São Paulo ao firmar seus
compromissos com a expansão desses regimes de visualidade presente na década de 1950. A
exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo (1949) organizada para a abertura do MAM
SP foi preponderante para a circulação de informação sobre as novas tendências, assim como
as cinco Bienais de São Paulo que absorveram o abstracionismo geométrico e informal em
consonância com as obras históricas e contemporâneas a essas tendências. Nesse sentido,
compreendemos que o MAM RJ realizou essa mostra a fim de responder e corresponder aos
investimentos de um projeto de modernização dos setores culturais oficiais, além de veicular
intencionalmente sua imagem. Nas palavras de Carmem Portinho: “Durante a década de
cinquenta e parte da sessenta, vivemos a euforia de projetarmos a arte brasileira no exterior.
Orgulho-me muito dessa época, do que nós conseguimos realizar.”88

87
Mathieu, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1959. (Catálogo de exposição). Acervo MAM Rio.
88
Carmem Portinho acusa diretoria de ter destruído o MAM que ela ajudou a criar. Jornal do Brasil: Rio de
Janeiro, 02 jun. 1985. Acervo MAM Rio.
164
Outro ponto a ser demarcado é sobre os interesses colocados pelas relações
diplomáticas brasileiras ao investir na visibilidade dos artistas brasileiros e, especialmente,
dos gravadores de tendências abstratas no exterior. Nas palavras de Távora (2011), “A
Divisão Cultural do Ministério das Relações Exteriores privilegiou em seu patrocínio a
gravura artística e a arquitetura. Ambas ofereciam contribuição para a imagem de um país
emergente, progressista, afinado às propostas internacionais da arte.”89
No entanto, o “desordenado modo de caminhar” da arte brasileira, cujo destaque da
citação abre este subtítulo, talvez tenha revelado as disputas ético-políticas em defesa de uma
representação brasileira internacional de vertente figurativa ou abstrato-construtiva. O que
corresponde às afirmações de Carlos Zílio (1997) sobre o debate interno acerca da arte
moderna, já oficializada desde 1945, focar em uma querela interna. Por outro lado, o
argumento de Glória Ferreira (2013, p. 80) é que não se configurou no Brasil uma mimese do
estilo ou tendência abstrata geométrica e informal, mas o indicativo de “mutações profundas e
estruturais na concepção e na práxis da arte”.
Nessa perspectiva, o MAM RJ ao associar-se aos experimentalismos, seja de natureza
concreta, neoconcreta e informal, de certo modo, se aproximaria, enquanto práxis, de outras
formas “realistas” de se conduzir as questões sobre arte. Adiante, não caberia ao Museu
reiterar a crítica concretista paulista que pretendia romper, na concepção de Cochiaralle e
Geiger (1984, p. 15), “não apenas o nível das aparências visíveis do mundo, como também de
toda e qualquer forma de representação, seja ela expressão da subjetividade do artista, ou
qualquer outra”, pois seus espaços acabariam por acolher justamente os desdobramentos do
pensamento neoconcreto e de uma fatia da produção artística contemporânea no entre décadas
1960/70.
O lançamento do Manifesto Neoconcreto (1959) irá responder, na percepção de
Ronaldo Brito (1999), à “impossibilidade do ambiente cultural brasileiro seguir o sonho
construtivo, a utopia reformista, a ‘estetização’ do meio industrial contemporâneo”, pois os
artistas representantes do neoconcretismo desenvolveram experimentações que reverberam na
programação artística, com destaque para a mudança conceitual do programa pedagógico do
MAM RJ, e, segundo a historiografia da arte no Brasil, a constituição de uma área
experimental, ainda que breve no contexto carioca.

89
TÁVORA, Maria Luisa Luz. A gravura brasileira contemporânea em livro – 1965: história e crítica. Comitê
História, Teoria e Crítica de Arte, 20º Encontro Nacional – Subjetividades, Utopias e Fabulações, Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, ANPAP, 2011, p. 2265.
165
Enquanto internacionalmente o MAM RJ representava uma visão panorâmica da arte
brasileira permeada por pinturas, esculturas, gravuras e desenhos, cujos temas e tendências
perpassavam a figuração e a abstração, no Brasil, os artistas junto à crítica de arte discutiam
as diferentes tomadas de posição acerca das produções não figurativas. Os artistas começavam
a protagonizar outras experiências e teorizações no campo da arte, cujo corpo do espectador
passou a ser solicitado, além da sua própria retina. Verificaremos que esta outra tomada de
posição do artista e do espectador ganhará forma gradual com o programa pedagógico do
MAM RJ no entre décadas, 1950/60, na inauguração da sede definitiva com o Bloco Escola e,
logo em seguida, entre 1960/70, com Frederico Morais à frente da coordenação dos cursos.

2.3 O Museu de Arte Moderna e a sua missão pedagógica

O MAM RJ, antes mesmo de inaugurar o Bloco Escola, antecipava sua visibilidade
como instituição que nascia de razões pedagógicas ao promover cursos e pequenas exposições
resultantes das aulas, antes localizadas em outros prédios e, com as obras do Aterro, ocorriam
em barracões feitos de madeira e telha. Com parte da sede inaugurada, aspirava-se a criação
da Escola Técnica de Criação idealizada na pedagogia formal da Bauhaus cuja premissa,
dentre outras razões que veremos adiante, era romper com a natureza acadêmica da chamada
Belas Artes.
Os princípios da Bauhaus foram utilizados como argumento ideológico para a
formação de uma juventude artística que se destinava a cumprir as tarefas sociais do novo
Museu, “superando o divórcio entre a Arte e a Sociedade do nosso tempo” 90, restabelecendo o
compromisso da atividade artística no âmbito da esfera cotidiana. O texto de apresentação da
“doutrina da Escola” ainda reforçava a necessidade do Brasil acompanhar as “revoluções
tecnológicas”, projetando nas futuras gerações “novas personalidades criadoras”, “novos
conhecimentos técnicos” e “novos modos de pensar.”91
A exposição Bauhaus: 1919-1928 organizada pelo MoMA, em 1939, popularizou as
ideias da escola alemã sobre o par arquitetura/design, além de ser utilizada como referência
para a estruturação dos departamentos multidisciplinares do Museu e de escolas americanas
de design. O programa metodológico da Bauhaus foi uma tentativa de reformar a linha

90
RIBEIRO, Carlos Flexa. A Escola Técnica de Criação. Boletins MAM RJ, nº 17, ano 1959, s/p. Acervo MAM Rio.
91
Idem.
166
academicista presente na educação artística alemã, cujas atividades ali desenvolvidas
deveriam acompanhar o mundo do trabalho. Com o fechamento da Escola pelo nazismo,
houve uma migração de professores e estudantes para outros países, Inglaterra, Israel, México
e Estados Unidos, sendo este último principal difusor de centros de educação formal com base
nos seus métodos desenvolvidos por artistas refugiados como László Moholy-Nagy e Joseph
Albers. Antes mesmo da exposição acontecer, Alfred Barr, então diretor do MoMA, já havia
realizado visitas à Escola em Dessau, sendo transferida sob tensões, reconhecendo a sua
importância para educação, sobretudo para os métodos de ensino de história da arte moderna
integrada a vários meios, tais como pintura, escultura, fotografia, artes gráficas e cinema. A
presença de Walter Gropius nos Estados Unidos, como diretor do curso de arquitetura da
Universidade de Harvard, onde se estabeleceu após a ascensão do nazismo na Alemanha e a
sua vinda ao Brasil para a 2a Bienal de São Paulo, em 1953, tendo uma sala especial dedicada
à arquitetura, demarcam a presença e as influências da Escola.
Houve algumas filiações às ideias da Bauhaus no Brasil manifestadas nas décadas de
1920 e 1930, como exemplo, o projeto da residência (1927) do arquiteto Gregori
Warchavchik, considerada por muitos historiadores de arquitetura moderna como a pioneira
dos princípios construtivos.92 O mobiliário residencial (1932) criado por Lasar Segall também
nos indica esta proximidade formal93 e a introdução do concreto armado, tendo a Alemanha
como pioneira no seu uso, dos arquitetos Alexander Siegfried Buddeus e Alexander Altberg.
Este último, ex-aluno da Bauhaus em Weimar, participou, junto aos arquitetos Alcides da
Rocha Miranda e João Lourenço Silva, da organização do I Salão Internacional de Arquitetura
Tropical (1933) no Rio de Janeiro 94, cuja organização intentava deflagrar definitivamente na
capital federal um movimento antiacademicista pela “racionalização da arte de construir em
nosso país.”95
O catálogo do Salão trazia um texto de Walter Gropius, além de uma fotografia da
Bauhaus em Dessau, acompanhada da legenda “fechada pela situação política”. A Revista
base de arte, técnica e pensamento (1933) foi editada por Altberg que, segundo Pedro Moreira
(2005), foi “ao mesmo tempo seu editor, financiador, designer gráfico, ilustrador, autor,
‘curador’ de textos e – por motivo de redução de custos – até mesmo tipógrafo.” A revista

92
LIRA, José Tavares Correia de. Ruptura e construção: Gregori Warchavchik, 1917-1927. Novos estud. –
CEBRAP, no.78 São Paulo jul. 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?scr-
ipt=sci_arttext&pid=S0101-33002007000200013 Acesso em: 27 mar. 2019.
93
Acervo disponível em http://www.mls.gov.br/acervos/ Acesso em: 27 mar. 2019.
94
Além de Warchavchik e Lucio Costa, encontravam-se dentre os expositores Affonso Eduardo Reidy.
95
MORAIS, 1995, p. 149.
167
tinha o propósito não só de compartilhar conteúdos sobre arquitetura e design, mas
apresentar-se como uma revista moderna, no sentido estético e funcional. A abertura da
primeira edição foi escrita por Mário de Andrade que trazia em suas palavras o fomento à
integração da arte à vida, considerando os problemas de ordem estética aproximados às
questões científicas, tecnológicas e sociológicas. Nas suas palavras: “Hoje a Arte quer
penetrar nos escaninhos mais ásperos da vida coletiva; entra nos laboratórios, nos hospitais,
nas fábricas, nunca se fez tanta arte no mundo [...].”96
Na década de 1950, a primeira iniciativa diretamente associada à Escola, foi do Museu
de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) na criação do Instituto de Arte
Contemporânea (IAC). A arquiteta Lina Bo Bardi e Pietro Maria Bardi, então diretor,
coordenaram as atividades durante apenas dois anos (1951-1953), que tinham o objetivo de
formar jovens artistas a serviço das demandas da indústria nacional. Esperava-se que os
objetos de design correspondessem ao gosto e ao progresso com ênfase à racionalidade.
Segundo Adele Nelson (2016), o envolvimento com as ideias da Bauhaus se deu mais
pela via da citação e da adaptação ao contexto artístico e social, sobretudo carioca que aqui se
desenvolveu, do que uma apropriação direta. Observamos que alguns princípios
metodológicos foram incorporados pelos cursos teóricos e práticos, como o ateliê de pintura
de Ivan Serpa, por exemplo, mas que não se restringiu aos seus domínios e, que, sob a
formulação teórica de Mario Pedrosa, a dupla arte e sociedade deveria vincular-se aos
propósitos da criação como revolução ética e estética. Mas a absorção de um projeto político
pedagógico baseado em ideias socialistas e comunistas, alternativo aos avanços de um
capitalismo industrial, não teria campo imediato no contexto brasileiro, colonizado pela
cultura capitalista americana, que acabou absorvendo e/ou recepcionando conferências sobre a
Bauhaus e Ulm na intenção de se formar tecnicamente o artista nos fundamentos do design.97
Havia alguns anseios sobre a aproximação das tendências modernistas “ao homem
comum”, notados no texto de apresentação do catálogo do acervo do MAM RJ, de 1952,
escrito por Mario Barata e comentado aqui anteriormente. O historiador da arte vai considerar
a instituição do museu de arte moderna a justificativa para realizar as devidas reaproximações
entre arte e público, determinando que as ideias correntes sobre arte moderna balizem a

96
MOREIRA, Pedro. Alexandre Altberg e a Arquitetura Nova no Rio de Janeiro, Revista Arquitextos, ano 05,
mar, 2005. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.058/484 Acesso em 27
mar 2019.
97
NELSON, Adele. The Bauhaus in Brazil: Pedagogy and Practice. ART Margins Volume 5, Issue 2, June, 2016.
p.27-49. Disponível em https://www.mitpressjournals.org/doi/pdf/10.1162/ARTM_a_00146 Acesso em 12 abr.
2019.
168
criação de “laboratórios de ensaio, aparelhos de verificação e zonas de contato do público
com a pintura e escultura em ebulição, [...], e ainda, “a tarefa de selecionar, mostrar e apoiar
as criações estéticas contemporâneas”. Para esse fim, cita o exemplo do MoMA de Nova
York que se consagrou como instituição cultural, cuja “vitória cifra-se nos seus 50.000
visitantes mensais, na influência sobre as artes aplicadas e nas 7. 500.000 pessoas atingidas
anualmente pelas suas publicações mostras circulantes”. Como “órgão da máxima
importância na educação popular”, reconhece a responsabilidade dos museus de arte moderna
sendo criados na América Latina, “a orientação do gôsto e dos hábitos estéticos.” 98
Importa notar que a influência americana nas reformas educacionais no Brasil remonta
meados do século XIX, onde já se conjugava a união entre escola, técnica e criação aplicada à
indústria. As notícias sobre o modelo pedagógico (Art Education: Scholastic and Industrial -
1872) de ensino de arte do inglês Walter Smith importado pelos EUA, com a finalidade de
organizar e adaptar os currículos escolares do ensino preparatório para o desenho industrial,
chegavam ao Brasil pelo jornal Novo Mundo (1872-1889). O jornal era editado por José
Carlos Rodrigues em Nova York e escrito em português para os leitores brasileiros tomarem
conhecimento dos produtos americanos e do american way of life.
Rui Barbosa traduziu parte do livro de Smith como justificativa teórica para as
reformas da educação extensivas à educação artística no país vinculada à arte aplicada.
Menciona em seu discurso sobre o Desenho e a Arte Industrial (1882) o compromisso do
Liceu de Artes e Ofício (1858) como a fórmula mais precisa da educação popular que
pretendia, diferentemente dos objetivos da Academia, acompanhar especificamente a
formação de artífices e operários aplicada às atividades industriais – tão logo se afirmaria
como espaço de “educação da nação” pela arte ao ter seus parâmetros incorporados “na vida
do ensino nacional”. 99 Considerado o principal espaço de formação técnica e profissional do
país, o Liceu inaugurava a maior exposição de obras de arte realizada no Rio de Janeiro fora
dos limites e controle da Academia Imperial de Belas Artes.
A exportação dos sistemas de ensino ocorreu no período colonial e se atualizou com a
chegada da Corte Portuguesa no Rio de Janeiro no início do século XIX ao instituir uma
Academia e, posteriormente, uma escola destinada à formação artística. Criada e patrocinada
pelo Estado, a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofício (1816), posteriormente,

98
BARATA, 1952, p. 9-12.
99
BARBOSA, Rui. O desenho e a arte industrial, Rio de Janeiro, Liceu de Artes e Ofícios, 1882. Disponível em:
http://www.casaruibarbosa.gov.br/dados/DOC/artigos/rui_barbosa/FCRB_RuiBarbosa_ODesenho_e_a_ArteIn
dustrial.pdf Acesso em: 27 mar. 2019.
169
efetivou-se como Academia Imperial de Belas Artes (1826) e, finalmente, foi reformada para
Escola Nacional das Belas Artes (1909) na capital Rio de Janeiro. A Escola constituiu um
circuito acadêmico organizado com um programa pedagógico concentrado em aulas teóricas e
práticas, concessão de prêmios de viagem, exposições gerais, formação de uma pinacoteca,
absorção de artistas como professores, cuja lógica formalizou o campo do ensino oficial das
artes na cidade por muitas décadas. Inicialmente, o programa curricular da Escola estava
comprometido com as normatizações acadêmicas colocadas pelo neoclassicismo e
romantismo através de métodos de ensino em que a tríade academia, escola e ateliê
alternavam-se na formação do artista.
A ênfase ao ensino prático e teórico determinou o modo como a formação do artista se
deu, especialmente no ambiente carioca, não somente no meio acadêmico, das belas artes,
mas nos meios identificados com as tendências modernistas. Verifica-se que o MAM RJ
pretendia promover uma formação integrada do artista e do artífice, como se pode perceber
nos Boletins de 1958, em ocasião de uma cerimônia junto à Associação Comercial do Rio de
Janeiro: “[...] dos caminhos inéditos para a produção artística brasileira em suas ramificações
práticas a que a indústria, o comércio, as classes produtoras, enfim, estão intimamente
ligadas.”100 Niomar Moniz Sodré, como diretora executiva, reitera esse pensamento com o
lema “Da colher de café à urbanização da cidade”, cuja motivação estava balizada pela
concepção da Escola Técnica de Criação, onde a expectativa era a formação de “[...] novas
gerações de artistas e novos modelos de fábricas, novos quadros e esculturas e novos
desenhos de equipamentos”101, ou melhor, as artes gráficas, os objetos de design a serviço do
Museu e, por conseguinte, do Estado.
O programa curricular da Escola Técnica de Criação foi planejado com dois
departamentos, um de Comunicação Visual e outro de Desenho Industrial e Construção. Os
cursos pretendiam ser criados com a duração de uma formação universitária, pois se desejava
distinguir a Escola do ensino técnico, de nível médio, com a justificativa de “favorecer a
actividade criadora autêntica.” 102 Para tanto, foram esboçadas diferentes nomenclaturas a fim
de melhor definir sua finalidade: “Escola de Desenho Industrial”; “Escola Superior de
Desenho Industrial”; “Escola Técnica de Criação Artística” e “Escola Superior de Criação
Artística”. 103 Estudos com base na teoria da percepção, sociologia e antropologia cultural

100
Boletins MAM, 1958. Acervo MAM Rio.
101
Boletins MAM, 1958. Acervo MAM Rio.
102
Documento manuscrito intitulado “Escola Técnica de Criação”. Acervo MAM Rio.
103
Idem.
170
estavam previstos na grade curricular. Com o Bloco Escola há alguns meses inaugurado, em
carta endereçada a Lidio Lunardi, Presidente da Confederação Nacional da Indústria, Sodré
solicita apoio para instalação de maquinário necessário ao funcionamento das oficinas. Em
contrapartida, garante ao Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial a formação de mão de
obra especializada pelo Museu: “Estes cursos organizados [...] representam colaboração
valiosa para todas as indústrias que necessitem utilizar desenhistas criadores na concepção
dos objetos que pretendam lançar no mercado consumidor.”104
Sabrina Parracho Sant’Anna (2008) associa ainda o projeto pedagógico da Escola
Técnica de Criação ao projeto de Max Bill para a Escola de Ulm em virtude também da sua
vinda em ocasião da Bienal de São Paulo, em 1953. Porém, localizamos uma nota intitulada
Verdade sobre a Escola de Ulm em que o Jornal do Brasil, a pedido do MAM RJ, esclareceu
que há um intercâmbio de ideias entre o seu projeto e a Escola alemã, mas correm impressões
“desconexas e nem sempre verdadeiras”, que certamente estavam filiadas às bases político-
ideológicas da Escola. Por esse motivo, divulga uma palestra de Tomás Maldonado, à época
diretor da Escola, em sua sede, em que apresentaria e esclareceria a “estrutura dos cursos, as
disciplinas, a prática e fundamentos, os critérios pedagógicos [...].” 105
O enquadramento dado às teorias postuladas pelas atividades que desenhavam um
programa de reforma social, com base numa funcionalidade utilizada como metodologia de
trabalho, foi posteriormente adaptada para a criação da Escola Superior de Desenho Industrial
(ESDI), tendo o artista argentino Tomás Maldonado como autor do projeto e o MAM RJ
como possível sede. Maldonado já havia ministrado dois cursos no Museu (ainda no Barracão
adaptado no Aterro e no Bloco Escola), tais como Iniciação Visual (1955) e Elementos de
Comunicação Visual (1959). No entanto, a ESDI foi inaugurada como entidade autônoma em
1962 sob a jurisdição do estado da Guanabara, com apoio do Governador Carlos Lacerda e
pelo então Secretário de Educação e Cultura Carlos Flexa Ribeiro. A mudança de local da
ESDI foi notada pela imprensa que, contrariada, publicou a seguinte nota: “As coisas
acontecem no Brasil da maneira mais absurda possível. O exemplo mais recente é a ESDI. O
governo tem dinheiro, mas não tem escola. O MAM tem a escola, mas não tem dinheiro.”106
No MAM RJ, o projeto da Escola Técnica de Criação foi aprovado, mas não chegou a
ser realizado. O que vigorou foram os espaços do Bloco Escola que conjugavam exposições e

104
Carta datilografada, Rio de Janeiro, 05 de jun. 1958.
105
Verdade sobre a Escola de Ulm. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 12 set 1959. Acervo MAM Rio.
106
LAUS, Harry. Museu, governo e desenho industrial, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 30 abr 1963. Acervo
Periódicos - Biblioteca Nacional.
171
cursos teóricos e práticos que, ao longo da sua história, tornar-se-ia um espaço de importantes
manifestações e acontecimentos artísticos, como a emblemática exposição Opinião 65. No
entanto, o projeto da Escola formou as bases da criação do Instituto de Desenho Industrial
(IDI) no Museu no final da década de 1960. A Bienal Internacional do Rio de Janeiro –
Desenho Industrial 68, organizada pelo Ministério das Relações Internacionais, ESDI,
FAU/USP e Fiesp, entre outras instituições sediadas no Museu, lançou a possibilidade de
criação de um departamento específico de design no MAM RJ. O designer e professor Karl
Heinz Bergmiller já havia sido convidado pelo arquiteto Maurício Roberto, ex-diretor da
ESDI e então diretor do MAM RJ, a projetar um sistema de exposição com painéis
removíveis para o Museu e, em parceria com o designer gráfico Goebel Weyne, elaborou um
programa pedagógico para o IDI, contendo Desenvolvimento de Projeto, Exposições,
Informação e Consultoria.107
Com a Friends of The Museum of Modern Art of Rio de Janeiro, Inc, associação criada
entre o Museu, tendo Niomar Moniz Sodré como mediadora e diretores de outros museus,
colecionadores e empresários americanos, esperava-se “apoio e compreensão” dos EUA para
o desenvolvimento do novo museu. Nas palavras da Diretora Executiva: “[...] talvez se
encontre nessa importância dada à cultura, às artes em particular, a explicação essencial do
incrível desenvolvimento dos Estados Unidos.”108
Além do IDI, observa-se que o Bloco Escola manteve alguns resíduos do projeto da
Escola Técnica de Criação em seu programa curricular durante toda a década de 1960. Além
das aulas de Tomás Maldonado, em 1962, Aloísio Magalhães junto a Alexandre Wollner
ministraram o curso “Artes Gráficas”, depois assumido por Rogério Duarte, em 1964 e 1965.
Até 1968, os cursos no MAM RJ dedicavam-se à pintura, escultura, gravura e
desenho, dentre outros cursos de menor abrangência como “Tapeçaria”, “Interpretação para o
teatro” e “Dança moderna”. A partir de 1969, é possível observar uma mudança conceitual no
programa de cursos que até então eram oferecidos no formato de ateliê separado por
linguagem artística. Além das práticas dos ateliês livres, cria-se o Curso de Cultura Visual
Contemporânea, o Curso Popular de Arte e os Departamentos de História e Teoria de Arte e
Cinema. Os ateliês livres funcionariam de forma integrada com exceção do ateliê de gravura
que ainda se apresentava autônomo (e resistente) à nova organização. Ao invés de ateliês

107
MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO. IDI. Instituto de Desenho Industrial, 1978. [Catálogo].
Acervo MAM Rio.
108
MAURÍCIO, Jayme. A campanha do Museu nos Estados Unidos, Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 08 jan.
1958. Acervo MAM Rio.
172
separados por linguagens artísticas, estas foram absorvidas nos módulos Ateliê Forma 2
(desenho, colagem, pintura)109, Ateliê Forma 3 (escultura, objeto)110 e Ateliê Infantil (pintura,
desenho, argila, livre expressão em madeira etc.). Esta proposta tinha como meta a criação da
“Universidade de Arte do MAM” e um “Instituto de Cultura Visual Contemporânea”, assim
como se vislumbrava o Ateliê de Gravura ampliar seu repertório técnico e expressivo
incluindo a litogravura e os departamentos em um centro de formação dos monitores e uma
Escola de Cinema. 111 Pela orientação dos breves releases, percebe-se uma mudança de atitude
com base na formação técnica, modernista, dos meios de expressão para uma ênfase
contemporânea de contaminação dos meios e das linguagens.
Em depoimento ao Instituto Gerchman, Frederico Morais considerava o
funcionamento dos cursos bastante isolado entre si, cujos alunos só aprendiam as técnicas. Ao
iniciar suas atividades como professor e posteriormente como coordenador, reformulou o
programa de cursos, concentrando as propostas dos ateliês em temas específicos. Nas suas
palavras: “Minha ideia foi fazer com que os cursos tivessem uma ligação entre eles. Quer
dizer, que os cursos não fossem isolados. Que o museu deixasse de ser um lugar apenas que
se alugava um espaço pra dar aula.” Àquela altura, o crítico de arte não via sentido neste
formato, inclusive tece algumas críticas à autonomia do Ateliê de Gravura que, na sua
perspectiva, corroborava esse lugar onde o Museu não criava responsabilidades sobre como
estava formando e sobre o que se estava sendo produzido. Resolveu reformular o programa de
cursos, considerando que o aluno deveria passar por vários ateliês e não permanecer em
apenas um como vinha ocorrendo: “Porque eu queria que, ao mesmo tempo, que aprendesse
como fazer, pintar, como esculpir, tivesse uma informação cultural, uma informação
histórica.”112
Morais parte de uma perspectiva pedagógica em que as atividades que ocorriam no
Bloco Escola deveriam formar integralmente os alunos que passavam pelos cursos.
Reconhecia inclusive que o exercício de apreciação da obra de arte no interior do Museu
deveria passar necessariamente por um estudo dos códigos culturais. Interessado no público
que permanecia apenas na área externa do MAM RJ, Morais cria o Curso Popular de Arte,
cujo objetivo era atender a essas expectativas. Compreendia que o tempo e os espaços do
109
Aluísio Carvão era o professor responsável pelo curso ministrado pelos artistas Anna Bella Geiger, Domenico
Lazzarini, Fayga Ostrower, Ivan Serpa e Sérgio de Campos Mello.
110
Maurício Salgueiro era o professor responsável pelo curso ministrado junto a Cildo Meireles, Ivan Serpa e
Pedro Correia de Araújo.
111
Programação de Cursos, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1969. Acervo MAM Rio.
112
Instituto Rubens Gerchman, Entrevistas Projeto “Rubens Gerchman: com a demissão no bolso”. Disponível
em http://www.institutorubensgerchman.org.br/entrevistas.html Acesso em 17 ago. 2019.
173
Museu deveriam ser mais aproveitados e ocupados pelos visitantes que já buscavam nos seus
jardins o lugar de lazer e descontração. O Curso ocorria aos domingos, gratuitamente, no fim
da tarde, em parceria com Cosme Alves Neto, responsável pela Cinemateca, onde os
professores permanentes do Museu, entre outros convidados, realizavam conferências,
angariando assim um aumento de público a cada edição do evento. Foi a partir dessa
experiência, especialmente no período de férias, em que se observava uma diminuição de
público nos espaços do MAM RJ, que os Domingos da Criação foram elaborados.113
Nesse ponto, suas intenções remontam ao momento em que o Museu fora inaugurado
nos pilotis do Palácio Gustavo Capanema e se constatava a recepção negativa da arte moderna
pelo público que ainda não dominava os códigos estéticos necessários para sua absorção e
apreciação. Com a entrada de Morais, percebe-se um novo momento de reestruturação das
finalidades do Museu. Como testemunha, à época como aluna e posteriormente professora no
MAM RJ, a artista Anna Bella Geiger (2017, p. 193) afirmou ser um dos seus principais
objetivos nas aulas: “explorar aquele território desconhecido em torno do MAM.” A artista
enfatiza que os cursos, especialmente o curso intitulado Atividade/Criatividade (1971) em
homenagem ao pensamento de Mario Pedrosa, junto às ideias contidas em Arte como
experiência do Herbert Read, fomentaram a elaboração de uma proposta que conduzisse
alunas e alunos à “conscientização do próprio sentido de liberdade” e que, de certo modo, esse
pensamento colaborou também para o lançamento da proposta dos Domingos da Criação.
Para Geiger, a questão da desmaterialização do objeto começou a tomar forma a partir das
práticas artísticas e pedagógicas no Museu serem remanejadas para outras áreas da cidade
consideradas desérticas.
A presença de Frederico Morais no MAM RJ complementou a criação de uma “escola
carioca” polarizadora, que definitivamente representasse as ideias de uma vanguarda
brasileira experimental. A rede de relações que se estabeleceu entre a crítica de arte de Mario
Pedrosa e, posteriormente, as iniciativas de Frederico Morais junto a um grupo de artistas na
ocupação dos espaços do MAM RJ em diferentes períodos produziram um discurso
formulado pela presença e participação efetiva dos artistas para a historiografia da arte
brasileira. Não por acaso, após o incêndio, o Museu foi considerado uma “casa produtora de
arte”, um “centro cultural”. Depois do incêndio, a artista Fayga Ostrower afirmava que todas
as mudanças que ocorreram na estrutura do Museu aconteceram, sobretudo, mediante a

113
Instituto Rubens Gerchman, Entrevistas Projeto “Rubens Gerchman: com a demissão no bolso”. Disponível
em http://www.institutorubensgerchman.org.br/entrevistas.html Acesso em 17 ago. 2019.
174
participação política dos artistas: “Nós ajudamos a fazer o MAM. Ele não é só paredes. É um
centro cultural e deve a nós.”114
Nos processos de reconstrução, a imagem do MAM RJ foi diretamente associada aos
artistas e às práticas experimentais que problematizavam o sistema cultural, artístico e
museológico e ali estiveram ocupando seus espaços. “Onde experimentar?”, interrogou a
continuidade da Área Experimental e, nas palavras de Arthur Barrio, a insistência mórbida em
“acumular, guardar, mistificar e, portanto, neutralizar e vampirizar qualquer atitude de livre
criatividade”, ou seja, foi o próprio artista que questiona o sentido de se reconstruir um
museu, no seu sentido strictu sensu, definido por Carlos Vergara, como um “centro
sacralizador da arte aprovada pelo gosto dos que o dirigem [...].115
Os artistas reivindicavam um espaço, de natureza institucional, para suas pesquisas, e
o MAM RJ atendeu, até certo ponto, a esses interesses. Afinal, historicamente um de seus
propósitos foi fomentar a produção artística contemporânea. Reconhecido como um “espaço
alternativo” aos imperativos do mercado, constituiu-se, na perspectiva de Cildo Meireles,
“numa das raríssimas alternativas de amostragem de produções não necessariamente
comercializáveis.”116 Paulo Herkenhoff se posiciona de forma categórica: “Fechando-se para
a área experimental, parece-me que o museu está se afastando do seu modelo. Nas três últimas
décadas, o MAM foi palco dos movimentos mais importantes do Rio. Não sei se agora o
sonho é reconstruir um MAM de múmias.”117
Nesse ponto, a crítica de Herkenhoff nos parece ignorar a formação do acervo que foi
parte constituinte do programa do Museu desde a sua fundação que, logo também, o definiu
conceitualmente. Mesmo que a palavra “vivo” tenha contornado os argumentos de sua
criação, distanciando-se do museu como abrigo de obras, uma coleção de arte foi formada à
medida que outras “coleções” foram nascendo dentro e fora dos seus limites. Afinal, haveria
um modelo de museu se constituindo pelo acervo em paralelo ao modelo de museu
experimental?

114
Na reconstrução do MAM, as mesmas contradições. Folha de São Paulo: São Paulo, 30 jul 1978. Acervo
MAM Rio.
115
PONTUAL, 2013, p. 469.
116
Idem, p. 470.
117
Idem, p. 471.
175
2.4 Construção de uma iconografia da ordem e do progresso

Os estatutos do MAM RJ foram publicados em 1949 e determinavam a realização de


exposições de artes plásticas em caráter permanente e temporário, além da criação de um
arquivo de fotografia, de uma filmoteca, discoteca, biblioteca e promoção de filmes,
concertos, conferências e cursos. O texto do documento ressalta a importância do intercâmbio
com organizações internacionais congêneres e, sobretudo, a disseminação da arte moderna no
Brasil.
A primeira exposição de abertura do MAM RJ, nomeada Pintura Europeia
Contemporânea, foi divulgada em uma discreta nota da sessão de artes plásticas do Correio da
Manhã: “A inauguração se fará com uma exposição de pintura europeia contemporânea,
constando de 52 quadros. Das obras expostas, algumas pertenciam ao Museu, enquanto outras
são emprestadas por colecionadores particulares.”118 A maioria dos colecionadores
integravam o Conselho Deliberativo do Museu como Niomar Moniz Sodré, Raymundo Ottoni
Castro Maia e Roberto Marinho. O conjunto de pinturas selecionado para a inauguração do
Museu foi composto essencialmente por artistas da Escola de Paris, representantes das
vanguardas artísticas europeias.
Na introdução do catálogo, Castro Maya enaltece a luta dos artistas em conseguir nos
últimos anos “vencer o torpor em que estava mergulhada a Arte, rompendo as correntes do
tradicionalismo, para evadir-se no espaço, galgando a luminosa estrada da liberdade” e afirma
a necessidade de “incutir no público o gosto pela Arte Moderna.”119
Esta vontade de aproximar o público das revoluções plásticas no início do século XX
antecede à própria iniciativa do MAM RJ, com a ideia do artista Vicente do Rego Monteiro
em trazer ao Brasil, em 1930, cerca de 90 artistas representantes da Escola de Paris. A
exposição esteve em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo. Residindo na Europa há quase uma
década, pôde construir uma rede de amizades e contatos, entre colecionadores, marchands e
artistas, o que fez com que organizasse junto ao poeta francês Géo-Charles, a "Exposição de
Arte Francesa" com o objetivo de apresentar ao público sua obra ao lado “da pintura de meus

118
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 29 jan. 1949. Acervo MAM
Rio.
119
MAYA, Raymundo Ottoni Castro. Introdução. In: Pintura Europeia Contemporânea. Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, jan. 1949. Acervo MAM Rio.
176
companheiros da Escola de Paris, da qual fazia parte.”120 Embora a mostra tenha tido um
caráter inédito, com destaque para a apresentação das primeiras pinturas consideradas
abstratas de Auguste Herbin, segundo as narrativas históricas, a recepção da mostra se revelou
um fracasso de visitação.
Moacir dos Anjos e Jorge Ventura Morais (1998), ao analisarem a recepção negativa
desta mostra em Recife, argumentaram que o desinteresse do público pelos Arlequins (s/d) de
Picasso, por exemplo, não se referia à falta de acolhimento, desdém ou desinteresse, mas “o
resultado de uma divergência entre os códigos culturais a que os quadros faziam referência” e
o não reconhecimento das obras e/ou imagens de obras de arte, das quais o público que ali
esteve presente tivesse maior familiaridade. 121
O historiador Maurício Parada (1993, p. 52) questiona a ausência de artistas
modernistas brasileiros na primeira formação do acervo do MAM RJ, problematizando que o
projeto estético moderno realmente foi enfrentado pela crítica de artes no país, dada a
escassez de representatividade de obras de artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti,
Anita Malfatti e do próprio Portinari nos acervos nacionais. Nas suas palavras: “É como se as
artes plásticas no Brasil nunca tivessem enfrentado o tema do moderno, ou como se não
houvesse nenhum outro projeto estético moderno anterior a esse.”
No final da década de 1940, a arte moderna brasileira se encontrava consolidada,
produzindo inclusive um debate interno sobre as abordagens e concepções próprias do campo.
No entanto, observa-se que o interesse do Museu em vincular sua imagem a uma ideia de
modernidade não se apresentava ainda alinhada a uma “ideologia de brasilidade” 122,
formulada pela produção teórica e artística do movimento modernista. A exposição de obras,
predominantemente de pinturas, decorrentes dos principais nomes da Escola de Paris,
constitui a primeira imagem dos princípios estéticos modernos – de inovações e ineditismos –
dos quais o MAM RJ no início estava interessado em se vincular.
A extensa narrativa que sucede a apresentação de Castro Maia no catálogo da
exposição nos parece de um artista, embora não esteja assinada. A escrita pode ser atribuída a
Tomás Santa Rosa, mencionado na ficha técnica, pois, além das atividades como artista e
cenógrafo, também assinava como crítico de arte. Intitulado Espírito da arte moderna, o texto
define “a boa arte” como moderna, no sentido de uma revolução estética, ao refletir sobre as

120
Monteiro apud Zanini, 1983, p. 256.
121
ANJOS; MORAIS. Picasso 'visita' o Recife: a exposição da Escola de Paris em março de 1930, Estud. av. vol.12
n.34 São Paulo Sept./Dec. 1998. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.ph-
p?script=sci_arttext&pid=S0103-40141998000300027 Acesso em: 1 abr. 2019.
122
FABRIS, 2010, p.15.
177
obras de artistas que tiveram importância significativa para a história da arte, como Giotto,
Botticelli e Rembrandt. Nesse sentido, constata a pertinência dos processos de autonomização
da arte ressaltada pelo “espírito moderno”, o que conduziu, na perspectiva do autor, à
capacidade analítica de elaboração da própria matéria da arte em si mesma em contraposição
às concepções artísticas acadêmicas pautadas pela representação do mundo natural por meio
de modelos estéticos estrangeiros. Há no texto uma clara objeção à produção acadêmica e
uma antecipação das recusas à institucionalização da arte moderna, pronunciando uma defesa
do papel do artista que enfrenta “as mais duras pressões [...] vivendo um período político em
que nem sempre são oportunas as cogitações da criação artística e seu rumo para o futuro.” 123
Diferentemente da abordagem institucional de Castro Maia, os argumentos colocados
a favor da recepção da arte moderna são pautados pela perspectiva do artista e da importância
e expressão do seu trabalho. Com o objetivo de provocar uma maior aproximação do público,
não somente a respeito das inovações plásticas, o texto aposta em uma compreensão e
absorção de um “espírito moderno” que o novo Museu poderia vir a absorver e representar na
cidade do Rio de Janeiro. A construção discursiva do texto e a abordagem do “espírito da arte
moderna” nos parece alinhada à apreciação de Graça Aranha sobre a “emoção esthética na
arte moderna” e o “objetivismo dinâmico” desenvolvida em O Espírito Moderno, de 1925.
O escritor e diplomata brasileiro, define o “espírito moderno” como “dynamico e
constructor” de uma expressão nacional distanciada dos códigos estéticos europeus. Para
tanto, condena o passado como “uma suggestão do terror”, considerando que a sua função
social “é a somma de deuses, de monstros, de fetiches, que se disfarçam em regras, methodos,
grammaticas para nos governar e nos limitar.”124 Avesso à tradição acadêmica, contrapõe a
subjetividade à objetividade, sendo esta a expressão mais traduzível para uma liberdade de
criação consciente na busca de universalismo x regionalismo que o “espírito moderno”
deveria alcançar. Nas suas palavras, “Libertador e constructor, o espírito moderno sabe que há
uma unidade essencial e infrangível entre todos os seres, os organismos, que por sua vez são
órgãos do Todo universal”. E prossegue Graça Aranha, “nesse assombroso trabalho de
reconstrucção esteja sempre omnipresente e activo o sentimento da unidade universal. É para
o universalismo que tende o espírito humano.”125

123
Pintura Europeia Contemporânea. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, jan 1949. Catálogo. Acervo
MAM Rio.
124
ARANHA, 1925, p.39.
125
Idem.
178
Parte desse texto foi anteriormente apresentado no ano de 1924, em uma polêmica
conferência na Academia Brasileira de Letras. Impregnado pelo aforismo “Só a Antropofagia
nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente”, de Oswald de Andrade, Graça
Aranha afirmou que o espírito moderno não deve acometer apenas as artes, plásticas e
literárias, mas a “necessidade de transformação philosophica, social e artística”. Assume uma
posição animada pelos imperativos futuristas diante do nosso passado histórico-artístico, em
que colocou, de maneira contundente, em primeira pessoa, as seguintes palavras: “Destruo
toda esta architectura de importação literária, grega, rococó, colonial, servil. Destruo toda esta
esculptura convencional e imbecil, esta pintura mofina” e, logo aspira, “[...] com a força
dynamica libertadora do espírito moderno, que cria cousa própria. Recolho a língua do meu
povo e transformo a sua poesia em poesia universal. Faço da minha actualidade a forja do
Futuro.”126
Compreendemos que para instituir oficialmente um museu que representasse este
“espírito moderno” algumas concessões foram feitas. À primeira vista, a formação do MAM
RJ não assumiu os radicalismos dos modernistas da Semana de 22, mas as revoluções
plásticas, sobretudo de artistas franceses que se enquadravam àquela altura a uma tradição. As
vanguardas europeias, especialmente o cubismo e o surrealismo presentes nesta primeira fase
do Museu, já figuravam historicamente nos catálogos referencias de uma atualização da arte
moderna. Mas é importante destacar que o “espírito” definido por Graça Aranha, essa vontade
destrutiva de um passado para fazer tábula rasa, retornará sob outras intenções, sobretudo
quanto às apostas de um “objetivismo” que virão anunciados pela própria prática artística que
ocupará seus espaços.
As doações que compuseram inicialmente o acervo do MAM RJ foram de obras de
artistas que integraram o movimento surrealista: Ives Tanguy, Joan Miró e Marc Chagall e,
mesmo sem representantes nacionais, é possível que haja uma aproximação de alguns artistas
que estavam próximos àquele momento da formação do acervo do Museu, como Portinari, na
formação da coleção.
Identificamos no texto de Carlos Zílio (1997, p. 91) a associação da obra de Portinari
ao “lirismo de Chagall [...], um clima poético que provém de elementos emprestados ao
Surrealismo, entre os quais, o mais evidente, seria uma sugestão de espaço que faz lembrar
Tanguy.” Embora Portinari não pertencesse ao Conselho Deliberativo desse período inicial,
estava próximo ao grupo que presidia o Museu, além de compor parte do conjunto de murais

126
ARANHA, 1925, p. 47.
179
externos (azulejos) e internos (temas dos ciclos econômicos do Brasil) do Palácio Gustavo
Capanema, onde localizava a segunda sede do MAM RJ.
Percebemos no sistema da arte carioca a continuidade de uma tradição europeia na
formação das instituições culturais que, alinhadas ao amparo do Estado, remontam o início do
século XIX, como vimos anteriormente, e que, de algum modo, tal modelo se repete com a
instalação de um museu de arte moderna na cidade. Diferentemente da proposta do museu
carioca, a formação do acervo do MASP destacou o ambiente artístico paulistano da primeira
metade do século XX, além do estímulo às exposições panorâmicas que permitiram, através
de premiações financiadas por entidades privadas, o ingresso de artistas brasileiros na
Coleção. (CHIARELLI, 2001)
Outro ponto ressaltado por Zílio (1997, p. 40) foi a aceitação, “quase unânime”, da
arte moderna ter iniciado em São Paulo dada as circunstâncias mais favoráveis por estar
“longe do arbítrio e do convívio com as instituições federais.” Entre as diferentes insígnias
polêmicas produzidas a partir da Semana de Arte Moderna de 22 e da obra de Portinari
associada aos equipamentos oficiais do Governo, o MAM RJ optou, o que nos parece, por
razões óbvias, pelo “portinarismo”.
A celeuma contextualizada por Paulo Mendes de Almeida (1976) sobre a polarização
criada pela presença de Portinari no ambiente artístico nos conduz à constatação dessa
obviedade sobre a opção do MAM RJ pelo artista. E isso não se deve apenas à conquista de
notoriedade nacional e internacional, tampouco por localizar-se no Rio de Janeiro, mas pela
construção da sua imagem vinculada à criação de uma arte oficial escolhida e divulgada com
empenho pelo Governo. Almeida cita um caso que foi publicado pela Revista Dom Casmurro
(1937-1944) que envolveu Carlos Drummond de Andrade, enquanto assumia cargo público
no Ministério da Educação, sobre o pedido de um pesquisador americano em busca de
informações referente à pintura brasileira moderna. O poeta e escritor encaminhou material
sobre a obra do Portinari e outros artistas, mas não citou em sua lista o grupo de São Paulo.
Criticado pela coluna de Luis Martins sobre os critérios justificados pelo “que se lembrara na
hora e dos quais só obtivera endereço”, suas palavras acusam o escritor o arbítrio praticado
contra a história da arte moderna no Brasil ao omitir nomes como os de Lasar Segall, Di
Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Flávio de Carvalho, entre outros.127
Em resposta à coluna, Carlos Drummond de Andrade acaba assumindo a preferência
da obra de Portinari, dentre outros nomes citados, pelos órgãos oficiais do Estado: “O
127
MARTINS, Luis. Carlos Drummond de Andrade, Portinari e o Touro Ferdinando, Rio de Janeiro, Dom
Casmurro, 26 ago. 1939. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil.
180
Governo tem procurado servir à arte e à inteligência no Brasil, interessado na feitura e na
decoração de seus edifícios o maior número possível de bons artistas, como também chamado
a colaborar na solução de problemas culturais os escritores e cientistas mais eminentes [...]”.
E cita Portinari, Lúcio Costa, Celso Antônio, Santa Rosa, Paulo Rossi, Oscar Niemeyer e
Rodrigo M. F. de Andrade, como exemplos de estarem “a serviço do Ministério onde
trabalho e que por isto mais diretamente observo.”128
Durante o período do Estado Novo (1937-1945), Portinari recebeu apoio e amparo do
governo para realizar diversas exposições e encomendas para ornamentar prédios públicos.
Em 1940, é homenageado pela Revista Acadêmica em comemoração à exposição no
Ministério da Educação, com diversos artigos escritos por nomes como Mário de Andrade,
Carlos Drummond de Andrade, Carlos Lacerda, Gilberto Freyre, Rodrigo M. F. de Andrade,
entre outros. Sua posição privilegiada no sistema de arte, com pinturas adquiridas pelo
MoMA de Nova York, por exemplo, fez com que sua obra se tornasse a principal referência
de arte moderna reconhecida como um bem público. Sendo assim, a sua imagem foi absorvida
pelo MAM RJ que precisava arregimentar capital financeiro e, sobretudo, simbólico para
estabelecer-se definitivamente como instituição oficial da arte moderna na cidade do Rio de
Janeiro.
Sobre a presença de Portinari nos processos de criação, fundação e construção da sede
do MAM RJ, vale ressaltar que em 1949, ano de inauguração do MAM RJ, um mural de
Portinari fez parte das comemorações de abertura do Museu. O mural Tiradentes (1949) foi
apresentado ao público no amplo salão do Automóvel Club do Brasil antes de seguir para o
saguão do Colégio Cataguase, projeto de Niemeyer.129 Composta por três telas pintadas à
têmpera, medindo no total 309 x 1767 cm, a obra foi vista, segundo o boletim do Museu, por
“altas autoridades, personalidades do corpo diplomático e público numeroso e extremamente
representativo [...].”130 A iniciativa coroava a tentativa dos gestores em afirmar o MAM RJ
como um grande empreendimento artístico e cultural na cidade do Rio de Janeiro, além de
trazer no corpo técnico o nome de Portinari como responsável pelo Departamento de Pintura.
A diretoria provisória contava ainda com Gustavo Capanema como presidente de honra,
Raimundo Ottoni Castro Maya como presidente e o poeta Manuel Bandeira como vice-
presidente. Rodrigo M. F. de Andrade, diretor do SPHAN, e Josias Leão compunham a

128
ANDRADE apud ALMEIDA, 1976, p. 145.
129
Atualmente o mural encontra-se na Fundação Memorial da América Latina, São Paulo, SP.
130
Atividades do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1949. Acervo MAM Rio.
181
direção executiva, e o pintor e crítico de arte Quirino Campofiorito indicado a tesoureiro
adjunto.
Sant'Anna (2008, p. 37) nos oferece uma detalhada análise deste momento,
observando as contradições da instalação de um Museu que, a princípio, desejava receber o
público para enfim, eleito, entrar em contato com a arte moderna e poder “educar” seu olhar
como previam seus estatutos. A autora nota que a instalação da sede provisória alocada no 11º
andar do Banco Boa Vista, mesmo localizado no Centro da cidade, inviabilizava seu acesso
por situar-se em um edifício e, sobretudo, a uma altura que conferia ao Museu uma “ideia de
superioridade”. Nas suas palavras, o MAM RJ se apresentou tal qual uma “[...] ilha silenciosa
de onde se poderia ver o mar de pessoas a se deslocar no centro financeiro –, nem sempre
parecia acessível a qualquer um que quisesse penetrar em suas salas.”
Os comentários críticos da época consideravam a iniciativa de Castro Maya
“embrionária”, com exposições que não chegaram a constituir um “atestado de vitalidade,
nem mesmo de certidão de nascimento”. Durante a curta temporada (1949-1951) no salão do
11º andar do Banco Boavista, o MAM RJ apresentou três exposições de artistas europeus:
Pintura Europeia Contemporânea, mencionada aqui; Le livre Français, com cerca de setenta
livros expostos com gravuras de artistas da Escola de Paris; e La Jeune Peinture Française et
ses Maitres (de Manet a nous jours). A última exposição ocorreu em colaboração com a
Embaixada da França, Museu de Arte Moderna de Paris e Museu de Arte de São Paulo que
solicitou a Germain Bazin, então diretor do Museu do Louvre, o empréstimo de uma obra de
Paul Cézanne e Auguste Renoir.
A Coleção MAM foi iniciada em 1946 com a obra Ocean pour les orseaux, de Ives
Tanguy, uma pequena tela a óleo de 38 x 46 cm, doada por Nelson Rockefeller, à época
empresário e presidente do Museu de Nova York.131 Essa obra esteve exposta na mostra
inaugural do MAM RJ. Notamos nas referências técnicas do catálogo da exposição, as
primeiras obras doadas ao Museu pelos próprios colecionadores que participaram da mostra
um pequeno conjunto de pinturas composto por: Composição (1944), de Alberto Magnelli,
doada por Josias Carneiro Leão e que regeu os estatutos do Museu; e uma aquarela
Personnage dans un paysage (1935), de Joan Miró, doada pelo diplomata brasileiro
Landulpho A. Borges da Fonseca. Neste catálogo, um gouache de Marc Chagall consta como

131
O Museu de Arte Moderna foi criado em 1947, data da correspondência entre Raymundo Ottoni de Castro
Maya e Nelson Rockefeller em que anseia por “[...] uma instituição congênere ao MoMA nova-iorquino no Rio
de Janeiro” (SANT’ANNA, 2008, p. 22). No entanto, foi promulgada em maio de 1948 sua constituição através
do lançamento dos estatutos.
182
doação de Nelson Rockefeller, contudo não foi identificado nos catálogos editados
posteriormente.
No âmbito de uma historiografia da arte no Brasil, verificaremos que a produção de
artistas franceses não influenciará somente os artistas acadêmicos e modernos, mas a
arquitetura e a construção de uma imagem de modernidade para a capital federal. Não por
acaso, Rio-Paris foi ponte aérea constante de muitos artistas, colecionadores e gestores. Nas
palavras de Zílio (1997, p. 61): “Paris era o lugar natural para onde se dirigir, não só por sua
importância como centro de arte, mas por estar intimamente presente na cultura brasileira”. A
transferência do MAM RJ para os pilotis do Ministério da Educação e Saúde também se deve
ao interesse despertado pela exposição Félix Labisse, com pinturas e projetos para cenografia
e indumentária, por ocasião da temporada teatral Barrault132, organizada pelo Museu, mas
realizada no salão de exposições do Ministério da Educação e Saúde. O aumento da
frequência de visitantes provou aos administradores do Museu a conveniência da mudança.
Foi sob a direção executiva de Niomar Moniz Sodré, quatro anos após a fundação do
Museu, quando se instalou no prédio do Ministério da Educação e Saúde, que as políticas de
ampliação do acervo começaram a ter mais consistência. Ao ser transferido em caráter
provisório para os pilotis do Palácio Gustavo Capanema, o Museu iniciava uma programação
artística que efetivaria a sua implantação como um dos espaços produtores de cultura e
divulgadores oficiais da arte moderna na cidade do Rio de Janeiro.
Com consentimento e o apoio oficial do Ministério da Educação e Saúde, de uma
instituição privada, o Museu passa a localizar-se no interior de uma instituição pública, de
fácil acesso, cuja arquitetura é de reconhecido prestígio internacional. Condição notada pela
crítica de Antonio Bento ao reiterar a importância da iniciativa do Governo para a divulgação
e aceitação do projeto para a sede definitiva: “Esse apoio dos poderes públicos ao novo
Museu é um fato expressivo, vindo mostrar que não existe aqui nenhuma espécie de
prevenção oficial contra a arte moderna.” O crítico ressalta ainda que o benefício principal
para o MAM RJ e, consequentemente para a cidade do Rio de Janeiro foi a oportunidade de
expor as obras premiadas da I Bienal de São Paulo, pois, desde as iniciativas que ocorreram
na capital paulista em decorrência da Semana de Arte Moderna, a criação do MAM SP e

132
Jean-Louis Barrault (1910-1994) foi ator francês, dramaturgo e diretor de cinema, discípulo de Antonin
Artaud, Charles Dullin , Étienne Decroux e parceiro de Albert Camus. Influenciou pesquisas de performance e
do teatro de vanguarda. Casado com a atriz Madeleine Renaud, fundaram a Companhia que esteve duas vezes
no Brasil.
183
MASP junto às críticas ao academicismo das Belas Artes, a cidade vinha perdendo o posto de
capital cultural do país.
O então Ministro da Educação Ernesto Simões Filho inaugurou a segunda sede
afirmando a importância da instalação do MAM RJ para a contribuição da cultura artística do
país e, mesmo sob críticas, autoriza a sua instalação provisória no edifício do Ministério de
Educação e Saúde. Nas suas palavras, “não se justificam, pois, as críticas que suscitaram em
não termos vacilado em receber com esmeros de hospitalidade, neste edifício, que é uma
espécie de catedral da arte moderna, de fama universal, o Museu de Arte Moderna.” Expressa
a importância de um museu estar acessível ao povo a fim de “educá-lo” e “conscientizá-lo”
para as mudanças em curso no âmbito social, econômico, político e cultural do país: “É uma
iniciativa que precede o que este Ministério há de pôr em prática, segundo o plano que
estamos amadurecendo para a educação artística do povo pela divulgação.”133
O edifício do Ministério da Educação e Saúde começou a ser planejado em 1936 e
inaugurado quase dez anos depois. O projeto foi iniciado pelo ministro da Educação e Saúde,
Gustavo Capanema, junto a Le Corbusier e uma equipe de jovens arquitetos coordenada por
Lucio Costa, composta por Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos, Carlos Leão, Jorge
Moreira e Oscar Niemeyer. Para a frustração do arquiteto francês que ansiava pela construção
próxima à Avenida Beira-Mar, o único terreno disponível era uma quadra situada entre a Rua
Santa Luzia, a Avenida Araújo Porto Alegre, a Rua da Imprensa e Avenida Graça Aranha. Tal
como o MAM RJ, a prefeitura doou um terreno deserto, “resultado do desmonte do Morro do
Castelo com o aproveitamento da terra removida para o aterro da baía [...].”134
Sobre a formação do acervo, a diretora executiva Niomar Moniz Sodré divulgou no
Correio da Manhã, “confidências” sobre as responsabilidades e os investimentos realizados
para inauguração do Museu. Confessa a preocupação em apresentar pinturas que refletissem
as tendências atuais e para não confiar apenas no seu “gosto”, afirma ter realizado uma
viagem à França em busca de encontros com artistas e críticos de arte franceses André
Breton135 e Jean Cassou136, a fim de orientá-la na aquisição de obras “bem do momento.”137

133
Boletins do MAM, 1952. Acervo MAM Rio.
134
CAPANEMA, Gustavo. Depoimento dobre o edifício do Ministério da Educação. In: XAVIER, Alberto (org.)
Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 121-131.
135
“André Breton adquiriu sem cessar não só livros e manuscritos originais como também pinturas, desenhos,
fotografias e peças de culturas não europeias, ampliando sua coleção cada vez mais, até atingir um total de
5.300 itens. [...] As pinturas compreendiam cerca de 450 obras, não apenas dos artistas ligados ao surrealismo
como Max Ernst e Masson, mas de outros significativos pintores do século XX.” JARDIM, Marcia.
Colecionadores surrealistas e a história da arte: a Coleção Breton. XXIV Colóquio CBHA, 2004. Disponível em:
http://www.cbha.art.br/coloquios/2004/textos/55_marcia_jardim.pdf Acesso em: 11 jan. 2019.
184
A princípio, as coleções de obras de arte eram concebidas, por vezes, no escopo do
gosto, anterior às próprias normatizações colocadas por uma narrativa histórica oficial da arte.
Com a criação dos museus, as coleções doadas aos seus acervos ganharam visibilidade e, de
algum modo, descreviam uma história da arte por meio da seleção de seus objetos, mesmo
sem sabê-la. Segundo a historiadora e antropóloga Chantal Georgel (2015, p. 280), com o
tempo, o museu passaria a “classificar, organizar e se lançar na cronologia, ou seja, na história
da qual se fazia assim o auxiliar”.
Foi na metade do século XIX que os museus herdariam os princípios de classificação
dos primeiros historiadores da arte. Substituiriam as organizações aleatórias por uma
organização que privilegiasse um tipo de composição que pudesse narrar a trajetória da arte e
sua dimensão “evolutiva”, segundo as concepções clássicas à época de Vasari e
Winckelmann. Contudo, questiona se teria o museu a função de se tornar um lugar da história
da arte, já que a maioria dos acervos foram constituídos por coleções privadas geralmente
orientadas pelos interesses do colecionador. Por outro lado, reconhece nessa aparente
liberdade de escolha, a oportunidade de conhecer obras que não estariam, de certo modo,
submetidas a uma circunscrição de códigos e normas estéticas definidas pela crítica
especializada.
Para Douglas Crimp (2005), ao criar uma coleção, um novo projeto de história
emerge. O argumento recorrente para o estabelecimento de uma coleção pública de objetos ou
obras de arte geralmente se justifica pela prestação de serviço à história cultural do país e para
afirmação da sua potência educativa. Muitos colecionadores ampliavam constantemente sua
coleção, com o objetivo exclusivo de doá-la a um museu. O volume de coleções nos museus
contribuiu para a formulação de uma determinada construção histórica da arte, na maioria dos
casos, obedecendo a categorias e enquadramentos mesclados pelos regimes de gosto e
historiográficos. Condição esta que fortaleceu e norteou cada vez mais o interesse dos
colecionadores em formar um patrimônio artístico representativo de uma história geral da
arte, a fim de atribuir valor à sua coleção. Embora não houvesse inicialmente a intenção de
adquirir obras, segundo os parâmetros estabelecidos por um especialista, já havia, de certo
modo, um tipo de seleção e predileção por determinados artistas e obras que, inseridas em
uma determinada categoria, estariam eleitas sob um determinado saber. Desse modo, o
exercício de preencher lacunas foi uma necessidade cada vez mais recorrente dos museus de

136
Primeiro diretor do Musée National d'Art Moderne em 1940, depois retorna em 1945 e permanece até
1965.
137
SODRÉ, Niomar Moniz. Confidencias sobre o Museu. Correio da Manhã, 15 jan. 1952. Acervo MAM Rio.
185
arte que passariam a organizar seu acervo segundo uma lógica de enquadramento, baseada em
uma narrativa histórica da arte. O que reitera a afirmação de Hans Belting (2012, p. 174)
sobre a relação de reciprocidade entre o nascimento do museu e da história da arte como
disciplina: “Não existe nenhum debate em torno do museu que também não seja um debate
em torno da ideia remanescente de história da arte.”
Nesse ponto, interessa-nos perguntar qual modelo de história da arte foi praticado, ou
melhor, consumido pelos museus. De que modo os museus na contemporaneidade
absorveram os diferentes processos metodológicos de sistematização dos períodos históricos,
dos quais as obras de arte foram produzidas e inseridas? A partir de quais hierarquias culturais
os museus pautaram suas políticas institucionais? Questionamentos estes que se enquadram
ao contexto do MAM RJ que nascia do desejo de divulgar a história da arte moderna e,
paralelamente, produzi-la segundo os contornos éticos e estéticos que o interessava.
O “novo” Museu de Arte Moderna instalado próximo à Escola de Belas Artes e ao
Museu Nacional de Belas Artes, considerados até então um dos poucos espaços de exposições
e de formação artística na cidade, gerou expectativas e interesses sobre a “arte do nosso
tempo” refletida no conjunto de obras de diferentes concepções modernas, nacionais e
internacionais, que, certamente, nunca tinham sido expostas na cidade. Mesmo sob os olhares
desconfiados e resistentes à afirmação institucional da arte moderna, a nova fase do MAM RJ
se apresentou como um grande acontecimento artístico e social. As obras que compõe seu
pequeno acervo inauguram outro viés discursivo para o Museu, apresentando não somente
suas novas aquisições que integraram seu patrimônio, dentre pinturas, desenhos e gravuras,
mas as tendências estéticas referenciadas pela I Bienal de São Paulo.
As imagens que trazem o volume de pessoas concentradas no salão expositivo do
Museu e uma aparente adesão ao conteúdo das obras contradiz a recepção conflituosa gerada
pela absorção das concepções estéticas ali apresentadas. É possível notar, por meio de notas
de Jayme Maurício, a chegada de Mario Pedrosa e a acalorada conversa sobre o modo como a
arte moderna não só provoca uma transformação no modo de fazer, mas, sobretudo, no modo
de se ver a obra. O jornalista narra o entusiasmo do crítico de arte diante das pinturas e
esculturas, “esclarecendo a todos que faziam restrições improcedentes ao que chamavam de
modernismo”, até observar “ânimos exaltados” à defesa do crítico de arte a ponto de um
segurança alertar Niomar Moniz Sodré sobre a conveniência de dispersá-los a fim de evitar
maiores consequências. A diretora executiva, por sua vez, impediu a sua intervenção,
considerando aquele acontecimento “uma maravilha”, pois certa de que o crítico de arte iria

186
vencer uma “classe irreverente”, enquanto não saísse “pancadaria”, recomendou-o apenas
atenção a todo o caloroso debate.138
Em consequência desse evento, o escritor José Lins do Rego publicou uma crônica
inspirada pela leitura do artigo de Jean Cassou sobre a “atualidade da arte moderna,” 139 em
que apresenta as contradições e os conflitos que envolveram a absorção da arte moderna pelos
museus. Nas suas palavras, “[...] Há os que falam da função social da arte. Sim, pode haver
esta função social, mas antes de tudo, a verdadeira função da arte é a sua condição de
humanidade”. E segue considerando que esta é a melhor definição de arte dada pelo artista
moderno que, violentado pelas guerras, constata a emergência da arte como “expressão
suprema do homem”. A fim de justificar o volume de críticas sobre o conteúdo das obras que
compuseram a reinauguração do MAM RJ nos pilotis do Palácio Gustavo Capanema, o
escritor faz referência a alguns artistas franceses citados por Cassou que mesmo julgados,
condenados, foram posteriormente tratados como fenômenos estéticos.
Essas reações reiteram o que se esperava com a criação do museu de arte moderna,
sobretudo quando a inauguração obedece seu figurino habitual de provocar e exaltar os
ânimos pelo enfrentamento dos códigos estéticos modernos. Importava àquele momento
notificar na imprensa a comoção que a reinauguração do Museu provocava, diferentemente da
escassez de notícias que se produziu sobre a primeira aparição pública do MAM na cidade.
A nova fase do MAM RJ é inaugurada com uma programação de cursos, cinema e
uma exposição do acervo com obras que já integravam seu patrimônio, acrescida de doações
recentes.140 O texto de apresentação do catálogo da coleção é do jovem professor e crítico de
arte Mario Barata, então com 31 anos de idade.141 A primeira parte do texto trata da
importância do estudo e da divulgação da arte moderna, contudo afirma a contradição
aparente dessa “cousa sui-generis” que é o museu de arte moderna. Para compreender a
função de um museu na cidade do Rio de Janeiro, considera-se necessário empreender uma
retrospectiva da trajetória da arte moderna em um momento de mudanças paradigmáticas
vividas pela cidade. Recorre a uma análise do termo “moderno”, inicialmente utilizado para

138
MAURICIO, Jayme. Mario Pedrosa, Di Cavalcanti e Vinícius de Morais no Museu. Correio da Manhã, 19 jan.
1952. Disponível em:
http://memoria.bn.br/DOCREADER/DocReader.aspx?bib=089842_06&PagFis=14562&Pesq=Museu%20de%20A
rte%20Moderna%20do%20Rio%20de%20Janeiro Acesso em: 24 jan. 2015.
139
O escritor se refere ao livro Situation de l´art moderne de Jean Cassou publicado em 1950.
140
A princípio a Cinemateca do Museu localizava-se na Associação Brasileira de Imprensa – ABI, situada na Rua
Araújo Porto Alegre no Centro do Rio de Janeiro.
141
Importa ressaltar que Mario Barata foi o representante brasileiro na primeira reunião do Conselho
Internacional de Museus (ICOM) em 1946. BARATA, Mário. 50 anos de Museologia: I – um fragmento pessoal.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, ano 152, n. 371, p. 556, abril/junho 1991.
187
descrever as pinturas realizadas até o começo do século XX. Dedica uma parte do texto sobre
o que chama de “evolução da arte moderna”, criando analogias entre a máquina e o fazer
artístico, considerando que os termos “moderno” e “modernista” passaram a nomear “[...] o
conjunto de movimentos heterogêneos, às vêzes contraditórios, que se sucederam desde o
impressionismo.”142
A marca da contradição do qual se refere pode vir a ser o conhecimento de distintos
formatos, especialmente na pintura, que produziram diferentes conteúdos sobre a arte em um
mesmo período. O termo “modernista”, ou melhor, a “crítica modernista” também pode estar
relacionada aos adeptos das análises de Clement Greenberg, que se valem de uma “visão
perspectiva e retrospectiva”, segundo Rosalind Krauss (1997, p. 168), de uma narrativa
historiográfica da arte moderna sob uma lógica progressiva e comparativa: “A perspectiva é o
correlato visual da causalidade: as coisas se dispõem uma atrás das outras no espaço segundo
regras. [...] A planaridade cultuada pela crítica modernista pode ter erradicado a perspectiva
espacial, mas a substituiu por uma temporal – a saber, a história.”
Barata (1952, p. 12) afirma ainda que o papel educativo do Museu é promover
aproximações entre o público e o acervo, contudo o aproveitamento das exposições
temporárias se faz necessário, pois “constituem o instrumento de trabalho vivo”. Considera
ainda, no caso brasileiro, que mediante as dificuldades financeiras enfrentadas pelos museus
para aquisição de obras, as exposições temporárias oportunizariam o conhecimento não só da
produção contemporânea como a de grandes nomes da arte europeia. Afirma que o principal
papel do MAM RJ é preservar as conquistas “seguras” do modernismo tão importantes para a
história da arte e para o que virá em diante. Conclui seu texto, afirmando que um museu de
arte moderna existe para acolher “obras contemporâneas, divulgando-as e explicando-as”,
pois respeita a criação do homem “onde quer que esteja e quem quer que a faça”.
Naquele mesmo ano, 1952, o MAM RJ inaugura sua terceira exposição intitulada
Exposição de Artistas Brasileiros e, dessa vez, quem assina o texto do catálogo foi Mario
Pedrosa. Denominada “Momento Artístico” por considerar que, após a exposição da 1ª
Bienal, um novo ambiente se apresenta favorável aos artistas convictos pela busca de outros
caminhos formais. Observa-se um embate entre os artistas figurativos que defendem uma arte
realista de temática nacional e os abstracionistas que acreditavam na liberdade estética
desvinculada das representações cotidianas, sociais. Ressalta uma juventude pós-bienal mais
interessada nas novas tendências, audaciosa, inconformada com as soluções formais
142
BARATA, Mario. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Catálogo de exposição. 1952, p. 4. Acervo MAM
Rio.
188
ultrapassadas, enquanto que os “velhos” satisfeitos com o respeito adquirido pela experiência,
“[...] dormiam sossegados sobre os louros.”143
Na sua concepção, o Museu, ao acolher a exposição dos premiados da Bienal, oferecia
ao público a oportunidade de conhecer a produção artística atual, influenciada pelos
“anúncios” da abstração trazida pela presença de Max Bill, enquanto que os artistas
modernistas consagrados pela história não mudariam o rumo de seu posicionamento estético:
“[...] Damos assim graças a Deus ao vermos a inquebrantável resistência de Segall à moda ou
a intransigência quase sectária de Di Cavalcanti quanto às suas concepções estéticas e a
indiferença de Portinari a tudo que não seja afim ao que ele faz.” Pedrosa relata com
entusiasmo a qualidade da produção dos artistas brasileiros, igualando-os aos “estrangeiros”,
afirmando estarem “em pé de igualdade”, falando “a mesma linguagem”. No catálogo, não há
uma lista das obras, tampouco dos artistas, mas os nomes foram divulgados pela imprensa, em
uma nota no jornal Correio da Manhã sobre o ineditismo da mostra no Brasil: “A exposição
despertou a maior atenção dos nossos intelectuais e literatos, pois muito raro no Brasil, senão
inédito, o fato de reunirem-se numa só sala, o que o país possui de mais expressivo na pintura,
na escultura e no desenho [...].”144
A Exposição contou com cerca de cinquenta e sete artistas, reunindo as gravuras
premiadas de Oswaldo Goeldi e obras de Di Cavalcanti, Antonio Bandeira, Aldo Bonadei,
Brecheret, Bruno Giorgi, Burle Marx, Djanira, Emydio de Barros, Flávio de Carvalho,
Alberto da Veiga Guignard, Heitor dos Prazeres, Iberê Camargo, Lula Cardoso Ayres, José
Pancetti, Santa Rosa, Ivan Serpa, Tarsila do Amaral, Emeric Marcier, Maria Leontina, Flávio
Shiró, Alfredo Volpi, Waldemar da Costa, Aldemir Martins, Lívio Abramo, Fayga Ostrower,
entre outros.
Nesse período que esteve nos pilotis do MES, o MAM RJ realizou uma exposição
individual de Cícero Dias que rendeu uma crítica favorável de Mario Pedrosa ao Correio da
Manhã sobre a “auspiciosa” escolha da direção do Museu em afirmar seu “propósito cultural”.
Para o crítico de arte, apresentar ao grande público a contribuição de uma produção pictórica,
que percorreu tanto a estética figurativa quanto abstrata, expressa uma linguagem “mais
moderna” ao aderir às novas tendências.
O texto do catálogo de autoria do arquiteto e crítico de arte Flávio de Aquino enquadra
a obra de Cícero Dias em uma “a atmosfera alegre, selvagem e explosiva”, de “cores

143
PEDROSA, 1952, p. 6.
144
Inaugurada a Exposição de Artistas Brasileiros. Correio da Manhã: Rio de Janeiro, 24 abril 1952. Acervo
MAM Rio.
189
quentes”, “dinamismo barroco”, de “procedência tropical”. 145 Afirmativas radicalmente
descartadas pela crítica de Mário Pedrosa ao considerar mais importante a produção recente
do artista. A trajetória de Cícero Dias é marcada, segundo Pedrosa, por um início primário,
sentimental, simbólico, literário enquanto que a sua produção posterior se apresenta mais
vigorosa, em busca de “uma linguagem puramente plástica”. Para Pedrosa (2004, p. 231),
considerá-la “tipicamente brasileira” seria associá-la aos tempos em que o modernismo
ansiava por identificações com o nacional, e, na sua perspectiva, essa questão não tinha mais
relevância em sua obra. Nas suas palavras: “[...] Filiado às correntes ditas ‘abstratas’ da arte
contemporânea o que ele quer mostrar são as suas realizações nesse campo. E é precisamente
isto o que interessa de sua obra.” Com essa exposição e argumentação de Mario Pedrosa, que
se apresentava próximo à formulação de um pensamento estético na produção dos artistas,
sobretudo aqueles presentes no MAM RJ, é possível notar a vertente estética e conceitual que
o Museu assumiria a partir da década de 1950 com a nova fase.
A primeira exposição individual de Cícero Dias no MAM RJ se deve a importantes
aparições do artista na cena artística marcada pela polêmica obra Eu vi o mundo, ele
começava em Recife (1931), exibida no Salão Nacional de Belas Artes, além da participação
da exposição Do Figurativismo ao Abstracionismo na abertura do Museu de Arte Moderna de
São Paulo (1949). Para o MAM RJ, a realização da sua exposição acertava na recepção do
público de diferentes gostos e referências aos poucos aderindo a “auspiciosa” proposta de um
museu de arte moderna na cidade. Além da fase abstracionista, havia outras obras do artista
que segundo a imprensa “mais antiga e desta não há quem não goste [...] de um lirismo
encantador”. O retorno positivo da exposição trouxe inclusive, para chancela do Museu, uma
breve mensagem de Oswald de Andrade no livro de visitas da exposição: “Você, Cícero, é o
maior pintor brasileiro de todos os dias.” Fato este noticiado pela imprensa e reproduzido nos
Boletins do Museu.146
A pintura Composição n.11 (1951) foi doada pelo próprio artista no ano da exposição
no MAM RJ e passa a integrar a lista de obras que compõem o acervo. Identificamos a
imagem fotográfica da pintura A espera do artista nos arquivos do Museu. Diferentemente das
suas composições abstratas, a obra, um óleo de 65cm x 81cm, parece-nos pertencer à série de
pinturas de sua fase inicial, na década de 1930. Na imagem, há a representação de uma figura
humana. Não é possível identificar se é um homem ou uma mulher, pois o fogo consome

145
AQUINO, Flavio. Exposição Permanente. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1953.
(Catálogo de exposição). Acervo MAM Rio.
146
Boletins do MAM, 1952. Acervo MAM Rio.
190
justamente a parte da cabeça, o que deixa a pintura mais enigmática. A figura encontra-se
sentada sobre uma espécie de ladrilho avermelhado e, ao fundo, ripas de madeira verticais e
horizontais aparentam uma cerca, porta ou parede adaptada. Pode ser um trabalho que trata de
cenas do interior, leia-se aqui, do interior rural e dos interiores domésticos, ou até mesmo de
sua passagem pela cidade do Rio de Janeiro mais narrativo, onírico. O que podemos ver é que
a própria obra apresenta, com sutileza, um detalhe simbólico da sua passagem da figuração à
abstração. Nas mãos da figura, há um vaso com uma espécie de folhagem. A “espera” parece
aguardar o momento de criação, em que os críticos de arte chamaram de “fase vegetal”, em
que é possível identificar a permanência das linhas orgânicas do desenho nas formas vegetais
e geométricas.
A crítica de Mario Pedrosa se apresentava disponível às tendências abstracionistas na
arte, diferentemente das evidentes resistências de Mario Barata e Flavio de Aquino,
especialmente para a proposta do novo Museu de Arte Moderna. Por esse motivo, lastima a
pluralidade de artistas brasileiros abstratos em diferentes “níveis” organizados de forma
aparentemente indiscriminada na exposição do acervo. No entanto, ressalta como aspecto
positivo a proposta da direção do MAM RJ em especializar-se em determinados campos da
arte moderna. Alerta que “a delimitação só poderá elevar a qualidade da “nossa” coleção, e
torná-la capaz de ombrear com as de outros centros cultos da Europa e da América, no seu
terreno.”147 Ao afirmar que o nacionalismo não cabe mais às aspirações estéticas de Cícero
Dias, Pedrosa reitera o abstracionismo como nova tendência conceitual para a arte, portanto,
afinado às razões do MAM RJ.
Ainda sobre a exposição do acervo do Museu, Pedrosa destaca uma obra de Salvador
Dalí, alguns guaches de Fernand Léger, admira-se com obras de Paul Klee e Wassily
Kandinsky, elogia o conjunto de esculturas representado por Jean Arp, Constantin Brancusi e
Alberto Giacometti, mas seus maiores elogios concentravam-se na obra Cabeça Cubista, de
Pablo Picasso, que, para o crítico, era a resposta pictórica mais contundente e significativa da
exposição e da coleção: “[...] essa aquisição do museu é digna de todos os louvores, pois veio
realmente enriquecer o patrimônio artístico do país.”148 Com isso, Pedrosa apresenta um
panorama de parte da coleção do Museu e acentua como marco fundador de uma história da
arte moderna a aquisição de alguns ícones das vanguardas artísticas europeias. Nota-se,
portanto, que embora o Museu estivesse apresentando os artistas que experimentavam as

147
PEDROSA, Mário. A coleção do Museu de Arte Moderna. Tribuna da Imprensa, 17 de jan. 1953. Boletins do
MAM, fev. 1953, nº 5, p. 13. Acervo MAM Rio.
148
Idem.
191
tendências abstratas, as vanguardas históricas europeias, com a representação de Picasso, por
exemplo, ainda se destacavam em meio à multidão de artistas brasileiros. O crítico de arte
ainda percebe lacunas e carências na organização e representatividade da produção artística
brasileira e coloca-se a serviço do fortalecimento e da atualização e renovação dos
referenciais artísticos para o Museu.
Embora houvesse a afirmação de uma polaridade entre os artistas representantes do
modernismo e a nova geração vinculada aos caminhos do abstracionismo geométrico na
apreciação crítica de Mario Pedrosa, o MAM RJ estava ciente da importância de promover o
“reaparecimento de Portinari”, que naquele período recebia a encomenda do Governo para
realização de extensos painéis que iriam ornamentar o hall do edifício das Nações Unidas em
Nova York. Além de “reparar uma grande falha nos meios artísticos do país para com um dos
seus grandes pintores”, seus Boletins informavam a apresentação da “maior e mais detalhada
exposição realizada por Alberto da Veiga Guignard.”149 Portinari e Guignard representavam
não somente nomes já reconhecidos pela história da arte moderna no país, mas suas práticas
artísticas também estavam associadas ao ensino de arte, logo, da formação de um gosto e de
juízo estético sobre a arte moderna.
Com a exposição de Portinari, artista canônico do “bom modernismo”150, o MAM RJ
comemora altos índices de visitação. Segundo relatório de 1954, o Museu recebeu mais de
dez mil pessoas, superando todas as mostras realizadas no Brasil. 151 Conforme nota da
imprensa, o Museu em dezesseis meses foi visitado por milhares de pessoas, dado que se
tornará relevante para a aprovação do projeto de construção de uma sede própria. A mesma
nota afirma a importância da criação de um monumento que perpetue a memória coletiva de
um povo, comparando ao famoso museu parisiense que, mesmo “por encanto se esvaziasse de
quadros célebres [...] ainda assim continuaria a ser o Museu do Louvre, e não apenas um
edifício vazio”. Para tanto, a diretora executiva Niomar Moniz Sodré pondera as expectativas
e afirma que embora a “cidade esteja a espera de um museu,” o projeto só sairá do papel
mediante o parecer do poder público.152
A polêmica gerada em torno do projeto para sede definitiva do MAM RJ gerou
diversas manifestações da crítica de arte a favor da construção da sede do Museu no intuito de
fortalecer também o lugar hegemônico que a cidade do Rio de Janeiro ocupava como capital

149
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Boletins, 1953. Acervo MAM Rio.
150
SANT’ANNA, 2008.
151
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Boletins, 1953. Acervo MAM Rio.
152
Uma cidade a espera de um museu. Jornal O Globo, 20 maio 1953. Boletins de 1953. Acervo MAM Rio.
192
federal. O projeto apresentado pelo parlamentar Jorge Lacerda gerou polêmicas entre os
deputados cearenses que argumentaram contra a doação de alto valor destinado à construção
do Museu em virtude da presença da seca e da fome que se apresentava como realidade na
região desde o final do século XIX. Após um debate intenso e desfavorável aos argumentos
dos deputados cearenses, a veiculação das ideias sobre a arte como “alimento de primeira
necessidade” e a criação de “museus vivos, não meras coleções de obras mortas” para o país
justificavam, entre outros argumentos, a doação de uma verba para a construção da sede
definitiva de um museu de arte moderna na cidade do Rio de Janeiro.
Entre os representantes das artes, estava o crítico de arte Antonio Bento que veio a
público questionar “O que fêz o Rio de Janeiro, realmente contra os flagelos ou contra o
Nordeste?”, pois considerava a cidade a mais nacional de todas as cidades brasileiras ao
acolher “de braços abertos os filhos de todas as regiões do país”. O crítico justificou, entre
outros argumentos, seu apoio à construção da sede considerando as alegações dos
parlamentares, “falta de cultura política”, dotadas de “sentimentos regionalistas.” 153 É
importante ressaltar que a questão da seca no Nordeste, no período do governo Juscelino
Kubitschek, sempre foi tratada com medidas paliativas, pois evitava-se ao máximo qualquer
situação que repercutisse negativamente na imagem de um país promissor, otimista.
A construção da sede do MAM RJ envolve-se em um debate mais amplo e complexo
que ocorreu entre as décadas de 1950 e 1960 sobre o destino da cidade do Rio de Janeiro que,
em alguns anos, deixaria de representar a capital federal para integrar-se ao estado do Rio de
Janeiro ou constituir-se como um novo estado. Na década de 1960, com a transferência da
capital federal para Brasília, a opção de transformar a cidade do Rio de Janeiro em estado da
Guanabara tornava-se realidade com o projeto de lei criado pelo deputado San Tiago Dantas,
presidente interino do MAM em 1952. O projeto de lei garantia, de certo modo, a autonomia
política da cidade, adiando por mais de dez anos o processo de fusão com o estado do Rio de
Janeiro, que viria a se efetivar em 1974, através da gestão do presidente Ernesto Geisel.
Antes mesmo de iniciarem as obras para instalação da sede definitiva, ainda na década
de 1950, verificamos que a Coleção do Museu começou a ser composta por algumas obras de
artistas brasileiros, como Itatiaia, de Alberto Guignard; Tabaco, de Candido Portinari;
Mulher, de Di Cavalcanti; uma aquarela de Lasar Segall intitulada Menino dormindo no

153
BENTO, Antonio. Os deputados e o Museu de Arte Moderna. Boletins MAM RJ, 1952, p. 10. Acervo MAM
Rio.
193
campo e duas esculturas O impossível e O oitavo véu, de Maria Martins.154 No ano seguinte,
verifica-se um aumento de doações de artistas brasileiros, incluindo Cícero Dias, Lygia Clark,
Mario Cravo Junior, Ivan Serpa, Elisa Martins da Silveira, Heitor dos Prazeres, Inimá de
Paula e, jovens gravadores, assim mencionados pelo catálogo, como Vera Bocayuva Cunha e
Yllen Kerr.
Como o Museu não tinha recursos para adquirir obras dos artistas modernistas já
consagrados no campo, preocupava-se apresentar anualmente mostras retrospectivas deles155,
enquanto seu acervo ia sendo formado paulatinamente com obras de artistas europeus e
americanos adquiridas em Paris e Nova York. Em alguns casos, a aquisição ocorreu direto
com o artista e, em outros, com galerias de arte. Da lista, destacam-se obras de Max Ernst,
Jean Arp, Hans Hartung, André Lanskoy, Fernand Léger, Alberto Magnelli, Joan Miró, Pablo
Picasso, Serge Poliakoff, Jean Tinguely, Toyen, Pierre Soulages, Jean Fautrier, William
Baziotes, Paul Klee, René Magritte, Ben Nicholson, Mark Rothko, Ibram Lassaw.156
É importante ressaltar que nesse período, os valores das obras dos artistas europeus
caíram consideravelmente em virtude da crise econômica na Europa gerada pela Segunda
Guerra Mundial e, no final da década de 1950 até meados de 1960, o colecionismo e o
mercado de arte no Brasil começaram a despertar para as obras realizadas nas primeiras
décadas do século XX vinculadas ao modernismo. O único inventário da Coleção MAM
anterior ao incêndio nos mostra que 90% das obras nacionais, com exceções de algumas obras
de Guignard e Goeldi, foram doações feitas pelos próprios artistas. Alguns casos isolados
constam como doações de colecionadores. 157
Ter uma obra no acervo do MAM RJ interessava aos artistas, sobretudo brasileiros, na
medida em se percebia o crescimento e divulgação internacional da sua imagem. Esse
interesse decorre também de uma construção otimista de progresso em que não só fomentava
as estruturas do Museu, mas alavancava os avanços industriais, estimulados pelo legado do
nacionalismo da Era Vargas e do presente desenvolvimentismo de Juscelino Kubitschek.

154
A artista integrava também o Conselho Deliberativo do MAM RJ em 1952. Esta obra “desapareceu” após o
incêndio.
155
Em 1952, apresentou a mostra Cícero Dias; 1953 – Candido Portinari e Guignard; 1954 – Di Cavalcanti; 1955
– José Pancetti; 1956 – Retrospectiva Goeldi; 1957 - “Retrospectiva Alfredo Volpi”. Exposições realizadas.
Arquivo digital. Pesquisa e Documentação MAM Rio.
156
Patrimônio do MAM, agosto de 1966. Acervo MAM Rio.
157
Segundo o inventário, pelo menos três obras de Guignard foram adquiridas pelo MAM RJ em 1953 e trinta e
três desenhos e gravuras de Goeldi em 1961 estão relacionadas à política de aquisição a partir de exposições
realizadas respectivamente nestes mesmos anos no Museu.
194
Alguns meios intelectuais e artísticos integravam a atmosfera desses ideais, composta pela
ajustada iconografia modernista das primeiras gerações.158
Esse contexto foi reforçado pelas Bases do projeto construtivo, de Ronaldo Brito
(1999, p.12), quando afirma que os sistemas de representação da arte moderna ancorados na
busca por uma identidade nacional correspondiam plenamente aos interesses políticos-
ideológicos voltados para um “projeto de brasilidade” – vertente que o projeto construtivo irá
contrapor com o rompimento da representação do espaço empírico, além de conciliar os
interesses dos regimes de produção aliando trabalho, vida, consciência estética, arte,
sociedade em resposta a uma utopia capitalista. Na perspectiva do crítico de arte, “as
tendências construtivas se colocavam resolutamente ao lado da civilização tecnológica na luta
pelo domínio da natureza e pela racionalização dos processos sociais.” 159
A construção da sede definitiva do MAM RJ responde plenamente a esses interesses,
mas, por outro lado, afirmava sua vertente nacionalista ao representar artísticos canônicos
como Portinari e Di Cavalcanti em seu programa expositivo. Ainda que se notasse em
algumas obras de artistas modernistas possíveis marcas de uma corrente abstrata em
andamento, não era o caso do interesse ou dos esforços iniciais do Museu, haja vista a
ausência de obras de Tarsila do Amaral ou Vicente do Rego Monteiro em seu acervo.
Até o incêndio de 1978, as exposições do acervo passam a ter uma periodicidade,
sendo apresentadas anualmente no formato de “Acervo do MAM”, “Exposição Permanente”,
“Patrimônio” e “Doações recentes”. A partir da década de 1960, identificamos que as obras da
Coleção são selecionadas segundo critérios temáticos, por artista, movimento artístico ou por
linguagem. Na década de 1970, mais especificamente a partir do ano de 1975, nota-se um
interesse em apresentar e divulgar a produção de artistas brasileiros numa perspectiva
historiográfica. No texto de divulgação da exposição “Arte Brasileira/Acervo do MAM”, há
uma preocupação em apresentar a coleção cujo recorte de artistas nacionais estivesse coerente
com o “conhecimento e a compreensão de como se desenvolveu a arte brasileira.” 160
Pretendia-se assim apresentar uma seleção de artistas cujas obras representassem o
desenvolvimento da arte no Brasil ao longo dos últimos cinquenta anos, incluindo a produção
contemporânea. Porém, não havia no acervo do Museu um número significativo de obras que
abarcassem esse panorama. Em vista disso, cerca de cem artistas foram selecionados e

158
O próprio Juscelino Kubitschek doa um autorretrato de Alberto Guignard ao MAM RJ em 1953.
159
Idem, p. 16.
160
Texto datilografado em papel timbrado com o nome do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1975.
Acervo MAM Rio.
195
convidados a colaborar enviando um de seus trabalhos para a exposição com a finalidade de
complementar e/ou atualizar o acervo, que, por sua vez, se comprometeria a submetê-lo à
aquisição do comprador para sua subsequente doação ao término da mostra. Entre os artistas
convidados estavam: Lygia Pape, Eduardo Sued, Cildo Meireles, Arthur Barrio, Antonio
Manuel, Waltercio Caldas, Anna Bella Geiger, Abraham Palatinik, Abelardo Zaluar e Wanda
Pimentel.161
A presença de Roberto Pontual no MAM RJ na década de 1970 foi marcada por essa
prática de formação do acervo que se realizava por diferentes iniciativas, diretas ou indiretas
de compra e venda, de relacionamento entre o Museu e as políticas de aquisição de obras
controladas pelo mercado de arte e, na sequência, pela história da arte. Em 1971, enquanto os
Domingos da Criação de Frederico Morais atraíam o público para uma paradoxal
desinstitucionalização da arte na área externa do Museu, no interior do Bloco de Exposições o
processo de institucionalização se mantinha mais precisamente entre o artista, a crítica de arte
e os seus pares, o marchand, colecionador ou leiloeiro.
Pregão do MAM: 50 anos de arte brasileira foi uma exposição de pinturas, esculturas
e gravuras organizada por Pontual, Maria Roberto e Guilherme Melo, “atuando como leiloeiro
público”, que se baseou no cinquentenário da produção de arte moderna no Brasil, tendo 1922
como ano-marco.162 De todo o histórico de exposições no Museu, essa “exposição-leilão” foi
a primeira até aquele momento que reuniu mais de duzentos artistas, dentre os principais
nomes da história da arte brasileira, referentes à vanguarda modernista, em maior quantidade,
até as produções contemporâneas.
Pontual justifica a escolha do leilão temático, estrategicamente, pelo argumento da
história e não da crítica, considerando, nesse sentido, seu teor didático – “por cronologia, por
temas ou por técnicas, de modo a fazer com que seu desenvolvimento sistemático possa servir
também de matéria de informação e aprendizado”– e, sobretudo mercadológico, quando
afirma na arte contemporânea uma atualização dos postulados da arte moderna em que se
apontava para um “futuro”.163 Essa projeção também está incluída no léxico do mercado de
arte, ou melhor, nos investimentos a longo prazo, sobretudo de bens culturais que endossam o
prestígio, o “distribuidor de status”, do qual se refere Brito (2005, p.57), daquele que os
161
Carta datilografada e assinada pela Diretora executiva adjunta Regina Pinto Zingoni. Rio de Janeiro, 27 jan.
1975. Acervo MAM Rio.
162
Na lista de colaboradores para o “desenvolvimento desta promoção” consta Antônio Houaiss, Ziraldo, Paulo
Afonso Grisolli, Juarez Machado, Frederico Morais, Zuenir Ventura, Walter Zanini, Maria Eugênia Franco,
Rubem Braga, Jean Boghici, Artefact Molduras, Gilberto Chateaubriand e galerias Bonino e Barcinski.
163
PONTUAL, Roberto. Pregão do MAM: 50 anos de arte brasileira. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro, 1971. Acervo MAM Rio.
196
adquire. Prática que se identifica com a lógica do “mercado moderno” definido pela
“possibilidade de valorização futura [...] tornando possível um processo posterior de
acumulação que vai determinar a expansão do mercado.”164 O tema da exposição apenas
justificava o aproveitamento do espaço do Museu para fins educativos, mas a rigor o seu
objetivo era fomentar o comércio especulativo de compra e venda de obras de arte já
institucionalizadas.
A década de 1970 testemunhou o chamado “boom do mercado de arte”, cujo aumento
de valores de obras de arte, especialmente de arte moderna brasileira, foi notado sem
precedentes na história dos leilões. O que comprometeu a valorização da produção
contemporânea, sobretudo quando faz uso de outras linguagens, pois o tempo de recuperação
do mercado de arte se encontrava em sintonia com a inclusão desta mesma produção nos avais
da crítica e nos anais da história da arte. O que na conjuntura do MAM RJ àquele período soa
como uma grande contradição, pois nos coloca uma interrogação sobre até que ponto as
práticas experimentais intervinham, de fato, nos padrões estabelecidos pelo circuito de arte
extensivos aos espaços do Museu. Nesse ponto, o engajamento dos artistas se apresenta
ambíguo, na medida em que se questionava a penetração do mercado na política cultural do
Museu, mas que a sua operatividade permanecia circunscrita ao plano discursivo da Área
Experimental e das atividades que ocorriam nos jardins e na cantina do Museu.
Essa proximidade do MAM RJ com o circuito de produção e mercado se acentuou na
gestão de Pontual, como coordenador do programa de exposições. O Salão de Verão que
ocorria anualmente no MAM RJ entre 1969 e 1975 foi substituído pela série Arte Agora,
também com o patrocínio do Jornal do Brasil, da Empresa Light e do colecionador Gilberto
Chateaubriand. A criação de uma nova mostra dessa natureza se justificava pelo
distanciamento de “salões, bienais e congêneres” à “viva atualidade da produção artística”. O
objetivo principal do novo formato se concentrava em mapear a produção artística brasileira
com algum tipo de notoriedade no panorama artístico nacional a partir de temáticas
específicas que enquadravam os artistas e as suas obras a temas determinados pelo crítico de
arte e, porque não afirmar, também pelos estímulos do mercado nascente.
A primeira edição, Arte Agora I, foi organizada em 1976 com o tema “Brasil 70-75”
com a intenção de mapear a produção artística deste período, diferentemente do que ocorria
com o extinto Salão, que abrigava a “jovem arte brasileira”. O novo regulamento descarta a

164
ZÍLIO; BRITO; CALDAS, 2001, p. 180.
197
regra de envio prévio de obras a serem analisadas por um júri, para o convite após
“prolongada análise da produção de cada artista.”165
A fim de prestar esclarecimentos sobre a mudança das regras de envio, Pontual
apresentou a formação de uma comissão organizadora – em que afirma ter viajado pelas
capitais brasileiras com o intuito de recolher dossiês da “produção local” – composta por
Aline Figueiredo (presidente da Associação Mato-Grossense de Artes e professora da
Universidade Federal do Mato Grosso), Olívio Tavares de Araújo (editor de arte da Revista
Veja), os “críticos-artistas” João Câmara Filho e Márcio Sampaio, responsável pelo setor de
artes visuais do Palácio das Artes de Belo Horizonte, e o próprio, como crítico de arte do
Jornal do Brasil e chefe do Departamento de Exposições do MAM RJ. Com isso, esperava-se
compor uma mostra que funcionasse como um panorama nacional, “senão completo, pelo
menos suficientemente atualizado e diversificado do melhor que se está produzindo hoje,
entre nós, sobretudo através do esforço de uma geração de artistas nascidos nos anos 40.”
Essa abrangência excluiu artistas que estivessem enquadrados na arte naify e aqueles
pertencentes à cultura popular. O texto mostra que “artistas oriundos ou apenas relacionados a
uma área da criatividade espontânea ou de fundamentos populares” não foram integrados, sob
a justificativa de que seu trabalho “não se prende a qualquer período ou época definidos.” 166
O modo como esse salão foi organizado gerou reações contrárias em um grupo de
artistas selecionados do Rio de Janeiro, que decidiram não integrar a exposição. Paulo
Herkenhoff, Mauro Kleiman, Ivens Machado, Waltercio Caldas, Antonio Manuel, Mônica
Barbosa, Tunga, Ascanio MMM, Ronaldo do Rego Macedo, Ana Maria Maiolino, Sérgio
Augusto Porto, Cildo Meireles, Leonardo Pereira, José Resende e Raul Córdula assinaram um
manifesto em que enumeram alguns pontos críticos à mostra e a própria posição do
organizador, tais como formular um programa com pretensiosos objetivos de representação da
arte nacional contornados por uma crítica de arte que exerce “apadrinhamentos”, reforço do
“colonialismo cultural pelo uso de modelos importados sistematicamente”, de exclusão de
“novas linguagens” e, por fim, chamaram a atenção para a gravidade da situação por estar
intermediada pela “manipulação dos meios de comunicação de massa”. 167
No ano seguinte, a segunda edição da mostra Arte Hoje, Visão da Terra, Pontual
(1977, p. 7) reforçou em seu texto de apresentação os argumentos da substituição do Salão de

165
PONTUAL, Roberto. Arte Agora I – Brasil 70/75. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
abr. 1976. Acervo MAM Rio.
166
Idem.
167
Artistas contra esvaziamento cultural e Salão do MAM. Rio de Janeiro, Ultima Hora, 21 fev. 1976. Acervo
MAM Rio.
198
Verão pela série Arte Agora, reiterando o papel do antigo salão na divulgação do “artista
jovem ou emergente, dando-lhe a oportunidade de um primeiro confronto mais qualificado
com o público ou de uma primeira premiação pondo em destaque o seu trabalho”. Em sua
defesa, afirmou que o Salão apresentava “defeitos típicos de estruturas que se repetem”, haja
vista as características do campo da arte contemporânea que são marcadas “pela dinâmica das
transformações aceleradas”. O texto de apresentação da mostra marcava ainda, com
gravidade, a intenção da mostra ter sido bastante prejudicada pela “defecção de um grupo de
17 entre 100 convidados; na maioria artistas do Rio, eles não só recusaram o convite como
tornaram público um manifesto em que procuravam indicar possíveis malefícios para a classe
artística [...] dos chamados experimentais [...].” Embora Pontual considere o manifesto de
cunho “personalista”, reconhece, com ironias, o gesto como “quebra de rotina e
acomodamento” e avalia o formato para essa segunda edição. Nomeia como subtítulo da
mostra Visão da Terra, a fim de discutir, “sem cegueira, surdez, xenofobia ou patriotada”,
uma “possível arte brasileira” e decide, sem a colaboração de uma comissão, selecionar
pessoalmente todos os artistas que integrariam a exposição.
Organizada com um número de artistas consideravelmente menor que a primeira
edição, apenas doze artistas foram escolhidos a fim de representar a “visão da terra”, da qual
Pontual os define como militantes de uma “brasilidade” sob parcos argumentos que se
delineiam por “consistente ligação mais imediata com fatores da realidade que os cercam.” 168
A diagramação da capa do livro que integra a mostra, não poderia ser mais sugestiva, pois traz
os tons azuis, verdes e amarelos certamente afinados aos propósitos temáticos conjugados às
palavras-chave “manifestação popular”, “religiosidade”, “negritude”, “tribalidade” e, não por
acaso, a referência à “antropofagia” de Oswald – conceito este que nos parece retornar com
insistência na década de 1970 no MAM RJ – formula comentários sobre as obras de Antonio
Henrique Amaral, Antonio Maia, Emanoel Araújo, Francisco Brennand, Frans Krajcberg,
Gilvan Samico, Glauco Rodrigues, Humberto Espíndola, Ione Saldanha, Marcio Sampaio,
Millôr Fernandes e Rubem Valentim.
A terceira e última exposição dessa série, interrompida pelo incêndio, trouxe como
tema América Latina: Geometria Sensível e procurou ampliar e atualizar a cartografia da
produção plástica nacional e internacional, incluindo preferencialmente um conjunto de
artistas vivos “nascidos e/ou residentes em diferentes países da América Latina”. A proposta
apresentou em seu bojo conceitual a fase construtiva de Joaquin Torres Garcia, falecido no

168
PONTUAL, 1977, p. 8.
199
final da década de 1940, cuja “presença pioneira” foi o ponto de partida para a justificativa da
mostra.
Em virtude do alcance internacional da mostra, preocupou-se em editar um livro que
representasse um testemunho não somente do conjunto de obras selecionado, sobretudo da
fase inédita de Joaquín Torres Garcia no Brasil, mas de uma coleção de depoimentos e textos
recentes de artistas e críticos acerca do tema central da mostra. A convite de Angel Kalenberg,
à época, diretor do Museu Nacional de Artes Plásticas de Montevidéu, a retrospectiva do
período construtivista (1928-1944) do artista uruguaio seria remontada no Brasil, sob os
mesmos moldes da mostra que esteve no Museu de Arte Moderna de Paris (1975) com cerca
de sessenta telas de grandes dimensões e uma série de objetos de madeira.
Pontual lista uma série de eventos que ocorriam àquele momento em torno da América
Latina, dentre os quais destacamos a sala especial latino-americana da Bienal de Paris (1977),
o Projeto Construtivo Brasileiro na Arte – 1950/1960 no MAM RJ e Pinacoteca de São Paulo
(1977) e a I Bienal Latino-Americana de São Paulo que ocorreria no mês de dezembro de
1978. Este último destaque nos leva a considerar que a publicação foi realizada após o
incêndio que consumiu a mostra e não traz nenhuma referência, nota ou comentário sobre a
sua trágica interrupção. Diferentemente das outras exposições, em que todas as reações
contrárias e dissidentes da série Arte Hoje foram expostas publicamente pelo crítico de arte
em seus artigos, nesta foi completamente omitido.
Com o objetivo de estabelecer “uma ponte do começo do século até a atualidade”, a
união das palavras “geometria” e “sensível”, segundo o crítico, tentava dar conta das obras
“construtivo-simbólicas” de Torres Garcia e o “rigor” e a “disciplina” na arte deste
continente, além de assumir que “a geometria sensível tem mais a ver conosco, latino
americanos.”169 Constatação esta, presente no título do texto de abertura da publicação Do
mundo, a América Latina entre as geometrias, a sensível, que se apresenta como um
contrassenso à história do movimento construtivo latino-americano que buscavam justamente
um “universalismo construtivo”. Esta sensibilidade da qual Pontual julga ser “a” geometria
dos artistas latino-americanos diferenciada de todo o “mundo” caminha junto à abordagem
etnocêntrica da I Bienal Latino-Americana de São Paulo sobre “Mito e Magias”.
Mesmo diante dessas pretensões generalistas de Pontual, apenas um grupo seleto de
artistas do Brasil, México, Venezuela, Colômbia e Argentina compuseram a mostra. Na
crítica de arte de Francisco Bittencourt (2016, p. 385), a “geometria pouco sensível” não

169
PONTUAL, 1978, p. 9.
200
absorveu os artistas paraguaios, bolivianos, porto-riquenhos ou panamenhos. Na ausência
destes artistas, o crítico de arte provoca o questionamento: “Tocará então aos países mais
pobres e atrasados deste continente o fardo de uma geometria insensível?”
O que podemos perceber, de fato, é que, ao nos concentrarmos na análise da crítica de
arte e nos depoimentos dos artistas na publicação, perceberemos que o título da exposição e,
sobretudo, a menção ao estado sensível perpétuo do qual se associa a cultura latino-
americana, como se não levasse em conta as suas diferenças, não faz jus ao próprio
pensamento individual de cada artista e da sua obra. Há exemplos como a obra
Niranjanirakhar (1977), de Antonio Manuel, que não se concentra nos argumentos centrais
pontuados pela mostra (a não ser pelo uso de formas concêntricas), desse par razão e
sensibilidade, mas no que a Nova Objetividade Brasileira (1967) discutiu sobre a quebra da
moldura e dos processos de desmaterialização da obra de arte. Outro exemplo, ocorre com a
obra Buscando uma Vertical (1978), do artista uruguaio Nelson Ramos, que ao tratar das
formas geométricas já não se concentram mais no plano, mas na relação do quadro como
objeto, assim como veremos nas obras de Lygia Clark e Helio Oiticica, que são notados nas
análises historiográficas da publicação, mas ausentes na mostra de Pontual.
A construção discursiva de Pontual para a série Arte Agora reforça a apreciação crítica
de Ronaldo Brito [1976] sobre a ausência de um “desejo de contemporaneidade” enunciado
pelo “Agora”, que acaba se reduzindo a uma consideração apenas temporal do termo. Para o
crítico de arte, a abordagem da série aciona “um jogo de troca de mercadorias e signos de
status” que acaba por resumir a sua real intencionalidade, negando inclusive o enfrentamento
das questões que uma determinada produção contemporânea, vinculada aos códigos que uma
chamada “vanguarda carioca” ocupava os espaços do MAM RJ.
Essa vanguarda representada pelos “experimentais” 170, à época, denunciou
publicamente as intransigências de Pontual à implementação de um espaço definitivo de
experimentação no Museu, que, por sua vez, foi a público se defender considerando hermético
e distanciado do público o que estava sendo proposto, apontando a contraditória posição
institucional de Ronaldo Brito e Carlos Vergara, que integravam a Comissão de Planejamento
Cultural, ao filiar-se às críticas da sua gestão. Nota-se uma “queda de braço” entre os artistas
e Roberto Pontual sobre a política cultural do MAM RJ na imprensa, sobretudo quanto à
finalidade do Museu quanto ao seu comprometimento com o que vinha a ser defendido como
“experimental”.

170
BRITO, 2005, p.64.
201
Fernanda Lopes (2013, p. 44) se debruçou sobre os processos de constituição da Área
Experimental, por meio do arquivo do MAM RJ, em que apresenta diversas discussões
realizadas pela Comissão, pautadas por uma definição do que seria esta proposta e/ou espaço
no Museu. Cita um esforço de Ronaldo Brito em tentar defini-la, iniciando sua reflexão pelo
qual seria a função de um museu de arte moderna: “Exibir, divulgar e abrigar a produção
artística nacional e internacional de maior relevância, segundo um critério de importância
histórica e de interesse contemporâneo [...].” Para o crítico de arte, esses critérios seriam
definidos a partir da “elaboração de uma política cultural” que analisasse a “situação concreta
do circuito de arte”, ou seja, a sua vinculação com os critérios estabelecidos pelo
comportamento do mercado de arte. Para tanto, considera que essa tomada de posição deve
ser “rigorosa e agressiva”, no sentido crítico do que se compreende um trabalho experimental.
Para além de uma experimentação de suportes e radicalização de um pensamento sobre a arte,
Brito afirma que o experimental “está necessariamente comprometido com uma crítica a todo
o sistema de arte – a sua posição e função dentro da sociedade – e traz implícita ou
explicitamente uma proposta de reformulação desse sistema”.
Lopes demarca a partir das reflexões de Paulo Venâncio (2013, p. 32), que outro modo
de se pensar e praticar o experimental colocou em relação as concepções modernas,
demarcadas pela presença de um extenso e residual projeto construtivo, a outros projetos que
assumiriam o livre arbítrio de escolha, experimentação e risco. A forma universal foi
problematizada pelos “não-objetos” e “objetos-ativos”. Foi uma fase em que se praticava o
exercício da não definição, da não domesticação, da não normatização do conjunto de
propostas que ali estiveram sendo exploradas, que pelo menos responderam, em alguma
medida, ao momento de intensa coerção de outras liberdades. Nas palavras de Venâncio,
exercitar a liberdade pela prática experimental, foi uma “forma de ação anti-institucional”.
Porém, no contexto do Museu, esses experimentalismos reagiram como estopins e, ao mesmo
tempo, como disparadores de divergências institucionais e conceituais sobre o próprio destino
da arte, em que seus produtores e a crítica de arte institucionalizada, representada por Roberto
Pontual e Frederico Morais, protagonizariam no MAM RJ – este último retomado no próximo
e último tópico desta parte do trabalho.

202
2.5 “Não fui eu que botei fogo no museu”

A frase que nomeia este subitem foi dita por Frederico Morais em uma entrevista
concedida ao projeto de pesquisa Rubens Gerchman: com a demissão no bolso, do Instituto
Rubens Gerchman, e se refere ao período em que coordenava as atividades nos jardins do
MAM RJ e, por conseguinte, revisava a função dos museus na cidade.171 Na década de 1970,
como coordenador do setor de cursos do Museu, o crítico de arte apresentou o “Plano Piloto
da futura cidade lúdica” no IV Colóquio da Associação Brasileira de Museus de Arte em Belo
Horizonte, cuja proposta era criar um “Museu de Arte pós-Moderna.” Publicado no Correio
da Manhã, o Plano defendia a atividade criadora, a prática artística como interesse central e
não mais as obras de arte, considerando o acervo de arte moderna “matéria histórica
arqueológica, arte cemiterial.” 172
Com base no Le Livre Blanc, de Pierre Restany (1969), no conceito “crelazer” de
Helio Oiticica e no livro Arte como Experiência, de John Dewey (1934), Morais esboça um
conjunto de ideias sobre a formação de um Museu de Arte Pós-Moderna ter em pauta a
absorção do objeto, das proposições, dos happenings e todas as manifestações que se
enquadram na “epígrafe da década” de Mario Pedrosa: “a arte é o exercício experimental da
liberdade.”173 Para tanto, defende um alargamento da noção de museu para o espaço urbano,
considerando-o sua própria extensão, em que lazer, participação, vida cotidiana, experiência,
o fazer e o caráter interdisciplinar constituem palavras-chave do seu projeto. Reconhece que o
papel de um museu de arte moderna caminha junto ao colecionismo privado e público e,
consequentemente, ao mercado de obras de arte, ao passo que, com uma pretensa
“desmaterialização” da obra de arte, um museu de arte pós-moderna pode se concentrar
efetivamente na atividade criadora, “impulsionando e coordenando a criação da
vanguarda.”174
A proposta de Morais tem como referência as proposições ao ar livre que vinha
desenvolvendo desde o final da década de 1960 e que culminaram no MAM RJ no período em
que esteve à frente do departamento de cursos. A “geração tranca-ruas”, da qual destacou

171
Entrevistas Projeto “Rubens Gerchman: com a demissão no bolso”. Disponível em:
http://www.institutorubensgerchman.org.br/entrevistas.html Acesso em: 12 fev. 2019.
172
MORAIS, Frederico. Plano-pilôto da futura cidade lúdica. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 06 jun. 1970.
Acervo Biblioteca Nacional.
173
FERREIRA, 2009, p.39.
174
MORAIS, Frederico. Plano-pilôto da futura cidade lúdica. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 06 jun. 1970.
Acervo Biblioteca Nacional.
203
Francisco Bittencourt [1970], participou do Salão da Bússola (1969) e da mostra Do Corpo a
Terra (1970), tendo Morais como jurado e organizador respectivamente. A ideia de uma
“contra-arte” se justificava pelo modo pelo qual uma geração de artistas se apresentou mais
investida em “histórias marginais” do que no fomento à cultura, aos “ismos” e às tradições
artísticas.
Ao ser questionado por Bittencourt (2016, p. 36) sobre a mostra de Belo Horizonte se
apresentar como um novo movimento antropofágico, Morais, com base na conferência
comemorativa dos vinte anos da Semana de Arte Moderna de Mário de Andrade, afirmou:
“Nós somos mais pretensiosos: se a nossa civilização está apodrecida, voltemos à barbárie.” E
ainda continua, “Somos os bárbaros de uma nova raça. Os imperadores da velha ordem que se
guardem. Nosso material não é o acrílico, bem-comportado, tão pouco almejamos as
‘estruturas primárias’ higiênicas. Trabalhamos com o fogo, sangue, ossos, lama, terra ou
lixo.” E segue na defesa do sangue e do fogo como elementos purificadores e do “precário
como norma” e a “luta como processo de vida”. Morais se aproximava de um léxico formado
pela arte da década de 1970 que pretendia discutir uma política de inserção das artes
deslocada de um debate ideológico próprio da chamada arte política. Afirmavam que
determinados valores, até então perpetrados por uma tradição modernista, passariam a ser
transgredidos para se pensar outra abordagem, inclusive formal de uma práxis artística.
A conferência de Mário de Andrade, da qual Morais se refere, foi realizada em quatro
artigos e publicada no Estado de São Paulo em 1942. Nestes textos, o poeta e escritor
desenvolveu uma reflexão sobre o estado da arte (e o seu próprio estado) após duas décadas
da Semana de Arte Moderna. Seus argumentos foram expostos em um jornal paulista, mas
foram escritos no Rio de Janeiro. E nesse ponto é interessante observar quais foram as
conclusões da revolução modernista e a sua recepção nas duas cidades pelas notas do escritor.
Mário de Andrade reconhece no Rio de Janeiro um “internacionalismo ingênito”,
provinciano, permeado por uma pauta política pelo fato de ser capital do país e de ter uma
zona portuária, ao passo que a cidade de São Paulo, como já sabemos, considera mais
“moderna” em virtude da economia cafeeira e do desenvolvimento industrial. 175 Pontua que o
Rio de Janeiro jamais teria condições de realizar um empreendimento como a Semana que,
mesmo diante de todas as controversas, tornou-se paradigmática. Os riscos que a aristocracia
paulistana se expôs, sobretudo mediante à imprensa, não se aplicariam aos interesses de uma

175
As aspas são do próprio autor.
204
“burguesia riquíssima” que aqui se desenvolveu e fomentou parte das instituições culturais da
cidade, especialmente àquelas vinculadas ao Estado.
Em sua narrativa, observou no período “heroico”, antes e depois da Semana,
manifestações lidas como incendiárias entre artistas e poetas, no sentido de expor um estado
de exaltação, de criação e liberdade antes não experimentado, além de notar uma convulsão
própria do meio cultural que se perturbava com as suas proposições. Certo de que o manifesto
futurista o tenha influenciado em alguma medida, certifica-se que os artistas não se
interessavam por sacrifícios, logo mártires, mas assumiam a posição de “heróis” dotados de
excepcionalidade e coragem ao provocar a desestabilização dos códigos e critérios estéticos
consagrados. Reconhece que estavam “arrebatados pelos ventos autofágicos da destruição.”176
Para Mário de Andrade, a Semana de Arte Moderna deflagrou o direito à pesquisa
estética, ou seja, à investigação, à criação, à busca daquilo que pôde formar e constituir uma
linguagem própria, mesmo que àquele momento tenha sido motivada por concepções estéticas
estrangeiras. Nota também que se atualiza uma “inteligência artística brasileira” que
fundamenta teorias voltadas para esses propósitos e a “estabilização de uma consciência
criadora nacional”. Constata que não se trata de uma inovação na história da arte do país, já
que se pode notar em outros períodos essas buscas, mas a conjugação desses princípios, na
perspectiva do escritor, colocou-se como transformadora no campo das artes. O “padrão
barulhento” e a “base humana e popular das pesquisas estéticas”, notadas por Andrade,
encontram-se no Romantismo e foram desenvolvidas com mais ênfase na consciência do
artista do que na representação do Modernismo. Essas premissas, de algum modo, parecem
retornar na produção artística teorizada pela crítica de arte de Frederico Morais, mas sob
outros aspectos.
O engagement de Morais pelas iniciativas artísticas de natureza vivencial,
experimental distanciada dos rigores formalistas das vanguardas anteriores ganhou exposição
na Vanguarda Brasileira (1966) organizada em Belo Horizonte com artistas cariocas, da qual
insere o objeto como “ordem do dia” da expressão de outras realidades artísticas que vinham
se configurando. Após essa experiência, Morais se instala no Rio de Janeiro e promove uma
série de iniciativas que iriam absorver as obras e os artistas que o acompanhavam por um
caráter interpretado como transgressor, no sentido estético e político, da realização de uma
obra de arte. Na perspectiva do crítico de arte, esse grupo resultaria na formação de uma
“primeira geração brasileira de artistas conceituais”, porém carregados de questões políticas

176
ANDRADE, 1974.
205
referentes ao período da ditadura.177 Ao rememorar esse caminho discursivo, o crítico de arte
aponta como marco cronológico a construção conceitual do objeto desenvolvido por Hélio
Oiticica para a Tropicália na Nova Objetividade Brasileira (1967) e a sua “radicalização” no
texto O objeto: instâncias do problema do objeto (1968) para a Galeria de Arte Moderna (RJ).
Nesse texto, Oiticica teoriza sobre a noção de objeto e os problemas que este termo
absorveu ao ser compreendido como fruto do trabalho criador, pois diante de uma tradição
artística toda obra em si foi constituída pela representação e pela feitura de um objeto. Atento
às contradições que envolviam a sua definição, o artista propõe que se analise a inserção da
noção de objeto na arte contemporânea para além da sua dimensão estrutural. Interessado
àquele momento no “ato criador”, na elaboração do seu programa ambiental, afirma que “o
objeto é a descoberta do mundo a cada instante [...] da vida como uma perpétua manifestação
creadora”. E que o objeto não deve ser percebido como a substituição das outras categorias,
mas colocado como mediador da “criação humana pura e única”. A expectativa dessa pureza
estava creditada nas pessoas ‘comuns’, pois o artista (especialmente Oiticica formado por uma
rigorosa tradição construtiva) estava se reposicionado para a condição de propositor, de ativar
as “probabilidades” para investidura da almejada e potente imaginação humana. 178
A abertura para discutir os sentidos e as simbologias que a arte poderia ter neste
momento se destaca como reflexão e experimentação em contraponto à continuidade de um
projeto modernista e construtivo, ainda que tratados como evidência histórica, de um longo
processo de normatização dos conceitos que determinaram uma narrativa histórica oficial da
arte. O “surgimento de um ser plástico sem designação própria” nomeado de objeto marcará a
vontade de experimentar a inter-relação dos conceitos e dos espaços da arte, problematizando
categorias e definições do que vinha a ser definido como obra de arte, especialmente quando
inseridas nos ambientes institucionais. 179
Para Morais, trazer para o debate institucional a questão do objeto não mobilizava
somente a quebra de uma tradição artística ainda latente pautada pela pintura, escultura, pelo
desenho e pela gravura, mas repensar o próprio sentido do museu e do ensino de arte. Nas
expectativas do crítico de arte, sendo o conceito de objeto mais abrangente, que transcende os

177
RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”. Entrevista com Frederico Morais, Rev. UFMG,
Belo Horizonte, v. 20, n.1, jan./jun. 2013, p. 341.
178
OITICICA, Hélio. O objeto: instâncias do problema do objeto. GAM: Galeria de Arte Moderna, Rio de Janeiro,
n.15, p.26-27, 1968. Disponível em http://icaadocs.mfah.org/icaadocs/THEARCHIVE/FullR-
ecord/tabid/88/doc/1110629/language/en-US/Default.aspx Acesso em 02 fev 2019.
179
FERREIRA, 2009, p. 29.
206
limites materiais usuais na produção artística, por que não ampliar as fronteiras da concepção
tradicional de museu?
Arte no Aterro (1968) com o apoio do Diário de Notícias, do qual era responsável pela
coluna de Artes Plásticas, foi a primeira manifestação artística organizada por Morais ao ar
livre no Rio de Janeiro. Defendia a arte do povo, a democratização e a dessacralização da arte
na cidade, considerando que não somente os artistas, mas qualquer pessoa poderia colocar em
prática a criatividade. O evento ocorreu todo o mês de julho daquele ano com intervenções de
Ione Saldanha, Maurício Salgueiro, Júlio Plaza, Roberto Moriconi, Hélio Oiticica e a
Apocalipopótese, com participação de Lygia Pape, Rogério Duarte e Antonio Manuel que
também se envolveu com aulas de desenho e gravura junto à Maria do Carmo Secco. A noção
de ateliê ampliado terá continuidade no programa artístico-pedagógico que desenvolveu no
MAM RJ, tendo a área dos jardins como principal espaço para realização das atividades.
Morais considerava que os espaços valorizados pela arquitetura de Reidy eram pouco
aproveitados na programação do Museu. Ao invés de considerar o MAM RJ como parte
integrante do Parque do Flamengo, como vinha sendo percebido, resolveu inverter essa noção
e ressignificar o Aterro como extensão do Museu. Posto isto, cria os Domingos da Criação
que pretendia absorver o público carioca durante os meses de verão e promover uma liberdade
criativa, afirmando-a através da experimentação de materiais com caráter efêmero. Em 1971,
“Um Domingo de Papel, O Tecido do Domingo, O Domingo por um Fio, Domingo Terra a
Terra, O Som do Domingo e O Corpo a Corpo do Domingo” compuseram ateliês a céu aberto
compostos por matéria-prima doada por diversas empresas, adaptada e experimentada nos
espaços externos da arquitetura, do jardim e do entorno do Museu pelo público.
No depoimento do crítico de arte sobre essas experimentações, Morais considerou que
“o ateliê pode ser qualquer lugar. Se eu tô numa praia o ateliê é ali na praia. E qual é a
matéria-prima? É a areia, é a água, é o vento. E as técnicas a serem ensinadas ali são as
técnicas adequadas a manipular esses materiais [...]”. E reafirma: “Eu não quero botar fogo
nos museus. Eu até brinco porque me acusavam de que sujavam o museu, que havia uma
deformação da ideia de museu, aquela coisa e tal.” 180 O Domingo Terra a Terra foi, na
percepção do crítico, a atividade que exigiu mais dedicação no processo de experimentação,
pois se distanciava, a priori, dos materiais como papel e tecido que estariam mais próximos do
entendimento de um fazer artístico.

180
Instituto Rubens Gerchman. Entrevistas Projeto “Rubens Gerchman: com a demissão no bolso”. Disponível
em: http://www.institutorubensgerchman.org.br/entrevistas.html Acesso em: 12 fev. 2019.
207
A mensagem “Aceita-se aterro. Terra, areia, cascalho, saibro etc. Deixar aqui. Falar
com Frederico Morais” vinha escrita em uma placa posicionada nos pilotis do Museu a fim de
angariar matéria suficiente para a proposta do Domingo. Considerada a atividade mais radical
e arrojada, pois o volume de material doado foi maior do que o esperado, despertou na sua
avaliação um desafio para o público não artista em ativar a “imaginação inventiva e
originalidade”. Embora Morais argumente que a proposta deste Domingo parte da relação da
terra com a representação da paisagem, do seu uso material pelos artistas da Arte Povera, da
Land art, pelo uso “pioneiro” da brita e da areia nos bólides e penetráveis de Oiticica, àquele
momento justificava seu uso apenas para fins educativos e pedagógicos. Afirmava que a
“ideia de arte é substituída pela ideia de criatividade, a arte-suporte é substituída pela
ação.”181
E essa ação corresponde ao retorno de uma ideia de “apropriação” da cultura nacional
periférica proposta pelos modernistas, mas que no contemporâneo se localiza no ambiente
urbano, das “coisas do mundo” do qual se refere Oiticica ao se deparar com materiais que se
encontram em ruas, terrenos baldios, nas favelas. Da representação às marcas do entorno
passam ao contexto vivencial. A marca construtiva da “obra” está presente em sua produção
outrora marcada pelo legado concreto e neoconcreto nas construções espaciais. Os
Metaesquemas, os Relevos Espaciais e alguns Penetráveis são elaborados dentro dessa razão.
Com o Programa Ambiental, o aspecto construtivo retorna, mas em outro campo semântico,
distanciado de um léxico racionalista, o uso da matéria-prima do meio industrial, como a
terra, a brita, a areia, o tijolo ganha uma dimensão “suprassensorial”.182
As imagens do MAM RJ imerso e refletido em terra, areia e pedra nos parece produzir
uma continuidade histórica de um projeto estético, ideológico modernista com Oiticica e
Morais tentando desferir “um golpe fatal ao conceito de museu” 183, paradoxalmente, ainda
sob seus domínios e rubricas.
A intenção dos Domingos da Criação era animar a “ação criadora” praticada pelos
artistas e, sobretudo, pelo público “anônimo”, a fim de “formar, no seu campo específico, uma

181
Idem.
182
“[...] levar o indivíduo a uma ‘suprasensação’, ao dilatamento de suas capacidades sensoriais habituais, para
a descoberta do seu centro criativo interior, da sua espontaneidade expressiva adormecida, condicionada ao
cotidiano.” OITICICA, Hélio. Aparecimento do suprassensorial (novembro-dezembro 1967). SCOVINO, Felipe.
Corpoobjeto: o campo experimental de Hélio Oiticica (1954-1961). In:_______. Museu é o mundo. São Paulo:
Itaú Cultural, 2010, p. 87.
183
OITICICA, 2010, p. 21.
208
nova imagem da sociedade que está surgindo.”184 A pauta de Morais continha a proposta do
“Museu é o mundo” de Oiticica e o conceito “imagem-ação”, desenvolvido pelo sociólogo
suíço Alfred Willener no livro The Action-image of Society: On Cultural Politicization (1970)
que, em síntese, investigou por meio de entrevistas e questionários realizados junto a
estudantes e grupos ativistas durante maio de 1968, a participação como ordem do dia e,
consequentemente como gesto revolucionário.
Metodologia de Willener nos parece que foi utilizada pelo crítico de arte na intenção
de mapear os frequentadores do Museu. Motivado pela pergunta “o que essas pessoas
buscavam no museu?”, Morais também realizou uma série de entrevistas com os
frequentadores da área externa do MAM RJ e constatou que a ida ao Museu não
necessariamente estava associada ao encontro com as obra de arte, mas pela permanência nos
jardins que ofertavam espaços de reflexão individual e/ou coletiva que transcendiam as
questões específicas do campo da arte.
Essa pesquisa foi desenvolvida pelo Laboratório de Criatividade da Unidade
Experimental (1969), coordenada por Morais que, mediante autorização dos entrevistados,
desejava estendê-la aos seus espaços de moradia e trabalho. Pretendia-se traçar um “retrato-
tipo” do frequentador do MAM RJ, para assim, programar suas atividades, além de ampliar o
conceito de acervo que, para o crítico, não se limitava à reunião de obras de arte, mas aos
elementos que a área externa do Museu conjugava, tais como o “silêncio, o barulho, a brisa, a
pedra e a vegetação”, constituindo, desse modo, um “acervo poético”.185
A Unidade Experimental criada por Morais, Cildo Meireles, Guilherme Vaz e Luiz
Alphonsus foi pautada por experimentações “plurissensoriais e interdisciplinares”. Pelo
próprio uso do termo “unidade”, buscava-se centralizar as diversas manifestações culturais e
artísticas em um modo de expressão e experimentação que convergisse para um “laboratório
de linguagem”, onde a “capacidade lúdica do ser humano” fosse explorada ao máximo. Esse
laboratório não se configurou como um espaço físico, mas existiu como concepção de
trabalho àquele momento no MAM RJ. 186
A construção de uma narrativa calcada na liberdade de criação, na experimentação,
prevaleceu à “crítica oficial” que Morais recebeu sobre estar “emporcalhando e

184
MORAIS, Frederico. A criatividade liberada: “domingo terra-a-terra”. Diário de Notícias, 2º Caderno, 25 abr.
1971. In: GOGAN, Jessica; MORAIS, Frederico (Org.). Domingos da Criação: uma coleta poética do experimental
em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto Mesa, 2017, p.154.
185
MORAIS, Frederico. O público do MAM. O Jornal, Rio de Janeiro, 11 mar 1973. Acervo MAM Rio.
186
MORAIS, Frederico. 1969- Unidade Experimental. In: GOGAN, Jessica; MORAIS, Frederico (Org.). Domingos
da Criação: uma coleta poética do experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto Mesa, 2017.
209
comprometendo a imagem do Museu.” 187 Inclusive, reforça décadas depois que foi justamente
a imagem dos Domingos que permaneceu como “um capítulo importante na história da arte
moderna brasileira” após o incêndio e a perda, nesse caso, um tanto irônica, do acervo
“cemiterial”, anteriormente mencionado. O crítico de arte atribui aos Domingos da Criação
um marco da passagem da arte moderna à pós-moderna: “Estava tudo ali: Dada, Fluxus, pop-
art, arte cinética, arte conceitual, body art, performances, happenings, earth-art etc.”188
Essa percepção vem de encontro com o que Nelson Leirner já havia testemunhado
sobre a década de 1970 apresentar-se como uma síntese de todas estas manifestações serem
exploradas sobre diferentes e múltiplos suportes. Acrescenta, obviamente com uma dose de
ironia, ao final da lista de suportes e meios, o “Somente Pirando”. 189
Durante três anos, entre 1969 e 1972, podemos afirmar que o MAM de Frederico
Morais acentuou o aspecto de centro cultural do qual foi rememorado após o incêndio por um
grupo de artistas. No texto de apresentação da programação, o entusiasmo é notado nas
palavras que podem ser atribuídas ao crítico de arte, pois o documento não consta assinatura:
“Graças a sua programação eminentemente popular que está atraindo um público sempre
maior, o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro vem se construindo, rapidamente, num
dos centros culturais mais dinâmicos da Guanabara.” Roteiros para o dia da semana ou o
domingo apostavam na aproximação do público e na imagem popular que se tentava construir
para o Museu ao nomeá-lo de “maracanãnzinho cultural”, pois todos os setores (exposições,
cursos, cinemateca, biblioteca e monitoria) pareciam integrados a cumprir essa tarefa. O
documento ainda acentua o relacionamento com a crítica de arte e o cinema que ocupava salas
do Bloco Escola, pelas sedes da “secção carioca da Associação Internacional de Artistas
Plásticos, a secção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Arte, a Federação
Brasileira de Cine-Clubes e a sede do Instituto de Desenho Industrial recém-inaugurado.” A
sugestão para visitar o Museu era começar pelo hall de entrada, passar pelo balcão onde eram
vendidas gravuras e livros, subir as escadas, ver as exposições, descansar diante da paisagem
e seguir até o terceiro andar, na Cinemateca, para assistir uma aula do Curso Popular de Arte.
Entre uma aula e outra, estimulava-se ir até a cantina para aproveitar o tempo e ver circular

187
Instituto Rubens Gerchman. Entrevistas Projeto “Rubens Gerchman: com a demissão no bolso”. Disponível
em: http://www.institutorubensgerchman.org.br/entrevistas.html Acesso em: 12 fev. 2019.
188
RIBEIRO, Marília Andrés. “A arte não pertence a ninguém”. Entrevista com Frederico Morais, Rev. UFMG,
Belo Horizonte, v. 20, n.1, p.336-351, jan./jun. 2013, p. 346.
189
PECCININI, 1999.
210
“alguns dos mais conhecidos artistas plásticos do Rio.” O convite acrescentava: “Vá conhecê-
los. Venha ao Museu. Estamos certos de que você ficará satisfeito.”190
Dentro e especialmente fora das galerias, o projeto arquitetônico de Reidy
proporcionava um ambiente favorável às ações que intermediavam interesses pela paisagem,
pelo espaço público e os limites de relação e intervenção do circuito de arte na produção dos
artistas. São questões que se fizeram presentes na virada da década de 1960 para 1970 no
MAM RJ a partir do programa pedagógico de Frederico Morais, que também questionou o
uso dos ateliês na sua forma prática/técnica, logo, o sentido do Museu em ainda mantê-los.
As orientações pautadas pelo uso de materiais e aprendizagem de técnicas de como
pintar, gravar ou esculpir manifestavam a natureza do ofício, legado do campo artístico
acadêmico do século XIX, que acompanhou, sob outras concepções estéticas, as práticas
modernistas. Ao longo de toda década de 1950, exposições de alunos, dentre adultos e
crianças, eram realizadas anualmente a fim de se expor os resultados das aulas de iniciação à
pintura, à pintura livre ou de gravura. O estudo dos elementos da composição, da
comunicação visual e análise crítica permaneceu encerrado no contexto dos cursos teóricos
sem amplos relacionamentos com o que ocorria na programação de artes visuais do Museu
durante toda a década de 1960, até que se nota uma mudança do quadro de cursos, cujas
pesquisas, tendo a arte como questão central, começam a ser exploradas enquanto proposta
metodológica. 191
Espera-se para o começo da década de 1970 que a proposta pedagógica do MAM RJ
se desconecte das “especializações, fórmulas e convenções” para que se possa desenvolver o
potencial criativo dos alunos, atuando, sobretudo, “no campo do Objeto criando situações,
eventos, ambientes, usando meios mais atualizados – cinema, slides, fotografias etc., – e
novos suportes.” O objetivo era formar propositores e não artistas, no entanto, comemora-se a
integração de grande parte dos alunos no Salão de Verão com participações e premiações.192
Mesmo diante desse cenário, Morais reconhece que alguns professores não se
dispunham a colaborar para a nova concepção pedagógica calcada na “criatividade” do aluno
e não mais na “técnica”. Anota ainda que “existem problemas de infraestrutura burocrática (a
sala de aula é cada vez mais inadequada ao ensino), de estrutura geral do MAM e, sobretudo,
a própria situação brasileira”. Sua avaliação se concentrava na permanência dos ateliês que

190
Texto datilografado, sem assinatura e data. Identificado no dossiê sobre os cursos do Museu. Acervo MAM
Rio.
191
Pesquisas Artísticas com Ivan Serpa e História da Arte com Frederico Morais.
192
Documento datilografado identificado no dossiê sobre a programação dos cursos. Acervo MAM Rio.
211
primavam pelo formato anterior à sua chegada, que resistiam à ideia de rever os limites e
códigos internos estabelecidos por uma tradição. 193 O crítico de arte permanece nessa função
até março de 1973, quando é substituído por Roberto Pontual que não dá continuidade ao
programa pedagógico de integração das linguagens artísticas proposto por Morais.
Ainda assim, podemos perceber que o período que abrange especificamente os anos de
1965 e 1975, diversas iniciativas que ocorreram no MAM RJ buscaram discutir o artista como
interventor do circuito de arte. É neste momento que uma diversidade de proposições
artísticas foi colocada à frente da feitura da obra de arte em si destinada às galerias comerciais
e museus. Escapar, pelo menos na elaboração do pensamento e da ação do artista, dos regimes
auráticos impostos pela institucionalização da arte era um dos caminhos percorridos pela
artista Anna Bella Geiger que comentou sobre a década de 1970 “virar ao avesso” as questões
que engendram o artista, a sua produção e o espaço da arte. Antonio Manuel atento à
vulnerabilidade dos corpos àquele momento “sujeito a levar tiro, receber pedrada, uma
cacetada na cabeça, [...]” optou por inscrever seu próprio corpo como obra no Salão Nacional
de Arte Moderna (1970) no MAM RJ. Não sendo selecionado, após o contato com Raimundo
Collares preso por ter quebrado o vidro do Museu com uma pedrada, decide ir à abertura do
Salão e se expor nu com um ato “de asco e repulsa” a todo aquele contexto.194
Para o crítico de arte Paulo Sergio Duarte (1998), as duas exposições mais
significativas do MAM RJ, que antecederam as experiências de 1970, foram Opinião 65 e os
relevos de Sergio Camargo. Segundo o crítico, a escolha do tema da exposição coletiva,
mesmo não exclusiva, refletia um interesse dos marchands Jean Boghici e Ceres Franco,
proprietários das galerias Relevo e L’Oeil de Boeuf respectivamente, em apresentar uma
produção artística que representasse, novamente no contexto do Museu, um movimento de
ruptura com a pintura abstrata: “Opinião 65 é uma exposição de ruptura. Ruptura com uma
arte do passado.”195 Para o crítico, os efeitos da “ruptura” foram notados, porém considera o
conjunto de obras a expressão de uma nova linguagem em processo de gestação do que
propriamente um rompimento com as referências artísticas precedentes.
Opinião 65 foi programada a partir do contato de Ceres Franco e Jean Boghici com a
exposição Mythologies Cotidiennes (1964) no Museu de Arte Moderna de Paris organizada
por Gerard Gassiot-Talabot que cunhou o conceito “Figuration narrative” em resposta à

193
“Problemas de ordem geral”. Texto datilografado sem data e assinatura. Identificado no dossiê sobre os
cursos do Museu. Acervo MAM Rio.
194
FERREIRA, 2009, p. 55.
195
MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO. Opinião 65. Rio de Janeiro, 1965. Catálogo. Acervo MAM
Rio.
212
hegemonia da pop art americana.196 Embora não tenha se realizado enquanto movimento
como o Nouveau Réalisme (1960) de Pierre Restany, Yves Klein, Jean Tinguely entre outros
artistas, foi a partir da produção plástica e, dos interesses de mercado desta exposição que a
mostra brasileira foi idealizada. Em depoimento, Ceres Franco menciona a “inspiração” partir
da “Escola de Paris, com artistas de várias nacionalidades, que com atrevimento da juventude
apresentaram obras figurativas que foram recebidas como um soco no estômago [...].”
Aproveitaram o nome do grupo carioca Opinião e do “sucesso do show” e começaram a
selecionar artistas que se revelavam com “temperamento de combate”. 197 No entanto, à
distância de cinquenta anos, Morais constatou que foi construída uma “aura mitológica da
Opinião 65” diante da própria montagem da exposição que na prática se mostrou aquém às
obras de treze artistas nascidos e residentes em Paris e dezessete artistas brasileiros que
ocuparam as galerias do Bloco Escola apoiados por Carmem Portinho.198
Havia uma tentativa de aproximar as obras dos artistas à Figuration narrative, ao
Nouveau Réalisme, ao grupo argentino Otra Figuración e a atitude americana da Pop Art,
mas, de um modo geral, os artistas em depoimento a Morais desejavam promover um balanço
da produção artística, especialmente dos jovens artistas e, ocupar de todas as formas os
espaços e “entrar no primeiro caderno dos jornais”, como se referiu Carlos Vergara. 199
Para além das intenções e especificidades de cada artista, mais do que se alinhar a
movimentos externos apontados pela crítica de arte, os artistas brasileiros buscavam
visibilidade, sobretudo em instituições administradas por uma “burguesia industrial nacional,
parte dela ligada aos meios de comunicação, financiando uma rede de arte moderna [...].”200
As instituições museológicas, especialmente do eixo Rio-São Paulo, que formavam um
acervo institucional e abrigava em seus espaços exposições individuais e coletivas
temporárias, firmavam-se como locais que fomentavam junto a algumas galerias de arte uma
cultura de mercado de arte. No Rio de Janeiro, na década de 1960, por exemplo, três galerias
foram instaladas na cidade: Bonino, criada pela argentina Giovana Bonino, Petite Galeria de
Franco Terranova e Relevo pertencente a Jean Boghici.

196
Em 1967, Gerard Gassiot-Talabot define sua formulação: “Est narrative toute œuvre plastique qui se réfère à
une représentation figurée dans la durée, par son écriture et sa composition, sans qu’il y ait toujours à
proprement parler de ‘‘récit". Disponível em: http://mediation.centrepompidou.fr/education/ressources/ENS-
figuration-narrative/ENS-figuration-narrative2.html Acesso em: 31 mai. 2019.
197
PERLINGEIRO, 2015, p.27.
198
PERLINGEIRO, 2015, p. 30.
199
Idem, p.35.
200
BUENO, Maria Lucia. O mercado de galerias e o comercio de arte moderna: São Paulo e Rio de Janeiro nos
anos 1950-1960. Sociedade e Estado, Brasília, v. 20, n. 2, p. 351-376, maio/ago. 2005. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/se/v20n2/v20n2a06.pdf Acesso em 15 nov 2018.
213
Sobre essa mostra, a argumentação de Daisy Peccinini (1999), acerca da “ação
operativa do artista” ao reintroduzir a representação icônica como forma de estabelecer no
campo da arte sua intencionalidade artística, corresponde às iniciativas de muitos artistas em
desenvolver uma espécie de “guerrilha” no sistema da arte.201 Eram tempos em que os
acontecimentos políticos no país agitavam a militância de intelectuais, artistas e estudantes
por espaços de afirmação e manifestação de novas experiências visuais frente ao ambiente de
coerção e censura de um regime político que acabava de se impor. Foi um momento em que
as críticas às experimentações da arte informal retomaram, considerando a importância de se
visibilizar a opinião do artista, a sua percepção do mundo por meio de diferentes meios de
expressão, retomando a figuração, mesmo que àquele momento tal linguagem se encontrava
internacionalizada.
Ferreira Gullar [1965] defenderia essa internacionalização, mesmo se questionando
sobre uma repetição das influências estrangeiras na produção artística brasileira, considerando
que “uma arte de opinião pode, por sua própria natureza crítica, objetiva, tornar-se um
movimento internacional sem eliminar os elementos peculiares a cada cultura, a cada país, a
cada região.”202 Mário Pedrosa reconhece que o sucesso desta mostra se deu, sobretudo, por
ocorrer em um momento em que Carcará de João do Vale, “um hino da revolução social
camponesa nordestina”, e Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, atualizavam as
opiniões sobre a situação “linha dura” em que passava o país. E questiona os propósitos de
Opinião 66 em pretender representar mais uma vez a “opinião” dos artistas, considerando que
“não se faz obra de arte de seu tempo, de sua época por deliberação própria consciente. Nem
muito menos por decreto”, alegando que, ao contrário da proposta de 65, repetir a fórmula
viria a se tornar um salão anual como tantos outros existentes. Além do teor de algumas obras,
as polêmicas, especialmente causadas pela recusa emblemática do MAM RJ para entrada de
Oiticica e a comunidade da Mangueira com os parangolés, não se repetiriam com tanta
efervescência no ano seguinte.203
Nesse ponto, a forma como expor e ocupar as galerias do MAM RJ movimentou
alguns artistas a problematizar este espaço e o próprio meio da arte. A começar pela Nova
Objetividade Brasileira (1967), também organizada no Museu, tendo Gerchman e Oiticica
como mobilizadores de uma iniciativa que parte dos artistas e não mais de marchands como

201
MORAIS, 2004; PIGNATARI, 2006.
202
PERLINGEIRO, 2015, p. 53.
203
PEDROSA, Mario. Opinião...Opinião...Opinião. Correio da Manhã, 11 set. 1966. In: PERLINGEIRO, Max.
Opinião 65: 50 anos depois. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2015, p. 55.
214
ocorreu com Opinião 1965 e 1966. Zílio testemunha que, com a mostra de 1967, os artistas
“se organizavam como grupo, como um projeto, com um programa cultural.” 204 Uma das
diretrizes da Nova Objetividade Brasileira centrava-se na questão da eliminação do “quadro
de cavalete”. Oiticica falava da “demolição”, de “antiquadros”, da “desintegração” do plano
pictórico e ressignificação do sentido da obra de arte, da condição de objeto à afirmação do
conceito de “proposição dialético-pictórica”. Na década de 1970, Carlos Vergara desistirá de
sua mostra individual no MAM RJ e promoverá uma coletiva chamada EX-posição (1972),
em que convida uma série de artistas a expor um trabalho que, de algum modo, tocasse no
contexto político, do qual depõe agoniado sobre “o absurdo fazer uma individual fingindo que
não estava acontecendo nada”. A mostra contou com uma multiplicidade de propostas
representadas por Hélio Oiticica, Roberto Magalhães, Caetano Veloso, Chacal, Bina Fonyat,
Glauco Rodrigues, Ivan Cardoso e Waltércio Caldas.205
Ainda, Mario Pedrosa reconhecerá neste período uma “vocação antiarte” nomeada de
arte pós-moderna, em que constata uma inversão de sentidos. Se antes as soluções plásticas
protagonizavam a pauta artística, destituindo resíduos subjetivos expressos pelos modernistas
e informais, àquele momento uma plasticidade se destacou pelas “estruturas perceptivas e
situacionais”, sem perder de vista seu rigor formal, a arte ambiental foi instaurada pelo
“vanguardeiro” Hélio Oiticica.206 O artista, antes mesmo de traçar os parâmetros da Nova
Objetividade, afirmará que o pioneirismo da proposta, daquilo que nomeia a sua geração de
vanguarda, foi justamente a busca de uma arte ambiental que integrasse todo o campo
sensorial e conceitual por meio da construção de “objetos perceptivos” que ativassem a
participação integral do público. Em sua conferência no evento Proposta 66, afirmou que
“nada é excluído, desde a crítica sensorial até a penetração de situações-limite”.207 Destacava-
se nesta declaração a tese de Pedrosa sobre a fundação de novos critérios, não só para aqueles
que produzem arte, mas para aqueles que a teorizam também.
A década de 1970 marcaria o nascimento de outra concepção de arte que influenciou
diretamente diferentes interesses por uma reformulação do Museu de Arte Moderna para uma
nova consciência institucional que conjugasse outros critérios estéticos e conceituais. De
algum modo, Morais já antecipava a reformulação do MAM RJ, que a partir do incêndio
colocou-se de forma premente. Francisco Bittencourt analisou que em dez anos, o MAM RJ

204
Fernando Cocchiarale, Paulo Sérgio Duarte, Vanda Klabin, Maria Del Carmem Zílio entrevista. In: FILHO,
Paulo Venâncio. Carlos Zílio. Cozac Naify, 2006, p. 32.
205
Disponível em: https://www.cvergara.com.br/anos-70 Acesso em: 10 mar. 2019.
206
FERREIRA, 2006, p. 143.
207
Idem, p. 148.
215
“tornou-se naturalmente centro de onde evoluíram os momentos mais avançados na arte
brasileira”, em que intentou-se formular “a espinha dorsal ideológica que lhe faltava” com as
propostas voltadas à prática experimental. 208 Como um espaço possível de escape das
manifestações que sucediam violentas perseguições e coerções, absorvia, mesmo sem a
intenção, as radicalidades que ali ocuparam o aterro, os jardins, as galerias, a cantina, os
pilotis etc.
Bittencourt destaca a formulação do conceito de antiarte nas Opiniões, na Tropicália
de Oiticica, na aproximação do artista e público em Arte do Aterro, o Salão da Bússola, que,
para o crítico de arte, “caracterizou o que ia ser a década de 70 nas artes visuais” marcada
pelas “anti-obras” de Antonio Manuel, Cildo Meireles, Arthur Barrio, Thereza Simões,
Guilherme Vaz, Odila Ferraz e Luiz Alphonsus. 209 O caráter coletivo, problematizador,
radical e revolucionário que caracterizou a produção de um determinado núcleo de artistas
diante de outras manifestações consideradas, pelo crítico, “bem comportadas” foi definidora
para a construção da memória do MAM RJ pós-incêndio e, paradoxalmente, para a sua não
continuidade em seus espaços.
O volume de obras, eventos e proposições artísticas que foram expostas no MAM RJ
durante este momento não falava de um passado, mas de um presente, contemporâneo à
situação política do país. Artistas oriundos das experiências do Neoconcretismo, da Nova
Figuração, tomavam diferentes posições diante do cenário de restrições à liberdade de
expressão. Uns com um engajamento explícito, enquanto outros artistas desenvolviam uma
linguagem caracterizada por conceitual, manifestando-se de forma menos direta.
Reynaldo Roels (2009) considerou em suas análises sobre a ocupação dos espaços do
MAM RJ, do momento em que se instaura o golpe militar até o incêndio, o Museu como
“ponto nevrálgico para discussão e divulgação de ideias de todo o tipo”. 210 Reconhece que a
“vanguarda militante da instituição” não foi recuperada após 1978, não por consequências do
incêndio ou resistência da política institucional, mas do “esvaziamento sistemático”
decorrente da fusão do estado da Guanabara com o estado do Rio de Janeiro, afetando
diretamente o fomento e a circulação das atividades artísticas e culturais. Defende também a
ideia de uma neutralização das oposições cariocas ao Governo com a instituição de uma
abertura política lenta e gradual iniciada em 1979 com a anistia.

208
FERREIRA, 2006, p. 180.
209
Idem, p. 175.
210
ROELS, Reynaldo. Arte Brasileira 1963-1978. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
2009. [Catálogo de exposição].
216
Nos primeiros anos da ditadura reconhecida como os “anos de chumbo”, temos
conhecimento de algumas situações, entre os anos 1967 e 1969, em que ocorreram alguns
fechamentos e cancelamentos de exposições, tais como o Salão de Arte Moderna de Brasília
(1967), Bienal de Salvador (1969) e o caso da Pré-Bienal de Paris (1969) no MAM RJ que
comentaremos na segunda parte deste trabalho. Obras que faziam referência direta às coerções
políticas foram proibidas ou destruídas, mas a censura não moldou a produção deste período
que, das mais variadas situações, a liberdade de criação foi a mais praticada. Alinhada às
teorias de guerrilha artística, muitas propostas investiam em uma desconstrução das estruturas
rígidas, controladoras, normativas e capitalistas que permeavam o sistema da arte. Como
teorizou Décio Pignatari [1967], “nada mais parecido com a guerrilha do que o processo da
vanguarda artística consciente de si mesma. [...], hoje ela se volta contra o sistema: é
antiartística. [...] na medida em que toma consciência de si mesma como processo
experimental.”211
Podemos concordar com Roels sobre o contexto político, econômico e social
desfavorecer a continuidade de um projeto artístico pautado sob diferentes vertentes
experimentais na cidade do Rio de Janeiro; sobre o incêndio do MAM RJ acabar antecipando
um esmorecimento de uma “vanguarda carioca”, mas no ponto em que os artistas reivindicam
a reformulação do Museu segundo sua tomada de posição e interesse nesse processo, ocorre-
nos que suas ideias acabam sendo reconhecidas como “antimonumentais”.
O termo “antimonumental” aqui utilizado se refere às análises de Márcio Seligmann-
Silva (2016, p. 50) sobre as propostas artísticas que recusam a dimensão celebrativa colocada
pela instauração do monumento, em um contexto pós-guerra e pós-ditadura militar. A
utilização do termo pelo autor remete aos processos de memorialização de Auschwitz. Por
meio do reconhecimento e da rememoração, “se desenvolveu uma estética do que se tornou
conhecido como antimonumento”. Esta estética, a princípio, foi composta por uma dimensão
fúnebre, pois se associa às ações de visibilidade que procuram expor um passado doloroso que
se recalcou ou foi esquecido e até mesmo apagado. O antimonumento encontra-se na ordem
testemunhal, catalisa os dispositivos mnemônicos, portanto, coloca-se em relação ao passado
histórico e presente “saturado de agoras”, a fim de implodir uma lógica historicista de se
formular ou reformular uma narrativa.
Especificamente sobre os processos de reconstrução do MAM RJ, nomear de
“antimonumental” a posição de uma “vanguarda carioca” não se refere ao conteúdo das obras

211
FERREIRA, 2006, p. 158.
217
em si, mas à construção discursiva crítica e polêmica que os artistas e parte da crítica de arte
pertencente a esse núcleo produziu entre 1960 e 1970. No entanto, constataremos que aquilo
que porventura se colocou como uma crítica à própria instituição foi consumida pelo fogo,
virou cinza e dos vestígios, formulou-se uma narrativa, digamos, monumental sobre uma
vanguarda experimental no MAM RJ.
Veremos adiante que o estado de marginalidade “a la Oiticica”, do qual os artistas se
referenciavam para repensar o circuito artístico e, sobretudo, o regime aurático ainda presente
no programa artístico do MAM RJ, não foi absorvido nos processos de reconstrução. A longo
prazo, percebemos uma destituição da imagem do Museu como espaço pedagógico,
laboratorial, da cultura do lazer em contraponto aos regimes produtivos idealizados na década
de 1950, para afirmá-lo como um lugar de produção de uma narrativa histórica da arte em que
determinados códigos estéticos serviram para construção de uma noção de memória, logo, de
museu. Toda a discussão que assinala uma revisão do papel do MAM RJ na cidade vai
perdendo fôlego até a sua total eliminação com o incêndio, que retorna, mas sob outros
parâmetros. A ação do fogo interrompe e pausa algumas querelas internas e ilumina um
rastro, em que então foi possível perceber de quais resíduos, da matriz modernista,
construtivista ou experimental a sua reconstrução tomaria forma.

218
3 A MEMÓRIA É CONSTRUÍDA

“Sinto um choque quando pego uma moldura, olho e não vejo nada.”212

“Como o disse com grande propriedade o crítico Mário Pedrosa, ‘a situação mudou’,
e ‘é imperativo que se tire uma conclusão lógica da ‘catástrofe.’ Daí a enorme
necessidade de ‘chamar outras forças e o Estado’ para criar um novo MAM, com
outras finalidades.”213

“Será oferecido aos artistas o estímulo de trabalhar com o plano simbólico da


reconstrução, seus signos, suas marcas, o fogo como elemento de construção, os
escombros, tudo transformado como renovação.” 214

As “Vinte mil caixas de fósforo, 800 mil palitos de fósforo, 18 galões de tinta
(vermelha, branca, preta, amarela e azul), seis galões de cola e centenas de pincéis” foram
descartados da histórica série dos Domingos da Criação. O último Domingo, o Domingo do
Fósforo foi apresentado junto a um breve relato das ressonâncias que esta programação
alcançou nacional e internacionalmente: “O Museu de Arte Moderna do Rio é a entidade
pioneira no país na organização destas manifestações de livre criatividade e manifestação
pública.” E prossegue, “[...] a iniciativa do MAM repercutiu em vários pontos do território
brasileiro [...] e repercutiram igualmente nos Estados Unidos.” 215 O release apontava ainda
para uma tradição do uso da caixa de fósforos em obras de Hélio Oiticica, Lygia Clark e
Aluísio Carvão, no Curso de Cultura Visual Contemporânea que investigou a sua estrutura
como meio plástico e pela Bauhaus como fonte de experimentação da forma. Segundo a
imprensa, foi o Domingo de menor adesão popular, pois foi preparado “às pressas” não
podendo ser divulgado com antecedência. Interrogado sobre essa questão, Frederico Morais
afirmou que “os fósforos de ontem serviram para preparar o terreno para possíveis
manifestações nas férias e para a série de 1972”. De fato, pela sua natureza ígnea, “os fósforos
de ontem” foram levados a sua última finalidade: incendiados e apagados.216

212
O renascimento, agora, no calor do debate. Arte Hoje, ano 2, n. 14, agosto 1978.
213
O MAM está de volta, com promessa de vida nova. O Globo: Rio de Janeiro, 15 mar 1981. Acervo MAM Rio.
214
HERKENHOFF, Paulo. Projeto Fênix. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 15 dez 1989. Acervo MAM
Rio.
215
Documento datilografado identificado nos Dossiês sobre os Domingos da Criação s/ título e s/data. Acervo
MAM Rio.
216
Palitos e caixas nos Domingos da Criação, O Globo, Rio de Janeiro, 20 dez. 1971. Acervo MAM Rio.
219
Ao meditarmos sobre a imagem do fogo, um campo de simbologias, metáforas e
explicações sobre seu fenômeno e, especialmente, sobre a sua origem se apresenta por meio
de diferentes cosmologias. Diversas sociedades construíram narrativas que exploraram as
propriedades do fogo, criando arranjos simbólicos e conceituais a fim de justificar sua
importância não apenas através das teorias dos elementos, mas como um dispositivo
transformador, seja pela interpretação divina ou humana da matéria.
Na mitologia indiana, Agni é uma divindade hindu que significa “fogo” em sânscrito e
está vinculada à ideia da transformação das coisas de um estado para o outro. O fogo não é
considerado um deus na mitologia persa, mas um símbolo do lar, da casa e da alma que deve
se manter sempre aceso e vigilante. Em algumas mitologias ameríndias, o fogo está presente
nas relações entre homens e animais. Geralmente dominado pelos animais, quando descoberto
pelo homem através dos sinais de fumaça, o fogo, até então desconhecido, marca a mudança
do cru para o cozido, portanto, marca a descoberta da possibilidade da modificação da
matéria. Muitas culturas acreditavam que o sol, considerado o “fogo celeste”, quando
substituído pelo “fogo de cozinha”, ou seja, pela sua domesticação, pouparia o homem de seus
excessos e catástrofes.217
Na mitologia grega, a existência do fogo se traduz em diferentes sentidos: permeia o
mito de Prometeu, a fogueira de Hércules, a forja de Vulcano e o renascimento da Fênix. Os
mitos constantemente reproduzidos em ensaios filosóficos e psicanalíticos vislumbram
esclarecer a alquimia misteriosa do fenômeno da faísca, da combustão, da chama acesa. A
redundância desta última sentença reitera a vivacidade e a tenacidade colocada por Gaston
Bachelard (1994, p. 17) a respeito do fogo, antes de tudo, manter-se como princípio da vida.
O fogo é apresentado como elemento constituinte do universo, da criação, assim como
agencia as constantes transformações do mundo, tendo a construção e a destruição como parte
deste processo, configurando, desse modo, o próprio paradoxo do caos e da ordem. No
entanto, o filósofo nos alerta: “[...] o que se conhece primeiramente do fogo é que não se deve
tocá-lo.”
Mesmo diante de todas as vigilâncias, o fogo quando propagado age sobre as coisas,
inflamando-as, queimando-as e, sobretudo, deformando o modo como eram percebidas. Do
conhecimento do fogo como fenômeno natural, dos seus usos primevos, com o

217
“Na casa do jaguar, o jovem vê um enorme tronco de jatobá em brasa; ao lado um monte de pedras, como
aquelas que os índios usam hoje em dia para construir fornos (ki). Ele come carne moqueada pela primeira
vez.” Mito Kayapó-gorotire: a origem do fogo. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 92)
220
amadurecimento dos seus domínios, este passa a agir no corpo social como “objeto de uma
interdição geral” em práticas de inibição, coação, penitência e apagamento.
Diante do fogo, o olhar se expande admirado e, ao mesmo tempo, atemorizado, pois
atualiza a consciência dos seus efeitos. Inspira a matéria poética, literária, cinematográfica e
se materializa por meio de imaginações oníricas sobressaltadas por devaneios ou na forma
sacrificial decorrente de atos incendiários quando promovidos por diferentes intenções. O
fogo apressa o tempo e age a seu termo e, em alguns casos, é utilizado como alternativa àquilo
que está fadado à destruição.
Ao investigarmos algumas políticas incendiárias na história, sobretudo praticadas por
confrontos decorrentes de formas totalitárias de governo, verificaremos que a utilização do
fogo, por exemplo, apresenta outro significante justificado pela missão genocida de purificar,
aperfeiçoar, restaurar. A munição incendiária não alcança seu alvo sozinha. É preciso outros
recursos para que uma cidade inteira desabe em destroços e cinzas. Sistemas engenhosos
identificam e localizam casas, prédios, edifícios, galpões compostos de materiais altamente
inflamáveis que junto à disposição das correntes de vento aceleram a velocidade das chamas.
Antigas casas começam a ruir, a fumaça se adensa e os caminhos se confundem, se estreitam.
Os fornos e as valas crematórias provam extermínios em massa de prisioneiros conscientes ou
não do porquê de serem levados àquele tipo de condição. Padecimentos, insurreições, provas
ou quaisquer outros vestígios que denunciassem os excessos de uma política autoritária eram
silenciados e apagados pela ação do fogo.
O gesto de atear fogo é motivado por diferentes sentidos e intenções. Das experiências
antropofágicas, e aqui leia-se tanto as práticas culturais e artísticas, o ato de queimar produz
diversas simbologias, narrativas e discursos. Queima-se em homenagem a um santo, queima-
se “o modusvivendi capitalista”, queima-se o que está cru, queima-se o barro, queima-se o
vestígio, queima-se o “inimigo sacro”, queimam-se as máquinas do Estado, o aparelho
repressor, queimam-se aqueles que são contra um sistema. Trata-se de valores que obedecem
ao mesmo receituário comum a todas as formas de cremação: matéria inflamável e o elemento
desencadeador: o estopim, a fagulha, o disparador.
No campo das artes visuais, diversos artistas utilizaram o fogo como representação,
meio ou fim de suas proposições artísticas. O artista Cildo Meireles ateou fogo em galinhas
vivas na mostra Do Corpo a Terra (1970), organizada por Frederico Morais, em resposta ao
uso da imagem de Tiradentes pelos militares que o referendava como herói no ano de
“comemoração” da Inconfidência Mineira. A obra Tiradentes: totem-monumento ao preso

221
político (1970) evoca a experiência da imolação na história, deslocando o sentido vitorioso
dos mártires para a morte brutal dos desaparecidos políticos.
Farnese de Andrade recolhia objetos abandonados na cidade e os calcificava,
deformando-os. Representava, através da queima de bonecos de plásticos, as violentas
queimaduras geradas no corpo e no espírito da população de Hiroshima e Nagasaki. Bonecos
e bonecas mutiladas e incineradas habitam o interior de redomas de vidro ou caixas de
madeira, revelando o quão perplexa, cética e, ao mesmo tempo, contemplativa é a “banalidade
do mal” diante do seu potencial destrutivo em razão de interesses reformadores. 218
“Tudo foi roterizado, sabe? Cada minuto foi planejado”219, testemunha a crítica de
arte e escritora Dori Ashton sobre o que restou da escultura de Jean Tinguely nos jardins do
MoMA NY. Fragment from Homage to New York (1960) é o que sobreviveu da proposição
conjunta com a crítica de arte, em que uma escultura cinética composta por materiais
descartados, incluindo pinturas, e diversos objetos, foi construída e, logo em seguida,
incendiada, autodestruindo-se diante do público. Embora o Museu não soubesse da finalidade
iconoclasta da escultura-máquina, na concepção de Ashton, o projeto simbolizou a própria
destruição da instituição.
O incêndio em instituições públicas foi registrado pela pintura a óleo Incêndio no
Recolhimento de N.S. do Parto (1789), do artista italiano João Francisco Muzzi; e, como
representação simbólica, aciona reflexões críticas sobre as políticas de constituição do
patrimônio público com a pintura The Los Angeles County Museum on Fire (1965-66), de
Edward Ruscha. Na ocasião da primeira exibição desta obra, o artista declarou que seria “a
pintura mais polêmica a ser mostrada em Los Angeles em nosso tempo”, pois, segundo as
descrições da obra, há uma correspondência com a controversa edificação do Los Angeles
County Museum of Art (LACMA), projetado em 1965 por William Pereira. 220 A pintura foi
exibida atrás de uma corda de veludo colocada simbolicamente como se fosse conter uma
multidão inconformada com a imagem de um museu pegando fogo.221

218
A “banalidade do mal” é uma expressão criada por Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann
em Jerusalém na década de 1960. A filósofa alemã reconhece no julgamento do oficial nazista sua posição uma
forma de violência burocratizada como ameaça às sociedades democráticas.
219
Jean Tinguely’s Fire at MoMA | Lost Art. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v-
=5DZGu6xDKbM Acesso em: 02 out. 2019.
220
William Leonard Pereira (1909-1985) foi um arquiteto estadunidense que projetou diversos edifícios de
estética futurista.
221
Disponível em: https://www.moma.org/interactives/exhibitions/1999/muse/artist_pages/rush_lacma.ht-ml
Acesso em: 10 fev. 2019.
222
Ainda sobre o tema, o artista criou uma série fotográfica que compõe um livro
intitulado Various small fires and milk (1964/1970) com imagens de dispositivos de ignição
como isqueiros, velas, fósforos, cigarro, lamparinas e, ao final da série, a imagem de um copo
de leite, em que é possível interpretá-la de diversas formas, dentre as quais aquela que rege a
mitologia popular sobre amenizar a sensação de “queimação” no estômago.
Em 2016, o próprio LACMA realizou uma exposição com título similar chamada
Various Small Fires (Working Documents, na qual reuniu obras de arte e documentos do
próprio acervo para contar histórias incomuns ou negligenciadas dos primeiros cinquenta anos
de sua fundação. Esta exibição “acendeu” pequenas histórias formativas e ocasionalmente
incendiárias que constituíram a própria história do Museu. 222
Em 2012, uma ação incendiária intencional realizada no interior de um museu como
proposta estética e política ocorreu no Casoria Contemporary Art Museum. A proposição
partiu do fundador e diretor do Museu, Antonio Manfredi, em que convidou artistas a queimar
suas obras como ato simbólico contra os efeitos do avanço brutal do capitalismo, da
instabilidade financeira causada pelo monopólio das multinacionais, do controle e acordos
estratégicos no sistema da arte contemporânea. Manfredi escreveu o manifesto “CAM Art
War:The revolution of the artists”, em que anunciava um protesto junto aos artistas
envolvidos contra os cortes decretados pelo governo no orçamento da cultura. Em seu
manifesto, declara que o objetivo final de toda produção artística é a criação de uma obra de
arte, “unique and untouchable”, e, ao destruí-la por meio do fogo junto aos artistas e dentro
do museu, a ação passou a ganhar, na sua concepção, uma dimensão de protesto e de combate
ao status quo da instituição. Além dos conselhos administrativos dos museus serem formados
por estratégias políticas, o diretor alerta para a participação das grandes mídias associadas a
centros financeiros multinacionais que apoiaram a realização de exposições e construção de
espaços que visibilizaram a filosofia do livre mercado.223
O Casoria Contemporary Art Museum se situa no Sul da Itália, em Nápoles, região
historicamente associada ao crime e à violência, sendo este um dos argumentos de protesto de
Manfredi, que apostou na ação de atear fogo em obras de arte um modo de visibilizar os
contrastes sociais, a crise financeira e a ação devastadora do monopólio e da privatização da
arte e da cultura, especialmente das instituições museológicas. À época, a campanha ganhou

222
Disponível em: https://unframed.lacma.org/2016/02/02/curating-various-small-fires-working-docume-nts
Acesso em: 11 dez. 2018.
223
CAM Art War - The revolution of the artists Disponível em: https://www.casoriacontemporaryart-
museum.com/en/cam-art-war/ Acesso em: 11 dez. 2018.
223
notoriedade internacional, mas nos perguntamos se o gesto de atear fogo como protesto
corresponde às necessidades reais de se pensar o modo como as instituições culturais vêm
sendo administradas e, sobretudo, agenciadas pelos sujeitos que a compõem.
No início do século XX, precisamente em 1909, F. T. Marinetti já havia decretado
destruição aos museus e espaços culturais em seu manifesto futurista: “bem-vindos, pois, os
alegres incendiários com os seus dedos carbonizados! Ei-los!... Aqui!... Ponham fogo nas
estantes das bibliotecas!... Desviem o curso dos canais para inundar os museus!...”. 224
Ironicamente, estes anúncios de destruição constituem a história de diversos monumentos
ligados à arte e à cultura nacional e internacional.
O aspecto catastrófico de uma experiência incendiária, não nos referimos apenas às
diferentes representações na arte, mas às disputas pela permanência ou não dos registros
históricos, mobiliza-nos a refletir sobre a experiência do trauma, que na sua etimologia guarda
o sentido da fricção, da tritura e, ao mesmo tempo, do “passar através”, do “suplantar”. As
evidências históricas nos mostram que arquivos, bibliotecas e museus, inevitavelmente, foram
alvos dessa natureza traumática. De um modo ou de outro, o foco ígneo nestas circunstâncias
evidencia uma ação imediata ou construída a longo prazo por uma série de determinantes que
não necessariamente decorrem de uma vontade efetiva de eliminar a memória material.
Susan Buck-Morss (2018) afirma que “o desaparecimento é a regra”, pois o que acaba
sobrevivendo decorre de algum “misterioso acaso” ou não apresenta ameaça ao que chama de
ortodoxia, ou seja, tudo aquilo que compõe os paradigmas, as convicções, as crenças de um
determinado grupo, ideologia, instituição. A construção mítica de algumas concepções
históricas se deve a essas práticas ortodoxas cujas crenças estabelecem uma espécie de
vigilância de como o passado deve ser rememorado. Nesse ponto, para além de uma
destruição material, Buck-Morss problematiza a preservação de um passado quando se há a
intenção de se construir uma imagem de futuro voltada a interesses específicos, dominantes,
hegemônicos de um dado presente.225 Diante disso, retornemos a Gaston Bachelard (1994)
que inscreve o fogo, além da sua qualidade natural, como um ser social, pois atua
simultaneamente na destruição e na restauração de uma imagem.
As imagens das obras e dos objetos cremados, incinerados, deformados nos conduzem
a uma reflexão sobre as relações que estabelecemos entre a sua sobrevivência, a narrativa
histórica e os sentidos dados às diferentes compreensões do conceito de memória não estarem
centrados apenas na ideia de construção ou destruição, mas na restauração depuradora da
224
CHIPP, 1993.
225
BUCK-MORSS, Susan. O presente do passado. Desterro [Florianópolis]: Cultura e Barbárie, 2018, p.18.
224
própria imagem daquilo que foi destruído. Portanto, cabe-nos aqui esquadrinhar a construção
de uma narrativa sobre os diferentes sentidos de “atear fogo” para compreender a formação
dos discursos, das práticas, das mudanças geradas no MAM RJ a partir da ação do fogo, do
incêndio.
Milton Machado elaborou a Cidade Real em Chamas (1978), um desenho a grafite do
arranjo arquitetônico da área do Centro da Cidade do Rio de Janeiro, em que faz uma
referência direta ao incêndio do MAM RJ. Indica a hora em que começou o incêndio no
relógio da Central do Brasil “solto no ar” e, logo à esquerda, torna visível pelas cores das
chamas o prédio do Corpo de Bombeiros, ironicamente, pegando fogo. Nas palavras de
Frederico Morais, o desenho nos parece indicar “um fogo impossível de controlar (um
incêndio, digamos, general, central e do Brasil).” 226

3.1 Arquivo vivo

A primeira citação que abre este capítulo se refere ao depoimento de Isaura de


Carvalho à revista Arte Hoje, um mês após o incêndio. Durante vinte e um anos, Dona Isaura,
como era comumente conhecida, foi responsável pelo acervo do MAM RJ. Não era
museóloga, mas diz ter se tornado uma “técnica no assunto”. Segundo seu relato, respondia
pelo tombamento e conservação das obras. Na fotografia, posa de óculos escuros, mãos atadas
e confessa que a primeira reação ao saber do incêndio foi “chorar muito”. Com o semblant
abatido, lamenta como quem perde seus filhos e nada pode fazer. Era possível encontrar
“atrás de sua mesa”, penduradas “como lembrança”, algumas imagens de obras
desaparecidas.227
Há um conjunto de imagens fotográficas que trata do momento pós-incêndio no
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. São imagens que registram, à primeira vista, os
olhares curiosos, as campanhas de reconstrução, parte do acervo sobrevivente, as obras
desaparecidas. Essas imagens produzem diferentes modos de se compreender a morte e a
perda, cuja aparência se assemelha a alguns ritos funerários. Da condição de registro
documental à experiência da recordação, as imagens que se referem à parte do acervo

226
MORAIS, Frederico, A cidade como tema. O Globo, 11 de maio de 1981. In: MACHADO, Milton. Cabeça. Rio
de Janeiro: Philae, 2014, p. 60.
227
O renascimento, agora, no calor do debate. Rio de Janeiro, Arte Hoje, ano 2, n. 14, agosto 1978, p. 10.
225
desaparecido passam a representar uma ausência, portanto, configuram o que Hans Belting
(2001, p. 182), em Imagem e morte, conceituou de “corpo simbólico.”
O “corpo simbólico” do qual se refere Belting está associado à imagem do corpo vivo,
íntegro; porém, ao refletirmos sobre a construção da imagem do corpo deformado
sobrevivente, percebemos que outras relações sobre mortalidade e vitalidade podem ser
colocadas para revisões historiográficas da arte. Para tal reflexão, o encontro com as teses
sobre o fim da arte e da história da arte foram fundamentais para analisarmos o retorno, a
permanência e a continuidade de algumas produções discursivas. Transportar as questões
sobre a mortalidade dos corpos a dos objetos de arte nos faz considerar que, para além da
associação museu e mausoléu, os anos que marcaram o pós-incêndio o localizaram,
espacialmente e temporalmente, como um lugar da recordação. Condição esta que reforça o
atual desinteresse de muitos artistas e críticos de arte pelo modo como o MAM RJ se
apresenta.
As analogias estabelecidas entre museu e mausoléu foram exploradas no reconhecido
texto Museu Valéry Proust, de Theodor W. Adorno [1953], em que foram analisadas as
diferentes impressões de Paul Valéry [1923] e Marcel Proust [1913 a 1927] sobre o seu
relacionamento com os espaços do museu. 228 Não temos a intenção de reiterar a associação
dos museus a “sepulcros de obras de arte”, onde “testemunham a neutralização da cultura”
colocadas por Adorno. O uso desse argumento diante de um museu de arte moderna,
reconstruído após um incêndio na década de 1980, apresentar-se-ia como uma constatação.
Nesse momento, o que nos interessa em suas considerações é quando se questiona sobre “o
que está vivo e morto nas obras de arte” diante dos olhos de quem as vê e, sobretudo, diante
da “medida dessa permanência.”229
Adorno expõe a preocupação de Proust sobre a permanência da obra de arte no museu;
ao passo que, para Valéry, a permanência das obras nos salões expositivos, sob uma
observação contínua e perpétua, gera um estado de petrificação sobre elas, sujeitadas, desse
modo, a uma inevitável mortalidade. Consta na análise de Adorno que a ideia de permanência
em Proust também se relaciona à morte dos objetos de arte, mas no que se refere à sua
historicidade. Nas suas palavras: “[...], Proust sabe que a história, no interior das obras de arte

228
O texto original de Valéry foi publicado em Le Gaulois, 4 de abril de 1923, e foi posteriormente incluído na
antologia VALÉRY, Paul. Le problème des musées. In:_______Pièces sur l’art. Paris: Gallimard, 1960, p. 115-124
de onde foi extraída a versão em português: Valéry, P. O problema dos museus, São Paulo, Revista Ars, v. 6 n.
12, 2008. E a obra de Proust, foi escrita entre 1906 e 1922 e publicada entre 1913 a 1927 em sete tomos.
229
ADORNO, 1998, p.173.
226
ocorre quase sempre como um processo de decomposição. [...] o que se chama posteridade
[Nachwelt] é a vida póstuma [Nachleben] das obras.”230
Para ambos, há uma alteração na dimensão estética das obras, formal e histórica,
quando se encontram inseridas e expostas no museu. Para Valéry, estar diante das obras de
arte é estar diante de um conhecimento, e os excessos provocados pelo seu acúmulo no
interior de um salão expositivo geram, na percepção do poeta e escritor, um conflito, uma
confusão mental que interfere na própria apreciação. Enquanto que para Proust, é a
experiência subjetiva que permanece retida na relação que se estabelece com a obra no museu
e não apenas na produção discursiva (forma e conteúdo) que a enquadra. E essa percepção
transpõe os enquadramentos e passa a assumir um caráter singular, individual.
Adorno reconhece que a vida das obras de arte é responsável pelo próprio consumo
delas, cujo registro de mortalidade se mostra inevitável em diferentes pontos e medidas.
Considera que sendo os museus agentes de transformação dos regimes de visualidade das
obras, os espectadores passam a ser exigidos em igual proporção. Pautado pelas impressões
aristocráticas de Valéry sobre o museu, afirmar-se como “lugar de barbárie”, onde as
incoerências, os excessos, os tumultos, as confusões das coleções expostas alteram a sua
própria visualidade, constata que “A única relação concebível com a arte, em nossa realidade
catastrófica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma seriedade mortal que tem
caracterizado o mundo de hoje.” E complementa “[...] aquele que sabe exatamente o que quer,
escolhe dois ou três quadros e se detém diante deles com enorme concentração, como se fosse
ídolos.”231
A “seriedade mortal” de Adorno nos parece convergir para a noção de
“transitoriedade” defendida no ensaio intitulado Vergänglichkeit, de Sigmund Freud [1915].
Ambas as noções estão contextualizadas em um ambiente de guerras e pós-guerras. Freud
escreveu seu texto em 1913, ano próximo aos anúncios da Primeira Guerra Mundial; e, quase
uma década após a Segunda Guerra Mundial, Adorno escreve e publica seu artigo. Leitor das
interpretações psicanalistas, publicou A Teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda
[1951], com base no livro Psicologia de massa e análise do ego de Freud [1921],
considerando que, embora suas análises não explicitassem diretamente um interesse político
pelo tema, a construção dos argumentos psicológicos sobre o fascismo alemão elaboraram e,

230
ADORNO, 1998, p. 181.
231
Idem, p. 185.
227
de certo modo, anteciparam a consciência de uma grande e grave segunda catástrofe
mundial. 232
A narrativa de Freud sobre a transitoriedade foi construída com base em um passeio
junto à presença de um amigo “taciturno” e um jovem poeta não identificado no texto, mas
que se tratava de T.S. Eliot. Ao perceber o pessimismo do jovem diante de um cenário natural
e belo ainda comovente no verão que tão logo estaria fadado ao desaparecimento, portanto, a
uma condição transitória, Freud em contraposição a esta sensação afirma que a noção de
transitoriedade está calcada na significação, no sentido que empregamos às coisas e não nas
coisas em si. A transitoriedade, segundo o psicanalista, não se refere a uma perda de valor, ao
contrário, os valores impressos sobre aquilo que se considera perdido, destruído ou
transformado são renovados. Ele afirma: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no
tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição.”233
O escritor alemão Thomas Mann, leitor e admirador da obra freudiana Totem e Tabu
[1913], escreveu Elogio da transitoriedade [1952] e, assim como o psicanalista, adversário do
regime nazista e ensaísta das turbulências políticas e ideológicas das primeiras décadas do
século XX na Alemanha, atribuiu também ao tempo o valor da transitoriedade. Em suas
palavras: “a transitoriedade produz tempo – e o tempo é, ao menos potencialmente, a maior e
mais útil das dádivas, [...]. Onde não há passado, começo, meio e fim, nascimento e morte,
não há tempo – [...].”234
Em suas reflexões, Freud se refere não só a consciência da efemeridade da natureza,
mas ao reconhecimento da não perenidade dos objetos e dos monumentos culturais e
artísticos. Para o psicanalista, o valor da transitoriedade interfere nos sentidos e nas intenções
que empregamos a determinados discursos que pareciam até então imutáveis. Ao
transportamos essa reflexão para uma noção de vestígio, é possível perceber a
descontinuidade de uma narrativa histórica, não pelo modo como o percebemos na condição
de marca, de rastro, mas de resto. Portanto, não se busca aqui analisar a reconstituição da
imagem do MAM RJ, mas investigar a construção da sua imagem através da perspectiva do
que restou da sua própria história e do seu acervo após o incêndio, ou seja, a intenção é
revisar o discurso histórico, pautado pela lógica da continuidade, por aquilo que rompe,
deforma e desaparece e reaparece enquanto imagem.

232
ADORNO, 2006.
233
FREUD, 1996, p. 317.
234
MANN, 2013, p. 23.
228
Convém considerar à luz das reflexões de Paul Ricoeur (2012, p. 11) que,
primeiramente, a ideia de mortalidade se enquadra nas camadas da existência como uma
variação da noção de finitude, que significa, no senso comum, aquilo que contém um
determinado limite. Porém, em um segundo momento, problematiza esse entendimento ao se
perguntar do olhar que ultrapassa esta condição: “[...] e depois, o que?” Reconhece que o grau
de abstração presente na ideia de mortalidade ou finitude reside na resistência às ameaças
colocadas em torno do significado da morte e no esforço que se faz para a consciência do que
pode sobreviver.
Herdamos uma espécie de semiologia da morte, em que o paradoxo morte e vida,
considerando o modelo biológico natural das coisas, em que início, meio e, sobretudo, o fim
se apresentam como afirmação de algo que se interrompe ou que se encontra em estado de
decadência. Porém, é possível compreender a morte como acontecimento, não como uma
representação da própria ideia de morte, mas como abertura para a criação de outros sentidos
que podem ser estabelecidos na relação com o objeto, com o lugar e com a narrativa histórica.
No interior dessa questão, a pergunta de Ricoeur (2012) retorna acrescida de outro problema:
e de que modo? O filósofo afirma que a morte é correspondente ao fim daquilo que vive no
tempo comum a todos e a “sobrevivência são os outros”, isto é, tudo aquilo que escapa se
converte em uma justificação da existência externa a ela própria.
Acentuamos em nossa análise o “valor da transitoriedade” segundo à interpretação
freudiana, devido ao sentido em que o emprega à questão da reconstrução. Ao final do seu
texto, Freud irá considerar que o luto permanece enquanto o apego aos objetos perdidos, dos
seus valores, for ainda latente. Ele diz: “Creio que aqueles que pensam assim, de parecem
prontos a aceitar uma renúncia permanente porque o que era precioso revelou não ser
duradouro, encontram-se simplesmente num estado de luto pelo que se perdeu.”235 E prevê
que o luto tão logo é superado quando o valor dos objetos perdidos são substituídos por
outros, como as perdas geradas pelas guerras, por exemplo: "Reconstruiremos tudo o que a
guerra destruiu, e talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do que antes.”236
Com essa reflexão, é possível considerar que a Coleção Gilberto Chateaubriand, que
ocupa a reserva técnica do MAM RJ em regime de comodato após o incêndio, finda
precocemente o luto da coleção perdida no incêndio, pois um acervo logo é substituído por
outro. E essa manobra ocorre antes mesmo do próprio Museu elaborar completamente o que
havia se perdido e o que havia sobrevivido. Afinal, até hoje não sabemos quais e quantas
235
FREUD, 1996, p. 317.
236
Idem.
229
obras compunham a coleção do MAM RJ até julho de 1978 e também não temos
conhecimento se tudo que restou foi conservado ou ao menos preservado, visto que preservar
e conservar são ações que demandam uma política de memória que, no contexto brasileiro,
sobretudo na década de 1970, foi atravessada por diferentes interesses e intenções.
Nesse ponto, precisamos considerar três questões que permeiam nossa investigação
sobre os processos de reconstrução da imagem do MAM RJ: no Brasil, especialmente na
cidade do Rio de Janeiro, onde o Museu está localizado, não há possibilidade de luto, onde
tudo aparenta ainda estar por fazer, pois se destrói para construir sob a finalidade do
progresso; a necessidade da reconstrução, portanto, da construção de uma noção de memória;
a atenção ao esquecimento e/ou apagamento daquilo que não se intenta restituir enquanto
valor nesse processo. Sendo o Museu um lugar da recordação, como compreender a escritura
do seu passado histórico por meio de seus regimes de arquivamento e visualidade? O que
sobreviveu e desapareceu após o incêndio? Quais registros históricos prosperam nos acervos e
arquivos, e quais contrariam a permanência do Museu como ícone de um projeto de
modernidade?
Primeiramente, é preciso considerar que o MAM RJ no contexto do pós-incêndio não
foi colocado apenas como lugar da recordação, mas foi reconstruído como lugar da
rememoração de uma noção de modernidade. A fim de desenvolvermos essa questão,
retomamos “a imagem de Proust”, construída por Benjamin [1929], como disparadora do
conceito de rememoração que aqui nos interessa desenvolver.
Para Benjamin, o par lembrança e esquecimento prescreve a tessitura narrativa de
Proust, em que a diferença entre o acontecimento vivido e o acontecimento lembrado se
incide sobre a relação com o tempo. Viver implica uma finitude, portanto, encerra-se em uma
dada circunstância temporal, ao contrário da lembrança que não tem limites, pois se desloca
na relação espaço-tempo, por meio do pensamento e de um estímulo externo que se alternam,
interrompendo a cadeia temporal lógica.
Há um jogo entre esquecimento e lembrança próprio do trabalho da reminiscência que
se constitui de imagens do passado presentes no próprio ato de recordar. Esta ação atravessa
caminhos, cenários, paredes e desestabiliza os regimes de temporalidade, associando-se
constantemente ao renascimento das coisas com as quais nos relacionamos em diferentes
momentos de nossa existência. Essa experiência, nomeada por Proust de “memória
involuntária”, cujas imagens retornam quando acionadas por um estímulo externo,
reconfiguram a experiência e pausam, mesmo que por alguns segundos, o processo de

230
envelhecimento e de distanciamento das coisas ou dos acontecimentos. Nas palavras do
escritor, a aparição da “memória involuntária” passa por uma interrogação: “Será que vai
chegar até a superfície de minha clara consciência, essa lembrança, o instante antigo que a
atração de um instante idêntico veio de tão longe solicitar, comover, erguer do fundo de
mim?” Benjamin logo nos alerta: “Nem tudo nesta vida é modelar, mas tudo é exemplar” 237, a
“imagem de Proust” não está calcada apenas na rememoração da sua “vida lembrada”, mas
composta por um campo de forças em que outros temas e tempos entrecruzam sua narrativa.
Portanto, mesmo diante de um passado considerado esquecido, mesmo diante do apagamento
das coisas materiais e imateriais, algumas lembranças persistem e “permanecem ainda por
muito tempo como almas, chamando-se, ouvindo, esperando sobre as ruínas de tudo o mais,
[...].”238
Consideramos o MAM RJ pós-incêndio como um lugar da rememoração e o incêndio
como esse instante que une tempos históricos capazes de migrarem de um “fato objetivo do
passado” para um “fato de memória.” É a clareza do “inconsciente do tempo” do qual Didi-
Huberman (2015, p. 116) aborda sobre os enfrentamentos de Benjamin diante do uso dos
fatos do passado na perspectiva dialética e não apenas linear. O historiador da arte reforça que
“não há história sem teoria da memória”, ou melhor, a construção de uma narrativa histórica
deve considerar os rastros como “restos”, “contrapontos”, “irrupções”. O pós-incêndio do
Museu demarca uma memória a ser construída, uma história de recalques e retornos, e, com o
distanciamento e o mergulho necessário nas suas imagens, reconhecemos que há também uma
memória nacional (estética e histórica) a ser discutida, em que há outras narrativas a serem
enfrentadas e confrontadas.
O papel da imagem no museu assume diferentes sentidos e intenções. Gerada a partir
do dispositivo fotográfico, a imagem adquire também, além dos aspectos estéticos, artísticos,
a qualidade de registro documental. Nesta condição, as imagens fotográficas estão
relacionadas também à representação de acontecimentos relativos ao tempo passado. Sendo
arquivadas, essas imagens conservam um momento histórico, produzem modos de ver e saber,
posto que a cena ou o objeto documentado constrói um conhecimento sobre determinado
contexto do qual foi capturado. Nesse caso, a estrutura da imagem fotográfica se liga a uma
noção de memória que, articulada ao um modo narrativo, cumpre a vocação de manter
sobrevivente a experiência no presente. Diferente de outros meios, a fotografia nesse sentido
assume no ambiente do museu diversas modalidades. Como linguagem artística, documento e
237
BENJAMIN, 1986, p. 36.
238
PROUST, 2014, p. 74.
231
instrumento de comunicação, toma a forma portátil e habita as memórias internas dos acervos
museológicos, iconográficos e dos dispositivos móveis.
O arquivo fotográfico do MAM RJ fixa e testemunha seus marcos históricos: a
assinatura da ata de criação, a fundação, o lançamento da pedra fundamental, a cerimônia de
abertura, o primeiro discurso oficial, a formação do acervo, a exposição inaugural, além de
outros registros considerados importantes e relevantes para a construção da sua história.
Algumas imagens fotográficas sobrevivem à ação do tempo e não caem em
esquecimento, pois são constantemente reproduzidas e divulgadas em catálogos e mídias
impressas. A emblemática fotografia em que Juscelino Kubistchek, à época Presidente da
República e Conselheiro do MAM RJ, planta uma muda de palmeira no futuro jardim é
constantemente rememorada. A última publicação desta imagem foi reproduzida em uma rede
social do Museu na ocasião do 61º aniversário das palmeiras, em que transcreveu o mesmo
texto dos Boletins de 1958 como um “acontecimento histórico que marcou o verdadeiro início
da realização do Brasil como nacionalidade e como cultura.”239
Segundo Benjamin [1940], as grandes revoluções iniciam novos calendários, novos
dias, que na forma de feriados, “dias da reminiscência”, sempre retornam. 240 A inauguração
da sede do MAM RJ junto à presença do Presidente da República foi um marco na história do
Museu, cuja data é relembrada anualmente com a presença desta imagem. Convém considerar
também que no interior da lógica temporal dos calendários, além das revoluções, dos eventos
celebrativos, outros marcos temporais passam a demonstrar, mesmo que inscritas apenas
como fato histórico, seu lugar de atenção e relevância. O dia 08 de julho de 1978 consta nas
linhas cronológicas do Museu, porém recalcado; é pouco citado nas narrativas históricas sobre
a arte no Brasil. Verifica-se uma espécie de trauma de uma situação dramática, que não se
fala, não se toca no assunto, prefere esquecer. Afinal, não há na estrutura do Museu qualquer
resquício aparente, nenhum chamuscado ou fissura. Há apenas algumas alterações estruturais
internas, mas só se tornam perceptíveis quando se tem conhecimento do projeto original de
Reidy.
O incêndio do MAM RJ é apenas lembrado quando acontecem outros incêndios (como
o caso do incêndio do Museu Nacional) quando se computam as perdas patrimoniais no país.
No entanto, o Centro de Documentação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
conserva em diversos dossiês a situação do incêndio e do pós-incêndio.

239
Disponível em @mam.rio. Acesso em 17 mai. 2018.
240
BENJAMIN, 1987, p. 230.
232
O CEDOC foi reformulado após o incêndio no Salão de Exposições. O acervo
documental abriga além de documentos, registros, dossiês sobre artistas e exposições, uma
extensa coleção de imagens fotográficas que narra grande parte dos setenta anos da história do
Museu. Em sua maioria, são imagens realizadas por fotógrafos vinculados à imprensa, com
exceção de um conjunto de diapositivos do artista Paulo Roberto Leal. Algumas imagens nos
conduzem a uma interpretação histórica sob a perspectiva da distensão e não apenas da
intenção. Interessa-nos analisar o que permanece nas imagens e de que modo, seu conteúdo
testemunha e, sobretudo, coloca em discussão diferentes temporalidades e interpretações de
um determinado contexto histórico.
O testemunho, seja na forma oral, escrita ou imagética, conecta lembranças e
esquecimentos. Trata-se de uma ligação íntima entre as escolhas voluntárias ou não do que se
prefere lembrar ou esquecer. De um modo geral, é constituído por uma narrativa que se
desenvolve a partir da reelaboração de uma experiência vivida ou se realiza automaticamente
na presença do fato ocorrido. O testemunho funda-se no tempo, mas denota uma
especificidade sobre a marca da presença do homem no tempo. Na forma de depoimento,
pode ser utilizado para fins jurídicos e operações historiográficas. No segundo caso, há
testemunhos decorrentes de eventos traumáticos, como os pós-guerras que despertaram em
muitos historiadores o interesse pela memória em resposta ao modelo historicista restrita ao
documento, vinculado a uma noção de restituição e representação do passado. O testemunho
marca uma ideia de sobrevivência em resposta a situações limítrofes. É capaz, portanto, de
produzir experiências singulares e outras leituras sobre uma dada circunstância.
O material testemunhal passou a interessar diversos pensadores que desenvolveram
seus estudos reconhecendo que a construção da imagem do passado é necessariamente
articulada à construção da imagem do presente, ou seja, pelo trabalho da memória, da
reminiscência e do esquecimento, portanto, de uma investigação da constituição das camadas
temporais e históricas pela ordem do fragmento, do resíduo, daquilo que resta.
Os estudos de Márcio Seligmann-Silva (2003, p. 48) tocam nas questões que
engendram a base do conceito de testemunho. O autor aborda a “Literatura de testemunho”,
definida pela narrativa escrita ou oral, como necessidade, mas também reconhecida como
impossibilidade no sentido de desafiar a tradução literal do vivido, especialmente quando se
trata de um evento traumático. Mostra-nos que é justamente a condição dessa impossibilidade,
daquilo aparentemente indizível, que o testemunho nasce como linguagem. Ele diz: “A

233
linguagem é antes de mais nada o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma
falta, de uma ausência.”
A narração sobre uma experiência dolorosa, por exemplo, não declara exatamente o
fato em si, mas elabora por meio do enfrentamento ou da resistência o modo como
determinado evento foi vivido. Pois há em toda forma testemunhal o exercício de simbolizar
uma dada realidade, produzindo também contornos ficcionais que também compõem a
história.241 E não por esse motivo, a compreensão de um evento traumático pela ordem do
testemunho não desmerece sua veracidade, pelo contrário, constituirá leitura outra, externa
aos aspectos apenas indiciários reforçados pela grande imprensa, por exemplo, que se
apropria do testemunho para construir uma narrativa adaptada a seus próprios interesses.
Observa-se, nesse ponto, o quanto a imprensa colaborou para a construção da imagem do
MAM RJ, como também da sua reconstrução, porém com diferentes intenções e abordagens.
No período de fundação, o próprio Museu reservava um espaço em seus boletins chamado “A
Imprensa e o Museu”, em que reunia alguns artigos de jornalistas e críticos de arte,
principalmente do Correio da Manhã, pelo qual reiteravam a sua programação cultural.
No que tange o pós-incêndio do MAM RJ, o testemunho é analisado pela via da
imagem fotográfica e, por esse motivo, interessa-nos notar que a seleção das imagens para
este trabalho não foi motivada apenas pelo seu aspecto realista ou documental, mas pela sua
abordagem estética, em que outros elementos, além do contextual, podem ser incorporados na
análise. Nas palavras de Seligmann-Silva (2003), “a leitura estética do passado é necessária,
pois opõe-se à ‘musealização’ do ocorrido: esta está vinculada a uma modalidade da memória
que quer manter o passado ativo no presente.” O testemunho enquanto imagem, vista da
perspectiva de índice, torna-se representação; uma “prosa sóbria”, que moldura relatos do
passado. Portanto, o esforço aqui é produzir uma análise disruptiva das imagens, a fim de
remontar seus códigos visuais para compreendermos a construção da imagem do MAM RJ.
No âmbito da história oral, o autor também nos alerta para o uso de diferentes
abordagens testemunhais em determinadas realidades históricas. O conceito de testemunho e a
constituição de uma teoria se desenvolveu e ganhou maior relevo após a Shoah, enquanto que
a noção de testimonio foi deflagrada com os estudos culturais latino-americanos, durante e
após as ditaduras militares, especialmente de língua espanhola, a partir da década de 1960. Os

241
Os livros O sumiço (1969) e W ou a memória de infância (1975) do escritor francês Georges Perec (1936-
1982) são exemplos de romances em que há a mescla da ficção e da autobiografia, histórias de aventuras, mas
também lembranças de traumas decorrentes da morte do pai em combate na Segunda Guerra Mundial e da
mãe no campo de concentração.
234
temas dos estudos estavam centrados nos impactos gerados pela violenta repressão e, também,
nos debates pós-coloniais, nas revisões históricas com ênfase ao lugar de fala dos explorados,
dos excluídos, do “subalterno.”242 O ponto comum entre a teoria do testemunho e o testimonio
se encontra na forma de registro histórico, mas se diferencia quando este último se define
pelos atos de resistência, cuja dimensão política, crítica e denunciativa acentua os discursos
dominantes e hegemônicos.
Foi o escritor e antropólogo cubano Miguel Barnet (1969) que utilizou o termo
testimonio, pela primeira vez, nos estudos críticos acerca da literatura do testemunho. O viés
discursivo foi estabelecido com base na construção narrativa do oprimido, enfatizando o
sentido histórico e as responsabilidades de tal enunciação como constituinte de outras
premissas para definição de uma memória coletiva no contexto da América Latina. Segundo
as análises de George Yúdice (1991) o testimonio representou outro modo de formular a
história pela crônica, pela modalidade testemunhal, sem transformar as representações
identitárias em meros objetos de conhecimento de uma intelectualidade. Desse modo,
podemos pensar em uma política do testimonio como resistência e não apenas marcada pelas
manifestações da lembrança e do esquecimento. Essa política não estaria centrada apenas nas
narrativas em primeira pessoa, que, por vezes, são absorvidas pelas normativas dominantes,
mas em uma ação coletiva de viés político-social.
Para Maurice Halbwachs (1990), a lembrança é constituída pelo acionamento de
ocorrências do passado, individuais e/ou coletivas, junto às experiências do tempo presente.
As imagens do passado sofrem alterações, constantes transformações na medida em que vão
sendo evocadas através do exercício de rememoração. Enquanto algumas imagens caem no
esquecimento, outras se destacam de acordo com as circunstâncias e as condições de como e
onde foram acionadas. Nessa perspectiva, a lembrança é ativada para a construção da
memória no presente e não apenas para sua restituição do que ocorreu no passado.
Em Benjamin (2009), operar lembrança e tempo presente é o que possibilita a
construção de diversas releituras do passado, portanto, de diversas escritas da história. As
incisões no tempo são privilegiadas no processo de construção das narrativas quando
formuladas segundo o método da montagem, no qual são utilizados apenas os escritos, os
resíduos materiais daquilo que aparentemente restou da narrativa histórica. Desse modo,

242
O termo “subalterno” utilizado aqui se refere ao artigo Pode o subalterno falar?, de Gayatri Chakravorty
Spivak, descrito como “as camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão
dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato
social dominante.” (SPIVAK, 2010)76y8
235
acrescenta que, embora o presente esteja carregado de uma verdade temporal, há o momento
da explosão, da “morte da intention”. Da passagem da relação puramente linear do tempo para
uma relação dialética, para uma leitura da imagem do passado no agora como algo que
irrompe, que carrega “a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura”.
Ricoeur (2007) desenvolve o conceito de “memória manipulada” como um jogo de
estratégias em que o que precisa ser lembrado e, portanto, o que precisa ser automaticamente
esquecido pode vir a definir uma narrativa histórica que, ao ser autorizada, passa a ter um
caráter oficial, canônico quando celebrada, comemorada. O autor problematiza os usos e
abusos da memória que, controlada, é posta a serviço da construção de um tipo de identidade
coletiva ou individual, aparentemente frágil diante das próprias razões que pretensamente a
fundaram: a relação com o tempo, com o outro e com a “violência fundadora”. Ricoeur
argumenta que a memória, ao ser colocada como “componente temporal” da identidade,
contradiz o caráter múltiplo da própria noção de experiência temporal, sobretudo se estiver
associada à construção de uma narrativa, seja ela histórica e/ou ficcional. A legitimidade da
noção de identidade torna-se, portanto, problemática quando há intolerância, rejeição ao modo
como o outro se organiza, se apresenta e que, de um modo geral, escapa aos interesses
daqueles que circunscrevem, regulamentam um modelo de referenciação. Nessa lógica,
demonstra que a “violência fundadora” estaria associada aos “acontecimentos fundadores” do
processo identitário, que se forma, em sua maioria, em decorrência de regimes coercitivos.
O estabelecimento das duas primeiras razões associadas às manipulações da memória
se aproximam de nossas análises sobre a reconstrução do MAM RJ, em que o fazer história é
acionado conjuntamente com o fazer memória. No entanto, reconhecemos que o momento em
que as estruturas do Museu estão sendo repensadas, inicia-se também um processo de
restabelecimento da democracia no país, recuperação do patrimônio artístico-cultural e a
tentativa de reparação das expressões apagadas pela violência impressa pela ditadura militar.
Não é uma coincidência privilegiar a reconstituição do acervo.
O testemunho, portanto, reconhecido como estrutura fundamental entre o plano da
memória e da história passa a ter uma importância, sobretudo diante dos apagamentos
decorrentes da ação de regimes totalitários, quando os vestígios materiais são apagados e a
experiência pessoal é transferida do estado perceptivo ao estado declarativo, testemunhal,
documentativo. O autor observa ainda que, mesmo na condição de arquivo, o testemunho
resiste à condição de reserva, explicação, representação e desconfiança enquanto verificação
de um fato diante do seu “potencial de empregos múltiplos”.

236
Há uma grande “demanda do passado”, dita por Paolo Rossi (2010, p. 25), também
investigador desse tema, que fez com que a ênfase à memória como rememoração do passado
ganhasse mais destaque do que os estudos sobre o esquecimento. Por esse motivo, com base
em Ricoeur, Huyssen (2014, p. 160) desenvolve uma crítica à centralidade em que a
recordação e a documentação do passado foi colocada nos estudos sobre a memória. O autor
utilizou os conceitos “memória manipulada” e “esquecimento obrigatório” de Ricoeur e os
confrontou com os “efeitos do esquecimento público” que, em suas análises, são ironicamente
“esquecidos” em função de uma vontade pública de lembrar contornada por interesses
políticos, ou melhor, por uma política de memória.
Algumas imagens selecionadas nesta pesquisa falam de uma tradição da fotografia
documentarista no Brasil iniciada por Marc Ferrez e Augusto Malta. Este último fotógrafo, a
pedido de Pereira Passos, registrou as reformas urbanas na cidade do Rio de Janeiro e,
sobretudo, os vestígios deixados pela sua história colonial. Marca irônica e dual do
pensamento moderno que, por meio da fotografia, documentou o crescimento industrial e
urbano, em que desenvolvimento e destruição iam sendo representados conjuntamente. Ao
que parece, não havia na intenção desses fotógrafos imprimir uma carga denunciativa nas
imagens, mas, olhadas “a contrapelo”, é possível considerar alguns aspectos presentes no
conteúdo das imagens como pontos de reflexão. No conjunto fotográfico do Morro de Santo
Antonio de Malta, não havia apenas registros panorâmicos das reformas, havia também a
presença das casas, depois o desaparecimento delas com o desmonte. Após a queda de grande
parte do Morro, o que permanece nas imagens são as igrejas, alguns vestígios naturais
circunscritos pelo centro financeiro da cidade que crescia na forma de arranha-céus.
Mesmo tendo um caráter exclusivamente documental, estas fotografias marcam um
processo de construção da linguagem fotográfica que, ao longo do tempo, foi abarcando
outras pesquisas. A carga realista impressa pela estética documental conserva um olhar
testemunhal e pode funcionar também como atualização do passado quando investida de
outros pretextos, outras possibilidades interpretativas. Para André Rouillé (2009, p. 101), “o
mundo começa a transformar-se em imagem”, ou seja, pela ordem do fragmento, do instante
capturado, pela unidade. As imagens quando arquivadas passam por classificações e
redistribuições a fim de produzir sentidos e discursos. O recorte e o registro das cenas
fragmentam a realidade, montam as aparências pertinentes aos interesses arquivísticos,
portanto, institucionais; para então, agrupadas, produzirem uma lógica discursiva como parte
integrante de uma política de memória que se apresenta pela via da imagem.

237
A criação de um arquivo fotográfico no museu funciona tal qual um processo
simbiótico, em que a produção e seleção de imagens que constituem o acervo documental
estão diretamente relacionadas à construção da sua própria imagem. É uma associação
dependente e indispensável à sobrevivência de ambos em razão da colaboração que cada um
exerce sobre a sua continuidade e permanência na história cultural da cidade e,
consequentemente, na construção de uma narrativa histórica da arte. A imprensa, nesse
sentido, contribuiu demasiadamente para a multiplicação das informações por meio de
fotografias documentais. Os progressos tecnológicos dos dispositivos fotográficos facilitaram
não somente a captura dos instantes, mas a sua impressão. As reportagens passam a dedicar
amplos espaços às fotografias que, conjugadas aos textos, intentam aprimorar cada vez mais a
veracidade das informações que ganham uma dimensão visual. Por outro lado, o uso das
imagens e do crescente interesse pelas cenas capturadas também criaram outras conotações
que reiteram ou não o que está sendo dito. As composições textuais e imagéticas criam outros
enunciados para aquilo que antes se conservava apenas sob a ordem da escrita.
Diferentes do acervo fotográfico composto por algumas coleções doadas e outras em
regime de comodato salvaguardado pelo Setor de Museologia, as imagens conservadas no
arquivo fotográfico do MAM RJ encontram-se na condição estrita de documento histórico. O
arquivo parte de uma organização por índices que classificam, categorizam, agrupam e
transformam as imagens em documentos. Parte dessas imagens evidentemente formam as
características do arquivo fotográfico institucional. Como se refere Ricoeur (2014) com base
nas análises de Michel de Certeau (1982), o arquivo é composto por um “rastro documental”
em que reúne, seleciona e organiza fisicamente os documentos, mas também os localiza
socialmente, haja vista as operações historiográficas que permeiam os métodos de
arquivamento.
Ao consultarmos o índice “MAM Sinistros”, destacamos um conjunto de imagens, não
apenas por conter registros do incêndio, mas pelo o que nos oferece enquanto uma situação
visual. O conteúdo visível, o ato fotográfico e o interesse do próprio Museu em conservar
essas fotografias nos instigam a promover uma abertura da imagem diante de uma análise do
processo de reconstrução não apenas do Museu, mas da reconstrução da imagem do Museu de
Arte Moderna do Rio de Janeiro e de toda produção discursiva que permeia sua constituição
em torno de uma noção de memória. Para o campo da historiografia da arte no Brasil, trata-se
não apenas de um compromisso estético, mas ético ao colocar em exposição outros aspectos
da conjuntura política, social e artística, pois, com a ação do fogo, a política institucional do

238
Museu e a reconstituição do seu acervo foi intensamente problematizada pela imprensa, pela
crítica de arte e pelos artistas que ocupavam seus espaços internos e externos.
Sabemos que todo arquivo representa a trajetória de uma instituição, de um passado
que constitui sua historicidade, na qual muitos documentos estão organizados para livre
acesso, enquanto outros permanecem desconhecidos, velados, silenciados e até mesmo
descartados por contrastarem à imagem oficial. Dependendo do lugar, é possível chegar até
certo ponto do arquivo, reconhecê-lo parcialmente, mas nunca na sua forma integral, pois
muitos registros são mantidos em sigilo, preservados até que uma dada conjuntura sócio-
histórica autorize a sua circulação pública. Ao pensarmos nas análises discursivas que
compõem um arquivo acessível, ou seja, a permissão daquilo que interessa ser publicado,
perceberemos que há um descarte ou eleição de acontecimentos, de saberes, poderes e
discursividades. Não por acaso, as subdivisões “arquivo vivo”, “arquivo morto” e “queima de
arquivo” enunciam, especialmente as duas últimas características, o esquecimento e o
apagamento como operações político-ideológicas. A queima de arquivo se mostra mais
violenta, pois seu objetivo prioriza o desaparecimento de vestígios e, na maioria das vezes, o
fogo é o recurso mais utilizado para efetivação de tal ato.

3.2 Queima de arquivo

Na história do MAM RJ, há pelo menos dois incêndios em que se especula a prática da
queima de arquivo, sobretudo por ocorrerem ainda no período em que a ditadura militar ainda
se mantinha vigente no país: o incêndio no Salão de Exposições em 1978 e no apartamento de
Niomar Moniz Sodré em 1985. Ambos os incêndios consumiram os acervos, a biblioteca e,
no caso da casa da fundadora do Museu, “boa parte da História do Brasil e do Correio da
Manhã.”243 Sendo criminosas ou não, as duas situações nos geram reflexões sobre a situação
dos acervos, dos arquivos públicos e da construção da memória do país que constantemente se
encontra perdida, desaparecida, destruída. Diante do incêndio ocorrido na casa de Sodré,
convém nos perguntar: por que arquivos públicos se encontravam preservados em situação ou
condição domiciliar?
Em 1969, o nome de Niomar Moniz Sodré foi citado em um relatório da Agência
Nacional de Informações do Estado. Alguns temas estavam diretamente relacionados às

243
Fogo destrói obras de arte em edifício no Flamengo: arquivo do Correio da Manhã acabou, Rio de Janeiro,
Jornal do Brasil, Primeiro Caderno, 21 de abril de 1985. Acervo MAM Rio.
239
medidas coercitivas impostas contra a sua posição. As medidas pontuavam as seguintes
sentenças: “ [...] suspensão dos direitos políticos, pelo prazo de 10 (dez) anos, [...] tendo em
vista a indicação do Conselho Nacional de Segurança”; “prisão preventiva decretada por 30
(trinta) dias pelo Conselho Permanente de Justiça” e “fechamento do Correio da Manhã”. Este
histórico se refere, em parte, à série de artigos intitulados Caiu a máscara, Até quando, A
resistência, O responsável, A confirmação, publicados entre abril e dezembro de 1968 pelo
jornal, cujo conteúdo foi considerado “propaganda subversiva” e “difamatória” contra o
governo que protocolou uma denúncia por considerá-la responsável pelo conteúdo e por
infringir a Lei de Segurança Nacional. 244
Mesmo tendo seu nome vinculado ao MAM RJ, as acusações direcionadas à Niomar
Moniz Sodré como opositora do regime não impediram a realização de eventos oficiais nas
dependências do Museu. Seus espaços continuavam sendo disponibilizados para atividades
políticas, como pode ser notado em dois registros fotográficos sobre a participação do
presidente Marechal Artur da Costa e Silva na Semana da reforma administrativa e um
almoço oferecido pelas classes produtoras no Dia da Indústria. Essas imagens igualmente
rememoram a instalação da 22ª Reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) responsável
pelo término da obra do Bloco de Exposições já aqui mencionado.
Importa notar que no período de conclusão desse Bloco, Carmem Portinho e outros
membros responsáveis pelo acompanhamento das obras foram afastados antes da conclusão
do prédio. Esse fato se deve, segundo depoimento da engenheira, a divergências políticas
entre Niomar Moniz Sodré e a direção, especificamente em relação à presença no MAM RJ
de Juraci Magalhães, Ministro das Relações Exteriores. Para Portinho, a decadência, o
marasmo e a inexpressividade do MAM RJ foram iniciados com o afastamento da diretoria
executiva por pressão de Sodré, que estava afastada das atividades do Museu e do país há
cinco anos. Nas suas palavras, “isso bastou para que o acontecimento fosse encarado como
uma afronta pessoal, desencadeando a revolta em Niomar, que utilizou toda a sua influência
para afastar, definitivamente, toda a diretoria, fazendo com que um capricho destruísse toda
uma obra.”245
Juraci Magalhães estava vinculado às articulações do golpe de 1964, que gerou cortes
no financiamento e uma forte censura no Correio da Manhã que estava àquele momento, sob a

244
Denúncia referente à jornalista Niomar Moniz Sodre Bittencourt, 13 mar 1969. Acervo Sistema de
Informações do Arquivo Nacional.
245
Carmem Portinho acusa diretoria de ter destruído o MAM que ela ajudou a criar. Jornal do Brasil: Rio de
Janeiro, 02 jun. 1985. Acervo MAM Rio.
240
responsabilidade editorial de Niomar Moniz Sodré. Com a deposição de João Goulart da
Presidência da República, o jornal publicou diversas edições em que denunciava formas de
terrorismo, principalmente aplicadas à imprensa. Os esforços do governador do Rio de
Janeiro, Carlos Lacerda, em censurar o jornal provocaram diversas reações, inclusive da
Assembleia Legislativa, que demonstrou apoio ao jornal publicando uma nota de repúdio à
insistente coerção do governo: “veemente repulsa ao atentado que se deseja praticar contra a
soberania da imprensa livre, símbolo de um povo democrata.”246 Contudo, a prisão de Niomar
Moniz Sodré e o seu exílio gerou consequências financeiras e políticas para o fechamento
compulsório do jornal alguns anos depois.
Ainda em 1969, o Ministro das Relações Exteriores ordena o fechamento de uma
mostra de artistas no MAM RJ, cuja finalidade era a representação na Bienal de Jovens em
Paris. Da seleção de obras, duas compostas por fotografias foram consideradas subversivas,
como Repressão outra vez: eis o saldo (1968), de Antônio Manuel, uma série de serigrafias
que traziam manchetes sobre a violenta repressão do regime e Motociclista da FAB (1965), de
Evandro Teixeira, que capturava a queda de um oficial da Força Aérea Brasileira. A analogia
à queda do regime, dentre outras possíveis ressonâncias, fez com que os agentes do
Departamento de Ordem Política Social (DOPS) fechassem literalmente as portas da
exposição alegando subversão e oposição ao Governo. A obra de Antônio Manuel foi salva a
tempo por Niomar Moniz Sodré, que soube previamente da chegada dos agentes e a levou
para as dependências do Correio da Manhã, mas a série de Evandro Teixeira com doze
imagens fotográficas, dentre Tomada do Forte de Copacabana (1964) e Sexta-feira sangrenta
(1968) foram destruídas. 247
Nesse período, Anna Bella Geiger menciona a presença de uma “paranoia” nas
reuniões entre os artistas que ocorriam no MAM RJ, onde foi decidido boicote à Bienal de
1969: “Não era tão simples na época nos reunirmos, pois nunca se sabia quem vigiava quem
[...].” Esse boicote estava relacionado à Bienal e qualquer outra mostra, salão ou evento que o
Governo tivesse alguma participação.248
Como ponto de encontro, os espaços do MAM RJ, especialmente os jardins e a
cantina, produziam uma atmosfera de aparente liberdade na década de 1970; mas, segundo
246
LEAL, Carlos Eduardo. Correio da Manhã (verbete). CEDOC Fundação Getúlio Vargas. Disponível em:
http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/CORREIO%20DA%20MAN-H%C3%83.pdf
Acesso em: 05 mar. 2017.
247
Mais detalhes deste evento, verificar em LOPES, Fernanda. Capítulo I. In: _______. Área experimental: lugar,
espaço e dimensão do experimental na arte brasileira dos anos 70. São Paulo: Prestígio Editorial, 2013, p. 13-
34.
248
GOGAN; MORAIS, 2017, p. 193.
241
Antonio Manuel, mesmo sendo considerado um “território livre”, no Museu, ainda sendo um
desses lugares “utópicos”, onde os artistas se encontravam, ocupavam, discutiam suas
propostas, houve diversas invasões, inclusive com uso de bombas e prisões. Este lugar de
liberdade, de refúgio, de proteção dos artistas, sobretudo no período das manifestações de
1968, era observado pelas autoridades com atenção. Diante desta situação, o artista especula
sobre a presença de pessoas com “posições políticas mais à esquerda” que condenavam o
regime militar, dentre os quais se destacavam o diretor do MAM RJ, o arquiteto Mauricio
Roberto, Mario Pedrosa e Niomar Moniz Sodré.249
A imagem fotográfica dos meninos curiosos que observam do jardim o Museu
destruído, vazio, desperta-nos sobre o que Benjamin [1933] em Pequena história da
fotografia nos dirá sobre a prática do observador da imagem buscar o “lugar imperceptível”,
onde o aqui agora, o acaso, ilumina o detalhe, o pormenor sensível à observação arguta.
Prática também contida em Roland Barthes (1984) sobre a imagem fotográfica partir do
ângulo “do sujeito que olha”, do fotógrafo que a capturou.
A sua “aparição” em meio a tantos outros registros nos anima a ponto de exercer certa
vontade, certo “princípio de aventura” diante das possibilidades que nos oferta. De acordo
com o autor, a fotografia torna-se subversiva quando o que chama de efeito “punctum”
desloca a percepção da imagem para além do que é apreendido em sua superfície. Reter o
olhar, acentuar detalhes, produzir outros conteúdos além dos seus índices. Perceber a imagem
na condição de uma “pièce de résistance” ou lugar de resistência no interior da trama do
saber histórico como se referem os historiadores da arte Hans Belting (2014) e Didi-
Huberman (2012) respectivamente.
Esta imagem fotográfica apresenta, em primeiro plano, um grupo de meninos, cuja
expressão de um deles inevitavelmente nos rememora a descrição do “anjo da história”,
mencionado por Walter Benjamin [1940] na pintura Angelus Novus (1920), de Paul Klee.
Debruçados sobre a verticalidade do conjunto de pedras criado pelo paisagista Burle Marx, as
crianças buscam o melhor ângulo e altura para observar o estado em que o Bloco de
Exposições foi encontrado após o incêndio. Antes ou após uma partida de futebol, os shorts e
as meias denunciavam o que faziam no entorno do Museu. Afinal parte do jardim era
composto por uma extensa e atrativa área verde, propícia aos rescaldos ainda efervescentes
que uma recente Copa do Mundo provocava na juventude.

249
GOGAN; MORAIS, 2017, p. 205.
242
Não foi apenas as causas do incêndio do MAM RJ que até os dias de hoje pairam
ainda como dúvida. A Copa do Mundo de 1978 na Argentina com slogan de um gauchito,
cuja representação de um menino com trajes reforçavam a ideia de uma nacionalidade
construída sob os estereótipos do trabalhador rural, também foi marcada por diversas
polêmicas, dentre as quais a vitória do time argentino sobre os jogadores peruanos. Àquela
altura, o Brasil e a Argentina enfrentavam uma longa ditadura, em que situações de manifesto
e protesto eram constantemente reprimidas em razão das tentativas de reconstrução da
imagem dos respectivos regimes, tendo o campeonato como principal estímulo.
De volta à imagem, atentemo-nos ao gesto dos dois meninos à direita da fotografia.
Despertos por alguma cena ou algum chamado que lhes desvia o interesse do Museu
destruído, a expressão dos corpos nos instiga a imaginar em que direção o rosto e,
especialmente, o olhar e o pensamento ousariam alcançar. Como na construção do “anjo da
história”, quando Benjamin interpõe a saudação em verso do anjo de Gershom Scholem à
fixidez do olhar do anjo de Klee que, na interpretação do autor, anuncia boquiaberto a
catástrofe diante do acúmulo de ruínas que se amontoam após a passagem da “marcha do
progresso.”250
O anjo da história de Benjamin constata que a destruição caminha junto a um projeto
de futuro calcado em ideologias progressistas. Não se trata de uma exceção, mas uma regra.
Em nosso caso, os meninos, testemunhas oculares, observam um museu em ruínas cujo
mesmo futuro também se associa à construção da imagem da catástrofe como definirá
Michael Löwy (2005, p. 93) “o Progresso em sua progressão fatal.”
O ângulo da imagem fotográfica coloca o grupo de crianças, promessas de um futuro,
em primeiro plano e, em segundo, a construção monumental de um ícone da modernidade em
ruínas. Contraste figura e fundo. O olhar do terceiro menino confirma o estado testemunhal e,
no contexto em que é capturado, podemos interpretar sua expressão intrigada, preocupada
com o que vê adiante (ou com o que o aguarda). A síntese da sua expressão nos aproxima
deste conflito do qual se detém Benjamin sobre o curso da história como catástrofe. Há nessa
imagem um duplo gesto testemunhal: dos meninos diante do Museu e do fotógrafo diante dos
meninos. É olhar diante do olhar. O testemunho diante do testemunho.
Aventuramo-nos tratar essa imagem como uma alegoria, tal como Benjamin
desenvolveu sua narrativa sobre o “anjo da história”. Renunciamos a seu aspecto indiciário,
documental, para atribuir à imagem outros significados. Essa imagem fotográfica nos coloca

250
BENJAMIN, 1986, p. 226.
243
diante das contradições presentes na construção de um monumento representativo da
modernidade – que pretendia reunir arte, educação e cultura –, portanto uma noção de
progresso, de “uma sociedade em desenvolvimento e expansão” confiada nos esforços de uma
juventude, que assiste este mesmo anúncio de prosperidade, sucumbir na forma de uma
“carcaça de metais retorcidos, vidros quebrados e concreto chamuscado [...].”251
Ao rememorarmos a “pedagogia artística moderna” do MAM RJ, verificaremos que
anualmente eram realizadas exposições de trabalhos artísticos, tendo a infância como um dos
públicos participantes. O Museu integrava um programa nacional de reforma da educação
ocorrido entre a metade da década de 1940 – com o fim do Estado Novo (1937-1945) – e o
final da década de 1950, em que os processos de industrialização e urbanização
predominavam os interesses e as forças políticas. Entendia-se que o motor de
desenvolvimento econômico, com foco na atividade industrial, estava diretamente associado à
ideia de investimento em “capital humano”. Para tanto, as reformas educacionais cumpriam e,
ainda cumprem, o papel de fomentar o aprimoramento das habilidades e competências para
única e exclusivamente inserção dos sujeitos e a sua mão de obra, na estrutura econômico-
social capitalista a serviço dos interesses de uma classe dominante. Estando, assim, a força de
trabalho associada à imagem de uma nação em contínuo processo de modernização. Àquele
momento, um museu que investisse na formação dos sujeitos parecia mais conveniente do que
propriamente apostar na formação do acervo, afinal, o projeto do MAM RJ nascia
primeiramente como Escola e, foi com base nisto que, até o incêndio, empregou grande parte
dos seus esforços.
O conceito de “capital humano” empregado aqui é desenvolvido à luz das teorias que
abarcam a economia da educação por meio dos estudos do filósofo e educador Gaudêncio
Frigotto (1989, p. 70). O autor analisa que as premissas que operaram a teoria do capital
humano, como “produto histórico determinado”, são positivistas, pois sob uma concepção
burguesa, construíram metodologias que enfatizam a capacidade, a produtividade, a utilidade
como critérios do trabalho escolar. O que fortalece a meritocracia como eixo central deste
processo e desqualifica a prática educacional como mudança das relações de produção.
Frigotto (1989, p. 79) enfatiza que não se trata de uma “produção maquiavélica”, mas
resultado das próprias contradições inerentes do processo histórico do Estado como
articulador do capital e dos interesses da classe trabalhadora. Para tanto, concebe a definição
de “homem”, com base na visão histórica daquele que “se produz nas relações sociais de

251
PONTUAL, 2013, p. 467.
244
produção”. Quando essas relações são absorvidas pelo modo de produção capitalista, o objeto
de troca passa a não ser mais o trabalho, mas a força de trabalho, a mão de obra, cuja fonte
máxima de lucro se encontra na mais-valia: “varia de acordo com a produtividade do trabalho,
determinada basicamente pelo desenvolvimento das forças produtivas.”
Há no escopo dessa concepção um vínculo entre os pares educação e trabalho,
educação e qualificação, educação e treinamento, educação e produtividade. No Brasil, o
termo é utilizado no fim da década de 1950 e início de 1960 e está diretamente associado ao
desenvolvimento educacional e econômico do país. Nas palavras de Frigotto (1989, p. 166),
“o que se observa concretamente é que a classe burguesa não se contrapõe ao acesso à escola.
A universalização do acesso legitima a aparente democratização.”
Verificamos, em um discurso pronunciado por Anísio Teixeira no XII Congresso
Nacional de Estudantes na Bahia em julho de 1949, a metáfora da tempestade também
associada à consciência da marcha pelo progresso. Nas suas palavras: “A lição, assim, que me
ocorre tirar da atual conjuntura brasileira [...] é a de que o Brasil marcha, como todos os
demais povos, dentro de uma grande tempestade social de nossa época.” E prossegue: “Em
plena tempestade não cabe aos homens se dividirem, mas unirem-se, não para deter a
tempestade, pois as tempestades não se detêm, mas para conduzirem o barco ao destino
almejado, utilizando para isto os próprios ventos da borrasca.” 252
Teixeira, como educador e administrador, discursava no contexto pós-guerra na
Europa, nas alianças Brasil e EUA contra os avanços do comunismo e seus desdobramentos
no território nacional e na recente garantia de alguns direitos civis e políticos prevista na
Constituição brasileira em contraposição à contínua repressão ao movimento sindical dos
trabalhadores que vinha crescendo desde o fim da Era Vargas. Comenta sobre a vigilância
àqueles que mencionam o desvio do regime democrático, confiando na juventude a esperança
que ainda vivia o Brasil de realizar uma revolução social, favorecendo assim, “o
desaparecimento progressivo das divisões sociais e a sua inevitável sequela de iniquidade
econômica.”253
Reconhecido pela influência das ideias de John Dewey 254, no Brasil, e defensor da
implementação da escola pública em todos os níveis da educação básica, Anísio Teixeira
mobilizou a opinião pública sobre as considerações que fez, com destaque para esse discurso,
sobre as duas formas que a revolução no Brasil poderia assumir: totalitária ou democrática.

252
TEIXEIRA, 1999, p. 424.
253
Idem, p. 419.
254
Anísio Teixeira estudou com John Dewey na Universidade de Columbia em 1928.
245
Ao considerar a revolução totalitária “esmagada” pela grande guerra, constata, dentre as duas
formas de revolução democrática, a escolha do que chamou de “revolução pré-socialista [...]
pelos métodos moderados, brandos, pacíficos e livres do Ocidente”, constituindo-se em um
dos aspectos pelos quais a revolução brasileira aprenderia a lidar, mesmo em meio às
contingências já percebidas durante este processo.255 Esse discurso levou Anísio Teixeira a
responder a alguns comentários publicados pelo jornal A Tarde sobre seu suposto
envolvimento com o comunismo por aludir diversas vezes a um “novo conceito de liberdade”
com ênfase na revolução social. Em resposta, acentua em sua carta, que a iniciativa de falar
aos jovens sobre a realidade econômica e social do país não estava centrada no “fantasma” de
determinadas posições ideológicas, mas na intenção objetiva e direta de “armá-lo contra a
realidade perigosa de sua casa [de uma pseudodemocracia cristã], aparelhá-lo para a sua
responsabilidade interna, para o seu dever de reconstrução do Brasil, nesta jornada
democrática, apenas iniciada e já em perigo.”256
Em 1948, são criadas as Escolinhas de Arte pelo Brasil sob a influência teórica de
Herbert Read e Viktor Lowenfeld e no prazo de dez anos, em 1958, o MAM RJ fundava seu
Bloco Escola. No contexto da educação nacional, são criados os Serviços Nacionais de
Aprendizagem Comercial e Industrial (SENAC e SENAI) como parte de uma política de
profissionalização da classe trabalhadora com ensino técnico. Como já vimos no capítulo
anterior, foi idealizada a Escola Técnica de Criação como um dos marcos da terceira fase do
Museu na cidade do Rio de Janeiro, alinhada ao modelo Kubitschek de internacionalização da
economia brasileira e modernização tecnológica das instituições educacionais. Iniciativa que
garantiu o apoio e adesão dos dirigentes do MAM RJ que também intentavam expandir seus
diálogos internacionais.

255
Anísio Teixeira elenca uma série de pequenas revoluções políticas realizadas, tais quais foram colocadas em
seu discurso aos estudantes: “[...] o restabelecimento das instituições livres, elegemos um congresso
constituinte, votamos uma constituição e fundamos governos livres em todos os estados e todos os municípios.
Criamos em todo o País, a autoridade impessoal da lei, restabelecemos a igualdade jurídica, restauramos a
República, fundamos os partidos políticos nacionais e conseguimos que toda a nossa aparelhagem funcionasse
com o mínimo de acidente e de atrito, sem lançar mão, nem uma só vez, de medidas excepcionais.” Mas
reconhece, logo em seguida, que pouco ainda foi feito, no âmbito legislativo de reconstrução nacional, na
educação e nos direitos econômicos e sociais do povo. TEIXEIRA, Anísio. Reflexões sobre os nossos tempos.
In:_Educação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1999, p. 421.
256
TEIXEIRA, 1999, p. 428. [Importa notar que durante a ditadura militar, Anísio Teixeira era frequentemente
convocado a depor em inquéritos policiais, sendo que o último ocorrido em 1971 marca o ano da sua morte. A
falsa versão sobre a sua queda acidental no fosso do elevador do Edifício Duque de Caxias, onde morava
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, foi comprovada por João Augusto de Lima Rocha (2019) no livro Breve
história da vida e morte de Anísio Teixeira: desmontada a farsa da queda no fosso do elevador].
246
Do Ateliê Infantil ministrado pelo artista Ivan Serpa às reformulações de Frederico
Morais, o MAM RJ correspondia às expectativas em aliar-se à “força educadora da arte”257
representada pelas importações inglesa e americana dos estudos sobre Arte como experiência
de John Dewey (1934) e A educação pela arte de Herbert Read (1943).258
Antes mesmo do Museu inaugurar o Bloco Escola, os ateliês infantis compunham a
sua programação e apostavam na expressão individual de cada criança e no conhecimento da
linguagem visual, a chave para ativação de uma consciência artística. Os métodos eram
pautados por um viés modernista em que uma tradição do ensino da arte era rejeitada, para
instaurar outro modo de se relacionar com os problemas da arte do seu tempo. Sobre o ensino
de arte, o ainda jovem Ivan Serpa se mostrava bem enfático, afirmando que a melhor solução
era “destruir, de início, tudo que se tem feito nestes anos. Recomeçar tudo, com novas
concepções artísticas.”259
À frente dessa abordagem estava Mario Pedrosa que encontrava “na educação dos
sentidos e das emoções” a afirmação de uma estética moderna desprovida de moldes e
modelos acadêmicos. Contudo, a busca pelo “efeito visível” em alguma medida disciplinava
meninos e meninas no ateliê para a criação das formas que teriam ao final de um ano de
trabalho algumas de suas pinturas expostas ao público. Os novos métodos de ensino
estimulavam a liberdade de criação dos temas marcados pelo domínio das formas e da
linguagem visual. Nas palavras de Pedrosa, “a conceitualização da pura experiência
perceptiva abre nova etapa no crescimento espiritual do menino: a do controle visual.”260
Em Crescimento e Criação [1956], Mario Pedrosa atribui à educação pela arte o
desenvolvimento estético e, sobretudo, ético do ser humano, considerando que “a mais
autêntica finalidade desse aprendizado é mesmo a de preparar a meninada para pensar certo,
agir com justeza, manipular as coisas judiciosamente, julgar pelo todo e não parcialmente,
[...]”. Segue no seu argumento, confiando na utilidade do fazer artístico, a atitude de não
baterem palmas a “ditadores histéricos”, pois “marcharão com o progresso sem, contudo, virar
as costas à liberdade”261. A imagem utópica da “meninada” em marcha pelo progresso, “sem,

257
PEDROSA, 1996, p. 60.
258
“Na Inglaterra e nos Estados Unidos, sobretudo, são numerosos os hospitais, escolas, clínicas, oficinas onde
se fazem experiências e observações dos efeitos que as obras de arte podem exercer sobre as pessoas, velhas
ou crianças, normais ou anormais, sadias ou enfermas.”. Mário Pedrosa, 1947. (PEDROSA, 1996, p. 61).
259
Os cursos de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna do Rio, Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 30 mar. 1956.
Acervo MAM.
260
PEDROSA, 1996, p. 77.
261
Idem.
247
contudo, virar as costas à liberdade” construída pelo crítico de arte Mario Pedrosa nos parece
contrastar à imagem fotográfica comentada a pouco dos meninos diante do museu destruído.
Em A vida dos estudantes [1915], Benjamin já anunciava uma concepção de história
em que o avanço pelo progresso se apresenta como medida do tempo e da época por onde os
esforços da atividade humana se instituem. Discute a condição da ciência como normativa
quando esta é colocada apenas como veículo para qualificação profissional, isto é, distanciada
da vida se presta apenas a controlá-la e modelá-la. Nas suas palavras: “mostra apenas em que
extensão as ciências atuais, no desenvolvimento do seu aparato profissionalizante (através do
saber e das técnicas), foram desviadas de sua origem comum fundada na ideia do saber,
[...].”262 Para Benjamin, a formação científica está contida em um projeto iluminista que, por
sua vez, está contido em um projeto de modernidade operado pela tríade racionalismo-
individualismo- universalismo. Posto isso, uma suposta ideia de emancipação confiada no
progresso técnico-científico produz uma “submissão acrítica e inerte” doutrinadora e a serviço
do aparelhamento público.
Diferentemente do “anjo da história” de Benjamin [1940] que reconhece nas grandes
catástrofes do século XX, Auschwitz e Hiroshima, a contribuição dos avanços tecnológicos e
científicos, nossos “anjos da história” observam a falência de um projeto modernista do aço,
do vidro e do concreto, cuja aparência devastadora aciona outras imagens omitidas por um
governo arbitrário que asfixiou a experiência democrática com práticas de censura, tortura e
violência cometidas pelo aparato policial e judiciário. É preciso considerar algumas
aproximações, nada casuais, de uma pós-ditadura militar e um pós-incêndio de um museu,
cuja organização institucional esteve sempre em diálogo e, sobretudo, operado pelos
interesses do Estado. O que significava naquele momento a construção da memória do MAM
RJ junto ao processo de abertura que determinou o esquecimento concomitante da memória
opressora e oprimida?
O termo anistia contém os dois sentidos: anamnesis e amnésia. A Lei da Anistia
(1979) no Brasil optou pelo esquecimento e não pela reminiscência, pela rememoração dos
fatos. Motivada por uma conciliação nacional, a proposta integrou uma agenda política
mobilizada pela bandeira, ou melhor, pelo controle do processo de redemocratização.
Amparado posteriormente por indenizações, políticas de reparação aos familiares dos
desaparecidos, ao invés da investigação e punição dos crimes praticados durante o regime, o
Estado interditou o quanto pôde a restituição jurídica do passado, da experiência do cárcere,

262
BENJAMIN, 2002, p. 32.
248
assim como ocultou restos mortais dos presos políticos, inclusive grande parte dos corpos
permanecem ainda desaparecidos e desconhecidos. Um desconhecimento forçado, como nos
relata Janaina de Almeida Teles (2011) sobre a eliminação total de vestígios durante a
ditadura civil-militar brasileira: “No Brasil, as Forças Armadas também tentaram eliminar
provas de seus crimes, como o fizeram ao exumarem e queimarem os restos mortais dos
militantes do PCdoB assassinados durante a Guerrilha do Araguaia” 263.
Há uma produção escrita, uma tentativa de construir uma recente memória da ditadura,
de natureza autobiográfica e jornalística, editada no fim da década de 1970, em que são
relatados os conflitos armados, as angústias geradas pelos desaparecimentos e a violenta
repressão. Teles (2011) constatou que, ao longo dos anos, os romances de aspecto
denunciativo diminuíram ao passo que o distanciamento histórico contribuiu para a formação
de um quadro de esquecimento, sobretudo, público das ocorrências relativas à tortura e aos
desaparecimentos. Heloisa Starling (2015) ressalta que há ainda a persistência de um núcleo
recalcado de violência, do estabelecimento de alguns silêncios sobre o período correspondente
à “matriz de repressão”, cuja escravidão e a ditadura militar fazem parte. A historiadora
destaca a participação dos empresários na sustentação dessa estrutura, além dos escândalos de
corrupção e do arquivamento produzido pelos órgãos de segurança do Estado que ainda se
encontram sob o controle das Forças Armadas.
O MAM RJ construiu sua identidade institucional com base em negociações no plano
estético e sócio-político, tendo o Estado como principal colaborador neste processo. O Museu,
de certa forma, contribuiu para a manutenção de uma “legalidade aparente” 264 da ditadura
brasileira, disponibilizando seus espaços para os eventos oficiais, além de garantir a
realização da programação de artes visuais sem provocar grandes alardes. Até onde temos
notícia, as atividades ao ar livre pareciam não incomodar os censores, mas outras atividades
do Museu que demandavam recursos financeiros foram foco de interesse. Consta nos arquivos
do MAM RJ que, em 1970, Frederico Morais, responsável pelo setor de cursos, e Gustavo
Goebel Weyne Rodrigues, à frente do IDI, responderam por escrito a um inquérito policial
sobre o teor de suas atividades, a receita e as despesas. As perguntas direcionadas ao IDI, por
exemplo, foram questionadas a autoria e o destino dos cartazes elaborados pelo Instituto, se
eram vendidos ou doados, e ainda solicitavam uma relação das frases usadas, entre outros

263
A Guerrilha do Araguaia (1972-1975) ocorreu na região amazônica, na divisa entre o Pará, Maranhão e o
Tocantins (ainda pertencente ao Estado de Goiás) entre soldados do exército e de um grupo de militantes,
dentre homens e mulheres, que tentou realizar uma revolução comunista no Brasil.
264
TELES; SAFATLE, 2010.
249
dados, dos cartazes veiculados entre os anos 1969 e 1970. Em resposta ao inquérito, Goebel
Weyne afirmou que os únicos cartazes impressos naquele período foram a respeito das
mostras A imagem empresarial e O talher contemporâneo; e, quanto ao conteúdo dos
cartazes, justifica a sua subordinação à programação de exposições que determinava o que
seria comunicado.265
Até o presente momento, não há informações sobre qualquer censura relativa à
programação dos Domingos da Criação. As atividades eram públicas e aconteciam na área
externa, no jardim, ponto de encontro de uma juventude artística interessada em defender a
liberdade de expressão. Os Domingos “de papel”, “por um fio”, “do tecido”, “da terra a terra”,
“do som”, “do corpo a corpo” e do omitido “do fósforo” eram pautados pela única e exclusiva
justificativa da liberdade de criação. Nas palavras de Frederico Morais, “trata-se, então, de
acelerar a compreensão da obra de arte a partir de um relacionamento direto com a criação,
dando ênfase à experiência, revelando potencialidades e provocando iniciativas.” 266
O caráter efêmero das propostas não parecia incomodar as autoridades e se
despertavam alguma atenção quanto ao seu conteúdo ou mensagem, o uso efêmero dos
materiais, nesse caso, favorecia a não permanência de alguma crítica, denúncia ou questão,
sobretudo se estivesse veiculada por alguma imagem ou objeto. Por outro lado, a vigilância
dos regimes de controle e censura ocorria no interior do Museu, vide a censura da exposição
de 1969 aqui comentada e as atividades da Sala Corpo/Som.
O departamento Corpo/Som (1972-1978), coordenado por Sidney Miller, foi criado a
partir do curso Corpo/Som/Palavra, ministrado por ele junto a Klauss Viana e Paulo Afonso
Grisolli no MAM RJ em 1971. Mesmo sem a construção do teatro previsto no projeto de
Reidy, o MAM RJ incorporou as atividades vinculadas ao campo da música, teatro e dança à
sua programação cultural assumindo o projeto de integração das linguagens artísticas que se
ensaiava desde os primeiros estatutos. Enquanto projeto, a Sala procurou abarcar a criação
sonora em suas múltiplas abordagens, com pretensões de constituir um arquivo documental
destinado à veiculação de informação e produção teórica, além de instituir um laboratório
experimental de pesquisa sonora. O departamento atuava com uma programação de eventos
musicais, teatrais e de dança em espaços adaptados no Museu, como a área contigua ao
restaurante. Durante o período que esteve à frente do departamento, Miller reivindicava sua

265
Serviço de Ordem Política Social, Departamento da Polícia Federal, Rio de Janeiro, 9 out. 1970. Acervo MAM
Rio.
266
MORAIS, Frederico. No fazer criador todos se confundem. In: GOGAN, Jessica; MORAIS, Frederico (Org.).
Domingos da Criação: uma coleta poética do experimental em arte e educação. Rio de Janeiro: Instituto Mesa,
2017, 2017, p. 5.
250
“materialidade” ao Museu, que parecia tratá-lo ainda como um “corpo-estranho”, “apêndice”,
de “incômodas finalidades obscuras”. 267Apontada como o estopim do incêndio, a Sala
Corpo/Som conquistou um espaço permanente, com cadeiras e tablados ainda em fase de
adaptação, no segundo andar do Bloco de Exposições.268
Foi nesse período, que o emblemático show O Banquete dos Mendigos (1973) ocorreu
no Museu. O evento foi organizado por Jards Macalé que, junto à ideia de Cosme Alves Neto,
coordenador da Cinemateca, reuniu diversos músicos para as comemorações dos vinte e cinco
anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). O evento não estava diretamente
ligado à Sala, mas a abertura dos espaços do Museu para realização dessa natureza de
proposta vinha se intensificando na década de 1970. Os artigos da Declaração eram lidos a
cada intervalo por Ivan Junqueira, jornalista, poeta e secretário geral e diretor do Centro de
Informações da ONU, marcando especificamente aquele ano, da ditadura de Médici, as
práticas de extrema tortura, coerção e violência.
“Pouco antes do espetáculo [...] no Museu de Arte Moderna [...] a bandeira da
Organização das Nações Unidas foi suspensa no fundo do palco improvisado e a porta foi
aberta para mais de quatro mil pessoas, que se aglomeravam ansiosamente sob os pilotis”,
testemunhou Xico Chaves, que acompanhou o silêncio que se fez quando a carta da
Declaração com o carimbo “Liberado pela Censura” começou a ser lida. 269 Princípios
fundamentais em defesa dos direitos humanos, sendo claramente alijados àquele momento,
tais como o primeiro artigo “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
direitos [...]” e o quinto “Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante” foram ovacionados pela multidão que ali se concentrou.
Jards Macalé relata que os censores acompanharam o show e, ao final, o exército havia
cercado o MAM RJ. O evento acabou se tornando um manifesto, um posicionamento, um ato
político e poético comandado pelo público e artistas que interpretaram canções como
Pesadelo (1972), de Paulo César Pinheiro: “Você corta um verso, eu escrevo outro/Você me
prende vivo, eu escapo morto”, considerada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas

267
MILLER, Sidney. Departamento Corpo-Som, Rio de Janeiro, 27 nov. 1972. Acervo MAM.
268
“As cadeiras comuns enfileiradas, o teto baixo demais, uma extensa parede negra separando a Sala Corpo
Som do enorme salão de exposição do Museu de Arte Moderna não são elementos ideais mais fundamentais
para se levar adiante um plano que visa mostrar o melhor da música brasileira e dar chance a todos os projetos
bons experimentais.” Agora, a sala B, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 07 jan. 1976. Acervo MAM.
269
Disponível em: https://nacoesunidas.org/ivan-junqueira-no-banquete-dos-mendigos/ Acesso em: 23 mar.
2019.
251
uma afronta às autoridades brasileiras. 270 Não por acaso, o álbum com a capa de Rubens
Gerchman foi proibido, sendo somente liberado seis anos depois no governo Geisel. O
significado político e social desse evento e, consequentemente, do seu registro histórico, foi
traduzido por Antonio Carlos Jobim que escreveu em 1979, ano de liberação do disco, as
seguintes palavras: “Ele é um eterno vigia de um tempo imperecível. Guardião de dois
absurdos. A vida era por um momento. Não era nada. Era emprestada. Tudo é testamento.” 271
No mesmo ano em que o Museu promove essas ações na área externa, internamente
enfrentava uma grave crise financeira. O próprio Jornal do Brasil que destacava os Domingos
da Criação anunciava a falta de verbas do Museu até para “comprar papel ou fazer
propaganda de seus cursos”. Trata-se de uma situação irônica diante do Domingo de Papel
que recebeu uma quantidade imensa de doações em diversos tipos de papel. A imagem
construída sobre as atividades ao ar livre de Frederico Morais contrastava com as dificuldades
orçamentárias do Museu em que parte da sua receita era fruto do aluguel de seus salões. Essas
necessidades já eram anunciadas desde o final do ano de 1970, quando os incentivos públicos
advindos do Governo Federal arrefeceram. 272 Em 1974, a crise se alastra e se reflete na
estrutura do Museu que se encontrava em deterioração, com problemas de conservação, até
que, em 1977, um artigo do jornal O Globo anunciava a tragédia: “[...] Peritos afirmaram que
o próximo estágio seria catastrófico: um clic e tudo desabaria.”273 Já nesta fase, ocorriam os
debates sobre a decadência da política institucional do Museu se originar, enfaticamente, das
divergências administrativas colocadas sobre sua concepção cultural.
Em meados da década de 1970, verificou-se uma gradual transformação dos aparelhos
de repressão para obtenção de apoio político e administrativo com a intenção de mascarar o
fim de um estado de exceção em pleno vigor. Em 1974, o projeto político do general Ernesto
Geisel anunciava a distensão do regime militar, conduzindo assim o chamado processo de
abertura política a fim de manter algum tipo de conciliação com a oposição e a sociedade
civil. Nesta fase, a imprensa alternativa passa a circular com o fim da censura prévia como
Pasquim (1969-1991) e Opinião (1972-1977) e os movimentos populares retornam às ruas,
especialmente dos estudantes.

270
Parecer da Divisão de Censura de Diversões Públicas sobre o disco “Direitos Humanos no Banquete dos
Mendigos”, Brasília, 21 nov. 1974. Disponível em http://70.unicrio.org.br/?s=banquete+do-s+mendigos Acesso
em: 23 mar. 2019.
271
Liberado ‘O Banquete dos Mendigos’, São Paulo, Estado de São Paulo, 12 nov. 1979. Disponível em:
http://70.unicrio.org.br/?s=banquete+dos+mendigos Acesso em: 23 mar. 2019.
272
MAM pode fechar em 1971 por falta de recursos, Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, 5 ago. 1970. Acervo
FUNARTE.
273
A arte entra em recesso, Rio de Janeiro, Jornal O Globo, 15 set. 1977. Acervo FUNARTE.
252
A presença dos estudantes universitários nas campanhas de mobilização popular após
o incêndio do MAM RJ ganhou certo relevo, pois alguns grupos dotados de prestígio político
apoiavam o Movimento pela Anistia e as greves gerais deflagradas pelos trabalhadores do
setor industrial. O ano de 1977 marca o retorno das manifestações estudantis após um período
de intensa repressão e coerção política. E em 1978 consolida-se o apoio ao movimento pela
anistia que ganha expressão nacional com a organização dos Comitês Brasileiros pela Anistia
que contavam com a adesão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Associação
Brasileira de Imprensa (ABI). Estas duas organizações também aderiram às campanhas de
mobilização pelo Museu, junto a outras instituições e iniciativas culturais como a Fundação
Nacional de Artes, o Museu de Arte de São Paulo, Museu do Índio, Museu do Inconsciente, O
Pasquim, Museu da Imagem e do Som, entre outras. Estas instituições somavam às
reivindicações nacionais maior autonomia para as artes plásticas, além das campanhas
encabeçadas por Mario Pedrosa sobre a conscientização do Museu como a “casa do povo.”274
No final de 1977, Pedrosa havia retornado ao Brasil após sete anos de exílio. Sua
prisão preventiva foi decretada por uma Auditoria da Marinha do Brasil no Rio de Janeiro,
sob a acusação de ter difamado a imagem do país (do Governo) no exterior. Pela Embaixada
do Chile, conseguiu permanecer no país por dois anos dando aulas e colaborando para a
implantação do Museu da Solidariedade Salvador Allende (1972). Com o golpe, transferiu-se
para o México e, depois, seguiu para Europa onde permaneceu até seu retorno em 1977. 275
As imagens do Museu e do acervo incendiado nos fazem suspeitar que a intenção dos
fotógrafos, ou pelo menos o modo como capturaram as cenas, transborda outras mensagens
além dos seus aspectos meramente documentais. O incêndio que ocorreu no MAM RJ no final
da década de 1970 participa de uma história que também se procura não falar, não averiguar.
Após o incêndio e, notadamente, com a Lei da Anistia em 1979 promulgada no governo de
Figueiredo, uma vontade de esquecimento foi colocada em exercício. Observamos um trauma,
um drama, uma melancolia instaurada. Porém, foi através do reconhecimento das obras,
especialmente daquelas que sobreviveram ao incêndio e das imagens do acervo desaparecido
que esse intervalo silencioso de tempo se revelou. Identificar as “testemunhas oculares” torna-
se legível não só as questões específicas pertencentes ao Museu, mas todas as outras
atualizadas à luz das chamas do incêndio. Não se trata de utilizarmos como metáfora as obras
desaparecidas ou queimadas para a situação dos diversos corpos desaparecidos e incinerados

274
Manifestação leva 3 mil ao MAM. O Globo: Rio de Janeiro, 17 jul. 1978. Acervo MAM Rio.
275
Mario Pedrosa retorna ao Brasil. São Paulo, Folha de São Paulo, 9 nov. 1977. Acervo MAM Rio.
253
durante a ditadura, mas suspeitar desses regimes de apagamentos e esquecimentos tão
frequentes e ainda presentes na história do país.

3.3 Arquivo morto

Uma discreta nota do antigo jornal A Gazeta traz Heloisa Lustosa, diretora executiva
do MAM RJ, e Harry Stone, representante da Motion Pictures Association, entidade
responsável pela promoção dos filmes de Hollywood no Brasil, retratados sorrindo como
quem posa para uma coluna social. O texto inserido logo abaixo da imagem sugere o incêndio
como uma oportunidade do Museu fazer “tábula rasa”, recomeçar, “eliminar imensos estoques
de quadros indesejáveis e, iniciar uma nova coleção de arte, orientada tecnicamente para o
melhor, adquirindo só peças excepcionais, e exibir ocupando o mínimo de espaço, o acervo
ideal.”276
A nota não foi assinada ou a autoria foi recortada pela clipagem, mas, mesmo
“anônima”, o trecho citado nos chama a atenção para a questão que coloca sobre o “acervo
ideal” ser formulado sobre tais premissas: “tecnicamente para o melhor”, “peças
excepcionais”, “ocupando o mínimo de espaço.” Ao associarmos o contexto em que essa nota
foi publicada, o incêndio e, consequentemente, a perda de grande parte do acervo e o
momento artístico, ou seja, o final da década de 1970, indagamo-nos: como se mede um
acervo ideal e o que faz de uma obra ser excepcional? É possível imaginar essa
“excepcionalidade” diante do conjunto de obras sobreviventes ao incêndio? Estariam essas
obras enquadradas nesse “ideal”?
Em outro artigo com autoria de Frederico Morais, publicado cerca de sete anos após
esta nota, em resposta à crise em que o MAM RJ ainda se encontrava após o incêndio, o
crítico de arte atribui aos artistas a proposta de se fazer “tábula rasa do passado” (grifo do
autor). Morais pontua: “como Moriconi, o artista plástico Rubens Gerchman propõe um
mutirão de artistas, a nível nacional e internacional, para construir um novo MAM. Acha que
é preciso começar tudo de novo, do zero.”277
Uma das hipóteses sobre a formação de um acervo ideal consta na pesquisa de Thiago
Ferreira (2018) sobre a oportunidade da Coleção Gilberto Chateaubriand ser enquadrada nesta

276
GAZETA, Rio de Janeiro, 24 de jul. 1978. Acervo MAM Rio.
277
MORAIS, Frederico. Artistas e críticos reagem. Rio de Janeiro, O Globo, 16 maio 1985. Acervo MAM Rio.
254
“categoria”, cujo Museu “aparentemente” vazio poderia acomodar suas obras, ajustando-se
assim à justificativa redentora das razões de ser do MAM RJ reiterada por Roberto Pontual e
Frederico Morais, estimuladores dessa transferência após o incêndio. 278 Mas, antes mesmo da
realização do comodato, o Museu investiu na reconstituição do acervo sobrevivente,
consequentemente na imagem do MAM RJ ainda quando fumegavam as consequências do
incêndio. De grande parte do acervo que resistiu às chamas, apenas um grupo de obras foi
prontamente restaurado e apresentado ao público.
A escultura Mademoiselle Pogany II, de Constantin Brancusi, foi uma das obras que
sobreviveu ao incêndio e compõe o grupo atual de obras representativas do acervo do MAM
RJ. É frequentemente exibida na condição de highlight junto a outras obras que também
resistiram ao incêndio. A imagem que, talvez, tenha nos chamado mais a atenção é a que está
reproduzida na capa da revista Arte Hoje, edição de agosto de 1978, onde apareceu junto a
seguinte frase: “O MAM renascerá” com grande parte da sua superfície decomposta em
virtude do incêndio. Na imagem, a estrutura da escultura aparenta estar íntegra, rígida,
tornando-se, portanto, segundo a própria revista, o símbolo da reconstrução do Museu.
Ao buscarmos em outras fontes um breve histórico da escultura Mlle. Pogany,
descobrimos que o tema dela ocupou Brancusi por quase vinte anos. Criada a partir do
encontro do artista com a jovem estudante de arte húngara Margit Pogany recém-chegada à
cidade de Paris. A primeira versão foi esculpida em mármore em 1912 e consta atualmente no
acervo do Philadelphia Museum of Art junto a um desenho em grafite e carvão com efeito de
esboço para a escultura. Exposta pela primeira vez na Armory Show (1913), a obra causou
polêmica entre os visitantes e a imprensa ao ser associada ao retrato de uma mulher. Segundo
o texto de apresentação da obra na página do Museu, Margit posou para Brancusi diversas
vezes em seu ateliê, no entanto, foi na sua ausência que a escultura foi, enfim, criada. 279
Ao longo dos anos, a escultura Mlle. Pogany sofreu simplificações até às últimas
versões, incluindo a do MAM RJ, com maior abstração das referências iniciais. Outras
versões da escultura estão no Musée National d'ArtModerne – Centre Georges Pompidou e no
Museum of Modern Art de Nova York. Em ambos os Museus, a obra é apresentada de forma

278
FERREIRA, Thiago. MAM Rio e a construção discursiva do pós incêndio. Rio de Janeiro: Programa de Pós
Graduação em Artes Visuais – UFRJ, 2018.
279
“The clay studies that he made in her presence were destroyed every time, though several drawings survive
(see Philadelphia Museum of Art, 1947-88-10). After she returned to Hungary, he carved this marble portrait
head from memory.” Disponível em: http://www.philamuseum.org/collections/perm-anent/44648.html Acesso
em: 12 fev. 2016.
255
semelhante, em que a biografia do artista, a relação com a estudante Margit e a polêmica
ocorrida na exposição Armory Show são informações recorrentes.
Há três cópias da escultura Mlle Pogany II em bronze polido datadas de 1920. Uma
cópia encontra-se na coleção da Albright-Knox Art Gallery/NY; outra cópia, na Katherine
Ordway Collection - Yale University Art Gallery; e a terceira, no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro. De acordo com as informações técnicas relativas à procedência da obra,
consta no inventário do acervo de 1966, que o casal Stella e Roberto Marinho adquiriu a
escultura do artista e a doou em 1952, ano de reabertura do Museu no térreo do Ministério da
Educação e Saúde. Segundo as referências do catálogo da Coleção (1953), a imagem da
escultura é apresentada ao lado de uma breve biografia do artista e alguns comentários sobre a
forma síntese do “ovóide” como matriz de seu pensamento plástico junto ao “polido da
matéria.”280 A imagem da escultura volta a ser reproduzida em um catálogo do acervo (1999),
dessa vez sob outro ângulo, em cores, junto a um parágrafo contendo uma breve análise da
produção do artista: “assimilando com rapidez, consistência e uma alta dose de originalidade
a lição cubista”, além de considerar sua influência para a escultura moderna como uma
“espécie de equivalente escultural” 281 de Pablo Picasso.
A afirmação das transformações pelas quais passam algumas obras de arte está
condicionada a um regime de gosto e estilo segundo uma concepção de arte definida por cada
época. A história da arte moderna enquadra a obra de Brancusi em um laborioso trabalho de
acabamento, polimento e síntese, cujas inovações da forma plástica, para Argan (1992, p.
464), pode ser considerada “como ponto de partida de Arp, de Moore e, de modo geral, de
toda a escultura moderna”. Por todos esses atributos e, especialmente, pelo seu valor
monetário, a escultura Mlle. Pogany II foi imediatamente restaurada, portanto, não apresenta,
aparentemente, os sinais do incêndio, mas a sua imagem exposta na capa da revista Arte Hoje
(1978) traz à tona o momento do incêndio, representa o MAM RJ e a campanha pelo seu
“renascimento”.
A escultura incorpora a história desse lugar. É preciso, nesse sentido, desvencilhar-se
dos regimes temporais estabelecidos pela historiografia da arte para investigar a memória da
obra, não como um arquivo de fatos, datas e nomes, mas os acidentes, as fissuras, as
exceções, os intervalos que possam habitar o conteúdo que esta imagem nos oferta. Apropriar-

280
Exposição Permanente. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1953. (Catálogo de
exposição). Acervo MAM Rio.
281
O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Banco Safra, 1999, p. 276.
256
se desta imagem é como revolver um arquivo até o momento do incêndio circunscrito a uma
dada narrativa e enquadramento.
Pela lógica paradoxal do anacronismo, é colocado um novo modo de enfrentamento da
cadeia temporal lógica impressa pela história da arte. Nas palavras de Walter Benjamin, “não
há nada que seja mais sujeito a transformações na obra de arte do que esse espaço sombrio do
futuro nela fermentado.”282 A intenção de Benjamin revela-se no desejo de recomeço da
disciplina sob novos parâmetros, ou seja, problematizar as historiografias ou o uso que é feito
das imagens como mera ilustração para a fabricação de saberes e verdades. Para Didi-
Huberman (2015), o historiador da arte ao reproduzir um discurso em que a obra é
interpretada segundo os registros, os documentos, as fontes “historicamente pertinentes”,
estaria realizando uma interpretação “eucrônica”, ideal, portanto, idealizada do passado. Passa
a ser problematizado o uso que é feito da história da arte que apenas reitera, reproduz ou
apenas faz uso da legitimidade dos discursos sobre as obras, sem, no entanto, suscitar novas
questões sobre elas, nesse caso, pertencentes a um acervo e diante desta imagem, portanto, a
um contexto específico.
Consideramos que a própria materialidade da escultura no estado em que a sua
imagem foi reproduzida pós-incêndio contribuiria com evidências que nos conduziriam a
novas possibilidades discursivas, para além daquelas comumente utilizadas para
contextualizar uma obra em uma coleção de arte. É necessário ir além da maioria das
narrativas dos catálogos que cumprem apenas a função de apresentar a relevância de um
conjunto específico de obras de arte.
O enquadramento dado à obra de Brancusi na capa da revista nos aproxima da imagem
como vestígio, na medida em que amplia ou altera o próprio conteúdo da obra de arte e,
consequentemente, o saber histórico sobre ela no âmbito do Museu. Descaracterizada dos
atributos dos quais a consagrou, a escultura carrega uma história própria, um feixe de
significados que, embora subjetivos a nosso ver, apresenta uma importância tal qual os
princípios estéticos que a certificaram. A descoberta desta imagem nos conduz ao processo de
reconstrução do Museu de Arte Moderna pelo viés da sobrevivência não só de parte do
acervo, mas por nos oferecer uma das chaves interpretativas sobre a formulação conceitual do
MAM RJ, após o incêndio.
Ao retomar uma obra representativa da arte moderna europeia como símbolo da
reconstrução, o Museu restituía os estatutos fundadores e, ao mesmo tempo, aproximava-se da

282
Benjamin apud Didi-Huberman, 2015, p. 108.
257
comunidade internacional até aquele momento consternada, porém crítica à forma como os
museus brasileiros conservavam seus acervos. Associar o processo de reconstrução e
restauração a um processo de reconquista da confiança era sua principal tarefa. Não importava
àquele momento atender às reivindicações dos artistas quanto à restituição de um espaço de
continuidade da prática experimental que, na perspectiva de parte da imprensa, aliava-se às
acusações de amadorismo e má administração.
O processo de restauração das obras e do Museu acionou um modo de fazer história
sob a égide de uma política de memória, encapsulando estas experiências no tempo e no
espaço. Com o MAM RJ supostamente restaurado, aparentemente livre de tais reminiscências,
poderia, enfim, ser lembrado e celebrado como um dos principais cenários da vanguarda
carioca das décadas de 1950, 1960 e, sobretudo, o início dos anos 1970 com as atividades da
Área Experimental. 283 Veremos que construir uma memória foi seu principal argumento nos
processos de reconstrução.
Após o incêndio, podemos considerar que algumas obras de arte ganharam uma
“sobrevida”, um acréscimo de tempo que altera a história cristalizada que as constituíam e,
consequentemente, a narrativa deste Museu que as conservou. Não importa o modo como
estas esculturas estavam após o incêndio. O que importava era associar a sua imagem
restaurada ao Museu. Porém, ao nos debruçarmos sobre as imagens, veremos que o conteúdo
inscrito sobre as mesmas nos desperta para uma reflexão referente ao que deforma nesse
processo. É como se o incêndio e toda a fabulação em torno do renascer das cinzas deslocasse
a condição conservativa imposta à obra nos interiores museológicos, para uma relação
dinâmica com o espaço e, sobretudo, com o tempo.
A escultura de Brancusi, antes da restauração, esteve reunida em uma das salas do
Bloco Escola, espaço anteriormente dedicado às exposições e cursos, junto a outras obras
sobreviventes de grande parte do acervo que desapareceu na noite de 8 de julho de 1978. Este
conjunto rendeu uma série fotográfica que, a princípio, sem as legendas, o enquadramento
documental atribuído a estas imagens não está evidente. O conjunto de obras captado nas
imagens poderia estar relacionado a outros contextos: um ateliê, um depósito, uma reserva
técnica ou, até mesmo, à expressão de um momento de transição, de deslocamento das obras
de um lugar para o outro. De fato, essas imagens revelam um processo de mudança, de
transformação, mas no sentido discursivo relativo às mudanças ocorridas após o incêndio.

283
“[...] É aí, no museu mais emblemático do Rio de Janeiro e um dos mais emblemáticos da arte brasileira,
principalmente entre as décadas de 1950 e 1970, que veremos a questão do “experimental” ganhar um de seus
momentos mais decisivos entre nós. ” LOPES, 2013, p. 10.
258
Estas imagens desfazem o culto, a priori, do objeto de arte e, portanto, da aura no âmbito do
Museu, pois reúnem e revelam as obras que sobreviveram. Algumas se encontram íntegras,
enquanto outras em completo aspecto de destruição. Essas imagens reiteram a vivacidade
material das obras, mas também a mortalidade dos discursos que as consagravam, instaurando
assim um processo de reabertura do sentido da obra de arte, dos limites conceituais, e da
narrativa histórica da arte moderna no Museu.
Através das imagens é possível identificar além da escultura de Brancusi, outras
esculturas pertencentes à obra de Auguste Rodin, Henri Laurens, Jacques Lipchitz, Victor
Brecheret, Alberto Giacometti, Marino Marini, Felícia Leirner, Alicia Penalba e Mario Cravo
Junior. O estado das obras e a ênfase dos tons preto e branco da fotografia imprimem no
conjunto uma espécie de uniformidade tipológica. Embora cada uma pertença a um
determinado artista e a uma proposta estética, todas as obras, de um modo geral, parecem ter a
mesma fisionomia, parecem pertencer ao mesmo conjunto.
Muitas dessas obras sobreviventes compuseram a formação do acervo do MAM RJ
segundo uma ideia de “moderno consagrado”. O valor formal assegurava a importância do
Museu como um espaço de contribuição à cultura artística do país. Com o incêndio, o
programa institucional baseado na legitimação e valorização da arte moderna passaria a sofrer
revisões no processo de reconstrução, sobretudo diante das possibilidades discursivas que esse
grupo de imagens nos apresenta hoje, quarenta anos depois.
Analisar essas imagens com certo distanciamento aguça o olhar sobre as razões para
tal enquadramento fotográfico e nos faz, sobretudo, refletir sobre a crise de representação
enfrentada pelo Museu no processo de reconstrução. A partir do seu acervo queimado, que
prática histórica da arte passaria a exercer e de que modo reformularia a sua memória já que
grande parte do seu acervo, segundo a imprensa, se perdeu? Veremos mais adiante que parte
da memória do Museu não foi constituída apenas com o acervo, mas com a prática artística
que reivindicou seu papel, seu lugar e reconhecimento após o incêndio. Verificaremos
também que a contraditória afirmação “sem dar tanto valor de fetiche à obra de arte”, de
Roberto Pontual, demarcada no capítulo anterior, evidenciará o modo como o renascimento
do Museu colocará, ironicamente, artistas e obras de arte em um duplo e irônico dilema. Ao
fim ao cabo, perceberemos que a práxis artística experimental passou a integrar o acervo, não
pelas obras, mas pela sua história, pela construção da imagem de uma vanguarda
experimental.

259
As obras de arte que compunham o espaço expositivo, em poucas horas, transitaram
de um lugar na história da arte para um lugar na história do Museu. Estas obras estão sob a
alcunha do sobrevivente, portanto, produzem uma memória que qualquer outra obra que
integrou o acervo após o incêndio não possui. E isso não significa que estas obras,
especialmente as que foram restauradas, estão em uma condição especial em relação às outras,
mas podem nos conduzir a outras leituras possíveis para o sentido do objeto de arte e as
narrativas que o cerca em um museu de arte moderna.
Não podemos negar que essas imagens revelam uma dramaticidade que nenhum
museu se interessaria em expor, afinal, o fogo tratou de expurgar, por um momento, suas
auras – condição sine qua non para sua instalação e permanência no “interior do cubo
branco.” Essas imagens traduzem a experiência da espantosa ação do fogo e de suas
misteriosas habilidades seletivas. Na tomada fotográfica, as obras permanecem juntas umas às
outras, sem qualquer medida de distanciamento. Dependendo do ângulo de visão, confundem-
se. Aproximam tempos, encontram paralelismos históricos e estéticos que em exposição
certamente se avizinhariam. Reconfiguram o olhar, os conceitos, os códigos estéticos, os
territórios visuais, tensionam a legibilidade da narrativa histórica, pois a aparência das obras
deforma ou degrada o conjunto de valores, que, já envelhecidos, operava a sua fisionomia.
Estão ali enquanto corpo físico, material, na sua forma bruta, pondo em relação os limites da
arte, especialmente de uma tradição artística da pintura e da escultura moderna, umas
aparentemente ainda “vivas” e outras “mortas”, fadadas ao completo desaparecimento.284
Vemos ainda nesse conjunto de obras sobreviventes uma teoria modernista
duplamente potencializada, pois essas obras conservam os próprios fundamentos que as
constituem e os mesmos em estado de deformação reiteram a qualidade material na sua forma
original (in memoriam) e, ao mesmo tempo, na sua forma bruta, ou seja, um retorno ao estado
de prelúdio de sua própria feitura. Portanto, essas imagens falam de uma relação não só com o
espaço, mas com o tempo e, sobretudo, com a forma modernista da materialidade da arte.
É tentador assumir um método de análise por índices para as imagens, identificar os
pormenores, a exatidão dos detalhes, na medida em que podem sinalizar as particularidades
dos fatos ocorridos no pós-incêndio do MAM RJ. Somos tentados a abordá-las ao “pé da
letra”, tentando decifrar cada obra, cada parte sobrevivente, mas a construção da imagem nos

284
“[...] Quando eu levanto para ver qual era o quadro, era um Mabe, que tinha sobrevivido ao incêndio, mas
não tinha sobrevivido ao pós-incêndio: a água caiu, o plástico estava furado, o lençol absorveu e tinha uma
colônia de fungos enorme sobre esse Mabe.” Depoimento de Paulo Herkenhoff à Memória Petrobrás, Rio de
Janeiro, 24 de fevereiro de 2005. MEMÓRIA CULTURAL - PETROBRÁS. Cristine Monteiro, Paulo Herkenhoff e
outros / Serviço de Comunicação Institucional da Petrobras, 2000.
260
intriga a avançar mais no seu aspecto analítico, iniciando uma investigação que não está
centrada propriamente nas obras, mas na construção da própria imagem. São os objetos que
falam de uma perda, de uma destruição, portanto, de contextos que se encontram externos a
eles mesmos.285
As imagens geradas a partir do olhar acurado dos fotógrafos não cobriam apenas os
danos gerados pelo incêndio, mas exploraram em imagem outras interpretações dos rastros
deixados pelo ocorrido. As imagens do acervo sobrevivente são em sua maioria de autoria de
André Papi, especialista em fotografar obras de arte para catálogos, revistas e jornais. O
trabalho do fotógrafo consiste em captar através do seu olhar as características mais
exponenciais de cada obra: forma, cor, textura. No ato de ressignificar essas imagens, isto é,
afastá-las do seu referente documental, compreendemos que o seu olhar fotográfico, nesse
caso, buscou representar o que restou de um acervo; reconfigurou, ou melhor, de que modo
recolecionou. Essas imagens recolecionam os vestígios gerados pela ação do fogo. Se olhadas
na perspectiva da ruína, daquilo que sobreviveu enquanto acervo, essas imagens nos dão
pistas do que permaneceu enquanto narrativa histórica da arte no Museu. Contudo, a
interpretação dessas imagens deve se opor a uma tentativa de musealizar o incêndio, pois não
representam o acervo ou o que sobrou dele, mas apresentam um novo acervo, pois
testemunham a mortalidade e o nascimento de uma aposta discursiva.
Como já nos referimos aqui, um conjunto de obras, dentre pinturas e esculturas,
contribuiu para a justificativa da criação do MAM na cidade do Rio de Janeiro, sobretudo no
processo de reivindicação da sede definitiva e para a recuperação da sua imagem após o
incêndio. E, especialmente, algumas obras em bronze, matéria que constituiu a produção de
gerações e gerações de artistas, retoma a experiência do fogo, meio pelo qual ironicamente foi
responsável pela sua criação e destruição. Para Paul Valéry (1934, p. 9), há no princípio de
criação das obras provenientes do fogo um grau de incerteza e risco, pois o calor pode em um
feixe de segundos criar uma forma, em outro instante deformar. Sobre os usos e a ação do
fogo, constata que “sua natureza exclui ou pune qualquer negligência. Sem abandono, sem
descanso; ponto de flutuações de pensamento, coragem ou humor. Eles impõem, no aspecto
mais dramático, o combate próximo do homem e da forma.” Diante das esculturas

285
No período do pós-incêndio, a seleção das pinturas sobreviventes ocorria por meio da identificação dos
vestígios materiais que pudessem conter resquícios de pigmentação. Se estivessem em condições de serem
restauradas, eram reservadas, do contrário, eram arquivadas para posterior investigação do historiador. “Nos
casos em que a tela foi parcialmente destruída pelo fogo, não há restauração possível e só recuperamos a parte
não atingida, que fica como documento. Até um terço de uma obra deve ser salvo e mantido.” (MOTTA apud
NORONHA, 2014, p. 6).
261
sobreviventes, convém também acrescentar o embate do estado da forma à sua própria
discursividade.
Mlle Pogany II foi uma das primeiras obras a ser restaurada com a garantia de voltar a
brilhar segundo o depoimento do restaurador Edson Motta: “Exposta no segundo andar do
MAM RJ três anos após o incêndio como promessa de ‘vida nova’ exibiu na cabeça uma
pequena cicatriz.”286 A semelhança da obra de Brancusi às formas humanas torna ainda mais
latente a sensação da qual Belting (2014, p. 229) comenta sobre a potência da imagem
fotográfica diante da captação da imagem dos corpos: “a impressão da luz na película fixa o
vestígio de um corpo que gera sua própria cópia, [...] não é uma descoberta, mas um objeto
dado, que graças a luz capta um corpo com aquela verdade [...].” Não há ilusão, mas uma
concretude da experiência visual diante do corpo cuja aparência afirma sua própria condição
material.
As considerações sobre o “acabamento lustroso”, o “reflexo perfeito”, o “convite à
contemplação”, narrado por Rosalind Krauss (1998) sobre algumas obras de Brancusi se
desfazem diante do aspecto em que Mlle Pogany II, por exemplo, é encontrada após o
incêndio. Porém mesmo com a sua deformação provisória, a imagem da escultura se encontra
ainda na qualidade de contemplação, mas mais pela consolidação da sua obra do que pelos
seus atributos formais. Porém, para nós, a imagem desta obra nos convida a olhar para a
mutabilidade da matéria e, consequentemente, para as narrativas sobre as elas, pois estão em
um constante processo de reconfiguração, tais como as experiências artísticas referentes à
década de 1970, que colocavam em jogo a própria definição de obra de arte e a mortalidade
de alguns discursos.
Alberto Giacometti afirmava que a escultura deve estar a serviço de “uma
interrogação, uma questão, uma resposta.” O artista compreendia sua obra como uma
correspondente, não direta, mas indireta de imagens e impressões familiares, isto é, memórias
que o afetavam, muito embora não conseguisse identificá-las prontamente. Suas aparências
permaneciam “perturbadoras”.287 Das esculturas sobreviventes presentes nas imagens, talvez
Quatro mulheres sobre base é a obra que menos tenha sofrido danos com o incêndio.
Arriscamos dizer que o fogo tenha inclusive potencializado o aspecto rugoso, corrosivo e
mórbido da sua aparência, assim como se refere Jean Genet [1957] ao narrar suas impressões
sobre algumas obras encontradas no ateliê do artista parecerem “pertencer a uma era defunta,

286
“O mais importante na escultura é a sua forma original e esta foi mantida por ser tratar de uma peça de
bronze.” Depoimento de Edson Motta à Revista Arte Hoje, ano 2, nº 14, agosto de 1978, p. 14.
287
WIESINGER, 2012, p. 63.
262
[...]. Ou, melhor ainda, saíram do forno, resíduos de um cozimento terrível: apagadas as
chamas, isto é o que restaria.”288 Na percepção do escritor, as obras de Giacometti indefinem
um passado e um futuro, pois cada forma isola-se ao ponto de conter significações próprias
destituídas de um olhar histórico sobre elas. A legenda Quatro mulheres sobre um pedestal
define uma forma, mas ao enfrentá-las vemos também formas informes, pois, para o artista,
não é propriamente um objeto que se cria, mas um feixe de problemas.
Giacometti questiona o estatuto da obra e, consequentemente, a eliminação de
qualquer vestígio artesanal em função de uma obsessão por superfícies análogas aos
acabamentos realizados por um maquinário industrial. Pergunta-se o que seria da forma polida
de Brancusi se fosse encontrada “enferrujada, amassada, quebrada.” 289 Interessante observar
que, no encontro das duas esculturas sobreviventes ao incêndio, ambas, deformadas voluntária
e involuntariamente, respondem, de algum modo, à construção de determinados mitos
canônicos da arte moderna conjugados à formulação conceitual de um museu de arte
moderna. O questionamento de Giacometti é um questionamento que pode ser feito ao MAM
RJ à época do incêndio.
O MAM RJ estruturava sua “missão cultural” na cidade do Rio de Janeiro com base na
aquisição destas duas obras, além de outras que acabaram desaparecendo nas fuligens ou no
momento do incêndio. Preservar ou dar continuidade às narrativas oficiais após o incêndio
nos parece uma tentativa de afirmação da imagem de forma de modernismo adequado a um
déjà vu dos estatutos fundadores como único parâmetro convincente para o processo de
restauração do Museu. Ao mesmo tempo, a construção narrativa dessas imagens do acervo
sobrevivente encena ou reitera uma deterioração dos domínios discursivos que delineavam o
contorno conceitual da obra de arte moderna, permitindo revisar o próprio sentido de um
museu de arte moderna em um contexto artístico e cultural de profundas revisões e
reformulações da obra de arte, da história e do museu.
A atual “aparência moderna” do MAM RJ privilegia o valor de culto de uma tradição
artística e uma noção de memória baseada na afirmação histórica do Museu, não como um
depósito de imagens referenciais de um passado, mas como um fenômeno produtor de
imagens e, sobretudo, discursos. Retomando novamente a imagem dos meninos que voltam
seu olhar para o jardim, as análises de Andreas Huyssen (2014, p. 89) nos provocam uma
reflexão sobre o modo como percebemos o modernismo não mais análogo ao novo, ao futuro,
mas a um modelo a ser olhado para trás, para o passado. Nas palavras de Huyssen, “[...] o fato
288
GENET, 2000, p. 44.
289
WIESINGER, 2012, p. 70.
263
do modernismo ter-se tornado passado parece haver diminuído o nosso poder de imaginar o
futuro.” O aspecto cremado do MAM RJ desassocia-se da ideia de futuro, progresso,
novidade utópica, pois ao se apresentar em estado de ruína, a necessidade de se construir
memória é automaticamente acionada, portanto, a reconstrução do Museu passa aos interesses
de uma estética contemporânea.
As análises de Benjamin sobre as impressões de Charles Baudelaire referentes à
modernidade, algum dia, tornar-se antiguidade nos parece fazer sentido no processo de
reconstrução do Museu não reabrir seus espaços para a continuidade experimental, mas para
restituir uma tradição museológica tendo a história da arte, sobretudo a moderna, como
referente.290 A permanência de determinadas “formas de modernismo”, de algum modo,
suplantou outras experimentações que fomentavam a programação cultural do MAM RJ.
Nas palavras do presidente Ivo Pitanguy à época do incêndio: “O passado deve ser
sepultado para se reconstruir aprimorando.”291 No interior dessa perspectiva, havia a intenção
de iniciar um processo de apagamento da imagem do Museu como centro de atividades
culturais, principalmente experimentais, a fim de restaurar sua aura e, assim, restabelecer-se
como objeto de culto – museu enquanto museu –, a fim de manter a “integridade e a
especificidade da instituição.”292 Dessa forma, o processo de reconstrução destituiu a
participação direta dos artistas que, especialmente nas décadas de 1960 e 1970, construíram
junto ao Museu (ou no Museu) um projeto de cultura integrado à experimentação artística,
cuja importância histórica inseriu o MAM RJ como o espaço da vanguarda artística carioca.
A palavra ruína não se refere apenas ao estado de devastação em que o MAM RJ foi
encontrado após o incêndio, mas à própria matéria constituinte da relação estabelecida entre
uma noção de arte, museu, história e progresso. A noção de ruína tratada aqui estrutura uma
concepção moderna de museu, central para a sua reconstrução na cidade do Rio de Janeiro. As
erosões, as decadências, as deteriorações não se encontram na construção, mas nos meandros
da sua própria história que constituem um presente que parece atrofiar-se.
A aparência estética das ruínas produz uma atração aos olhares contemporâneos, pois
desde as descobertas arqueológicas entre os séculos XVIII e XIX, o espectador foi
estimulado, pelo enquadramento dos museus, a obter prazer na apreciação de estátuas
mutiladas. É a própria materialidade decomposta que marca a presença do tempo, homologa

290
BENJAMIN, 1994.
291
Na reconstrução do MAM, as mesmas contradições. Folha de São Paulo: São Paulo, 30 jul. 1978. Acervo
MAM Rio.
292
Idem.
264
uma ideia de ressurreição e imortalidade que possivelmente garantiu a sobrevivência do gosto
pela aparência deformada das coisas. Umberto Eco (2017, p. 250) confirmará que o aspecto
das ruínas “convida a não esquecer as devastações do tempo e o silêncio que reina sobre as
nações, mas reforça também a fé na possibilidade de reconstruir com fidelidade absoluta uma
origem que no passado se acreditava irrecuperável [...].” Não por acaso, a escolha da imagem
que compôs a capa da revista Arte Hoje, um mês após o incêndio, junto à frase “O MAM
renascerá”, foi da escultura Mlle. Pogany II (1920), de Constantin Brancusi, cuja superfície
danificada do bronze polido foi exposta e considerada símbolo da reconstrução do Museu.
Mas, essa mesma imagem não estaria também representando o fracasso das utopias
modernistas ou, ao contrário, afirmando seu próprio paradigma.
O par construção/destruição constitui uma narrativa histórica do modernismo,
especialmente quando aponta para o estilhaçamento de uma tradição artística, determinada
pela instituição do novo diante de ideais progressistas, da lógica “marco zero”, “tabula rasa”.
Concepções estas presentes tanto nos discursos expressos nos processos de construção e
reconstrução do Museu de Arte Moderna quanto nos manifestos das principais vanguardas
históricas do início do século XX, que determinaram uma narrativa legisladora dos caminhos
da história da arte moderna e que compuseram grande parte do seu acervo inaugural do
Museu.
As intencionalidades do “caráter destrutivo”, desenvolvidas por Benjamin [1931] e
interpretadas por Andrew Benjamin e Peter Osborne (1997, p. 13), identificam a alegoria, a
fotografia, a montagem e a consciência do homem histórico como “elementos destrutivos”
significantes para a compreensão do presente “como local da experiência histórica”. Enquanto
a alegoria reconfigura os significados dos símbolos, a montagem quebra o curso da narrativa
linear e a consciência do homem histórico; nas palavras de Benjamin, produz “uma
desconfiança insuperável na marcha das coisas”, enquanto que “a fotografia destitui a aura do
objeto.” Nesse ponto, o “caráter destrutivo” benjaminiano diferencia-se da acepção moderna
pautada naquilo que se pretende verdadeiramente novo como signo heroico, vitorioso,
rompendo com modelos do passado para a direção de uma aposta futura. O “caráter
destrutivo”, do qual se refere, dissocia-se da relação temporal passado-presente-futuro, pois se
realiza no interior de uma concepção do tempo presente, do agora, agora (jetztzeit) marcado
por uma descontinuidade na ordem temporal. O “caráter destrutivo” da imagem provoca
novos “inconscientes óticos” sobre a própria historiografia da arte quando representada (ou
em parte encerrada) na formação histórica de um museu de arte moderna.

265
O “anjo da história” de Benjamin [1940] se esforça em deter o avanço fatal do
progresso (“Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os
destroços.”)293, porém, em nossa alegoria, a catástrofe, a destruição do MAM RJ é parte do
que constitui a própria história do qual está inserido. A “meninada” observa os resíduos desse
“ícone” modernista e as consequências geradas por um extenso projeto político e ideológico
em culminância a uma anistia mais conciliatória do que comprometida, em que preparou sua
“saída” por meio do apagamento e/ou esquecimento dos vestígios que se apresentam ainda em
evidência e em curso.

3.4 Reconstrução com reformulação?

As ações reconstruir, reformular, refazer, reformar, restaurar ganharam diferentes


interpretações no pós-incêndio. Notamos nos arquivos que o sentido dado à palavra
“reconstrução” estava associado inicialmente à recuperação física, priorizando a reforma dos
espaços de exposição. Em alguns documentos, notamos o uso do verbo restaurar que estaria
associada ao gesto de refazer, portanto, reconstituir o Museu. Mas uma pergunta nos veio à
tona: restaurar qual MAM, ou melhor, qual imagem do MAM?
A Comissão de Reconstrução do MAM RJ foi composta por um conselho formado:
pela diretora executiva Heloísa Lustosa; Niomar Moniz Sodré, presidente de honra do Museu;
o diretor financeiro Leonidas Bório; o diretor executivo adjunto Septimus de Mendonça
Clark; entre outros conselheiros. Também foi criada uma Comissão de Museologia composta:
pelo crítico de arte Mario Pedrosa; Edson Motta, então diretor do Museu Nacional de Belas
Artes; Karl Heinz Bergmiller, coordenador do IDI; Carlos Flexa Ribeiro; e também
acompanhada por Niomar Moniz Sodré.
Na perspectiva de Sodré, a única e exclusiva preocupação era “ressuscitar o cadáver”.
Ao retornar de Paris, sua presença “quase mitológica” legitimada pela história de
investimentos e conquistas como fundadora e diretora executiva do MAM RJ, concede ao
Embaixador Hugo Gouthier plenos poderes na organização, no planejamento e execução dos
trabalhos para reconstrução do Museu.294 Sodré destitui os direitos da diretora executiva
Heloisa Lustosa quanto às tomadas de decisões no processo de reconstrução, que permanece

293
BENJAMIN, 1987, p. 226.
294
O convite ao embaixador se deve ao reconhecimento pela restauração e aquisição do ostentoso Palácio
Pamphilj na década de 1960, atual embaixada do Brasil em Roma.
266
apenas com a função de coordenadora da parte cultural: “[...] a Sra. Heloisa Lustosa está hoje,
entretanto, desautorizada a tomar qualquer iniciativa sem prévio consentimento da Comissão
de Reconstrução [....].”295 Este cargo praticamente invalidou sua participação, pois as
atividades culturais que antes ocorriam, em sua maioria, no Bloco de Exposições passariam a
acontecer em teatros e instituições culturais externas ao MAM RJ e só retornariam quando o
teatro fosse construído com base no projeto original do arquiteto Eduardo Affonso Reidy. 296
Diversas campanhas publicitárias foram criadas na tentativa de sensibilizar o leitor
(estudantes, artistas, empresários e pessoas em geral) a doar uma quantia em dinheiro,
equipamentos, materiais e, até mesmo, obras de arte como forma de apoio a um bem
“aparentemente” comum a todos. Os apelos vinham descritos em slogans, tais como “Não
podemos deixar o Museu morrer”; “Faça alguma coisa para reconstruir a biblioteca do
MAM”, associada à imagem da pintura Mulher chorando, de Portinari297; “Participe do
esforço nacional para a reconstrução do MAM 298; “Transforme numa ajuda tudo o que você
sentiu com o incêndio no MAM”299, veiculado à reprodução da assinatura de Picasso e à
imagem de um cheque com a seguinte frase: “Sua assinatura também é muito importante para
a cultura brasileira: ajude a reconstruir o MAM.” 300
A estratégia inicial da Comissão de Reconstrução do Museu era reunir uma verba
significativa para iniciar as reformas estruturais e restaurar rapidamente a imagem dos trinta
anos perdidos do MAM RJ no incêndio. A imagem da obra Mulher Chorando (1942), de
Portinari, foi reproduzida algumas vezes pela imprensa. E como grande parte das campanhas
publicitárias, as imagens do acervo foram deslocadas dos seus contextos originais com intuito
de construir outros sentidos para o contexto do pós-incêndio. Era preciso, naquela etapa,
provocar um sentimento de consternação, de sensibilidade e solidariedade nacional e,
sobretudo, produzir uma atmosfera de dramaticidade às perdas inestimáveis do acervo e de
todos os recursos materiais – além de se intensificar, por meio de divulgação de imagens do
acervo perdido, a importância de restituí-lo. Se antes a apresentação do acervo não era
colocada como prioridade na concepção do Museu, haja vista o contraste da modesta coleção
com a formulação do projeto monumental para a sede definitiva, após o incêndio, essa prática

295
Niomar Moniz Sodré dá o tom na reconstrução do MAM. Jornal do Brasil: Rio de Janeiro, 16 jul. 1978.
Acervo MAM Rio.
296
Sobre a construção do teatro do MAM, ver o livro “O projeto como patrimônio não construído: Teatro do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro” (2013) de Rafael Barcellos.
297
Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 07 ago. 1978. Acervo MAM Rio.
298
Faça alguma coisa pelo MAM. Jornal do Commercio: Rio de Janeiro, 25 ago. 1978. Acervo MAM Rio.
299
O Globo: Rio de Janeiro, 21 jul. 1978. Acervo MAM Rio.
300
Revista American Business, set. 1978. Acervo MAM Rio.
267
ganha maior acento. Posto isso, a primeira estratégia da Comissão de Reconstrução foi
reforçar a sua imagem enquanto museu, embora algumas divergências de opinião, relativas ao
modo como o acervo seria reconstruído, foram postas a público nessa fase.
Desde a sua fundação, a menção à proposta de se tornar um “museu vivo”, próximo à
ideia de um centro cultural, não cabia mais ao contexto pós-incêndio, pois um dos argumentos
justificados pela não continuidade desse modelo foi considerar o uso deliberado dos seus
espaços para experimentalismos. A segunda etapa das reformas estruturais foi marcada por
preocupações em relação ao papel que o MAM RJ desempenharia na cidade do Rio de
Janeiro. Questionamentos a respeito da formação do acervo, do fazer artístico e da absorção
da prática artística no planejamento cultural do novo Museu foram intensamente discutidos,
tendo a imprensa como preceptora desse debate.
O incêndio foi amplamente divulgado e discutido nos principais veículos de
comunicação. As causas, as consequências, os testemunhos, os depoimentos, as medidas de
apoio e as etapas da reconstrução foram noticiadas quase diariamente pelos jornais, que
atualizavam os leitores familiarizados com as questões artístico-culturais, além daqueles que
tomavam consciência pela primeira vez da existência do próprio Museu. Os dilemas, os
embates, os questionamentos de como reconstituir o acervo e recuperar os espaços do Museu
destinado à prática experimental ganhavam uma dimensão pública. Com o episódio do
incêndio, a imprensa, diversas vezes, sob o tom da crônica e até da anedota, convocava os
leitores a tomar conhecimento da fragilidade organizacional e executiva do MAM RJ.
Colocava em evidência a instituição do ângulo da gestão, das históricas dificuldades
financeiras, enfim, da sua política institucional e não das atividades culturais que promovia ou
absorvia.
A gravidade gerada pela perda instantânea do patrimônio artístico e a relevância dos
seus espaços de ativação das práticas experimentais motivaram extensos debates entre os
gestores, a museologia, a crítica de arte e os artistas, cada qual segundo os seus interesses
próprios. Porém, o maior trauma impresso pelos jornais não foi diante da perda dos espaços
de experimentação, mas do acervo, da arquitetura de Reidy e do paisagismo de Burle Marx.
Referenciais estes intensamente divulgados à época em que se defendia a construção da sede
definitiva do Museu no Aterro do Flamengo.
A divulgação da imagem do Salão de Exposições devastado pelo fogo pôs em cheque
a sua própria continuidade a ponto de se cogitar a demolição do prédio. Até certo momento,
acreditava-se que a estrutura do Bloco de Exposições estava condenada por causa de uma

268
fissura entre o segundo e terceiro andar. O projeto de um novo prédio chegou a ser esboçado
pelo arquiteto Yona Friedman, que propôs na década de 1960 o manifesto Mobile
architecture, acentuando a importância do papel do arquiteto como construtor. A demolição
física não foi à frente, mas se destituiu a ideia de museu como centro cultural, ou seja, co mo
um lugar de experimentações como vinha ocorrendo desde a década de 1950 com a atmosfera
laboratorial dos ateliês no Bloco Escola.
Em paralelo às campanhas financeiras priorizadas pela Comissão de Reconstrução, um
grupo de artistas e críticos reuniram-se na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e criaram a
Comissão Permanente para a Reconstrução do MAM sob a coordenação de Mario Pedrosa. O
objetivo era realizar assembleias populares com o intuito de “sensibilizar a todos” sobre a
gravidade do incêndio e alertar a opinião pública sobre o descaso com o patrimônio artístico-
cultural do país. Para que não ficasse restrito às elites, Pedrosa enfatizava a importância da
adesão popular, sobretudo, do público que frequentava o Museu: “a participação popular é
fundamental para mostrar a preocupação da coletividade com a extraordinária importância do
MAM para o Rio”.301 O crítico de arte discordava das campanhas de cunho financeiro
incentivadas pela Comissão de Reconstrução ao constatar “[...] que não é o dinheiro do povo
que vai possibilitar a sua restauração.”302 Reconhecia na participação simbólica da população
a força de engajamento necessário à reformulação coletiva e conceitual do MAM RJ e,
sobretudo, “restaurar a própria imagem do Rio como capital do país.” 303
Para a Comissão Permanente de Reconstrução, o movimento de restauração era a
escolha mais coerente, em virtude do valor artístico e, sobretudo, simbólico do Museu para a
cidade do Rio de Janeiro, que sempre reivindicou seu protagonismo como capital cultural do
país. Pelas vozes da Comissão de Reconstrução do MAM, os termos “restauração” e
“reforma” foram constantemente utilizados para nomear os resultados técnicos, porém ambos
ganhavam um sentido negativo para muitos artistas e críticos de arte sobre a retomada dos
estatutos fundadores. Para os artistas, o projeto da reforma política e cultural do Museu
divergia do sentido dado pelos seus administradores. Nas palavras da Comissão Permanente,
o Museu ressurgiria das cinzas através da presença dos “trabalhadores da cultura e da arte”,

301
Mobilização popular para reerguer o MAM. Folha de São Paulo: São Paulo, 10 jul. 1978. Acervo MAM Rio.
302
A recuperação do MAM poderá custar Cr$150 milhões. O Estado: Florianópolis, 10 jul. 1978. Acervo MAM
Rio.
303
O esforço de todos para restaurar o Museu de Arte do Rio. Diário Popular: São Paulo, 10 jul. 1978. Acervo
MAM Rio.
269
renovado e apto a “corresponder às necessidades e aspirações do mundo atual” na esperança
que o “artista reencontre sua casa de produzir e de criar.”304
Havia notadamente dois discursos sobre as consequências do incêndio no MAM RJ.
De um lado, o pragmatismo e austeridade da Comissão de Reconstrução do MAM formada
pelos seus gestores e, de outro, a posição crítica e problematizadora da Comissão Permanente
para a Reconstrução, composta por artistas, intelectuais e profissionais da cultura. Parece-nos
que a segunda Comissão utilizou a palavra “permanente” com o intuito de realizar um debate
crítico e contínuo sobre toda a trajetória do Museu, acompanhar a reformulação do programa
institucional e demarcar um posicionamento político nesse processo. Contrariamente a essa
posição, o presidente do MAM RJ, Ivo Pitanguy, concentrava-se apenas na reforma e
modernização estrutural do edifício. Considerava essa fase responsabilidade única e exclusiva
da Comissão “oficial” que contou apenas com a presença simbólica de Mário Pedrosa. Na
perspectiva do cirurgião plástico, a reformulação conceitual do MAM RJ e todo o debate que
esse processo arregimentaria deveria ser colocado em um segundo momento, alertando que
“todos aqueles que querem ter uma política sobre uma estrutura a ser construída, devem se
empenhar ativamente, primeiro, nessa construção”.305
O empenho na construção mencionado por Pitanguy se refere à reforma do Museu em
seu sentido estrito, restringindo à doação de obras de arte como o único modo de participação
dos artistas. Essa situação deflagrava uma contradição entre os artistas e a instituição, pois, até
o incêndio, o MAM RJ era reconhecidamente um espaço de experimentação, onde
importantes iniciativas ocorreram nos seus domínios. A história do Museu se confundia com o
percurso de muitos artistas que compuseram a escrita de uma história da arte no Brasil. E essa
influência não estava restrita à doação de obras, mas à prática em si. Os espaços do Museu
geraram reconhecidamente experiências artísticas e uma produção discursiva que influenciou
o modo como a história da arte contemporânea se circunscreveu.
Mário Pedrosa reivindicava entre os artistas a colaboração na reconstituição do acervo:
“embora haja uma discussão, no meio, sobre se o artista deve ou não doar suas obras a
museus. Pessoalmente acho que deve.” 306 Sua opinião vinha de encontro às experiências do
Museu da Solidariedade Salvador Allende (1972), cujo acervo inicial foi formado por doações

304
Comitê Permanente para Reconstrução do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Assembleia popular
no MAM em 16 de julho de 1978. Acervo MAM Rio.
305
Na reconstrução do MAM, as mesmas contradições. Folha de São Paulo: São Paulo, 30 jul 1978. Acervo
MAM Rio.
306
A recuperação do MAM poderá custar Cr$150 milhões. O Estado: Florianópolis, 10 jul 1978. Acervo MAM
Rio.
270
de artistas de diversos países alinhados à posição socialista do governo. Contexto que não era
possível no Brasil ainda sob a vigília da ditadura militar que proibiu, inclusive, a ida de
muitos artistas ao Chile, a fim de colaborar com o projeto. Em seu discurso de inauguração,
Pedrosa falou da importância da formação do acervo, que naquele contexto representava a
permanência do museu como um “monumento de solidariedade cultural” e de
representatividade das expressões do socialismo que se manifestava não propriamente no
conteúdo das obras, mas no “sentimento de fraternidade” impulsionado pelas suas doações.
A Comissão de Solidariedade ao MAM, formada por artistas, críticos de arte e
diretores de entidades culturais de São Paulo, acreditava que o debate sobre a formação do
acervo esbarrava na prática do Museu que se configurou como um importante “centro de
cultura”. Nas palavras de Aracy Amaral, à época diretora da Pinacoteca do Estado de São
Paulo: “a função de um centro de cultura dentro da sociedade é muito grande e se ficarmos
restritos apenas à recuperação de seu acervo, estaremos fugindo dessa perspectiva maior.” 307
Perspectiva esta que se somava a de Radha Abramo, jornalista e historiadora da arte, ao
considerar que a proposta de reconstrução do Museu não deveria assumir um “caráter
paternalista” solicitando doações de obras de arte, mas arrecadar fundos para suas aquisições
junto aos artistas, valorizando, assim, sua atuação profissional. 308
No Rio, o artista Adriano de Aquino, que passaria a integrar o Conselho Cultural do
Museu no início da década de 1980, considerou que a atuação dos artistas até o incêndio
mostrava-se incipiente: “a participação dos artistas era esporádica e sujeita a exercícios de
poder ou então se desenvolvia à margem, em discussões na cantina – e isso não garante o
espaço.” Questionava a função do Museu como “abrigo ao trabalho sacralizado, às
experiências já consagradas da arte moderna no Brasil” e reclamava seus espaços para a “arte
nova”. 309 Seu interesse, assim como de outros artistas, fundava-se nas propostas de
institucionalização definitiva da participação dos artistas e intelectuais na gestão do Museu,
profissionalização dos setores ligados à conservação, montagem, aquisição das obras e criação
de um setor de documentação, divulgação e produção de conteúdo. Sobre a formação de um
novo acervo, reivindicava o estabelecimento de critérios estéticos e históricos para aquisição
de obras e “não de mercado” como vinha ocorrendo.310

307
Apoio dos artistas de São Paulo. Folha de São Paulo: São Paulo, 15 jul 1978. Acervo MAM Rio.
308
Idem.
309
O MAM está de volta com a promessa de vida nova. O Globo: Rio de Janeiro, 15 mar 1981. Acervo MAM Rio.
310
O MAM está de volta com a promessa de vida nova. O Globo: Rio de Janeiro, 15 mar 1981. Acervo MAM Rio.
271
No pós-incêndio, a presença da crítica de arte também foi questionada quanto à sua
participação nas atividades de reconstrução do Museu no que se refere à reformulação do seu
acervo. Acusada pela nota de Ibrahim Sued de “puxar a sardinha para a sua brasa”, o
jornalista das colunas sociais considerava que as obras doadas para o Museu deveriam ser
avaliadas por uma comissão de “homens capazes”. Mario Barata, por sua vez, enviou uma
carta aberta à imprensa, explicitando a importância do papel da crítica na formação das
instituições culturais, “com idoneidade, capacidade e responsabilidade reconhecidas em
muitos países”, da participação dos artistas no planejamento da política cultural do MAM,
reiterando a preocupação “do trabalho cultural vivo e eficaz a ser desenvolvido.”311 Para o
artista Carlos Vergara, a questão não se concentrava apenas na doação de obras para a
constituição do acervo, mas na participação dos artistas desde o início da elaboração dos
critérios do processo de reconstrução, colaborando para a conceituação e definição do Museu
e, posteriormente, para o seu próprio funcionamento.312
A firme negativa em admitir a presença da crítica e o dos artistas na reconstrução do
MAM RJ se estendeu também a funcionários e chefes de departamento. A ausência de
qualquer representante do Museu na Comissão, exceto a presidência, “que poderia reinar do
que tanto gosta e bem merece”313, evidenciava a implantação de um programa institucional
defasado e controverso. Tal como fazer “tábula rasa”, o projeto de reconstrução destituiu
desse processo quase todos os sujeitos que ao longo da história do MAM contribuíram para
formação do seu patrimônio e, consequentemente, da sua memória. Por que subtraí-los se a
própria noção de museu é definida também pelos seus contributos? O que significava a perda
de prestígio dos artistas e de parte da crítica de arte nesse processo?
Além da captura das imagens do Museu devastado pelo fogo e pela água, é possível
constatar através das imagens e do áudio do filme S.O.S. MAM (1978), de Walter Carvalho, a
comoção em que um manifesto escrito pela Comissão Permanente de Reconstrução e lido pela
atriz Bibi Ferreira causou no público que bradava palavras de apoio ao conteúdo do texto. As
denúncias não só revelavam o descaso dos órgãos públicos, mas o abandono do patrimônio
artístico, cultural, histórico e ambiental em todo território nacional.
A expressão “O seu, o nosso Museu de Arte Moderna” iniciava o manifesto que
denunciou não só as divergências internas do MAM RJ, mas as indicava dentro de um

311
Tribuna da Imprensa: Rio de Janeiro, 26 jul. 1978. Acervo MAM Rio.
312
Idem.
313
Manuscrito de Niomar Moniz Sodré em que expressa sua satisfação pela criação da Comissão de
Reconstrução do MAM. Rio de Janeiro, 05 dez. 1978. Acervo MAM Rio.
272
contexto nacional mais amplo: “[...] O tempo é de consternação, de contrição, de as classes
dirigentes olharem para dentro de si mesmas e ver o estado de pobreza em que se encontra o
seu país, o nosso país.” E segue sua leitura, por vezes interrompida por longos aplausos,
assobios e gritos em apoio a cada vírgula ali exposta que alertava: “[...] este é um país
povoado de gente que não tem amor à sua terra. Este é um país dirigido por gente muito
‘progressista’ que vê friamente sua flora, seus bosques e matas desaparecerem [...]”. 314
O teor das denúncias conquistava a adesão popular ao associar a imagem de destruição
do Museu ao estado de degradação que se encontravam diversas regiões do país em prol da
“marcha da civilização e do progresso”.315 A década de 1970 foi marcada pelo início de um
longo processo de desmatamento e exploração dos recursos da Amazônia. Desde a Era
Vargas, a colonização da floresta passou a integrar os interesses econômicos e políticos do
país, mas foi no período da ditadura militar que os incentivos à ocupação se intensificaram.
Com a criação do Programa de Integração Nacional e a construção faraônica da Estrada
Transamazônica, estima-se que em 1978 o desmatamento tenha chegado a milhões de
hectares e, consequentemente, diversas comunidades indígenas foram destruídas. 316
O manifesto apontava, ainda, denúncias a respeito dos recursos financeiros chegarem
às iniciativas artísticas e culturais “tardios e dispersos”, como “migalhas”, enriquecidos por
“gestos altruísticos”, “brilhos propagandísticos” repletos de “artifícios de retórica” e “rebarbas
de politicagem”. É notório, em alguns trechos, uma crítica que se estende a muitos museus,
mas que, de certa forma, apontava para o estado de degradação do panorama cultural nacional
como legado das elites brasileiras: “[...] por toda parte persiste uma doença aparentemente
sem cura, o mal do desinteresse, do desleixo, do amadorismo, do elitismo que nos vem
corroendo a prática geral e artística desde as origens.” 317
A escolha de Bibi Ferreira para a leitura do manifesto vinha com a energia, o vigor, a
força e a crítica de sua atuação na primeira montagem de Gota d'água (1975), escrita por
Chico Buarque e Paulo Pontes, que, naquele mesmo ano do incêndio, encerrava uma

314
Comitê Permanente para Reconstrução do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Lido em assembleia
popular no MAM em 16 de julho de 1978. Acervo MAM Rio.
315
“No dia 15 de junho de1970, toda a área do Nordeste, atingida pela seca, foi declarada em estado de
calamidade pública, por decreto.” PEREIRA, Osny Duarte. A Transamazônica: prós e contras. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1971, p.129.
316
“[...] esquecendo o puro e simples assassinato através do envenenamento ou da bala, ´método muito
utilizado pelos antigos seringueiros ou colhedores de castanhas´, as modernas empresas, interessadas em lesar
e explorar os índios, usam de técnica sutil e sofisticada, de modo tão perfeito que ´quando os indígenas
acordam´ estão sem terras e sem riquezas, sujeitando-se então a trabalharem sob um regime quase que
escravagista, nas piores condições possíveis.” Rio de Janeiro, O Globo, 3 ago. 1970. (PEREIRA, 971, p. 182.)
317
Comitê Permanente para Reconstrução do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Lido em assembleia
popular no MAM em 16 de julho de 1978. Acervo MAM Rio.
273
temporada paulista. Mesmo sob as constantes ameaças da censura, o texto trazia em seu
prefácio a frase “Nossa tragédia é uma tragédia da vida brasileira” que, combinada ao roteiro
da peça, anunciavam as dores e as torturas focalizadas no contexto do Rio de Janeiro na
década de 1970.
O manifesto da Comissão Permanente também corroborava as denúncias da
museóloga Fernanda Camargo-Moro a respeito da necessidade de especialistas atuarem junto
à gestão dos museus, especialmente museólogos, que só garantiriam reconhecimento oficial
no início da década de 1980, de acordo com a regulamentação da Lei nº 7.287 de 18 de
dezembro de 1984.318 Foi através da imprensa que a museóloga, presidente no Brasil do
Internacional Concil of Museums (ICOM) na década de 1970, informou ter advertido o MAM
RJ dois anos antes do incêndio sobre a sua grave situação. Consta que em 1976 realizou, a
pedido do Ministro da Educação Ney Braga, um relatório sobre o estado de conservação de
alguns museus. Segundo a imprensa, a museóloga constatou que o Museu Histórico Nacional,
o Museu Nacional e o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro estavam em “completa falta
de segurança.”319 Como o MAM RJ não era uma instituição federal, o Ministério da Educação
e Saúde não incluiu o relatório sobre o MAM, cabendo à própria museóloga a tarefa de
encaminhá-la pessoalmente ao Museu.
Na década de 1970, os museus do Estado do Rio de Janeiro estavam sob a
responsabilidade da Federação Estadual de Museus do Rio de Janeiro (Femurj) e os museus
federais sob a jurisdição do Ministério da Educação e Cultura. O MAM RJ era uma instituição
administrada por entidades privadas, mas vinculado e dependente de recursos públicos. Com
o incêndio, outros problemas enfrentados por diversos museus como a falta de verbas para
administrá-los, carecendo de reformas nos prédios e reservas técnicas vieram à tona. Com
isso, a reconstrução do MAM RJ torna-se pauta pública e trazia consigo todos os outros
questionamentos relativos às políticas de incentivo destinadas à área das artes e da cultura.
A Comissão formada por artistas da Associação Brasileira de Artistas Plásticos
Profissionais (ABAPP) formulou um manifesto intitulado Reconstrução com Reformulação,
que foi lido pelo cartunista Ziraldo. O texto defendia total responsabilidade do poder público
no financiamento da reconstrução do Museu, além de enfatizar a frustração dos artistas que
tiveram suas obras desaparecidas no incêndio: “Podemos avaliar muito bem o que representa
para um artista ver desaparecer o fruto do seu trabalho, produto de seu conhecimento, de sua

318
Era a defesa do MAM. Virou uma manifestação política. Jornal da Tarde. Rio de Janeiro: 17 jul. 1978. Acervo
MAM Rio.
319
Diretoria do MAM foi avisada do perigo. O Dia: Rio de Janeiro, 11 jul. 1978. Acervo MAM Rio.
274
dedicação. A todos os nossos colegas, vivos e mortos, que perderam suas obras, juntamos
nossa solidariedade.”320 O texto elencava ainda algumas considerações da ABAPP sobre o
processo de reconstrução, destacando a “independência” do MAM como o seu maior
patrimônio, além de enfatizar a participação dos “produtores da cultura” na reformulação de
suas diretrizes, sobretudo no setor de Artes Plásticas. Por fim, consideravam a participação
dos artistas prioritária nesse processo. 321 A “independência” do MAM valorizada pela
ABAPP significava que o Museu não estava subordinado diretamente a nenhuma instituição
pública, ou seja, sua política institucional não obedecia a nenhuma normatização estabelecida
pelo Estado, embora dependente dos seus recursos como apontamos anteriormente.
A citação de Mario Pedrosa que abre este capítulo, “para criar um novo MAM, com
outras finalidades”, reconhecia que, face à catástrofe do incêndio, era preciso admitir que o
MAM RJ havia acabado. Alegava que não era possível reconstruir o Museu conforme fora
fundado, pois o contexto havia mudado: “a situação mudou, os tempos são outros, a filosofia
ou mesmo a ideologia que inspirou os que fizeram o Museu há mais de 20 anos atrás,
mudou.”322 Nessa perspectiva, formulou o projeto Museu das Origens que previa a integração
de cinco museus: Museu do Índio, Museu do Inconsciente, Museu de Arte Moderna, Museu
do Negro e Museu de Artes Populares, com um acervo composto por obras que
compreendessem o final do século XIX até as obras contemporâneas. Previu uma parte do
acervo que contemplasse salas permanentes às obras de artistas latino-americanos, europeus e
norte-americanos, além da ênfase à arte concreta brasileira e argentina. 323
Na intenção de se formular uma nova concepção de museu, mesmo prevendo ainda a
permanência de um “museu de arte moderna”, Pedrosa considerou a substituição conceitual
de “arte moderna” por “origens”. À primeira vista, substituir um museu de arte moderna por
um museu das origens nos parece dar continuidade ao mesmo projeto. Afinal, o termo
“origem” não compunha o léxico de um processo histórico de afirmação da arte moderna no
Brasil? Afinal, reconhecemos ao longo desta pesquisa que houve um interesse do MAM RJ
em construir uma imagem pautada por uma iconografia identificada com os elementos
nacionais, sem perder de vista o “que o outro tem de melhor”? 324

320
Dois documentos sobre o MAM. Tribuna da Imprensa: Rio de Janeiro, 19 jul. 1978. Acervo MAM Rio.
321
Idem.
322
O MAM está de volta, com promessa de vida nova. O Globo: Rio de Janeiro, 15 mar. 1981. Acervo MAM Rio.
323
Os tempos são outros: O novo museu terá cinco museus. É a proposta de Mário Pedrosa. Jornal do Brasil:
Rio de Janeiro, 15 set. 1978. Acervo MAM Rio.
324
DUARTE, 2013, p. 16.
275
A noção de origem remonta um “nacionalismo romântico” comprometido com a
formação de uma identidade brasileira colocado pelo pensamento estético de Debret e Porto
Alegre que, na perspectiva de Zílio (2010), produziu ressonâncias em alguns princípios
modernistas.325 Nesse ponto, a alegoria antropofágica oswaldiana colocada por Pontual nos
parece fazer sentido, pois, na forma de museu, a absorção dos cânones modernistas produziria
uma redenção do MAM RJ após o incêndio, além de mantê-lo, pelo menos no imaginário,
como representante oficial da arte moderna na cidade do Rio de Janeiro.
Pelas diferentes razões que envolviam a complexidade de implantação de um museu
desse porte, o projeto não foi à frente, certamente porque essa solução não interessava,
sobretudo, a uma política cultural movida por interesses privados, que priorizavam uma
“independência”, no sentido estrito do termo, das relações pessoais e da permanência de um
“local do secreto”, como se refere Thiago Ferreira (2018).326 Podemos também considerar
que, projetar o Museu das Origens, no contexto pós-incêndio, reforçava “a grande narração
sobre o país.”327 O Museu estaria responsável pela salvaguarda de uma interpretação da nação
que, musealizada, representaria um patrimônio cultural, cuja proteção dos acervos àquela
altura corresponderia às tentativas de reaproximação do Governo com a sociedade civil. 328
Convém mencionar que, antes mesmo de ocorrer o incêndio do MAM RJ, Pedrosa
planejou uma grande exposição junto a Lygia Pape sobre as culturas indígenas brasileiras
composta com peças do acervo do Museu Nacional, Museu do Índio, Museu Paraense Emílio
Goeldi, entre outras instituições nacionais e internacionais. Vislumbrou-se, inclusive, trazer o
manto Tupinambá integrante do acervo do Nationalmuseet (Copenhague/Dinamarca), que até
hoje é fruto de constantes embates e disputas de salvaguarda.
Lygia Pape vinha desenvolvendo uma pesquisa de mestrado no Programa de Pós-
Graduação em Filosofia da UFRJ, publicada sob o título Catiti-Catiti, na terra dos Brasis

325
Zílio, Carlos. A questão política no modernismo. In: FABRIS, Annateresa (Org.). Modernidade e modernismo
no Brasil. Porto Alegre, RS: Zouk, 2010, p. 105.
326
“[...] criar uma esfera de discursos apartada da discussão comum, que claramente tende a manter a
soberania de determinados grupos sobre assuntos de importância geral.” FERREIRA, Thiago. MAM Rio e a
construção discursiva do pós incêndio. Rio de Janeiro: Programa de Pós Graduação em Artes Visuais – UFRJ,
2018.
327
PEREIRA, 2016, p. 253.
328
“[...] Pedrosa chegou com inúmeros projetos culturais, entre eles fazer um levantamento de arte plumária
dos indígenas brasileiros a quem dedica muitos estudos atualmente e o de incluir um trabalho de formação
histórica do Brasil, que segundo ele, tem muita relação com o Brasil de hoje. [...] Seus planos incluem uma
viagem de objetivos culturais por todo o Brasil, muitos contatos com antropólogos, pois está por demais
interessado na cultura indígena ‘que está desaparecendo e pode desaparecer se o Brasil não cuidar dela com
desvelo’ afirmou.” Mario Pedrosa retorna ao Brasil, São Paulo, Folha de São Paulo, 9 out. 1977. Acervo MAM
Rio.
276
(1980), com base nas teorias de Pedrosa sobre o “declínio das vanguardas”, a crise da arte e o
estado de miséria como condutor da invenção. A artista considerou como “proposta otimista e
generosa” apontar os “deserdados da sorte, aos habitantes do terceiro mundo a tarefa de
assumir a liderança criadora, domínio das artes.”329 O título da pesquisa cita uma das últimas
linhas do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em que faz menção a um poema
indígena, “Catiti Catiti/Imara Notiá/Notiá Imara/Ipeju”, cujo significado pode ser lido por
“Lua nova, ó Lua Nova! Assoprai em lembranças de mim; eis-me aqui, estou em vossa
presença; fazei com que eu tão somente ocupe seu coração.”330 No texto, a artista afirma que
o ato de deglutir se tornou uma ação perene do “artista-inventor”. Menciona Hélio Oiticica,
cuja morte estava recente, que se interessava em compreender as heranças culturais contidas
na fabricação de objetos, barracos, numa “arquitetura espontânea” presente nas favelas, nas
periferias urbanas.
Em entrevista sobre a constatação das vanguardas nascerem cansadas, Pedrosa
reconhece que a revolução da criação está nas “virtudes das comunidades ainda vivas” e não
mais na produção artística determinada por valores de mercado. Foi um momento em que se
percebeu encantado pela Amazônia e pela diversidade das populações indígenas e toda a sua
complexidade cultural. Acreditava que o “fenômeno do progresso” ocorreria na defesa das
comunidades, considerando sua posição anticapitalista, pois “vive naturalmente daquilo que a
natureza, a vivência, a convivência lhe trazem, sem os grandes avanços tecnológicos.”
A criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em
meados da década de 1930, com foco na defesa e preservação de uma tradição, tinha como
principal missão conceber uma política que legislasse pelos valores históricos e artísticos
“autênticos” e “genuínos” da cultura brasileira. De modo a assegurar os processos de
modernização do país, o Serviço procurava habilitar o Brasil, “com a urgência requerida, a
defender os remanescentes de seu patrimônio artístico e dos monumentos da sua história.” 331
Com a participação de Rodrigo M. F. de Andrade na fase inicial de inauguração do MAM RJ,
este passava a integrar um amplo processo de formação de um ideário nacionalista, cuja noção
de patrimônio estava diretamente relacionada à base política e ideológica do Estado ao
conjugar modernidade e tradição.332 De Serviço, torna-se Departamento até que, com a crise

329
PAPE, Lygia Carvalho. Catiti-Catiti, na terra dos Brasis. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1980.
330
TELES, 1976.
331
ANDRADE, Rodrigo de Melo Franco de. Rodrigo e o SPHAN: coletânea de textos sobre patrimônio cultural.
1987, Rio de Janeiro: Ministério da Cultura, 1987, p. 49.
332
CHUVA, 2009.
277
econômica e política, inflação e endividamento externo do país na década de 1970,
transforma-se em Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). As
instituições culturais, especialmente àquelas que operavam com o conceito e a prática de
preservação, integrariam o Programa de Restauração e Preservação, em que apontariam quais
monumentos precisavam ser recuperados dentro do período que compreendia 1976 a 1979. 333
É desse contexto o relatório sobre o MAM RJ realizado pela museóloga Fernanda Camargo-
Moro.
O que estava em jogo quando Pedrosa idealiza um museu de “origens” considerando
sua dimensão plural? Seria um museu de arte, um museu histórico ou etnológico em que se
conjugaria diferentes interpretações do termo origem aos constructos primitivo, identidade,
inconsciente e moderno? E qual seria o papel de um museu de arte moderna nesse contexto?
Para Benjamin [1928], o termo origem “não designa o vir-a-ser daquilo que se origina,
e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção.” Na perspectiva de uma história
descontínua, o aspecto “originário” corresponde a uma categoria histórica, ou seja, assumir
uma origem implica um pensamento linear; logo, seu reconhecimento como “restauração e
reprodução”, por essas razões, apresenta-se incompleta e inacabada.334 Nesse ponto,
convergem os argumentos de Foucault [1971] sobre origem e história à luz das teses
nietzschianas, em que diz “procurar tal origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’,
o ‘aquilo mesmo’, de uma imagem exatamente adequada a si [...]”, acomodada a uma
concepção de “identidade primeira”. 335 E que, se há um estado de essência na construção
histórica das culturas, estas não se formam na pureza absoluta, mas da ironia, do desacordo,
das dissonâncias e dissidências.
Tem-se, portanto, um projeto de museu pautado por “origens”, refém de uma
colonialidade do saber, que refuta na sua concepção parte do pensamento artístico do entre
décadas 60/70, em que se procurou problematizar o lugar do museu historicamente
constituído pela manutenção de normatizações e códigos estéticos. Contraditoriamente ou
insuflado de um pessimismo arguto, Pedrosa descarta, nesse momento, a finalidade do museu
que ele mesmo conceituou, na década de 1960, como “casa de experiências”, como “luva

333
1970 a 2000: surge o conceito mais abrangente de bem cultural. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/80anos/noticias/detalhes/3581/iphan-de-1970-a-2000-%E2%80%93-fase%E-
2%80%9Cmodernista%E2%80%9D Acesso em: 16 mar. 2019.
334
BENJAMIN, 1984, p. 67.
335
FOUCAULT, 2011, p. 17.
278
elástica para o criador livre enfiar a mão” para pensar um museu constituído de acervos.336 De
um jeito ou de outro, os artistas não seriam incluídos nos projetos de reformulação do Museu.
Em vinte anos, as convicções de Pedrosa já haviam mudado. Seu retorno em 1977 veio
acompanhado, segundo Otilia Arantes (2004, p. 168), da palavra “decadência”. Seu uso
frequente em entrevistas e artigos revelava o modo como o crítico de arte respondia à crise
política e, sobretudo, à apatia da arte relegada a uma região secundária que aquele momento
parecia não ter saída ou mais sentido. As contradições ou ceticismos presente nesta fase final,
afinal, aproximava-se o ano da sua morte, suspenderam suas análises sobre as práticas
experimentais da década de 1960, considerando que a atividade experimental alcançou outros
campos, sobretudo o científico, ao contrário do artista que, na sua perspectiva, não sabe dirigi-
la, portanto, não soube explorá-la como deveria. 337
De todo modo, o projeto Museu das Origens representa uma aproximação institucional
do crítico de arte ao MAM RJ, pois todas as suas outras iniciativas foram mediadas, com
alguma distância, pela relação que mantinha com um grupo determinado de artistas e com
alguns gestores, como Niomar Moniz Sodré, por exemplo. O crítico de arte não integrou
nenhum conselho deliberativo, tampouco assumiu qualquer cargo no Museu. Sua proximidade
se deu apenas pela via intelectual, escrevendo textos para catálogos, artigos para jornais,
ministrando aulas e estando presente em aberturas de exposições. Inclusive foi no final da
década de 1940, mesmo momento da inauguração pública do Museu, que a sua tese Da
natureza afetiva da forma na obra de arte (1949) foi defendida para concorrência na
Faculdade Nacional de Arquitetura. As hipóteses para tal distanciamento no momento em que
o MAM RJ era fundado podem estar vinculadas à militância política de orientação marxista,
antiburguesa, vinculada ao Partido Comunista, ou sua defesa de uma autonomia da arte e, por
conseguinte, a defesa de uma atualização artística se apresentar ainda revolucionária diante do
modelo de museu, pautado pela Escola de Paris, que ainda se conformava na cidade.
Podemos verificar que parte da concepção do Museu das Origens de Pedrosa, em certa
medida, reverberou na constituição do atual acervo MAM RJ, com aquisições de obras de
artistas latino-americanos e a “representação” da arte brasileira da Coleção Gilberto
Chateaubriand com Paulo Herkenhoff, que sempre demonstrou afinidade às ideias do crítico
de arte. Responsável pela segunda fase de reconstrução do Museu, este informou, no relatório
Reconstrução 1985/1987, que o Museu vive uma fase de mudanças radicais, em que está

336
PEDROSA, Mario. Os Projetos de Hélio Oiticica. Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, nov. 1961.
(Catálogo de exposição). Acervo MAM Rio.
337
FILHO, 2013.
279
sendo avaliada a “própria história e a definição de novos padrões de eficiência e
responsabilidade” para recuperação dos seus espaços e, especialmente para formação do
acervo, considerando a cidade do Rio de Janeiro como o “principal centro turístico da
América do Sul”. Para tanto, nomeia de “solidariedade mundial” as doações de obras feitas
por artistas, colecionadores, galeristas, instituições brasileiras que colaboraram para a
formação da “mais completa coleção de arte brasileira do século XX”, além das doações
internacionais negociadas com a Henry Moore Foundation, Pavillon Le Corbusier, Centro de
Arte y Comunicación (CAyC), entre outras instituições.
A imagem do MAM RJ àquele momento estava sendo veiculada sobre uma expressa
“consciência museológica” como parte de um programa de recuperação total. Em seu relato,
Herkenhoff reconhece que o Museu foi no Brasil “o maior espaço de liberdade” garantido a
um grupo de artistas e, ao mesmo tempo, foco de resistência das importunações da “polícia
política dos vinte anos de uma ditadura recente.” O uso do verbo no passado anunciava que a
participação dos artistas nos processos de reconstrução do Museu, de fato, não viria a se
confirmar, pois já a localizava em uma relação espaço-temporal passada. Isso significava que
os interesses do novo MAM RJ estariam concentrados na sua história com o recorte de uma
práxis artística que se realizava sob os seus domínios, ou nas próprias palavras do Museu,
como parte “dos nossos movimentos artísticos”. Aqui, leiam-se as iniciativas cariocas, como a
criação do Grupo Frente, o Neoconcretismo, a autonomia do Ateliê de Gravura, a vanguarda
experimental presente na Nova Objetividade Brasileira e nas mostras Opinião 65 e 66, além
propriamente os Domingos da Criação e a Área Experimental. 338

3.5 Um outro MAM

Embora o MAM RJ tenha reaberto imediatamente após o incêndio e realizado diversas


campanhas para reconstrução da Coleção, é a partir da década de 1980, na gestão de
Herkenhoff que o Museu retoma uma política de aquisição com a intenção de se desenhar
uma historiografia da arte, nacional e internacional, através da seleção de obras para
composição do acervo. Para tanto, inaugurou em 1981 a exposição Do Moderno ao
Contemporâneo339 (considerada a maior mostra realizada no MAM RJ após o incêndio),

338
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Caderno de Atividades, 2012.
339
Fundação Getúlio Vargas. O Museu de Arte Moderna renasce das cinzas. Informativo, ano 13, jun. 1981.
Acervo Documentação MAM Rio.
280
composta por obras da Coleção Gilberto Chateaubriand com curadoria de Wilson Coutinho e
Fernando Cocchiarale. As obras apresentavam uma visão panorâmica da arte brasileira
através da seleção de artistas do modernismo até as produções contemporâneas recém-
adquiridas pelo colecionador. Essa iniciativa apontava, segundo os jornais, para uma
retomada otimista do espaço de convivência do público junto ao Museu, além de preanunciar
a “doação” de quatro mil obras do colecionador ao acervo.340
O atual acervo de artes visuais do MAM RJ é composto por três coleções, somando
cerca de dezesseis mil obras entre pinturas, gravuras, esculturas, desenhos, instalações e
mídias contemporâneas. Desde 1993, em regime de comodato, conserva grande parte da
Coleção Gilberto Chateaubriand exposta permanentemente no Salão de Exposições do Museu.
E, a partir de 2005, abriga a Coleção de fotografias Joaquim Paiva, também sob o mesmo
regime, sendo exposta em 2011 em uma mostra que procurou apresentar a relevância da
fotografia e do colecionismo. A Coleção MAM conta com cerca de seis mil obras, sendo que
se estima que cerca de trinta por cento desse conjunto é composto por obras que sobreviveram
ao incêndio de 1978, dentre algumas recuperadas e outras que ainda aguardam restauração. Os
outros setenta por cento foram adquiridos até o presente momento por meio de doações de
artistas, colecionadores, familiares, além da captação de recursos para aquisição de obras
através de órgãos de fomento, empresas públicas e privadas. 341
Em uma entrevista realizada por Cocchiarale, Herkenhoff, à época curador do Museu
de Arte do Rio, falou sobre a atuação e a missão de um museu no atual contexto da cidade do
Rio de Janeiro. Afirmou que é preciso pensar sobre o lugar da instituição museu na vida
simbólica da cidade. E identifica uma crise no mundo simbólico, sobretudo nos meios de
comunicação, e que afeta diretamente o papel da arte na cultura de imagens. Sinaliza com
muito pesar que a cidade “não está colecionando há algumas décadas” e coloca como uma
necessidade que é preciso “colecionar para o Rio de Janeiro”. Argumenta sua constatação
com a definição tradicional de museu que se propõe a “reunir universos de bens simbólicos
que façam sentidos estando juntos.”342
Ciente da escassez de obras modernistas que outrora compunham a Coleção MAM,
em seu projeto de reconstrução do acervo, Herkenhoff realizou uma série de campanhas junto
340
Sobre a Coleção Gilbert Chateaubriand figurar-se como uma solução para a retomada do MAM RJ após o
incêndio de 1978, ver o detalhamento deste período na dissertação O MAM Rio e a construção discursiva do
pós-incêndio, de Thiago Vinícius Ferreira pelo PPGAV/UFRJ.
341
Museu de Arte Moderna. Caderno de Atividades, 2012.
342
Entrevista realizada para o Programa “Minutos de Arte”: vídeos com entrevistas inéditas com curadores e
artistas visuais, nas principais exposições e instituições culturais da cidade. Disponível em:
http://vimeo.com/65203079 Acesso em: 23 de mar. de 2017.
281
a diversas empresas com o objetivo de restituir os principais nomes da arte moderna brasileira
com ênfase nas primeiras décadas do século XX. Entre os citados da “lista de desejos”
estavam Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Lasar Segall,
Volpi, Ismael Nery, o “período brasileiro” de Arpad Szènes, Zina Aita, John Graz e
Brecheret.343
Além das pinturas e esculturas, inclui também o interesse por desenhos de Flávio de
Carvalho e as gravuras de Oswald Goeldi, Axl Leskoschek e Lívio Abramo. Na lista insere
nomes como os de Antonio Dias, Daniel Senise, Dudi Maia Rosa, Eduardo Sued, Lygia Pape,
Sérgio Camargo, Amilcar de Castro, José Resende, Tunga, Rubens Gerchmann, Cildo
Meireles, Mira Schendel, Waltercio Caldas, Franz Weissmann, Maria Leontina e Tomie
Ohtake. Afirma no relatório de 1985 a 1987 que centenas de obras foram doadas por artistas,
colecionadores, galeristas e empresários formando “a mais completa coleção de arte brasileira
do século XX.”344 Além do acervo brasileiro, lista uma série de instituições que colaboraram
com doações de obras de artistas internacionais. Em alguns documentos, desenvolve extensos
argumentos com base em análises formais, considerando a importância histórica de um museu
de arte moderna investir na aquisição de uma obra do artista Yves Klein, por exemplo, para a
composição do seu acervo. Contudo, obra desse artista não integrou o acervo.
Segundo o relato de Irma Arestizabal345, que assumiu a organização da Coleção MAM
e da Coleção Gilberto Chateaubriand na gestão de Herkenhoff após o incêndio, o acervo tem
por objetivo prioritário oferecer ao público visitante uma dimensão historiográfica da arte
através de um núcleo dominante, “um grupo restrito de obras, mais representativas do acervo,
que ficará em exposição permanente, se convertendo em um símbolo do museu com o que se
identificará tanto ao edifício de Reidy [...], e os jardins de Burle Marx [...].”346 Para
Arestizabal, o Museu organizaria seu acervo a partir de um “centro” inspirado pelo utópico
projeto Museu do Crescimento Ilimitado (1929), de Le Corbusier, cujo percurso se
desenvolveria em torno de um núcleo podendo crescer infinitamente. Entende-se que, a partir
de um grupo de obras referenciais, o acervo poderia ser composto de acordo com uma

343
Carta datilografada e assinada por Paulo Herkenhoff, agradecendo o interesse da empresa Crefisul em
colaborar com a formação do acervo do MAM Rio. Rio de Janeiro, 03 dez. 1987. Acervo MAM Rio.
344
Idem.
345
Crítica de arte e professora da Universidade de Buenos Aires, foi curadora das Coleções do Museu de Arte
Moderna Rio de Janeiro no período de 1986-1990, mas consta em alguns documentos a gestão do
Departamento de Exposições do MAM na década de 1970, pois identificamos seu nome em documentos
internos relativos a empréstimos de obras para compor exposições do acervo em 1975. Arestizabal também foi
diretora do Centro Cultural da Pontifícia Universidade Católica de Rio de Janeiro entre 1980 e 1992.
346
ARESTIZABAL, Irma. As Coleções do MAM/RJ. Segmentum Artis, ano I, nº 1, 1987. Acervo MAM Rio.
282
perspectiva contemporânea de “argumentos paralelos e complementares” em consonância à
estrutura arquitetônica do Museu – o ajuste harmônico de linhas horizontais e verticais. 347
As diferenças entre coleção e acervo estão no modo como se elegem os objetos que, ao
formarem um determinado conjunto, poderão integrar o perfil de uma instituição. Qualquer
reunião de objetos, segundo valores de cunho emocional, estético, religioso, pedagógico, pode
ser nomeado como coleção privada ou pública, de uma instituição ou de um indivíduo. A
formação de uma coleção em uma instituição implica entre outras atribuições o envolvimento
com o projeto museológico e um estudo contínuo das obras, cuja interação determinará a
característica de um acervo. Maria Cecília Lourenço (1999, p. 13) aproxima a palavra acervo
da palavra latina cervix, de coluna cervical, por onde passa a medula espinhal que está no
comando dos movimentos e sensações de um corpo. A cervix, como estrutura essencial,
conduz uma relação dinâmica entre o corpo e o ambiente, assim como percebe a função de um
acervo no “corpo” da instituição museológica, como um “processo cotidiano de
reconhecimento e de formulação de sentidos”.
Na concepção de colecionamento de Herkenhoff, a cervix do MAM RJ estruturava-se
a partir de um conjunto de obras representativas de artistas enquadrados em uma determinada
narrativa histórica da arte nacional e internacional. O acervo do Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro seria reconstruído a partir de uma concepção de museu histórico, cuja principal
função social seria preservar aquilo que poderia estar ameaçado de deterioração. Essa
concepção contraria a observação de Lygia Pape e outros artistas que ocuparam o MAM RJ
sobre museus de arte moderna funcionarem como “simulacros” de museus de história natural,
em que se pretende conservar permanentemente modelos e padrões estéticos. 348
O principal objetivo na reconstrução do MAM RJ era transformá-lo em uma
“enciclopédia visual brasileira”, ampliando de todas as formas possíveis seu acervo com
coleções de “artes plásticas, artes decorativas, livros, fotografias e cinema.” 349 Segundo
algumas notas da imprensa, o Museu esteve sob o “impacto físico e psicológico” do incêndio
até 1985, ano em que se instaurou uma dinâmica de reestruturação, cuja definição tradicional
de museu foi recuperada. Segundo Herkenhoff, os espaços do MAM RJ durante muito tempo
foram utilizados para diversos fins e o incêndio acabou ocorrendo em decorrência do uso
equivocado de suas instalações. Nas suas palavras: “a recuperação global passou

347
ARESTIZABAL, Irma. As Coleções do MAM/RJ. Segmentum Artis, ano I, nº 1, 1987. Acervo MAM Rio.
348
PAPE, Lygia Carvalho. Catiti-Catiti, na terra dos Brasis. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1980.
349
ARAÚJO, Arthur. Um novo MAM para uma nova década. O Globo: Rio de Janeiro, 09 jan. 1990. Acervo MAM
Rio.
283
principalmente pelo resgate da definição de museu como instituição que conserva, estuda e
expõe bens culturais. Aquele que não faz isso, na verdade, está alugando uma sigla, é um
pseudo-museu.”350
Empenhado em ampliar o acervo do MAM RJ, elaborou o Projeto Fênix a partir dos
resíduos do incêndio. A proposta contava com um grupo de artistas “selecionadíssimo” que
elaboraria uma obra com base no tema e nos vestígios gerados pelo incêndio. Segundo seu
projeto, a intenção não era realizar uma apropriação do tema ipsis litteris, pois seu maior
interesse era operar o mito do renascimento, através da renovação e da reconstrução como
superação nas adversidades. O plano simbólico da reconstrução, o fogo como elemento
construtivo, a transformação dos escombros, dos vestígios e resíduos em outras possibilidades
artísticas formaram os pontos definidores do projeto, que previa ainda o uso de “restos físicos
de obras de arte” que, ao “retornarem à condição de matéria primordial”, poderiam ser
utilizados para a elaboração de uma nova obra. 351
Dos seres imaginários da mitologia grega, o mito da Fênix é uma das histórias que
popularizou a noção de morte como renascimento. Algumas interpretações sobre a alegoria da
Fênix sugerem a existência de uma ave, semelhante a uma águia, de plumagem dourada e em
tons carmesim que teria renascido das suas próprias cinzas. A imortalidade, os ciclos naturais
de vida e morte, o renascimento e a existência de uma vida pós-morte associados ao mito são
reconhecidos como sinônimos de persistência, transformação e recomeço. O símbolo da Fênix
foi utilizado como mote reflexivo para discutir, segundo Paulo Herkenhoff, “definitivamente
o incêndio.”352
A lista de artistas internacionais para o Projeto contava com os italianos Gilberto Zorio
e Giuseppe Spagnuolo, os franceses Alain Jacquet, Ben Vautier, Daniel Buren e Christian
Boltanski, a alemã Rosemarie Trockel, o português Leonel Moura, os americanos Keith
Sonnier e Joseph Kosuth, o austríaco Christian Attersee, o suíço Martin Disler, e, “sem perder
de vista”, Christo, Richard Serra e o fotógrafo Henri Cartier-Bresson.
Os artistas seriam convidados a vir ao Rio de Janeiro para produzir uma obra que
posteriormente seria doada ao Museu, além de participar de encontros, cursos e conferências
de acordo com as suas disponibilidades. O projeto ainda previa uma exposição e a edição de
um catálogo com o conjunto de obras realizadas especialmente para o MAM RJ. Em outro

350
ARAÚJO, Arthur. Um novo MAM para uma nova década. O Globo: Rio de Janeiro, 09 jan. 1990. Acervo MAM
Rio.
351
Texto datilografado e assinado por Paulo Herkenhoff em 15 de dezembro de 1989. Acervo MAM Rio.
352
Idem.

284
documento manuscrito, sem assinatura, a proposta mencionava a participação dos artistas
brasileiros Anna Bella Geiger, Farnese de Andrade e Antonio Manuel, a fim de integrar a
exposição com trabalhos que tratassem de algum modo o tema ou que a sua própria
linguagem o absorvesse.
O Projeto Fênix foi uma tentativa de aproximação de outra concepção artística que
não estivesse confinada a um determinado tipo de propriedade visual. Embora a temática do
incêndio fosse obrigatoriamente ressignificada, a proposta indicava ao artista convidado a
elaboração, à maneira que desejasse, de uma obra a partir do que restou do Museu após o
incêndio. Do ponto de vista formal, o conjunto de obras representaria um “paroxismo de
estilos” de intensa produtividade experimental por parte de seus representantes e dotada de
uma singularidade, representaria não só o MAM RJ, mas os vestígios da própria materialidade
que o compunha.
O italiano Marco Gastini (1938), segundo as fontes documentais, foi o único artista
que integrou o Projeto. Amigo pessoal de Antonio Dias, já vinha mantendo contato com o
país por meio do artista brasileiro. Para o Projeto, desenvolveu uma espécie de assemblage
com objetos remanescentes do incêndio, entre cacos de vidro, pedras, restos de folhas de
palmeiras, dando continuidade à sua própria pesquisa que se concentrava no uso de diversos
materiais, sobretudo naturais, explorando a potencialidade expressiva de cada matéria. Em
depoimento à imprensa, define sua obra com: “qualquer material se transforma em pintura
quando se usa energia vital. Para mim, importa a ideia de materiais brutos se configurando em
algo que transmita leveza.” 353 O artista fez parte do grupo de Turim associado à Arte Povera
que utilizava além dos materiais provenientes da indústria, materiais naturais ou derivados
para realização das obras de arte.354
O Projeto Fênix e as pesquisas conceituais em arte (Arte Conceitual, Arte Povera,
Land Art) redesenham as fronteiras definidoras do que é arte e se assemelham na medida em
que utilizam as propriedades físicas e simbólicas dos materiais, o aspecto da mutabilidade, da
contingência e do ordenamento sobre a exposição do caos, como elementos constituintes de
uma agenda de trabalho. Embora não tenhamos a informação se os vestígios de obras de arte
foram realmente utilizados, o que implicaria em uma complexa disputa de direitos autorais,
parte da obra, ou seja, do seu vestígio, poderia ser apropriado pelo artista, segundo o Projeto,

353
HOMERO, Vilma. Para tirar o museu das cinzas, Rio de Janeiro, Tribuna da Imprensa, 20 dez 1989. Acervo
MAM Rio.
354
“Mostra a cura di P. Herkenhoff, Museo de Arte Moderna, Rio de Janeiro, dicembre, mostra organizzata
nell’ambito del progetto Phenix Barbara Kornblatt Gallery, Washington.” Disponível em
http://www.marcogastini.it/index.php?a=mostre&g=1 Acesso em 24 fev 2019.
285
assim como um pedaço de vidro ou ferro retorcido. A diferença estaria na concepção da obra
que, no caso do Projeto Fênix, destinava-se precisamente a um lugar, portanto ao Museu.
O uso do ferro retorcido e do vidro quebrado, vestígios representativos de uma bruta
era modernista, ao serem reutilizados justapostos ao tema do incêndio, estaria nesse ponto
respondendo aos novos rumos que o Museu de Arte Moderna tomaria. Examinar seu passado
e se apropriar das pesquisas estéticas contemporâneas junto à conservação de um modernismo
histórico. Não por acaso, ocorreu neste mesmo período, a aquisição, com patrocínio da White
Martins, para o patrimônio artístico do Museu, a pintura a óleo O barco (1915), de Anita
Malfatti.
O Projeto Fênix não foi à frente. Negado veementemente por Nascimento Brito, à
época presidente do Museu, a justificativa veio por meio da seguinte frase: “Este projeto me
parece absolutamente irreal.” 355 A ideia do Projeto de Herkenhoff acabou sendo revertida para
nomear os projetos de restauração de algumas obras, dentre pinturas e esculturas, que haviam
sobrevivido ao incêndio.
No final da década de 1990, a coordenação de artes plásticas é substituída pelo setor
de curadoria, responsável pela formação do acervo e da programação do Museu. O crítico de
arte Wilson Coutinho inaugurou essa função e permaneceu apenas um ano, de 1997 a 1998,
quando foi substituído por Agnaldo Farias, que dá sequência ao trabalho curatorial até os anos
2000. Na virada do século, Fernando Cocchiarale e Franz Manata assumem a curadoria entre
os anos 2000 e 2007. O crítico de arte Reynaldo Roels permanece apenas dois anos em
virtude de seu repentino falecimento, função esta que foi ocupada por Luiz Camillo Osório,
que permaneceu como curador até 2016, ano que marca o retorno de Cocchiarale.
Em 2014, Luiz Camillo Osório publicou dois catálogos sobre a Coleção MAM,
reunindo um conjunto de obras organizadas em uma versão nacional e internacional, tal qual a
ideia de Pontual para os cursos, já aqui comentada. Esses catálogos têm uma importância para
a história da Coleção MAM, pois reúnem não só um grupo de obras adquiridas no processo de
reconstrução do acervo – que ocorre até os dias atuais – como parte das obras que
sobreviveram e foram restauradas após o incêndio. No entanto, por escolha e determinação
curatorial, a versão nacional traz algumas obras da Col. Gilberto Chateaubriand. Os critérios
utilizados para a seleção de obras enfocam artistas internacionais considerados “seminais da
história da arte”, como Jackson Pollock356, Alberto Giacometti, Jean Arp, Constantin

355
Carta datilografada, Rio de Janeiro, 20 dez. 1989. Acervo MAM Rio.
356
A pintura a óleo Nº16 (1952), de Jackson Pollock, doação de Nelson Rockefeller, foi recentemente vendida
em uma tentativa de sanar as dívidas da instituição, além de gerar um fundo para manutenção do Museu. Essa
286
Brancusi, cujas obras sobreviventes ao incêndio “convivem”, nas suas palavras, com
importantes aquisições de obras de artistas brasileiros como Sérgio Camargo, Volpi, Lygia
Clark, Willis de Castro, Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Antonio Manuel, Ernesto Neto etc.
Acrescenta ainda, a doação de todo o acervo da artista Márcia X, que suscitou importantes
questionamentos ao departamento de curadoria e museologia no que se refere à conservação e
à distinção entre o que se define como obra e documento. Essas publicações expressam o
legado deixado por Herkenhoff que apostava, na construção de um acervo para o MAM RJ, a
absorção de uma historiografia da arte.
Ao retrocedermos a cronologia da formação do acervo do Museu, em Arte brasileira:
1963-1978, Reynaldo Roels contextualizou o período de ostensivas represálias às atividades
do MAM RJ pela ditadura militar e a fusão do antigo Estado da Guanabara com o Estado do
Rio, promovendo uma dispersão e um enfraquecimento dos recursos econômicos,
favorecendo, portanto, um esvaziamento sistemático das iniciativas artísticas e culturais na
cidade que culminou com o incêndio em 1978. Verificaremos também nas análises do crítico
e curador Fernando Cocchiarale que, em virtude da falta de recursos específicos e do trágico
incêndio, o Museu não possui em seu acervo obras significativas referentes às principais
exposições que sediou, como a I Exposição Neoconcreta de 1959, Opinião 65 e 66 e a Nova
Objetividade Brasileira em 1967. Diante dessa constatação, como curador, atuou para o
preenchimento de inegável lacuna, apresentando a exposição Aquisições Essenciais (2001)
com obras de artistas que pertenceram ao período experimental da arte brasileira referente ao
Grupo Frente, Neoconcretismo e representantes da arte contemporânea como Antonio
Manuel, Carlos Zílio, Cildo Meireles e Waltercio Caldas.
O crítico e curador de arte Agnaldo Farias, em uma breve contextualização do acervo
formado entre as décadas de 1940 e 1950, percebe a relevância de obras que representam as
vanguardas artísticas europeias. No entanto, lamenta a perda de grande parte desse acervo no
incêndio, mas evidencia a sobrevivência da grande tela Morte antropofágica do Bispo
Sardinha (1959), uma pintura a óleo sobre tela de 3x10 m doada por Georges Mathieu,
pintada durante uma performance no Museu em 1959.357 Salienta que, após todos os esforços
realizados para a reconstrução do acervo, a coleção pôde voltar a ocupar um lugar de destaque
por conservar obras de importantes artistas latino-americanos como Cruz-Diez, Antonio

foi a primeira vez (até onde temos notícia) da venda de uma obra de seu patrimônio, mas, após o incêndio,
vislumbrou-se vender a escultura Mlle. Pogany II, de Brancusi. Solução que foi descartada pela diretoria na
época dada a importância da obra no acervo.
357
Esta obra se encontra na reserva técnica do MAM RJ a espera de restauração.
287
Segui, Guilherme Kuitca, além das obras da fase construtiva de Lygia Clark, Helio Oiticica,
Franz Weissmann e Amilcar de Castro.
Em 1989, Wilson Coutinho convida o público para a reabertura do MAM RJ fechado
desde 1985 para reforma e modernização do Salão de Exposições e da reserva técnica. Com
uma exposição de Iberê Camargo e outra com a Geração 80 “para amar ou detestar”, sinaliza
que o recomeço do Museu representava simbolicamente outros recomeços tanto no campo da
arte, como no âmbito social e político do país. A apresentação de Flávio de Aquino no
catálogo de 1953 marca a dificuldade do MAM em destinar seus recursos às obras
inflacionadas pertencentes aos “mestres do modernismo”, que se fossem adquiridas limitaria o
patrimônio há uma dezena de obras, preferindo voltar-se para os trabalhos dos artistas jovens
comparando às iniciativas dos museus americanos que adquiriram obras “dos então pouco
conhecidos impressionistas, cubistas e fauves.” 358
Essas políticas de aquisição refletem os descompassos do programa institucional do
MAM RJ em tomar uma posição no âmbito museológico e artístico. Àquela reflexão de Mario
Pedrosa, no início da década de 1950, sobre o Museu especializar-se em alguns campos da
arte moderna acaba não se realizando efetivamente.
Em 1985, Frederico Morais escrevia para o Jornal O Globo relatando a “falência”
cultural e material do Museu, pois seus espaços já não se destinavam mais à programação
cultural, mas a aluguéis comerciais. As obras sobreviventes estavam fadadas à “destruição
pelo tempo”, ou seja, a imagem do MAM RJ, mesmo após a mostra do acervo de
Chateaubriand, considerada uma realização sem precedentes na história do Museu, se resumiu
à “precariedade física e cultural”, ausência de público, exposições e acervo; o jardim
degradado, vidros quebrados, enfim, uma situação não muito distante do ano do incêndio e
que se repetiu em outros momentos da sua história. O artigo de Frederico ainda incluía parte
do relatório realizado por Gustavo Affonso Capanema, à época diretor do Museu, que
contabilizava a situação financeira precaríssima, mas que deveria haver alternativas para
ativar seus espaços, como ocorria com outras instituições culturais também em situação de
precariedade, mas que, no entanto, não estavam na mesma condição que o Museu. Questiona-
se: “por que isso não ocorre com o MAM?”; e pondera: “não é o caso de esquecer o
MAM.”359 As ressonâncias dessa reportagem repercutiram “como uma bomba” no meio

358
Todas os textos históricos citados estão contidos no catálogo do acervo organizado por Luiz Camilo Osório
(2014).
359
MORAIS, Frederico. Museu de Arte Moderna, urgente: após o fogo, o drama da falência. Rio de Janeiro,
Segundo Cadreno, O Globo, 15 maio 1985. Acervo Centro de Documentação e Pesquisa MAM Rio.
288
artístico que se manifestou contra as avaliações da diretoria, considerando que falido era o
modo como a imagem do Museu era usada apenas pela busca de status. Um grupo de artistas
e críticos de arte que estivera próximo ao Museu, antes e após o incêndio, estava disposto a
colaborar para a definição de uma política cultural para o MAM RJ, porém desde 1978 a
recusa à sua participação foi uma constante.
Naquele mesmo ano, diversas renúncias do Conselho Deliberativo ocorreram,
incluindo a de Gustavo Capanema e Ivo Pitanguy, o que possibilitou a entrada de M. F. do
Nascimento Brito na presidência e Paulo Herkenhoff à frente da direção cultural do Museu e,
com isso, instaura-se “uma atitude museológica”, que se voltará para a reconstrução da
imagem do Museu aos “modernos conceitos de museologia”, considerando prioritariamente a
restauração do prédio para receber a “conquista extraordinária” da Col. Gilberto
Chateaubriand. Thiago Ferreira (2018) analisa esse período como marca de um “certo
oportunismo”, pois a imagem de um museu aparentemente vazio, falido, cuja pauta dos
processos de reconstrução era operada pela via dos valores de renovação e purificação e a
missão pedagógica da narrativa histórica da arte brasileira vinculada à imagem pública de
Gilberto Chateaubriand, contornou a expectativa de transformar o MAM RJ em um grande
museu brasileiro de arte nacional.
Para Roberto Conduru (2011, p.16), embora uma coleção privada “fala de si e do seu
universo particular”, também representa uma interpretação do mundo da arte, considerando o
colecionador um “agente historiográfico” que opera não somente por via do gosto e das redes
de relações estabelecidas pelo próprio sistema da arte, mas pela expressão de um
“entendimento de arte, cultura e vida.” Para o historiador da arte, aquele conjunto específico
de obras “gesta a história”. Situação que vem a se tornar mais expressiva, quando a desloca
dos domínios privados e se torna efetivamente uma coleção pública. As afinidades do Museu
ao recorte da Col. Gilberto Chateaubriand seguem, quase com exatidão, para não parecermos
categóricos, à construção iconográfica da imagem do MAM RJ à época da sua fundação que
tratamos aqui anteriormente. Nas palavras de Conduru sobre a coleção público/privada, afinal,
encontra-se em regime de comodato, parece-nos traduzir a própria história do Museu: “cinco
décadas que delineiam um período singular, polêmico. O recorte editorial permite e incentiva
falar da dinâmica artística no país, de agentes, instituições e seus feitos [...] do
impressionismo até as revisões do concretismo e do abstracionismo informal”; e prossegue:
“de renovação contra a Escola Nacional de Belas Artes, ou a partir dela, até a inauguração de
Brasília, a dissolução do movimento neoconcreto e a crise da Bienal de São Paulo”.

289
Os marcos cronológicos utilizados por Conduru (2011) para contornar uma
historiografia da arte presente no conjunto de obras de Chateaubriand são sincrônicos à
própria história do MAM RJ. Não por acaso, Chateaubriand acompanhou a construção da
sede definitiva do Museu, portanto, esteve próximo às questões e situações do âmbito político,
estético e cultural que engendraram aqueles espaços. Em resposta, à época da crise do MAM
RJ após o incêndio, afirmou taxativamente que não aceitaria dirigi-lo, mas, como conselheiro,
“diz conhecer bem todos os problemas do Museu, a etiologia de seus vícios” e afirmou ou
antecipou o que viria a se tornar o acervo do Museu de Arte Moderna na cidade do Rio de
Janeiro, “um núcleo ou cerne de arte brasileira e ter, em caráter permanente, uma amostragem
da nossa arte, não apenas para atender ao turista externo, mas para atender à sede e à fome do
brasileiro”360 E a metáfora da arte como alimento de primeira necessidade retorna à ordem
discursiva do MAM RJ.
A Col. Gilberto Chateaubriand preenche a lacuna dos “mestres do modernismo” no
acervo de artes plásticas do MAM RJ, cuja necessidade foi bem marcada nos anos iniciais de
formação do acervo do Museu, mas que, pela justificativa da (histórica) falta de recursos
financeiros, não era possível tal aquisição. 361 Transfere-se, desse modo, não só um bem, mas
uma propriedade em nome de uma nacionalidade.
E. H. Gombrich (1990, p. 105) realiza uma analogia do historiador da arte ao trabalho
dos entomologistas que descrevem, categorizam e nomeiam os insetos com o uso estrito de
categorias que limitam a descrição de uma determinada espécie. Segundo o historiador da
arte, “[...] ao discutir obras de arte, a descrição nunca pode apartar-se inteiramente da crítica.”
Para descrição de um acervo, é recursivo o exercício de categorização das obras a fim de que
se identifiquem quais representantes de determinado estilo ou movimento estão contemplados
na coleção e quais “categorias” precisam ser ainda preenchidas. É o que geralmente os
historiadores da arte, como curadores em museus, argumentam sobre a aquisição de obras
estar associada, sobretudo, ao preenchimento de lacunas históricas. O que reforça a tese de
Belting (2003, p. 36) sobre o enquadramento da arte ser produzido pelo modelo ocidental de
história da arte: “tudo o que nele encontrava lugar era privilegiado como arte, em oposição a
tudo o que estava ausente dele, de modo muito semelhante ao museu, onde era reunida e
exposta apenas essa arte que já se inseria na história da arte.”

360
Os cargos sempre em disponibilidade. Rio de Janeiro, O Globo, 19 jun. 1985. Acervo Centro de
Documentação e Pesquisa do MAM Rio.
361
AQUINO, Flavio. Exposição Permanente. Rio de Janeiro: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1953.
(Catálogo de exposição). Acervo MAM Rio.
290
René Magritte, A Explicação, 1951, Acervo MAM Rio. Revista Arte Hoje, ano 2, n. 20, fevereiro
1979.

291
CONSIDERAÇÕES FINAIS OU QUAL É A FÁBULA QUE NOS INTERESSA?

A reformulação do Museu ocorreu segundo os interesses movidos por uma


consciência do passado acomodada às necessidades do presente. Não havia apenas uma
proposta de reconstruir um patrimônio fundamentalmente centrado no acervo, mas restaurar a
própria imagem abalada pelo incêndio. A consciência histórica do MAM RJ só se estabeleceu,
paradoxalmente, com o episódio do incêndio. Foi preciso o Museu perder grande parte do seu
patrimônio para que fosse reconstruída uma narrativa seletiva e que, ao mesmo tempo,
abarcasse toda a prática experimental que o Museu um dia “colaborou” para o seu
desenvolvimento. O trauma das cinzas só poderia ser superado mediante o fortalecimento de
uma imagem, até o trágico incêndio, de experimentações. Após o incêndio se reforça a
imagem do MAM RJ como espaço de abrigo das vanguardas experimentais, logo, da cidade
do Rio de Janeiro como ambiente e suporte para realização de tais práticas.
A política da memória justifica-se com a produção discursiva historiográfica, em que
toda e qualquer narrativa implica uma seleção e, portanto, uma avaliação do que interessa ou
não ser exposto. Manipula-se o que precisa ser esquecido para eleger o que deve ser
lembrado. A questão que Huyssen (2014, p. 156) enuncia sobre avançar no paradoxo “o
esquecimento é constitutivo da memória” nos conduz a uma reflexão sobre o modo como o
discurso da reconstrução do MAM RJ elegeu determinadas obras de arte como símbolo desse
processo e o que foi apagado, ou momentaneamente esquecido, converteu-se em memória.
O tema da memória constitui-se como referência central da prática museológica e da
própria história da arte, cujo objeto de análise também se concentra numa mnemotecnia das
imagens. O esquecimento também está associado à sua formação, não apenas na atividade
seletiva inerente ao processo de formação de uma narrativa, de um acervo, mas no próprio ato
histórico que, segundo interesses, sobretudo políticos postula uma mutabilidade. Se por um
lado, a lembrança, a rememoração ocorre mediante o trabalho da memória que exige
empenho, envolvimento e vontade, o esquecimento, nesse contexto, não é produzido por um
lapso, uma falha ou uma distração, mas por uma ação voluntária.
A história do MAM RJ constituiu-se de memória e esquecimento, sem privilegiar
nessa relação paradoxal apenas a lembrança. Ao analisarmos o contexto político e cultural
pós-incêndio, verificaremos que a dinâmica impressa no processo de reconstrução do Museu
292
reitera o esquecimento público como estratégia para moldar uma imagem capaz de colaborar
para um jogo de estratégias que moldaram uma identidade cultural na cidade do Rio de
Janeiro. O que sobrevive ou que foi exposto como sobrevivente não representa apenas um
passado, mas uma escolha mediada por forças e interesses específicos.
As campanhas promovidas pela imprensa em prol do renascimento do Museu se
apoiaram no produto e não no criador. É a presença da obra de arte que substitui a ausência do
artista no processo de reconstrução. Valoriza-se assim o acervo, as obras que consagraram o
MAM RJ, a supremacia da memória sobre o esquecimento, geralmente reconhecido como
uma força que depõe contra o valor histórico. Afinal, como reconhecer o esquecimento como
dado histórico, visto seu próprio caráter impreciso e desfavorável à diversidade de teorias
existentes sobre a memória ser , no senso comum, como fonte do passado? O estado de
efemeridade vivenciado pelas práticas experimentais na década de 1970 pode ter colaborado
na construção de um projeto de esquecimento que vinha sendo articulado a um projeto de
apagamento, repressão, desarticulação e silenciamento do regime militar.
Os artistas defendiam o MAM RJ como um centro cultural acessível a um público
amplo e diverso e à Área Experimental, uma conquista política fértil para a discussão de uma
produção artística contemporânea que não tivesse a intenção, pelo menos não imediata, de
atender às políticas de mercado. A extinção das práticas experimentais contradizia o próprio
modelo de Museu que foi se constituindo como um campo disponível ao trabalho vivo do
artista. Retomar em tão pouco tempo um programa de exposições, restaurar algumas obras
sobreviventes e reformar o prédio asseguravam a imagem de um museu dinâmico mesmo
diante de tantas situações contingenciais no país.
Podemos pensar que o afastamento ou o esmorecimento das práticas experimentais de
seu programa institucional é fruto de uma política da memória que beneficia a retomada de
seus gestores o controle dos estatutos que, embora ultrapassados, ainda conferiam ao Museu
um retorno de seus objetivos e métodos à época que fora fundado. Consideramos que as
estratégias impressas no processo de reconstrução do MAM RJ sob orientações de sua
fundadora Niomar Moniz Sodré nortearam, até o presente momento, uma compreensão de
museu completamente distinta do período que precedeu o incêndio. O mesmo Museu que
trazia para o debate interno grupos de artistas e críticos interrompia e retomava uma posição
moralizante, da ordem e do gosto, orientada por marchands, colecionadores e empresários,
exatamente como se apresentara há sessenta anos. Afinal, era a construção dessa memória que

293
interessava a gestão do Museu como referência para a “renovação” de seu programa
institucional e de suas práticas.
Toda construção narrativa oficial desloca, reconfigura seus protagonistas e as ações
que permeiam as suas práticas a partir de um jogo de estratégias em que o que precisa ser
lembrado e, portanto, automaticamente esquecido passa a ter um caráter oficial, canônico,
celebrativo. Para que haja um consenso sobre que representações moldariam as narrativas
constituintes de uma memória nacional, algo precisava necessariamente ser esquecido: a
reflexão crítica interna e externa do próprio sistema feita por parte da crítica de arte e dos
artistas àquele período.
No caso das ditaduras, as vítimas, os desaparecidos são lembrados em detrimento
daqueles que estiveram à frente das guerrilhas, mas que igualmente foram vítimas. Ao
pensarmos na reconstrução do Museu destroçado pelo incêndio, o que não podia ser
esquecido? O que precisava ser esquecido? Que narrativas históricas corroboraram a
reconstrução do Museu aparentemente devastado, “morto”, “sem memória”, “sem passado”
em um contexto nacional igualmente devastado? E por que, algumas décadas após o incêndio,
ainda é preferível não o mencionar, esquecer?
O esquecimento e/ou afastamento das práticas experimentais dos processos de
reconstrução do MAM RJ se mostrou contraditório ao fortalecimento da imagem do Museu
como um espaço de vanguarda artística após o incêndio. A partir do momento em que tais
práticas deixaram de existir, conforme ocorria na década de 1960 e 1970, o experimental
passaria a ser interpretado como uma modalidade discursiva fundamental para a construção de
uma memória e, portanto, da imagem do Museu de Arte Moderna como um “lugar
historicamente privilegiado da vanguarda e do experimentalismo no País”, onde “viu nascer
parte considerável dos nossos movimentos artísticos e lançou muitos dos mais importantes
artistas nacionais [...]” junto à formação discursiva da identidade da arte brasileira
representada pela Col. Gilberto Chateaubriand. 362 Isso significa que o incêndio representa um
“acontecimento fundador” no sentido de despertar, não somente no âmbito do Museu, sua
condição histórica, mas sua finalidade, sua razão de ser museu de arte moderna.
O manifesto dos artistas e críticos não assume culpas no desejo de se reconciliar com o
passado, como alegou Roberto Pontual no artigo MAM. Mãos às obras, mas reconheceu o
gradual plano de desintegração do patrimônio histórico e artístico em decorrência de
sucessivos modelos institucionais pautados por uma política do esquecimento. Ao

362
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Caderno de Atividades, 2012.
294
analisarmos os interesses que nortearam a reconstrução de um museu privado que, após o
incêndio, passaria a ter uma dimensão pública, percebemos que restaurar sua condição
histórica, ou melhor, sua condição icônica modernista, era mais eficiente do que mobilizar
uma consciência crítica sobre a sua própria trajetória. Ao ficcionalizar a sua própria história, o
MAM RJ monumentaliza-se enquanto documento iconográfico de uma memória artística
pautada pela subtextualidade de uma historiografia da arte moderna.
Em 1958, ano de inauguração do Bloco Escola, a pintura A Explicação (1951), de
René Magritte, foi adquirida com recursos privados na Alexander Iolar Gallery em Nova
York por Niomar Moniz Sodré, à época diretora-executiva do MAM RJ. Há exatos trinta anos
depois, desaparece no incêndio. A imagem dessa obra, sem as molduras, foi publicada em
uma página inteira da Revista Arte Hoje cerca de sete meses após o incêndio, compondo a
sessão “Uma obra, uma história”. A narrativa sobre a obra se atém aos aspectos históricos da
arte em que o artista foi enquadrado, trazendo algumas concepções sobre o percurso estético
adotado por Magritte, junto ao brevíssimo parágrafo sobre sua total destruição no incêndio.
Para além de uma análise que se propõe a contextualizá-la e rememorá-la, a obra está ausente.
Há apenas a presença da sua imagem.
A imagem da pintura foi reproduzida em alta resolução, em que é possível perceber a
materialidade da tela, a textura do tecido e das pinceladas de tinta a óleo, além do craquelado
que denuncia os efeitos do tempo. Imaginamos a surpresa de muitos leitores ao perceber seu
desconhecimento sobre essa obra pertencer ao acervo do MAM RJ e que lamentavelmente se
reduziu às cinzas. 363
Na pintura, há a representação de dois objetos reconhecíveis junto a um terceiro objeto
resultado da união gradual desses mesmos objetos. O conteúdo dessa obra repousa sobre os
diferentes sentidos dados ao modo como se vê, se percebe e se constrói uma dada realidade a
partir de um contexto de verossimilhanças e incongruências própria do Surrealismo, do qual
Magritte tomou contato.364 Ao realizarmos uma estreita abordagem do conteúdo da pintura,
observamos que as representações da garrafa e da cenoura se assemelham em sua morfologia.
Reconhecemos suas utilidades (pelo menos as mais usuais), porém a sua fusão se apresenta
antifuncional, pois não há nenhum sentido aparente. Não é uma cenoura, tampouco uma

363
Estamos considerando as informações oficiais e não as especulações lançadas por Francisco Bittencourt
sobre algumas obras terem desaparecido neste período por estarem emprestadas a particulares.
364
O problema do Surrealismo não era compreender a realidade e estabelecer uma relação do artista com as
questões sociais, como o Construtivismo que se estruturava a partir dos ideais de reforma e revolução da
sociedade. Para os surrealistas, a arte devia estar pautada pela atividade mental, ou seja, pela psique humana e
as suas contradições externalizadas quando se há repressão e coerção das situações, ações e gestos.
295
garrafa. Trata-se de um híbrido. Essa pintura, nas palavras de Sarah Alexandrian, citadas pela
Revista, é um “choque-revelação”, pois “transmite fielmente o que lhe revela a sua
observação atenta da realidade. Mesmo quando lhe muda o sentido, apoia-se solidamente no
objeto mesmo que o inspirou.”365 Não estaria contida nesta justaposição imagem e texto, a
constituição da imagem do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro após o incêndio de
1978?
A “explicação” de Magritte nos coloca diante de um jogo metalinguístico em que
imagem e texto operam sob o mesmo código, pois contém em si mesmo a explicação da
explicação. No dicionário etimológico, a palavra “explicar” vem do latim explicare e indica o
século XVI o nascimento do seu uso, cujo contexto histórico foi pautado pelo o que se
convencionou chamar era da razão. A priori, explicar define o ato de tornar inteligível o
significado das coisas. A Explicação de Magritte amplia o sentido, pois parte do princípio da
explicação, ou seja, do contorno claro que se deve ter do ponto de partida e das conexões que
podem ser feitas a partir deste mesmo ponto. Nos detalhes, este trompe-l’oeil produz uma
ambiguidade, pois ao mesmo tempo em que nos certificamos que os dois objetos estão
representados com fidelidade, pois reconhecemos sua funcionabilidade, o terceiro, mesmo
inexistente, é real, concreto porque seu reflexo está contido na garrafa, assim como o reflexo
desta está contida neste objeto híbrido. A imagem acaba tornando visível aquilo que se mostra
intangível, ou seja, o modo como se constitui o pensamento. Trata da pura combinação do real
e ilusório para discutir o deslocamento, a metamorfose e a própria contradição das estruturas
discursivas que compõem uma “dialética do olhar”.366
Diante do contexto pós-incêndio, associamos essa imagem a uma “imagem-fática”,
como Paul Virilio (1994) nomeou as imagens utilizadas pelas propagandas dos poderes
totalitários. O uso dessa imagem nos parece corroborar as atividades inconscientes, em que a
apreensão do olhar e da atenção sobre uma mensagem não pretende estar direcionada ao
conteúdo da obra em si, mas na justaposição discursiva imagem e texto. E é nesse ponto que a
imagem “A Explicação” nos oferece algumas chaves conclusivas para esta investigação que
se desenvolveu até aqui. Ativados pelo “inconsciente do tempo” nos parece que a escolha
dessa obra justifica as diferentes “razões de ser” do Museu de Arte Moderna na cidade do Rio
de Janeiro, por conseguinte a construção da sua imagem após o incêndio. Podemos considerar
que a atual imagem do MAM RJ fala desse híbrido, apoia-se na ideia que o fundou, na

365
Uma obra, uma história. Rio de Janeiro, Arte Hoje, ano 2, n. 20, fevereiro 1979.
366
Termo emprestado de Hal Foster (2016) em Arquivos da Arte Moderna, cuja apropriação conceitual decorre
das análises de Michae Fried e Susan Buck-Morss.
296
história que o constituiu, combinando diferentes narrativas, modernas e contemporâneas, tal
como um arquivo que se estrutura pela sua finalidade pós-incêndio: reconciliar e reificar uma
tradição moderna.
Destacamos três construções discursivas sobre a imagem do MAM pós-incêndio
apresentadas aqui até o momento. A primeira se refere à construção de uma imagem que o
representasse internacionalmente, ou seja, conjugada a uma iconografia modernista
nacionalista e construtivista; a segunda se refere à restauração da sua imagem a partir de uma
consciência museológica, que está diretamente ligada à terceira construção discursiva,
formulada pela histórica ocupação do Museu por uma vanguarda artística, carioca,
experimental. Desse modo, coloca-se a serviço de uma continuidade histórica da arte,
preservando a construção destas três imagens que o apresenta, atualmente, como um híbrido,
do qual não compreendemos bem sua finalidade.
Da perspectiva monumental de sua sede, construída para o vir-a-ser, após o incêndio e
após a consciência da sua destruição, em condições emergenciais e contingenciais, o MAM
RJ passa à condição estrita de documento, sendo sua história patrimonializada a partir de
então. Procurou-se manter a visibilidade do Museu pela arquitetura, pelo seu patrimônio
material, por aquilo que interessou restituir após o incêndio. A sua monumentalidade passa a
compor o conjunto de tantos outros edifícios monumentais do Rio de Janeiro, erguidos
quando ainda era capital federal e que representam um arranha-céu de ruínas. O projeto
monumental de Reidy integra essa narrativa, essa fantasmagoria que atrai o olhar
contemporâneo que estetiza aquilo que toma aparência de “antiguidade”. As degradações
características das ruínas, nesse caso, estão embutidas nas camadas discursivas que formam a
história desse museu.
No âmbito do Museu, as práticas experimentais constituem epitáfios. O Museu e todo
seu entorno encontram-se como um lugar onde jaz algo. Os monumentos históricos
representam aquilo que não existe mais, pois passa-se a observar o passado, tendo um
presente disponível, e não mais o futuro como garantia de sentido e existência. E não estamos
nos referindo a uma tradição artística, movimento ou experiência significativa que o MAM RJ
absorveu e, no processo de restauração fez questão de selecionar e conservar; estamos nos
referindo à preservação da sua condição de ícone da modernidade, pautado mais pela
ausência, do que pela sua presença. Assim como a pintura de Magritte, o Museu está ausente.
Há apenas a presença da sua imagem.

297
Sendo o museu “um confronto de metamorfoses”, como nos disse André Malraux,
consideramos a reconstrução do MAM RJ pela via da imagem e, nesse caso, pelos resíduos
que revelam não só o incêndio como uma condição histórica, mas também como fundador de
uma outra consciência histórica da arte sob seus domínios. Restaurá-lo como documento,
como arquivo, foi uma estratégia de restituí-lo como monumento composto por fábulas que se
contradizem e, ao mesmo tempo, coexistem no modo de operar a construção do seu próprio
discurso renovado ou não pelas chamas do incêndio.

298
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