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30 ANOS DE MUSEU D.

JOÃO VI

O ENSINO ARTÍSTICO,
A HISTÓRIA DA ARTE E O
MUSEU D. JOÃO VI

Marize Malta
Organizadora

Dezembro de 2010
Rio de Janeiro, RJ
ISBN 978-85-87145-34-5
O ensino artístico, a história da arte e o
museu D. João VI
Aloísio Teixeira
EBA/CLA/UFRJ 2010 Reitor

© 2010 Sylvia da Silveira de Mello Vargas


CAPA
Vice-Reitora
André Dorigo
Flora Del Paoli
PROJETO GRÁFICO e Decano do Centro de Letras e Artes
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Profa Marize Malta e Carlos Terra
Carlos Gonçalves Terra
REVISÃO DE TEXTOS Diretor da Escola de Belas Artes
Profa Maritza Teixeira

REVISÃO DE TEXTO EM INGLÊS


Helenise Monteiro Guimarães
Jan Onoszko Vice-Diretora da Escola de Belas Artes

APOIO Carla Costa Dias


Banco do Brasil S.A.
Coordenadora do Museu D. João VI
ORGANIZAÇÃO
Profa Marize Malta

Os artigos e as imagens reproduzidas nos textos são de inteira responsabilidade


de seus autores.

MALTA, Marize (Org.).


O ensino artístico, a história da arte e o museu D. João VI.
Rio de Janeiro, EBA/UFRJ, 2010.

287 p.

1. Museu D. João VI 2. Ensino Artístico


3. Arte no Brasil

I. Título
II. Universidade Federal do Rio de Janeiro
Dedico esse livro ao mestre amigo Almir Paredes Cunha,
de quem tive a honra de ter sido aluna, pupila e
orientanda.
4
SUMÁRIO
O ENSINO ARTÍSTICO, A HISTÓRIA DA ARTE E O MUSEU D. JOÃO VI

Apresentação ................................................................................................................... 8

Parte I Do novo museu D. João VI

O Projeto Petrobrás e a reformulação do museu D. João VI ............................................ 13


Sonia Gomes Pereira

Projeto museográfico do museu D. João VI e a questão da reserva técnica exibida ........ 20


Marize Malta

Projeto de revitalização do museu D. João VI/EBA/UFRJ: higienização e


acondicionamento do acervo na nova reserva técnica .................................................... 30
Mariza Vilela

A conservação de telas no museu D. João VI .................................................................. 33


Maria Alice Castello Branco

A aparência vestida na coleção Ferreira das Neves do Museu D. João VI –


relato de um processo de trabalho ..................................................................................... 38
Maria Cristina Volpi

O acervo das obras raras como fonte de estudo sobre o ensino


acadêmico de arquitetura ................................................................................................ 44
Denise Gonçalves

Parte II Pesquisas e reflexões a partir do acervo do museu D. João VI

2.1 As várias faces de uma escola de arte

Cupidos e vitórias: Debret e Henrique José da Silva na construção da modernidade


luso-brasileira nos anos 1816-1831 ................................................................................ 52
Julio Bandeira

Os portugueses na direção da Academia ......................................................................... 66


Valéria Alves Esteves de Lima

A consolidação da reforma Pedreira a partir das teses de Porto-Alegre em 1855 ............ 75


Cybele Vidal Fernandes

A reforma Pedreira (1854-57) e seus desdobramentos: uma reavaliação ....................... 82


Letícia Squeff

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A ‘reforma da academia’ no relatório de Rodolpho Bernardelli ao ministro da
Instrução Pública (1891) ................................................................................................. 88
Camila Dazzi

Poder, disputas e controle do ensino de gravura na ENBA nos anos 50/60 .................... 97
Maria Luisa Tavora

2.2 Ensino, métodos, concursos

Da especialização do pintor acadêmico por tipologias: um estudo do acervo


de cópias do Museu D. João VI .................................................................................... 109
Reginaldo da Rocha Leite

A pintura histórica em dois concursos da AIBA – 1865 e 1887 ........................................ 116


Ana Cavalcanti

A importância da estampa didática no ensino da AIBA do Rio de Janeiro ....................... 124


Cristina A. Rios Castro Ouchi

‘As circunstâncias peculiares da terra’: o ensino artístico e o modelo-vivo


nas belas artes no Brasil oitocentista .............................................................................. 131
Daryle Williams

A importância do aprendizado na AIBA para o início de uma etnografia no


Brasil no século XIX ...................................................................................................... 142
Fátima Regina Nascimento

Questões de percepção no método de ensino da Academia Imperial de


Belas Artes de Rio de Janeiro ....................................................................................... 152
Fábio D’Almeida

Projeto premiado: a estátua equestre de D. Pedro I no desenho


de Maximiano Mafra ...................................................................................................... 161
Paulo Knauss

Pensionistas da ENBA e seu diálogo com a arte de Munique nos anos 1890 ................ 171
Arthur Valle

A influência positiva do exercício artístico acadêmico na formação


dos aquitetos modernistas .............................................................................................. 181
Helena Cunha de Uzeda

O retrato no primórdio acadêmico .................................................................................. 190


Monica Cauhi Wanderley

6
A construção da paisagem carioca do século XIX no olhar estrangeiro .......................... 197
Michelle Gran

2.3 Atores do ensino e aprendizado

Francisco Manoel Chaves Pinheiro: o artista e professor da Academia ......................... 206


Maria de Fátima Alfredo

Júlio César de Melo e Souza: um p rofessor-autor na Congregação da ENBA ............. 209


Moysés Gonçalves Siqueira Filho

Antonio Luís de Moura: o primeiro clarinetista virtuso brasileiro e fundador


da cátedra de clarineta no Brasil ................................................................................... 215
Fernando José Silveira

Antonio Virzi, entre o professor e o arquiteto ................................................................. 227


Maria Helena Hermes

A formação de Firmino Saldanha na ENBA .................................................................... 235


Denise Vianna Nunes

As contribuições de Araújo Porto-Alegre no debate urbanístico


de seu tempo (1848-1855) ............................................................................................ 244
Priscilla Peixoto

Influências estéticas das lições da ENBA nas obras de Calmon Barreto ......................... 250
Gisele Lourençato Faleiros Rocha

Aspectos históricos da produção iconográfica do pintor José dos Reis Carvalho


e sua participação na Comissão Científica de Exploração (1859-1861) ......................... 259
Cláudio José Alves

Eliseu Visconti: aluno, bolsista e expositor ..................................................................... 267


Mirian Nogueira Seraphim

De longe e de eperto: o paradigma acadêmico na pintura de Raymundo Cela ............ 277


Delano Pessoa Carneiro Barbosa

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8
APRESENTAÇÃO
Que escola de artes tem ao seu dispor variadas peças para estudo da história da
arte e para o desenho? Quantos professores têm ao seu alcance obras centenárias para
ministrar suas aulas? Que pós-graduação em artes pode contar com um museu, repleto de
fontes primárias escritas, esculpidas, pintadas, entalhadas? Nós, da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, usufruímos esse privilégio. No fim do corredor do
sétimo andar do chamado Prédio da Reitoria, na Ilha do Fundão, entre salas de aula da
graduação e da pós-graduação, secretarias e sala da direção, situa-se o museu D. João VI.
Podemos nos encontrar com as obras durante todos os dias letivos. Se por um lado é um luxo
possuirmos essa jóia acadêmica, que completou 30 anos em 2009, temos que assumir o peso
da responsabilidade de preservarmos, divulgarmos e disponibilizarmos seu acervo. Este
livro faz parte do compromisso, como igualmente a criação do grupo de pesquisa
ENTRESSÉCULOS: mudanças e continuidades nas artes no Brasil nos séculos XIX e XX,
grupo fundado em 2009 por Ana Cavalcanti, Marize Malta e Sonia Gomes Pereira, professoras
e pesquisadoras do Programa de Pós-graduação da EBA-UFRJ, que tem como principal
fonte de investigação o acervo do museu D. João VI, sede do grupo.
Para os que não o conhecem, o museu D. João VI é formado por documentos e
obras referentes ao ensino artístico, da Academia Imperial de Belas Artes à atual Escola de
Belas Artes da UFRJ. A instituição centenária foi responsável não apenas pela formação de
inúmeros artistas, mas também pelo funcionamento do sistema das artes visuais e decorativas,
organizando exposições, salões e prêmios de viagem, o que possibilitou agrupar
diversificados documentos. Portanto, parte da história da arte no Brasil e da construção de
um imaginário para a nação está escrita nas obras, nos livros e documentos pertencentes
ao museu D. João VI.
A publicação se originou das comunicações apresentadas em um seminário realizado
entre 18 e 21 de maio de 2010, contando com vários pesquisadores que se utilizaram de
obras e documentos existentes no museu D. João VI para escreverem suas versões da
história da arte no Brasil. De certo, algumas abordagens não gozam de ineditismo, pois a
intenção foi de oferecer um panorama retrospectivo. Ao todo, contamos com pesquisadores e
estudantes de várias instituições e universidades do Rio de Janeiro, de Minas Gerais, de São
Paulo, do Espírito Santo, do Ceará e até dos Estados Unidos.
O conjunto de comunicações foi dividido em duas partes, uma que trata da nova
configuração do museu D. João VI e outra que reúne reflexões a partir do seu acervo. Na
primeira, os trabalhos tratam do processo de reformulação do museu, seja do conceito que
norteou a nova museologia/museografia e dos trabalhos técnicos apreendidos, seja das
pesquisas realizadas a partir de sua nova organização, como os objetos pessoais de uma
coleção e o estudo sobre a biblioteca de obras raras. Na segunda parte foram agrupados três
temas: As várias faces de uma escola de arte, cujas comunicações discutiram as orientações
e direções da academia/escola; Ensino, métodos e concursos, que focalizou os sistemas

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de ensino; e por fim, Atores do ensino e aprendizado, com trabalhos que partiram da
atuação de um personagem específico.
O livro, contudo, não foi um espelho fiel do seminário. Este abrangeu mesa de
depoimentos, visitas guiadas ao museu e exposição de intervenções contemporâneas. O
professor Almir Paredes e a professora Ecila Castanheira, peças basilares para a existência
do museu, abriram a primeira mesa do evento, expondo suas experiências inaugurais em
forma de depoimento. Com eles, outros vários personagens que atuaram no museu estiveram
presentes (Fig.1). O clima celebrativo tomou a sessão. Dessa forma, um encontro científico
que pretendia apresentar a contribuição do museu D. João VI para a escrita da história da arte
no Brasil, também assumia uma forma de resgatar e homenagear os personagens constitutivos
do seu próprio passado.

Figura 1. Da esquerda para a direita: Ana Maria, Carla Costa Dias, Marize Malta, Carlos Terra, Ecyla
Castanheira, Sonia Gomes Pereira, Almir Paredes Cunha, Izaltino, Cristina e Cybele Vidal.
I Seminário do Museu D. João VI, dia 18 de maio de 2010.

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Agendamos visitas para que todos os participantes pudessem conhecer a nova
configuração e rever as obras com que trabalharam em suas pesquisas. Reforçando a
potencialidade do museu para as discussões das poéticas contemporâneas, foi desenvolvida
a exposição Ocupação/Intervenção – Diálogos contemporâneos com o Acervo do
Museu D. João VI, empreendida pelos alunos da Linha de Linguagens Visuais da Pós-
graduação em Artes Visuais da EBA, que foi acompanhada de uma mesa com a apresentação
do conceito da exposição, seguida de uma visita especial com os artistas ao museu, na qual
puderam falar sobre cada obra individualmente.
O evento procurou reunir memória, história e contemporaneidade; museu, graduação,
pós-graduação e grupos de pesquisa e, assim, quis reforçar alguns importantes significados
de um museu universitário: museu como lugar de memória; museu como espaço de salvaguarda
de obras e documentos sobre o ensino artístico; museu como lugar de pesquisa, capaz de
contribuir para a escrita da história da arte no Brasil; museu como lugar de diálogos
contemporâneos; museu como lugar de encontros e reflexões.
Para aqueles que ainda não tiveram o prazer de conhecer o museu D. João VI, fica
o convite para uma visita real (agendamento pelo telefone 21 2598-1997 ou por e-mail:
museu@eba.ufrj.br) ou virtual ao seu banco de dados (www.museu.eba.ufrj.br). Folheando
as páginas do livro, o museu também estará sendo reconhecido e revisitado, como o
entendimento relativizado e complexo do fazer artístico institucionalizado. Cada trabalho
representa um tasselo no mosaico da história da arte no Brasil, cujas contribuições, longe de
delinearem uma imagem definitiva da arte dita acadêmica, recriam outros pontos de vista que
nos forçam a perceber outras tradições e modernidades nela latentes.

Marize Malta
outubro 2010

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Parte I: Do novo museu D. João VI

12
O projeto Petrobrás e a reformulação do museu D. João VI

Sonia Gomes Pereira


EBA/UFRJ

Ao longo de sua longa trajetória, a antiga Academia de Belas Artes – criada em 1816,
aberta em 1826 e transformada em Escola Nacional de Belas Artes em 1890 - reuniu uma
extensa coleção de obras de arte.
Em 1937, esse acervo foi dividido em dois conjuntos. Grande parte da coleção
passou a constituir o Museu Nacional de Belas Artes. Outra parte, em geral de caráter
mais didático, continuou nas salas de aulas e nos ateliês da ENBA.
Foi exatamente esse grupo de obras que a Escola – já incorporada à Universidade
Federal do Rio de Janeiro e transferida para o campus da Ilha do Fundão – decidiu reunir com
a criação do Museu D. João VI em 1979, pelo seu então diretor, Prof. Almir Paredes Cunha.

O acervo histórico / artístico da Escola de Belas Artes da UFRJ


Dessa forma, o acervo histórico / artístico, atualmente conservado pela Escola de
Belas Artes da UFRJ, compreende três coleções complementares: uma biblioteca de obras
raras, um arquivo e uma coleção de obras de artes visuais.
A Biblioteca de Obras Raras compreende cerca de 4.000 livros, entre eles o de
Grandjean de Montigny sobre a arquitetura toscana, escrito em 1815.
O Arquivo inclui dois grupos de documentos. O primeiro corresponde a 118 livros,
com cerca de 200 páginas cada um, contendo os registros manuscritos da documentação
regular da Academia / Escola – como as atas da Congregação, as matrículas nos cursos e os
programas e julgamentos dos diversos concursos – devendo chegar a um total estimado de
23.600 páginas. O segundo grupo refere-se à documentação avulsa – reunida em 120 caixas,
contendo cada uma entre 10 e 15 envelopes e cada envelope cerca de 20 documentos que
podem somar 3 a 4 páginas cada,
estimando-se um total de 118.000
páginas –, que compreende
correspondência, certidões,
declarações relativas aos
professores e alunos da instituição
- como é o caso da carta enviada
em 1857 pelo pintor Eugène
Délacroix, membro correspon-
dente da Academia. Museu D. João VI no dia de sua inauguração em 1979.

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O Museu propriamente dito agrega um acervo assim constituído: 800 gravuras, 837
desenhos, 65 desenhos arquitetônicos, 480 pinturas, 560 esculturas, 595 diplomas de
premiação, 253 porcelanas, 167 fotografias, 47 têxteis, 22 móveis, 9 vitrais e 4.928 moedas /
medalhas. Esse conjunto de obras compreende, na verdade, duas coleções: a Coleção
Didática e a Coleção Ferreira das Neves.
A Coleção Didática abrange grande parte do acervo do Museu D. João VI: são obras
que tiveram e têm ainda funções didáticas ou são resultantes de atividades pedagógicas numa
escola de artes.
Os métodos do ensino artístico acadêmico apoiavam-se essencialmente na prática
da cópia – tanto das obras da Antigüidade greco-romana, quanto dos grandes mestres do
Renascimento -, além do estudo da figura humana – envolvendo estudos de anatomia e de
modelo vivo.
A aferição da aprendizagem do aluno era feita através de concursos, com
provas práticas, que iam desde as mais simples para iniciantes até o grau máximo: o
Concurso para Prêmio de Viagem ao Exterior. Também a contratação de professores era
realizada através de concursos, em que os candidatos deviam produzir obras sobre um
mesmo tema proposto pelo júri.
Durante grande parte do século XIX predominaram as obras de temas históricos ou
retratos. No entanto, a partir da passagem do XIX para o XX, outros gêneros tornaram-se
importantes, como as paisagens, as naturezas-mortas e as cenas do cotidiano, como o registro
do trabalho ou mesmo o tratamento mais atualizado das alegorias. Ao lado desses temas
estritamente artísticos, há também no acervo obras que evidenciam a importância do desenho
e da pintura na documentação de expedições científicas.
Todo esse sistema pedagógico continha certamente um caráter teórico e ideológico,
que manteve sempre sua adesão às diretrizes dominantes da tradição artística ocidental, mas
o ensino propriamente dito caracterizava-se pelo pragmatismo, em que importavam, sobretudo,
a relação direta mestre / aluno e a experiência prática no ateliê.
A segunda coleção do acervo, a Coleção Jeronymo Ferreira das Neves, foi doada
à ENBA em 1947. Foi realizada pelo colecionador em Portugal durante o século XIX e forma
um conjunto eclético, pois reúne pinturas, esculturas, gravuras, tecidos, móveis, imaginária,
porcelana, prataria, numismática e livros raros, em sua maioria de origem europeia. Destacam-
se nesse conjunto: obras do século XV, como o medalhão italiano de cerâmica esmaltada,
proveniente do ateliê de Luca della Robbia; uma pintura flamenga, atribuída a Quentin Metsys;
e peças do século XVI, como a pintura anônima, provavelmente espanhola e o políptico
português, atribuído ao Mestre do Tríptico de Morryson.

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A informatização dos acervos museológico e arquivístico: o projeto CNPq de 1994
a 1998
De 1994 a 1998, foi desenvolvido o projeto de pesquisa 180 Anos da Escola de
Belas Artes: 1816/1996, apoiado pelo CNPq, sob a coordenação das professoras Myriam
Andrade Ribeiro de Oliveira e Sonia Gomes Pereira, da Escola de Belas Artes / UFRJ, com
a participação de bolsistas CNPq de várias categorias: apoio técnico, aperfeiçoamento e
iniciação científica.
A base de desenvolvimento do projeto foi a realização de um inventário científico
e sistemático dos acervos museológico e arquivístico. Criou-se um padrão de registro
único, com a subsequente organização de um Banco de Dados Informatizados, elaborado
pelo professor Pedro Manoel da Silveira do Núcleo de Computação Eletrônica / UFRJ,
que permitiu agilizar a identificação e a localização das peças do acervo, além de
possibilitar o cruzamento de informações entre diversas categorias – autoria, título,
datação, técnica e material -, otimizando o acesso do pesquisador às fontes primárias.

A conservação, revitalização e divulgação do museu: o projeto Petrobrás a partir de


agosto/2005
Em maio de 2004, foram divulgados os resultados do Programa Petrobrás Cultural
2004/2005. Dos 3.736 projetos inscritos, apenas 141 foram contemplados após um processo
de seleção pública. Entre eles, Memória da arte brasileira dos séculos XIX e XX: revitalização
do Museu D. João VI – UFRJ, coordenado pela professora Sonia Gomes Pereira. Após a
aprovação no Ministério da Cultura, na rubrica da Lei Rouanet, foi implantado a partir de
agosto / 2005, com término previsto para dezembro / 2010.
O edital do Programa Petrobrás Cultural destacava dois objetivos para a área de
Preservação e Memória: identificação, pesquisa, conservação e disponibilização de acervos
e coleções representativas da memória da produção artística no Brasil; e publicação de obras
de referência para a memória das artes no Brasil.
Assim, atendendo a essas especificações, o nosso projeto estruturou-se em torno de
quatro pontos básicos: a higienização do acervo; a atualização e a disponibilização do banco
de dados informatizados, contendo o inventário dos acervos museológico e arquivístico; a
edição de novo Catálogo do Museu; e a reorganização da Reserva Técnica.
A higienização do acervo museológico foi realizada de agosto / 2005 a setembro
/ 2006 – tarefa realizada basicamente pela museóloga Mariza Vilela e duas alunas da
graduação da EBA/UFRJ: Cristina Rios de Castro e Vera Lúcia Carminatti.
A atualização do banco de dados informatizados estendeu-se de abril / 2006 a abril
/ 2007, com a atuação do analista de sistemas Alexandre Wrigg e da designer Martha Werneck,
ambos alunos da UFRJ. O resultado dessa etapa foi a disponibilização do banco de dados on
line, no site www.museu.eba.ufrj.br .

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Quanto ao catálogo, tomamos a seguinte resolução. Uma vez que todo o inventário
do Museu já se encontrava disponibilizado on line, decidimos fazer um pequeno catálogo
impresso de caráter mais informativo sobre o Museu, contendo histórico, coleções, normas de
acesso e consulta. Foi realizado durante o ano de 2008, com design de Martha Werneck e
textos de minha autoria.
Chegamos, enfim, ao quarto tópico do Projeto, que acabou sendo o mais difícil, longo
e polêmico, mas que acabou nos dando a oportunidade de inovar em termos de conceituação
museológica.

A decisão de duas mudanças: o lugar do museu e o seu conceito museológico


A questão da Reserva Técnica do Museu D. João VI acabou tomando dimensões
muito mais amplas do que as imaginadas na elaboração original do Projeto Petrobrás, pois
envolvia a tomada de decisão sobre um velho problema que afligia o Museu: a necessidade
de solução para as infiltrações no teto de suas instalações.
Por ocasião de sua criação em 1979, o Museu passou a ocupar um amplo espaço
no segundo andar do Prédio da Reitoria, projetado pelo arquiteto Jorge Moreira. Foi organizado
pela museóloga Ecyla Castanheira Brandão – então também professora da EBA – tendo o seu
espaço, com cerca de 1.500 m², dividido basicamente em três setores: as salas para serviços
técnicos, a reserva técnica e a ampla exposição permanente, onde um circuito cronológico
apresentava a história da Academia / Escola em suas etapas mais importantes: a chegada da
Missão Francesa; primeira geração de artistas brasileiros formados pela Academia; a geração
da passagem do século e a ENBA; e a história mais recente da EBA.
No entanto, desde o final da década de 1980, o Museu começou a apresentar
problemas de infiltrações em sua cobertura, constituída por cúpulas de fibra de vidro,
comprometendo também a iluminação do espaço, que se obtinha através de placas de acrílico.
Desde então, vários projetos foram feitos, para que a Universidade empreendesse as obras
de recuperação, mas o seu custo elevado e as dificuldades orçamentárias impediram a
solução do problema.

Cobertura do espaço do antigo Museu D. João


Goteiras que comprometeram completamente o Museu, VI já apresentando estragos nas suas cúpulas
tanto o seu espaço físico quanto o acervo. de concreto e fibra de vidro.

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A partir de 2002, quando iniciou o seu primeiro mandato, a nossa diretora, Profa.
Angela Ancora da Luz, empenhou-se para encontrar uma solução para o Museu. Assim,
depois de inúmeras discussões e a partir da aprovação por unanimidade na Congregação, a
EBA decidiu aderir à proposta do nosso Reitor, Prof. Aluisio Teixeira, para que as três bibliotecas
em funcionamento no Prédio da Reitoria – EBA, FAU e IPPUR – passassem a funcionar juntas
no 2º. andar do prédio, constituindo uma Biblioteca Integrada, que poderá contar com mais
funcionários e equipamentos, otimizando dessa forma a distribuição de recursos humanos e
financeiros da Universidade.
Implícita nessa adesão à Biblioteca Integrada estava a mudança de lugar do Museu.
Isto é, o Museu passou ao 7º. andar – local da antiga Biblioteca da EBA – e a Biblioteca
Integrada irá ocupar, depois das obras, o espaço do antigo Museu no 2º. andar. Ressalva
importante nessa decisão é a permanência das Obras Raras da Biblioteca da EBA no 7º.
andar, que ficará, dessa forma, ao lado do Arquivo e do Museu.
No entanto, a mudança que foi implantada no Museu não é apenas de lugar, mas
também e sobretudo de conceito museológico. E é exatamente esse ponto que nos parece
importante discutir com mais detalhes.
Ao longo dessa vivência do Museu D. João VI de quase trinta anos de existência,
algumas constatações puderam ser feitas. A primeira e mais evidente são as enormes dificuldades
financeiras, numa instituição voltada prioritariamente para o ensino: basta dizer que a nossa
Escola possui atualmente cerca de 2.400 alunos, distribuídos em dez cursos de graduação e
três de pós-graduação, envolvendo a necessidade de manutenção de salas de aulas, ateliês,
oficinas, laboratórios etc.
A segunda constatação diz respeito à utilização desse acervo – até pela sua
localização num campus universitário afastado do centro da cidade e, portanto, fora do circuito
de consumo cultural da cidade. Assim, a perspectiva para a revitalização do Museu não
poderia estar colocada nos mesmos padrões da maioria dos museus e espaços culturais da
cidade, em que o apelo à visitação geral ocupa um elemento importante nos seus critérios de
julgamento para utilização de recursos e estabelecimento de prioridades.
No nosso caso, o Museu é essencialmente um museu universitário, voltado para
uso de professores e alunos da instituição e para os pesquisadores, que têm um interesse
direto em suas fontes primárias. Mais do que isso, o Museu atende a uma escola de artes e o
seu acervo deve servir ao seu propósito original – aquele que promoveu a própria constituição
da coleção: servir de modelo de estudo e observação aos alunos para a compreensão da
tradição artística que embasou a trajetória da arte ocidental.
Assim, o acervo do Museu D. João VI serve a professores e alunos da Escola, pois,
para todos os profissionais no campo da visualidade, é indispensável o contacto direto com a
obra – mesmo no nosso tempo atual, em que podemos contar com os grandes recursos que

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a internet proporciona . Ainda como museu universitário, atende a estudiosos de todo o Brasil
e mesmo do exterior – uma vez que seu acervo é importante para a compreensão da arte
brasileira dos séculos XIX e XX. Além disso, tem servido de base para uma das principais
linhas de pesquisa da Pós–graduação da Escola, com uma produção significativa de
dissertações, teses e publicações sobre a história da instituição e a questão do ensino artístico.
Desta forma, duas idéias básicas nortearam a concepção do novo Museu D. João
VI. Em primeiro lugar, acreditamos que, para o nosso Museu, muito mais importante do que
montar exposições permanentes ou temporárias - que exigiriam recursos que nós não
temos – é efetivamente colocar o acervo à disposição dos seus usuários naturais: alunos,
professores e pesquisadores. Assim, o
conceito norteador no novo Museu D. João
VI repousa sobre a idéia da Reserva
Técnica disponibilizada ao público,
resguardados, naturalmente, os cuidados
necessários com a conservação e a
vigilância do acervo. Com a compra dos
trainéis, estantes e mapotecas para
armazenamento do acervo e dos
equipamentos para controle climático e de
segurança, a Reserva Técnica foi montada,
segundo o projeto museográfico da arquiteta
Marize Malta, também professora da EBA.
Reserva Técnica de Escultura: todo o acervo
disponibilizado ao público.

Reserva Técnica da Coleção Ferreira das Reserva Técnica de Pintura: todo o acervo está
Neves: todo o acervo disponibilizado ao disponibilizado para o público.
público.

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Em segundo lugar, ao manter unidos o Museu, o Arquivo e a Biblioteca de Obras
Raras, a Escola agrupa num mesmo espaço um verdadeiro centro de memória da instituição
– facilitando, desta forma, não apenas os cuidados com conservação e vigilância, mas também
o acesso dos usuários ao seu acervo histórico / artístico.
Assim, graças ao patrocínio da Petrobrás, foi possível à Escola de Belas Artes da
UFRJ trabalhar no sentido de garantir a preservação de seu acervo e ampliar as possibilidades
de utilização dessas fontes primárias para os pesquisadores - não apenas da UFRJ ou do Rio
de Janeiro, mas de todo o Brasil e mesmo do exterior – interessados no estudo da arte
brasileira dos séculos XIX e XX..

Alunos no Museu D. João VI. Alunos no Museu D. João VI.

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Projeto museográfico do museu D. João VI e a questão da reserva
técnica exibida

Marize Malta
EBA-UFRJ

Em 2006, quando afastada da EBA para me dedicar ao doutoramento em História


Social na Universidade Federal Fluminense, fui convidada pela professora Sonia Gomes
Pereira a assumir o projeto museográfico para o museu D. João VI (MDJVI), uma das várias
ações referentes ao projeto de revitalização do referido museu, contemplado pelo Programa
Petrobrás Cultural1, coordenado pela professora Sonia. Mesmo sabendo do risco de me
envolver com um projeto de tal envergadura paralelo ao projeto de pesquisa que vinha
desenvolvendo, não resisti aos apelos da incansável colega e à sedução daquele desafio.
Minha formação como arquiteta e a atuação como professora e pesquisadora da
EBA-UFRJ na área das chamadas artes decorativas, com ênfase na história da decoração de
interiores e do mobiliário, imprimiram-me um perfil profissional muito peculiar. Minha pesquisa
à época do convite da professora Sonia se debruçava sobre os interiores domésticos no Rio
de Janeiro no final do século XIX e início do século XX, com enfoque na cultura visual. Como
parte da pesquisa, envolvi-me com as obras raras da EBA, levantando alguns manuais sobre
artes decorativas existentes no acervo. Interessava-me tanto a formação de um olhar decorativo,
incentivado por muitos fatores, dentre os quais os manuais e livros de repertórios, quanto a
questão da implicação do lugar e da forma de apresentação de objetos para reclamar por um
olhar decorativo2. Procurar uma solução contemporânea para o acervo do museu da EBA,
fortemente constituído por obras de arte do século XIX, configurava-se um modo de travar
uma relação mais íntima com essa sistemática de pensar a locação das obras e sua implicação
na construção de sentidos.
O museu originalmente ocupava o segundo andar do prédio da Reitoria3 e seus
espaços estavam muito degradados. O esplendor modernista do amplo salão expositivo foi
abafado por problemas de infiltração e de falência do projeto luminotécnico, impedindo a
exibição do acervo. O museu se tornou um lugar sombrio e as obras de arte dividiam espaço
com baldes e bacias. A reserva técnica também estava com sua ocupação reduzida para fugir
de mofos, poças e goteiras locais. O lugar precisava passar por uma total reformulação
estrutural, uma verdadeira obra de engenharia. Contudo, em virtude de decisões acordadas
entre a reitoria da UFRJ e a EBA, o museu se mudaria para outros espaços, subindo para o
sétimo andar, onde antes funcionava o setor da biblioteca da Escola4. Seria preciso repensar
o museu D. João VI.

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Enquanto o espaço original contava com cerca de 1.500 m2, as futuras instalações
eram bem reduzidas e compreendiam dois salões e três salas, originalmente projetadas para
atividades de aula, e com um corredor no meio. A última configuração da biblioteca da EBA
usava um dos salões para guarda do acervo (sala 728) e o outro para área de consulta e
administração (sala 730). Parte do corredor havia sido reservada para área de consulta de
periódicos. Uma das salas abrigava a biblioteca de obras raras e valiosas da EBA (sala 745),
a outra a biblioteca setorial da pós-graduação (sala 743). Poderíamos contar com os dois
salões, uma sala e o corredor, sendo a sala das obras raras e valiosas mantida onde estava,
totalmente ocupada com seu acervo, o qual seria incorporado ao museu. O museu e a
biblioteca de obras raras e valiosas formariam o centro de estudos do ensino artístico, cujos
acervos se complementariam e que, naquele momento, tinham condições de coabitar o mesmo
espaço e usufruir das mesmas condições de segurança.
Embora com área reduzida, os espaços da antiga biblioteca gozavam do privilégio de
estarem em meio a salas de aula da graduação e da pós-graduação, da direção e da
administração da Escola. Somava-se a isso o custo reduzido de sua implantação. Mas o
problema de abrigar um museu em área bem menor persistia.
Vi-me diante do problema de acomodar em uma área de 500m2 cerca de duas mil
obras, além de inúmeros livros de registros acadêmicos, documentos, peças decorativas
(móveis, vitrais, porcelanas, faianças, indumentária, peças em marfim, vidro, pedra, metal),
bancadas de trabalho e uma infinidade de artefatos de medalhística. Afora as tantas obras e
documentos, haveria que se localizar as atividades para o funcionamento do museu: recepção,
área técnica, administrativa, de consulta e depósito. Negociando com a direção da EBA,
conseguimos mais duas salas. Chegamos a 640m2 (veja Tab. 1 e Fig. 1)
Ocu pação anterior L ocal O cupação proposta para o m useu

Co rre d o r - d a c antina à e ntrad a d a s ala 739 Co rre d o r Re c e p ç ão


E q uip e té c nic a e d ire ç ão d o Ce ntro d e
S ala d e aula (P ic as s o ) S ala 739
e s tud o s
Info rm átic a - b as e d e d ad o s e s ite d o
S ala d e aula (P ic as s o ) S ala 739
ac e rv o
S ala d e aula (Re m b rand t) S ala 741 A te nd im e nto e c o ns ulta - p e s q uis ad o re s

B ib lio te c a d a p ó s S ala 743 Do c um e nto s e s c rito s

B ib lio te c a d a p ó s S ala 743 Fo to g rafias

B ib lio te c a d a p ó s S ala 743 O b ras e m p ap e l

A c e rv o B ib lio te c a S ala 728 P intura


S alão d e le itura B ib lio te c aa e co rre d o r S ala 730 e Co rre d o r
E sc ultura
- d a s ala 741 à e ntrad a d a s ala 745
B ib lio te c a p ó s S ala 743 M e d alhís tic a

S alão d e le itura B ib lio te c a S ala 730 Co le ç ão Fe rre ira d as Ne ve s

A c e rv o O b ras Raras S ala 745 Liv ro s - o b ras raras

S ala d e le itura p e rid ic o s Co rre d o r De p ó s ito

Tabela 1 – Relação das ocupações dos espaços destinados ao museu D. João VI.

21
Para conhecer melhor as demandas de acondicionamento das obras, fiz visitas a
reservas de vários museus e contei com consultorias, como a de Jorge Cordeiro de Mello, do
Museu Histórico Nacional, e de Ivan Coelho de Sá, coordenador do curso de Museologia da
UNIRIO e pós-graduado pela EBA, procurando adaptar soluções à nossa realidade. As
decisões foram tomadas sempre em conjunto com a prof. Sonia Gomes Pereira, coordenadora
do projeto, e ela mesma, museóloga.

Figura 1 - planta baixa do projeto de distribuição


das atividades do novo museu D. João VI.

F.N. PINTURA
ESCULTURA
O projeto, contudo, não se
limitava a resolver problemas de ordem
Dep. MEDALHÍSTICA RECEPÇÃO
PORTA do BATISTÉRIO
FOYER
técnica. Era necessário construir uma
imagem que respeitasse o perfil do museu
OBRAS ARQUIVO PESQUISA
EQUIPE
TÉCNICA
D. João VI, valorizasse sua importância e
RARAS
contemplasse a intenção de revitalização.
Existia uma espécie de baixa autoestima,
fruto de anos de descaso e falta de
incentivo institucional. Uma nova imagem teria que fazer jus ao que aquele acervo representava
para a Escola, explicitando o devido respeito que ele merecia e relembrando que todos os
que frequentam hoje as salas de aula da EBA são herdeiros diretos de uma tradição que,
longe de ser estática e retrógrada, foi sendo reinventada em múltiplas facetas e ainda tem a
viva capacidade de dialogar com e pensar a contemporaneidade. A própria permanência do
nome Belas Artes impresso desde o título Academia de Belas-Artes, é um sinal indelével da
longa história que a Escola representa, uma instituição que neste ano de 2010 está completando
194 anos de existência.
Além disso, o projeto museográfico procurou evidenciar as discussões que estavam
norteando os estudos acerca da produção artística oitocentista, principalmente as referentes
ao ensino artístico, as quais vinham sendo foco de pesquisa sistemática da prof. Sonia Gomes
Pereira, com quem dividi as minhas problematizações e propostas. Havia feito também incursões,
em pesquisa, sobre o ensino das artes decorativas na Escola, que renderam alguns artigos,
mas sem a insistência e o aprofundamento que os cursos de pintura, escultura e arquitetura
obtiveram dos demais pesquisadores da área de formação artística no Brasil. As Belas Artes
também incluía a decoração em seu currículo. O projeto museográfico procurou lembrar desse
‘detalhe’.
As discussões acerca das coleções, da importância do acervo para entendimento
da formação artística, da história da Escola, da potencialidade das obras para a escrita da
história da arte no Brasil foram basilares para chegar à fundamentação do projeto museográfico.

22
Ele precisava deixar claro que seria fruto da revisão que nos últimos anos a arte do século
XIX/XX vinha enfrentando. As obras deveriam estar locadas em situações que demarcassem
sua ressignificação, permitindo questionar certas categorias artísticas, limites cronológicos,
classificações enrijecidas.
Uma das importantes decisões sobre o novo museu D. João VI foi a de lhe conferir
um perfil bem definido e que legitimasse sua trajetória e inserção em uma escola de artes
quase bicentenária, absorvida em 1975 por uma universidade pública federal, a UFRJ. Essa
contingência promovia uma particularidade no seu perfil e longe de querer assemelhá-lo aos
museus da cidade do Rio de Janeiro que se apoiavam em propostas expositivas (permanentes
e/ou temporárias), preferiu-se priorizar sua potencialidade para pesquisa e apoio didático5
(grande parte das obras existentes serviram como modelos didáticos para aulas de desenho
e ainda poderiam manter seus serviços se disponibilizadas aos alunos da EBA6).
Não custa lembrar que o Mouseion de Alexandria, no período helenístico, acolhia
tanto obras escritas, instrumentos, amostras e uma significativa biblioteca, quanto locais para
estudos, experimentos e pesquisas7. O projeto de revisão museográfica do novo museu D.
João VI recuperou o sentido primordial dessas primeiras instituições que se assemelhavam às
universidades atuais, espécies de ‘residências temporárias’ de estudantes, pesquisadores e
cientistas. Foi esse espírito de pesquisa que se procurou demarcar espacialmente como o
principal foco do atual museu D. João VI.
Um dos primeiros norteadores do projeto foi enfrentar os acervos do ponto de vista
das coleções. A ideia de coleções implicava ação de reunir peças sob determinado critério,
tanto de escolha das peças quanto da maneira de agrupá-las, distinto de uma sequência
cronológica ou da eleição de determinado artista para ser destacado. Vê-las em conjunto
significava tratá-las como coleções de estudo (study collections)8, locando-as de modo a
provocar indagações e problematizações capazes de incitarem novas pesquisas ou, pelo
menos, de fazer com que o público revisse suas premissas em relação ao tom pejorativo que
ainda persiste frente à categoria de arte acadêmica. As pinturas foram agrupadas por
modalidades importantes na formação do artista oitocentista: modelo vivo, prêmios de viagem,
cópias, retratos. As esculturas foram reunidas pelos temas: clássicos, religiosos, animais,
bustos, anatomias,. Nos relevos, aproximaram-se as temáticas fitomorfas, arquitetônicas,
clássicas9. Pela primeira vez, era possível ver as paredes coalhadas de obras, possibilitando
perceber sequências, grupos, conjuntos e recuperar o modo como muitas delas foram vistas
originalmente.
É importante lembrar que a experiência visual da repetição nas coleções, sem ênfase
na exclusividade ou no custo elevado de peças, foi fenômeno oitocentista, incentivado pela
experiência de olhar por meio de dispositivos técnicos, como a fotografia. Esse colecionismo
quantitativo promoveu a experiência de se relacionar dinamicamente com objetos e lugares.
O modo de dispor grande quantidade de peças parecidas procurava evidenciar suas

23
semelhanças e, simultaneamente, pequenas diferenças. O projeto procurou sublinhar esse
olhar. Era importante que todas estivessem visíveis.
Com a vocação para ensino e pesquisa, as obras do museu deveriam estar
praticamente todas disponibilizadas para estudo e franqueadas ao olhar. Com a supressão da
área expositiva, não haveria motivo para priorizar certos espaços ou obras. O museu se
transformou em uma grande reserva técnica e todas as suas salas e circulações foram
consideradas como espaço para guarda/exibição do acervo. Reforçando essa ideia, optou-
se por não se identificar as obras com placas ou etiquetas, mas apenas deixar visível seus
números de registro. O observador olharia a obra e um número e, não havendo texto, seria
levado a forçosamente estar apenas diante da imagem10. Por esse viés, chamei esse partido
projetual de ‘reserva técnica exibida’ de modo a relativizar a ideia de guarda fechada e
inacessível das reservas técnicas e da exibição espetacularizada de peças nos salões de
exposições. A intenção era de guardar e exibir, preservar e mostrar, proteger e expor. Em
vez de tratar esses conceitos como oposições, a opção foi de encará-los como diferenças
capazes de conviverem e se sensibilizarem.

Figuras 2 e 3 –
Aspectos da
‘reserva técnica
exibida’ de pintura.

Diferente de pensar em um circuito de apresentação, a preocupação se direcionou


para o melhor acondicionamento das coleções de obras diante do espaço disponível. As
pinturas, que demandavam área de ocupação maior do que as outras coleções, ficaram sozinhas
em um dos salões (Figs. 2 e 3), ocupado com trainéis móveis e fixos. O segundo salão acomodou
duas coleções: a coleção de relevos e esculturas (Figs. 4 e 5) e a coleção Jerônimo Ferreira das
Neves11 (Figs. 6 e 7), equipado com estantes e armários. As únicas peças não visíveis foram
algumas poucas que se encontravam muito fragmentadas a ponto de não conseguirem se
manter em pé. Ficaram em dois armários entremeados pelas estantes que guardavam as obras.
As peças de menor dimensão ou mais frágeis foram mantidas em armários com portas de vidro.
Além disso, todas as paredes foram usadas para assentar as obras.

24
Figura 4 e 5 –
Aspectos da
‘reserva técnica
exibida’ de
escultura.

Figuras 6 e 7 –
Aspectos da
‘reserva técnica
exibida’ da coleção
Ferreira das
Neves.

Como o projeto Petrobrás não contava com verba para restauração, depois da
higienização das peças, elas ficaram expostas no estado, muitas, amareladas, trincadas, com
perda de camada pictórica. Seu processo de envelhecimento e os procedimentos de
conservação faziam parte de sua história e mereciam ser mostrados. A ideia foi deixar tudo às
claras.
O corredor também foi aproveitado como reserva técnica exibida, absorvendo uma
amostragem da coleção de medalhística (Fig. 8), relevos em bronze (Fig. 9), bustos de ex-
diretores em antigos pedestais (Fig. 10), a cópia da porta do batistério de Florença (Fig.11),
placas institucionais. Ainda foi reservada uma área (‘Espaço peça em destaque’) para
apresentar uma peça do acervo que houvesse sido estudada por algum professor, técnico ou
aluno da Escola. Todo o mobiliário para guarda do acervo foi realizado pela Sparch, firma
especializada em móveis para reserva técnica e arquivo. Os móveis, mesmo desenvolvidos

25
exclusivamente para a demanda do museu D. João VI, foram formados por módulos
desmontáveis, facilitando transporte, caso um dia a EBA consiga sua tão sonhada sede própria
e o museu, com o novo prédio, tenha um espaço mais generoso.

Figuras 8, 9, 10 e 11 –
Aspectos da ‘reserva
técnica exibida’ da
medalhística e da
escultura (bronzes).

Entremeados ao acervo, foram aproveitados também os antigos móveis da Escola


que andavam meio esquecidos no antigo museu, como armários, vitrines, escrivaninhas,
cadeiras. Recuperados, foram reintegrados e utilizados em todos os setores, sem deixar claro
se são peças para serem contempladas ou usadas no cotidiano administrativo. Os nove vitrais
que fizeram parte de uma reforma do prédio original da Escola se alternaram entre salas de
atendimento, corredor e salões.
O arquivo do museu e as obras sobre papel (desenhos e gravuras) foram localizados
em uma sala separada onde o público não teria acesso. Não havia espaço para abrigar
móveis especiais com gavetas envidraçadas para visualização de todos os papéis da coleção.
Eles foram mantidos em mapotecas de aço, as quais passaram por reformas, e serão acessados
apenas por demanda do pesquisador à equipe do museu. A sala das obras raras e valiosas
também não será explorada pessoalmente em virtude da fragilidade do acervo, apesar de ser
vista a partir de três visores no corredor do museu. Foram os únicos espaços, incluindo o
pequenino depósito, em que o visitante não entra. De resto, tudo ficou à mostra.

26
O projeto procurou dialogar, a partir de olhos contemporâneos, com as ambientações
oitocentistas que se utilizavam de cor, textura e padronagens nas paredes para oferecer um
fundo tão artístico quanto a obra. Afinal a composição decorativa era parte integrante da
formação artística finissecular. A pretensa neutralidade das paredes brancas era, à época,
vista como temerário caráter de pobreza visual12. A grande maioria das obras do acervo,
restrita ao século XIX, não foi pensada para paredes brancas. O uso de cores nas paredes
restituiria uma experiência visual que muitas pessoas desconheciam em relação ao ato de ver
essas obras em lugares reais, concretos, físicos. A historiografia da arte acabou por isolar a
obra do lugar em que foi exposta, da parede em que estava pendurada, do móvel que a
avizinhava, da moldura e do cordame que a sustentava. O desejo da nova museografia era
restituir alguma experiência com a materialidade e a locação da obra de arte, principalmente
porque estava em um lugar do fazer e do pensar arte na sua gênese. Dentro das limitações
orçamentárias e espaciais, optei por me limitar ao uso de cores nas paredes e na disposição
das obras no espaço. As cores relativizariam a ideia de que áreas de guarda têm que ser
‘neutras’, como trariam dignidade àquelas obras por tanto tempo escondidas.
Em visita ao Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), prédio originalmente projetado
para a Escola Nacional de Belas Artes, busquei, por meio de elementos arquitetônicos
remanescentes, referências de cores empregadas na decoração dos seus interiores.
Também serviram de balizadores os preceitos dos manuais de decoração de fins do XIX e
início do XX, alguns dos quais prescreviam as cores ideais para as paredes face ao uso do
espaço e ao tipo de objeto exposto. Revistas ilustradas de início do século XX, a partir de
reportagens acerca de exposições públicas, auxiliaram a entender a sistemática de localização
das obras nas paredes e a perceber que as cores faziam parte dos fundos onde as telas e
os relevos pousavam.
De modo a facilitar a manutenção do projeto e a baixar custos, reduziu-se a paleta
de cores a azul, vinho e ocre, em tons próximos aos usados no início do século XX. As cores
ainda firmes dos pisos, em ladrilho hidráulico da época, serviram de ponto de partida, pois as
cores das paredes a eles faziam referência em termos de composição cromática. Todas as
paredes do museu receberam cores, somente diminuindo a intensidade nas salas das seções
técnica e de pesquisa, nas reservas técnicas do papel e das obras raras e valiosas.
O corredor, visível pela porta de vidro de entrada do museu, recebeu um tratamento
diferenciado. Nele, o vinho dos salões se transformou na pureza do magenta, cor símbolo das
belas artes. Ali o museu aparentava sua vivacidade na recuperação da tradição e afirmava sua
imagem de vigor em plena pós-modernidade. Não se tratava de uma cor retraída. Ao contrário,
chamava atenção e era mesmo uma exibida, cor própria para museu em uma escola de artes
que queria exibir o que guardava. Se no Modernismo, as paredes eram quase todas de tons
neutros, os ambientes da pós-modernidade restituíram o gosto pela cor. Hoje, mesmo que para
alguns seja uma ousadia, não é mais absurdo colorir as paredes de magenta.

27
O magenta das paredes de entrada acabou contagiando outras instâncias. A sinalização do
museu, feita pelo professor Marcus Dohmann, assumiu o magenta (com o branco) como uma
marca. O hall dos elevadores do sexto e do sétimo andares foram pintados de magenta pela
direção da Escola, assim como o auditório do sétimo andar. Como um efeito dominó, cartazes,
convites de formatura, material escolar, dentre outros artefatos relacionados à EBA, foram
impregnados pela cor. Do mesmo modo que Ziraldo, no ano de 1968, descobriu que a lua é
flicts, a EBA, em 2008, descobriu que é magenta...

Figura 12 – Parte da
superequipe que participou
do projeto de renovação do
museu D. João VI no dia
da reabertura ao público.

Poderia ainda falar muito a respeito da museografia, dos fundamentos teóricos das
decisões, dos levantamentos de obra por obra para se pensar no seu melhor lugar, dos
procedimentos para segurança e para conservação da obras, das empreitadas de montagem
e locação, etc., mas o intuito aqui foi de deixar um breve registro dessa experiência,
extremamente prazerosa, de ter, acima de tudo, contribuído para restituir a autoestima,
visibilidade e credibilidade do museu D. João VI, tarefa que só foi possível porque fruto de um
verdadeiro trabalho de equipe – uma superequipe (fig. 12). Se as obras estão lá, na sua
guarda exibida, são as pessoas que criaram o museu, mantiveram-no e frequentaram-no que
deram sentidos a elas. Um museu é feito por e para pessoas. Elas precisam acreditar, ver e
estimar aquilo com que trabalham, convivem e pesquisam. A meu ver, para usar de metáforas
de que tanto gosto, as pessoas precisam ficar magentas. É preciso ter prazer no que se faz e
o lugar onde se está pode contribuir para isso.
O museu agora é um dos orgulhos da Escola e é um prazer entrar pelas suas
portas. Seus dias sombrios ficaram para trás.

28
Notas e referências
1
Para conhecer a totalidade do projeto de revitalização do museu, patrocinado pela Petrobrás, veja o
catálogo-divulgação do museu. PEREIRA, Sonia Gomes. O novo museu D. João VI. Rio de Janeiro:
UFRJ/EBA, 2008.
2
Não cabe nesse texto discutir as coincidências ou divergências do olhar artístico e decorativo em fins
do século XIX e início do século XX.
3
O prédio foi destinado à Faculdade de Arquitetura, resultado do projeto premiado de Jorge Moreira, e hoje
é conhecido como Prédio da Reitoria, pois é nela onde a reitoria da UFRJ se instalou e divide espaço com
a Escola de Belas Artes e a Decania do Centro de Letras e Artes. Em virtude dessa atual configuração,
muitas adaptações foram realizadas para abarcar tantos órgãos que originalmente não foram alvo do
programa de necessidades para uma escola de arquitetura. Uma dessas acomodações foi a instalação
do museu D. João VI no espaço que fora destinado para a biblioteca da Faculdade de Arquitetura. O
professor Almir Paredes Cunha, ao proferir um depoimento sobre a criação do museu durante o seminário
sobre os 30 anos do museu, lembrou que no dia da inauguração, os alunos da Faculdade de Arquitetura
fizeram uma performance como se estivessem em um enterro, lamentando a perda daquele generoso
espaço.
4
Suprimi informações que envolveram o projeto de revitalização do museu D. João VI em virtude de já
estarem mencionadas no artigo de Sonia Gomes Pereira, que me antecede.
5
Essa posição de modo algum menospreza as concepções de museu que priorizam o objetivo expositivo.
Contudo, no caso do museu D. João VI, a opção por esse outro conceito reafirmava seu histórico, suas
demandas, seu perfil como museu universitário.
6
Hoje o museu acolhe várias turmas, agendadas previamente pelos professores, cujos alunos se
espalham pelos salões e desenvolvem seus desenhos de observação.
7
Cf. SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro:
Garamond/MinC/IPHAN/DEMU, 2006.
8
Um dos museus que abrem suas reservas técnicas ao público, em forma de coleções de estudo, é o
MAK de Viena, que tanto eu como Sonia visitamos e buscamos inspiração. Outros museus oferecem
essa solução, mas a forma de exposição e reunião das peças por conjuntos estabelecidas no MAK se
mostravam mais instigantes do que em outras instituições.
9
O ensino do desenho, basilar para capacitação do artista, passava pela cópia dos desenhos gravados,
em seguida dos relevos, depois das esculturas, até chegar na aula de modelo vivo. Somente após esse
demorado e difícil percurso, o aluno estaria apto para pintar ou esculpir.
10
Há listagens disponíveis ao público com a identificação das obras, separadas por espaços e categorias
(reserva técnica de pinturas, reserva técnica de esculturas e relevos, reserva técnica da coleção
Ferreira das Neves, espaço medalhística).
11
A coleção Jerônimo Ferreira das Neves é formada por telas, relevos, esculturas, livros, móveis,
objetos decorativos e de uso pessoal em cerâmica, vidro, marfim, pedras, metal, têxteis, couro, etc.
Foi doada pela viúva à Escola em 1947.
12
MAY, Bridget A. Advice on white: an anthology of nineteenth-century design critics’ recommendations.
The Journal of American Culture, Norfolk, vol. 14, n. 4, p.19-24., dec. 1993. Agradeço a Luciana Martins
por ter conseguido cópia deste artigo na biblioteca da London University.

29
Projeto de revitalização do Museu D. João VI/EBA/UFRJ: higienização e
acondicionamento do acervo na nova Reserva Técnica

Mariza Chaves Vilela


Museóloga

Em 2005 fui contratada pelo Projeto Petrobrás para higienizar todo o acervo do
Museu D. João VI, visando a sua mudança para a nova reserva técnica, projetada para
acolher todos os tipos de objetos que fazem parte desse acervo.
Quando cheguei aqui, me deparei com um museu em estado bem precário: inúmeras
goteiras, muitos cupins e muita poeira.

Com uma equipe de bolsistas, optamos


por iniciar o nosso trabalho pelas obras em
suporte de papel. Entre gravuras, desenhos e
desenhos arquitetônicos, foram 1702 obras. Este
acervo encontrava-se protegido em mapotecas,
mas acondicionados em embalagens
inadequadas, o que não favorecia a preservação
das mesmas.

30
Iniciamos nosso trabalho ralando borracha. Todas as
peças foram higienizadas com trincha macia, de pelo de coelho,
e borracha vinílica ralada. Com exceção das obras com técnica
em carvão, sépia ou grafite por exemplo.
Para cada obra, foi confeccionado um suporte em papel
alcalino, 120 g, com o número da peça localizado na parte
frontal, no canto inferior direito, para facilitar a identificação da
obra, evitando o manuseio desnecessário. Para as obras mais
sensíveis, confeccionamos caixas de polionda para guardá-las.

Essas obras estão armazenadas em


mapotecas.
As pinturas, óleo sobre tela, foram
cuidadosamente higienizadas comtrincha de
pelo de coelho e no verso, com pincéis mais
firmes paratirar asujidadeacumulada.

31
Muitas obras estavam
com cupins nos chassis ou nas
molduras, fizemos então, uma
triagem para que, futuramente,
fossem realizados os trabalhos de
conservação e restauração
dessas peças.
As esculturas, depois
de higienizadas, receberam uma
fina camada de cera micro-
cristalina e, posteriormente, foram polidas com escova macia.
Nas moldagens de
gesso, voltamos à borracha
ralada e aos pincéis mais
firmes.
Todas as obras
foram envolvidas em plástico-
bolha, aguardando a
mudança para a nova
reserva técnica.
Além das técnicas
citadas, o museu possui
porcelanas, livros, objetos de
decoração, indumentária,
mobiliário, fotografias,
diplomas, vitrais...
Todas as peças
foram higienizadas,
obedecendo às normas
técnicas de conservação,
permitindo assim, aos
pesquisadores e visitantes,
a oportunidade de apreciar
esse acervo tão significativo
para a história das artes no
Brasil.

32
A conservação de telas no Museu D. João VI

Maria Alice Honório Sanna Castello Branco


Especialista em Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis pelo Cecor, EAV/ UFMG
Mestre em História e Crítica da Arte pelo PPGAV da EBA/ UFRJ

Há três anos fui convidada pela Professora Sônia Gomes Pereira para colaborar no
projeto de revitalização do Museu Dom João VI, especificamente na recuperação de um lote
de aproximadamente 150 pinturas de cavalete1 que estavam muito danificadas. Naquela
época, o Museu funcionava no segundo andar do prédio da Reitoria da Universidade Federal
do Rio de Janeiro.
Na primeira visita, logo ao entrar no salão que servia de reserva técnica, pude ver
um grande número de telas encostadas nas paredes, diretamente em contato com o piso,
apresentando sinais evidentes de deterioração. Apesar de ser questão concernente à
Restauração2, não cabe neste artigo descrever as condições ambientais das antigas instalações
do Museu para a salvaguarda de seu acervo e, portanto, ficarei restrita a descrever o estado
de conservação das cerca de 150 telas deterioradas naquele átimo de tempo, momento em
que precisavam de intervenção imediata.
Alguns aspectos chamaram minha atenção. Em primeiro lugar, era notável a
diversidade. Havia quadros de dimensões variadas, de pequeno formato até alguns em
tamanho monumental, de técnicas, gêneros e épocas diferentes. Neste sentido, dentre as
obras em processo visível de deterioração, havia algumas de artistas que pertenceram aos
quadros da Escola em seus primórdios até outras de artistas –professores ou alunos – de
épocas recentes.
Em segundo lugar, verifiquei que: a) muitas telas aparentavam estar, ou de fato elas
estavam, prestes a se soltar naturalmente de seus chassis3 e, em decorrência disso, mostravam
acentuados abaulamentos; b) um conjunto de telas já tinha tido seus chassis inutilizados e, por
isso, encontravam-se empilhadas sobre uma mesa; c) grande número de telas apresentava
rasgos, furos e perda de matéria em seus suportes e d) as imagens representadas em muitas
telas estavam sem legibilidade em virtude, dentre outros fatores, do acúmulo de poeira e
outras sujidades em suas superfícies.
Certamente riscos mais graves eram iminentes, havendo, portanto, urgência em
começar o tratamento de recuperação dessas telas, parte de um acervo de grande importância
para a memória da história da educação artística e para a historiografia da arte brasileira.
Aceito o desafio, passei a trabalhar no projeto tendo como assistentes duas estudantes
bolsistas, Andréia Silva Santos e Cristina Rios de Castro Ouchi.
Após a etapa inaugural de avaliação do estado de conservação de cada obra, a
primeira providência, de caráter emergencial, foi separar as telas em dois grandes lotes e

33
colocá-las em salas distintas. Assim, em uma sala vazia do Museu foram dispostas as telas que
se encontravam aparentemente estáveis em seus chassis. Em outra sala, as que estavam se
soltando do chassi. Este segundo lote deveria ter prioridade de tratamento em relação àquele,
pois o diagnóstico realizado na ocasião confirmou a suspeita de infestação da madeira dos
chassis por insetos xilófagos. Daí sua degradação visível, carcomidos e inadequados para
cumprir a função de estruturar aquelas obras de arte. Sobretudo, a degradação dos chassis
promovia ou facilitava outras deteriorações nos suportes tais como o abaulamento e a perda
de matéria. Tal degradação, com certeza, contribuía também para acentuar o desprendimento
de camadas de base de preparação e de pintura, ou de ambas, diagnosticado em muitas telas,
processo provavelmente decorrente de variações de temperatura e umidade do ar nas
instalações físicas do Museu.
Dessa forma, nesta primeira etapa do projeto, as telas em risco foram retiradas dos
chassis, uma a uma. À medida que fomos removendo os chassis danificados, verificamos que
em muitos quadros a ação desses inimigos não ficou limitada à madeira dos chassis, mas eles
haviam atacado também o tecido do suporte que, além da madeira, lhes serviu de alimento.
O processo de remoção era seguido pela higienização do suporte, pelo verso e
pela frente. A higienização do verso consistiu em passar aspirador de pó de baixa sucção para
retirada de sujeiras mais pesadas, usar trincha para uma varredura em sujidades mais aderidas
e, finalmente, usar pó de borracha para o refinamento da limpeza, tomando o cuidado de
remover seu resíduo. Na parte da frente, essa limpeza foi realizada com trinchas e pincéis
adequados e com uso de bisturi nas pinturas que apresentavam partículas estranhas aderidas.
Além disso, as telas retiradas dos chassis que apresentavam desprendimento de camada
pictórica ou de base de preparação foram faceadas com papel japonês a fim de deter esse
processo até a próxima fase do tratamento, na qual essas camadas seriam devidamente
refixadas.
É importante dizer que, como medida preventiva, aquele lote de quadros cujas
telas possuíam chassis em melhores condições receberam imunização e permaneceram
isoladas a fim de se evitar o contato com obras, comprovada ou supostamente, infestadas.
Por fim, foram embaladas para serem transportadas em segurança durante a mudança de
espaço físico do Museu.
O fim da primeira etapa de trabalho – que a equipe apelidou, com muita propriedade,
de etapa de UTI - coincidiu com a mudança das instalações do Museu do 2º. para o 7º. andar
do mesmo prédio.
Nas novas instalações, foi reservado um espaço para atender às necessidades da
segunda etapa do projeto. Nesta segunda fase, a equipe foi reforçada. Primeiro, no início de
2008, com a entrada da aluna Rosângela de Andrade Dias, que ficou no lugar de Cristina
Ouchi e, a partir de meados do mesmo ano, contamos ainda com a participação dos alunos
Vera Lúcia da Silva Fernandes, Lenir Maria da Silva, Hilário Silva, além de Fátima Alfredo. No

34
fim de 2009, tivemos mais um reforço com a entrada da aluna voluntária Mariana Nascimento
Agostinho.
O início da segunda etapa, no início de 2008, foi o momento de definir os rumos do
projeto, especialmente seus objetivos e os procedimentos metodológicos para alcançarmos
os resultados desejados. Era preciso levar em consideração a grande quantidade de obras,
os recursos materiais e de tempo disponíveis, além das próprias restrições do local de trabalho,
ou seja, um atelier adaptado onde, por questões de segurança e de bom senso, não
poderíamos, por exemplo, utilizar produtos químicos normalmente indicados em procedimentos
de restauração.

Diante dessas condições da realidade, o objetivo traçado foi o de estabilizar as


obras introduzindo muito poucas modificações visuais. Para cumprir tal objetivo, a proposta
exequível foi de adoção de medidas próprias da conservação direta ao invés daquelas
adotadas em procedimentos de caráter restaurativo, que incluiriam mudanças estéticas
significativas como a reconstrução de formas perdidas ou de reintegração cromática4. Esta
última opção, a propósito, acarretaria custos muito elevados, disponibilidades maiores de
tempo e de espaço de trabalho, incompatíveis com os recursos financeiros e humanos
destinados ao projeto.
Portanto, considero a escolha pela conservação direta uma opção orientada
por uma ética de inclusão, uma vez que a adoção de técnicas e procedimentos de caráter
conservativo tornou possível, dentro da realidade institucional, o tratamento e a
consequente recuperação de todas as obras, sem excluir nenhuma ou eleger algumas
por meio de critérios ou valores subjetivos. Além disso, a conservação direta atendia com
propriedade ao caráter do Museu D. João VI, um museu universitário voltado
essencialmente para professores, alunos e pesquisadores para os quais este acervo
constitui instrumento de estudo e observação como fonte primária. Daí a preocupação e
a conduta ética de proporcionar às telas um tratamento que restituísse sua legibilidade
sem, contudo, acrescentar em suas lacunas reintegrações de formas ou de cores perdidas,
que confundissem ou dificultassem, aos estudiosos, a compreensão das técnicas e materiais
utilizados pelo artista criador.

35
Passo, a seguir, a descrever, em linhas gerais, os principais procedimentos efetuados
no conjunto das obras ao longo da segunda fase de tratamento.
Os procedimentos consistiram em estruturar os suportes das obras mediante a
sutura de rasgos e furos ou a execução de enxertos de áreas perdidas. Essas operações
ocorreram com a utilização de materiais e adesivos apropriados às necessidades de cada
obra em tratamento.
Algumas telas tinham necessidades especiais que foram adequadamente atendidas.
Refiro-me, em especial, àquelas telas com desprendimento de camadas de base de preparação
ou de pintura que precisavam ser refixadas. Os adesivos utilizados nessa operação variaram
em função das características técnicas, dos materiais originais selecionados pelo artista e da
extensão e do grau de descolamento apresentado em cada obra com este problema específico.
Outro procedimento adotado em algumas obras cujos suportes apresentavam uma
fragilidade intrínseca foi o reentelamento. Esse procedimento consiste em aderir, no verso da
tela, um novo tecido compatível com o tecido original que se acha debilitado, como forma de
incrementar sua resistência física.
Por fim, as obras foram recolocadas em chassis novos, executados em madeira de
boa qualidade e manufaturados segundo o modelo estabelecido pelos profissionais da
conservação e restauração que visa garantir o acondicionamento adequado da tela. Para
isso, esses chassis possuem a peça de madeira chanfrada na parte interior, que fica em
contato com a obra, a fim de que a peça de madeira não produza, futuramente, marcas na
superfície da pintura. Além disso, os chassis possuem cunhas, isto é, peças apropriadas para
se proceder a ajustes dos suportes em tecido em seus chassis, uma vez que ambos (tecido e
madeira) são materiais higroscópicos e podem sofrer movimentações, expansões e contrações,
especialmente em caso de variação brusca da umidade relativa do ar ou de temperatura no
ambiente de guarda ou de exposição. É bom registrar que a recolocação de telas em chassis
exige que se faça, antes, um reforço nas bordas do suporte para que, uma vez fortalecidas as
bordas, a tela possa ser estirada no chassi com segurança.
No momento atual, todas as obras (com exceção de seis telas que estão em final de
tratamento) já saíram do atelier estabilizadas e voltaram à (nova) reserva técnica capazes de
cumprir suas funções simbólica, documental ou historiográfica, junto ao público do Museu. Isto
significa, enfim, que o resultado desejado de recuperação e preservação do acervo de
pinturas de cavalete está sendo alcançado.

Notas e referências
1
O número exato de telas incluídas no projeto é 144. Contudo, algumas outras telas que não estavam
incluídas no projeto originalmente, foram levadas ao atelier por necessitarem de pequenas intervenções.
Por isso, neste artigo, refiro-me a 150 telas, por aproximação e pela facilidade, ao escrever, de
mencionar um número inteiro.
2
O termo restauração, em línguas latinas, é empregado indistintamente para descrever tanto as atividades
próprias do profissional da conservação-restauração quanto às operações de restauração propriamente

36
ditas – atividades do restaurador, ainda que distintas de outras, como a conservação e a conservação
preventiva. Tal ambigüidade causa confusão e inexatidão, dificultando qualquer reflexão mais rigorosa.
Por isso, neste artigo, adotei a convenção utilizada pelo teórico Salvador Muñoz Viñas. Assim, ao utilizar
o termo Restauração, com maiúscula, estou me referindo à atividade do conservador/restaurador em
sentido amplo. Ao usar o termo restauração, grafado com minúscula, me refiro à parte do trabalho de
Restauração que tem por finalidade devolver ao objeto traços perceptíveis (como formas e cores
originais, por exemplo) para um espectador médio e em condições normais de observação. Ao usar o
termo conservação ou conservação direta, me refiro a uma intervenção técnica na qual a finalidade maior
é buscar a estabilidade do bem cultural sem alterar, ou ao menos sem pretender alterar, a aparência do
objeto. Por fim, ao usar o termo conservação preventiva me refiro à atividade de conservação na qual
não se realizam intervenções diretamente sobre aquilo que se quer preservar, mas sobre as circunstâncias
ambientais onde o bem cultural se encontra. In: VIÑAS, Salvador Muñoz. Teoría contemporánea de la
Restauración.Madrid. Editorial Síntesis. 2003, p. 19-22.
3
Chassi é a estrutura de madeira que sustenta o suporte em tecido dos quadros.
4
Há uma discussão complementar e importante que, entretanto, não cabe no corpo do artigo. Normalmente,
o senso comum espera de uma obra que foi restaurada a reaquisição ou o retorno ao protoestado (ou
estado original) ou, em outras palavras, que ela volte a ter a mesma “leitura” que ela possuía ao ser
criada pelo artista. Sem dúvida essa expectativa é impossível de ser alcançada pela Restauração tendo
em vista a historicidade dos objetos. Por isso, utilizando o pensamento de Munõz Viñas, podemos dizer
que os procedimentos de restauração, ao eliminar os signos da passagem do tempo ou da história do
objeto, restituem parte de uma legibilidade perdida e, ao mesmo tempo, eliminam outras legibilidades. Por
outro lado, na opção por procedimentos de conservação direta, como no caso do projeto apresentado, as
obras mantiveram em si mesmas os signos de sua história, o que constitui, segundo o teórico, uma
legibilidade possível. Afinal, segundo as palavras de Viñas: “a obra de arte, o mejor, um objeto de
Restauración, es um palimpsesto: uma sucesión de textos que se suceden sobreponiéndose mutuamente.
Cuando se restaura, se elige uno de esos textos sobre los demás. No se restituye la legibilidad del
objeto, se privilegia uma de sus posibles lecturas em detrimento de otras”. In: VIÑAS, 2003, p. 117.

37
A aparência vestida na Coleção Ferreira das Neves do Museu D. João VI
– relato de um processo de trabalho

Maria Cristina Volpi Nacif


Artes Cênicas/ PPGAV/EBA/UFRJ
Núcleo Interdisciplinar de Estudo da Imagem e do Objeto/ NIO

Introdução
A aparência vestida na coleção Ferreira das Neves do Museu Dom João VI é um
projeto de pesquisa que vem sendo desenvolvido por alunos bolsistas de Iniciação Científica
e Artística desde 2007, sob minha orientação.
Como parte da coleção Jerônimo Ferreira das Neves – doada à EBA em 1947 e
integrando o acervo do Museu D. João VI - existe um conjunto heterogêneo composto por 68
(sessenta e oito) itens agrupados sob a classificação de objetos pessoais.
O conjunto compreende as seguintes tipologias:
Adorno feminino (4) Joias (8)
Alfinete de chapéu Bracelete
Meia lua Broche
Meia lua Escaravelho (amuleto)
retangular Gargantilha
Caixas e estojos (18) Medalhão
Caixa - tampa Pulseira
Caixa com tampa (Coliseu) Pulseira com dois berloques
Caixa cosmético Relicário pingente em forma de coração
Caixa de miudezas Leques (7)
Caixa de miudezas (Forges D. Hennebont) Leque - baralho
Caixa de miudezas com esfigie de D. Maria I Leque (bombom Siraudin)
Cuba Leque (renda)
Estojo (Jullian le Rouge) Leque (tecido)
Estojo para relógio Leque bordeaux
Estojo para relógio Leque comemorativo da Exposição
Frasco de perfume Universal/Paris 1889
Porta - agulha Ventarola
Porta – perfume em forma de chave Outros (3)
Porta pó-de-arroz Abotoadeira de polaina
Porta-anel Cabo de sombrinha
Porta-anel Lava-olhos
Tabaqueira Peças eclesiásticas (19)
Trousse Casula

38
Cálice Toalha de altar
Dalmática Toalha de altar
Dalmática Véu de cálice
Estola
Relógios (9)
Forro de cadeira
Mostrador de relógio (Brandt & Fils)
Luva
Luva Mostrador de relógio com pintura de espadachim
Manguito Relógio – broche
Manguito Relógio (Jullian Le Rouge)
Manípulo Relógio com alça
Pala Relógio com alça (algarismos romanos)
Par de sapatilhas Relógio com alça (algarismos romanos) (Tim Williamson)
Sapatilha Relógio com alça (I. Rothertine)
Sapatilha
Vidro de mostrador de relógio
Tampa de cálice

A proposta inicial foi fazer um estudo das peças, procurando contextualizar o uso e
significado simbólico destes objetos. A partir de um contato inicial com o acervo, foram identificadas
as necessidades reais que motivaram as ações de estudo propostas pela pesquisa: atualização
do registro e documentação, propostas alternativas de acondicionamento de peças, estudo
taxionômico e histórico das peças.

Registro e documentação
A partir da análise das fichas catalográficas, ficou claro que o primeiro passo seria
disponibilizar mais informações. O processo de documentação de um acervo inclui o registro,
inventário e catalogação e para isso devem-se ter as seguintes ferramentas: livro de registros,
ficha de inventário, ficha de catalogação que contenha os dados básicos do objeto, base de
dados (internet), glossário de terminologia (baseado no Thesaurus) e listas de localização.
Foi sugerida uma ampliação na ficha catalográfica original, para incluir dados mais
completos de cada peça. Os itens constantes na ficha original são: classe, subclasse, título,
datação, técnica/material, dimensões, autor e assinatura. Sugerimos acrescentar: foto do traje,
doador, usado por, descrição da peça, descrição de peças complementares (se houver),
desenho técnico, referência bibliográfica, outras referências, cor, outros, foto do detalhe (se
houver), descrição do detalhe.
Pesquisas em outros acervos de indumentária no Rio de Janeiro deram subsídios
para proposta de uma ficha mais completa. A proposta de inclusão dos novos itens sugeridos
foi o resultado de visitas técnicas realizadas em acervos de indumentária no Rio de Janeiro1e
da vivência das bolsistas que atuaram na organização do Centro de Referência Têxtil/Vestuário
do Curso de Artes Cênicas da EBA.

39
Exemplo da ficha sugerida:
CLASSE Objeto pessoal

SUBCLASSE Objeto de auxlio/conforto pessoal

TITULO Leque - baralho

NÚMERO DE INVENTÁRIO

LOCALIZAÇÃO

FOTO

DOADOR Ferreira das Neves

USADO POR s/i

DATAÇÃO s/d

AUTOR s/a

ASSINATURA s/a

Leque, formado por lâminas de madeira, ligadas entre si por fita,


DESCRIÇÃO DA PEÇA
com desenhos vazados e pintados.

DESCRIÇÃO DE PEÇAS COMPLEMENTARES s/pc

DESENHO TÉCNICO

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

OUTRAS REFERÊNCIAS

TÉCNICA/MATERIAL Madeira vazada e pintada.

COR Branco, azul ciano, vermelho, cinza, preto, bege.

OUTROS

FOTO DO DETALHE

DESCRIÇÃO DO DETALHE:

FONTE: Museu D. João VI/Tesaurus/ pesquisa feita pelas alunas Fernanda Garcia Nunes e Elisa Emmel Vilas

Em seguida, foi feito o registro fotográfico das peças.

Adorno feminino:

Alfinete de chapéu.
FOTO: Elisa Emmel Vilas.

40
Caixas e estojos:

Caixa de miudezas com esfígie de D. Maria I.


FOTO: Elisa Emmel Vilas.

Joias:

Pulseira com dois berloques.


FOTO: Elisa Emmel Vilas.

Leques:

Ventarola.
FOTO: Paula Bahiana.

Outros:

Cabo de sombrinha.
FOTO: Elisa Emmel Vilas.

Peças eclesiáticas:

Casula – paramento de bispo


usado no Advento.
FOTO: Elisa Emmel Vilas.

Casula – detalhe.
FOTO: Elisa Emmel Vilas.

41
Relógios:

Relógio com alça (algarismos romanos).


FOTO: Paula Bahiana.

Proposta de acondicionamento vertical


Para facilitar o acondicionamento e o arquivamento de uma coleção de vestuário, é
necessário sempre que possível, padronizar as soluções de guarda: invólucros (modelos e
formatos) e mobiliário. No entanto, dada a variedade de formas e materiais empregados nos
usos do vestuário, a primeira etapa a se cumprir é um levantamento minucioso dos objetos.
Somente depois será possível estabelecer as soluções ideais de guarda das peças.
Ao lidar com o acervo, foi constatado que as casulas e vestes poderiam ser guardadas
penduradas em cabide, já que este tipo de acomodação ocupa menos espaço. O cabide de
tipo comum, de plástico com o gancho um pouco mais alto pode ser adaptado para não ocorrer
deformações e outros danos mais graves no traje. Em seguida, é forrado com manta acrílica,
moldado para que acomode o vestuário. Em alguns casos o centro da estrutura deve levar
reforços de placas de plástico corrugado. Posteriormente este conjunto deve ser isolado com
uma camada de manta acrílica e recoberto com malha tubular ou tecido 100% algodão. O
vestuário pendurado é coberto por uma capa feita de algodão, com abertura por cadarços
nas laterais, para facilitar o manuseio.
Exemplos de cabide e capa utilizados.

Cabide forrado.
FOTO: Áurea Bezerra da Silva.

Exemplo de capa desenvolvida por Áurea Bezerra da Silva.


FOTO: Áurea Bezerra da Silva.

42
Já a acomodação de peças deterioradas ou de formatos pequenos, deve ser feita em
caixas especialmente desenvolvidas levando-se em conta os formatos, para que o objeto
fique acondicionado sem se locomover dentro do recipiente e revestido com os materiais
necessários para a sua conservação.
Tais materiais são: o etaflon, usado para a confecção de bases com formato especifico;
o acrílico, por apresentar isolamento térmico; o poliéster, por apresentar as mesmas qualidades
do acrílico e ser usado para acolchoamento; o tule de poliamida, para organizar pequenos
objetos; a malha tubular cirúrgica e o algodão 100% para forrações, revestimentos e capas.
Além do exame das peças e do registro fotográfico, está em andamento um estudo
taxionômico e histórico. A partir do levantamento bibliográfico2, de visitas técnicas e entrevistas
com especialistas3, estão sendo formuladas novas hipóteses sobre a nomenclatura empregada
nas fichas do acervo, ao mesmo tempo em que se procura compreender o uso das peças em
seu contexto original.

Conclusão provisória
A experiência com acervos diversos, a participação em seminários e congressos, as
visitas técnicas e cursos têm contribuído para capacitação dos alunos envolvidos e para
sugestões de soluções para guarda das peças do acervo4.
Por outro lado, ao sistematizar o estudo das formas vestimentares aplicadas aos
objetos pessoais da Coleção Ferreira das Neves, contribuímos para reflexões em torno da
questão dos objetos pessoais e da cultura material em geral e da pesquisa acadêmica no
âmbito da Escola de Belas Artes em particular5.

Notas e referências
1
As fichas catalográficas que serviram de referência foram as do Museu Mauro Ribeiro Viegas da
Imperial Irmandade de Nossa Senhora da Gloria do Outeiro e do Museu Imperial em Petrópolis, RJ.
2
Base Minerva, Biblioteca Nacional, Biblioteca Setorial do Centro de Letras e Artes do Sistema de
Bibliotecas da UNIRIO, Biblioteca do Seminário São José e Mitra Arquiepiscopal.
3
Padre José Roberto Rodrigues Develar da Paróquia da Ressurreição e o Cônego Antonio José de
Moraes da Paróquia Nossa Senhora.
4
Os acervos visitados foram: Museu Mauro Ribeiro Viegas da Imperial Irmandade de Nossa Senhora da
Gloria do Outeiro, Museu Arquidiocesano de Arte Sacra, Museu Histórico Nacional.
5
As seguintes obras serviram de referência para esse trabalho: CONFERENCIA Internacional de
Colecciones y Museos de Indumentária – ICOM / Museo Nacional Del Pueblo Español. Madrid: Ministerio
de Cultura, 1993. GREIMAS, Algirdas Julien. La mode em 1890. Paris: Presses Universitaires de
France, 2000. MILLER, Daniel; KÜCHLER, Susanne (Ed.), Clothing as material culture. Oxford, UK /
New York, Berg, 2005. OLIVEIRA, Cecilia H. de Salles; BARBUY, Heloisa. Imagem e produção de
conhecimento. São Paulo: Museu Paulista/USP, 2002.

43
O acervo de obras raras como fonte de estudo sobre o ensino acadêmico
de arquitetura

Denise Gonçalves
CBHA

Este trabalho retoma uma pesquisa realizada entre 1997 e 1998 através de bolsa de
recém-doutor do CNPq junto à Escola de Belas-Artes, tendo como objetivo maior o estudo
sobre o ensino de arquitetura da Academia e Escola Nacional de Belas-Artes no século XIX e
início do XX. A primeira etapa dela, desenvolvida no período em questão, consistiu no inventário
dos livros referentes ao estudo de arquitetura pertencentes ao acervo de obras raras da
Escola.
Em primeiro lugar, gostaríamos de ressaltar a importância desse conjunto quando
colocado dentro do quadro da atividade editorial do século XIX. Como se sabe, o
desenvolvimento de publicações especializadas na Europa oitocentista foi um fenômeno acima
de tudo quantitativo; no que se refere à arquitetura, multiplicaram-se as publicações de vários
gêneros : tratados, manuais, inventários, somados à novidade das revistas – cuja periodicidade
revelou-se o melhor meio de acompanhar e divulgar a dinâmica das novas ideias e realizações.
Essas obras, de caráter mais leigo que erudito, fizeram parte de um verdadeiro tour de force
que visava dar suporte ao incremento sem precedentes da atividade construtiva dentro de um
quadro bastante complexo de modernização de técnicas, necessidades e exigências. Dentro
do processo de europeização que caracteriza o período, essa produção espalhou-se pelas
diversas partes do mundo e foi em boa parte responsável pela divulgação da arquitetura
europeia oitocentista e de suas novas tecnologias; foi desse modo um importante agente da
internacionalização de uma maneira moderna de pensar e de projetar arquitetura, conhecida
como Ecletismo.
O conjunto das obras raras da antiga ENBA pode ilustrar esse processo ao mesmo
tempo que permite a observação e a análise de uma série de aspectos e de nuances que ele
comporta; muitas das questões que envolvem a arquitetura oitocentista, europeia ou local,
podem ser, se não esclarecidas, pelo menos melhor compreendidas através do exame dessas
publicações : elas revelam, em seu conjunto, o “espírito do tempo”. Dentre as inúmeras
possibilidades de exploração do material, este constitui um instrumento para se avaliar o
próprio ensino ministrado pela nossa academia que, como se sabe, sofreu duras críticas
desde sua origem pela filiação ao sistema acadêmico francês.
A discussão no entanto é ainda mais ampla e diz respeito à adequação de um ensino
acadêmico baseado na tradição clássica num quadro de franca modernização da arquitetura
e da construção; ela começa dentro do contexto europeu e acompanha todo o período numa
polêmica acirrada que tem como epicentro a École des Beaux-Arts, referência e modelo para

44
o ensino das artes no período. Às críticas várias que envolvem o ensino acadêmico de
arquitetura desde o início do século – anacronismo das referências, autoritarismo do classicismo,
inadequação de uma formação de caráter “artístico”, vinculada institucionalmente ao ensino da
pintura e escultura – contrapõem-se os elogios à formação especializada e de caráter científico
dos engenheiros da École Polytechnique e da École des Ponts et Chaussées, estas também
modelos para as escolas de engenharia. Apesar de um evidente movimento na direção da
modernização do ensino de arquitetura na escola francesa, essa dicotomia só perderá a força
bem mais tarde, quando os cursos de arquitetura se tornarem autônomos. A mesma situação
se reproduz no nosso caso, acrescida pela polêmica em torno da adequação de um ensino de
caráter “estrangeiro” num contexto de construção da nacionalidade brasileira. Todo esse
quadro merece uma análise mais aprofundada e uma reavaliação do ensino artístico oficial.
Voltando às obras raras, o inventário realizado – mas ainda não sistematizado –
revelou um conjunto de em torno de trezentos títulos, a grande maioria de língua francesa com
alguns exemplares em italiano e alemão – muito poucos em inglês –, publicações de caráter
variado e que foram certamente adquiridas a partir da reforma Pedreira instituída por Araujo
Porto-Alegre em 1855. O então diretor da Academia, segundo Helena Uzeda, em seu projeto
de modernização da instituição teria defendido como ponto fundamental a criação de uma
biblioteca atualizada que pudesse servir de referência para o ensino ali ministrado 1. Pudemos
observar, e isto deve ser enfatizado, que o conjunto inventariado é da maior importância,
reunindo títulos que podem ser encontrados hoje nas principais bibliotecas de língua francesa,
o que mostra o cuidado com que foram escolhidos no momento de sua aquisição.
Essas publicações são de tipos variados, podendo ser divididas, grosso modo, em
grupos. Em primeiro lugar os tratados, que englobam desde os clássicos – Vitruvio, Alberti,
Palladio – até os tratados oitocentistas, que comportam duas versões : os de formato similar
aos tratados clássicos, que tratam da composição de arquitetura desde os aspectos construtivos
até a decoração e que apresentam uma parte teórica, onde são expostos os princípios da boa
arquitetura segundo cada autor – os de J.L.N. Durand, Rondelet, L. Réynaud – ; e os tratados
de caráter prático, também intitulados manuais, que tratam objetivamente de temas específicos
tais como estereotomia, telhados, alvenaria, ferroneria artística, etc. Ainda se referindo aos
manuais, temos os repertórios de modelos para ornamentação: aí se encontram, entre outros,
o de Charles Blanc, Owen Jones, E. Grasset, Viollet-le-Duc.
Outro grupo é formado pelos inventários ou “recueils” de obras de arquitetura, onde
se encontram tanto as que tratam da Antigüidade – os clássicos Stuart & Revett e Quatremère
de Qüincy – quanto a Architecture Toscane de Grandjean de Montigny e mesmo um exemplar
sobre arquitetura árabe; acrescidos daqueles de caráter mais contemporâneo, de maior
número na coleção, que tratam de temas atuais: tipologias, arquitetura moderna, habitação
moderna, arquiteturas locais, e que são assinados por nomes significativos como César Daly,
Victor Caillat e, novamente, Viollet-le-Duc.

45
As publicações de caráter teórico, numericamente menos importantes no conjunto,
dividem-se entre as que tratam da história dos estilos de arquitetura – incluindo a de autoria de
Alexander Spelz –, as que tratam da crítica – Ruskin e L.A.Boileau – e ainda as que se referem
objetivamente a disciplinas que constam do programa de ensino: geometria descritiva, desenho,
matemática para arquitetos, etc. A estas juntam-se as que tratam do próprio ensino oficial
francês: concursos, grand prix, o ensino da École Nationale et Spéciale des Beaux-Arts –
alternativa à École des Beaux-Arts – e ainda a obra-chave para o ensino de arquitetura,
Élements et Théorie de l’Architecture do professor da EBA Julien Guadet – exemplar como
abordagem do papel da teoria para o ensino artístico.
O interesse pelas Exposições Universais não poderia estar ausente: relatórios das
exposições europeias constituem mais um grupo da coleção. Sua presença é plenamente
justificada já que, muito mais do que a simples curiosidade despertada por elas no público em
geral, era na ocasião das exposições que se testavam as últimas novidades construtivas:
novas tecnologias, novos materiais, novas aplicações, podendo-se dizer que elas constituíram
um campo experimental da maior importância para a modernização da arquitetura e do
urbanismo oitocentistas.
Deixamos por último as revistas, como já dissemos publicação característica do XIX,
informativas e ao mesmo tempo norteadoras da produção arquitetônica do período. Encontramos
aí a pioneira Revue de l’Architecture et des Travaux Publics editada por César Daly, iniciada
em 1840 e que deve ter sido adquirida não como periódico mas em edição posterior no
formato de coleção; a Gazette des Architectes et du Bâtiment editada por Viollet-le-Duc a
partir de 1863, a Encyclopédie d’Architecture, a norte-americana The American Architect e
outras relacionadas mais diretamente à decoração: L’Art décoratif pour tous, Encyclopédie de
l’art industriel et décoratif, etc.
Cabe observar a diversidade desse quadro de referências para o ensino da nossa
escola, não apenas no que se refere aos tipos de publicações e temas abordados mas
também no que se refere às ideias e posturas críticas. Um claro exemplo é a presença no
mesmo conjunto de duas figuras ideologicamente antagônicas no contexto da arquitetura
oitocentista: de um lado César Daly, o incansável defensor da arquitetura contemporânea e do
sistema acadêmico de ensino, conciliador e otimista; e do outro Viollet-le-Duc, eterno crítico da
produção contemporânea e do ensino oficial, responsável pelo episódio revolucionário que
marcou a École des Beaux-Arts na segunda metade do século – infelizmente, sem resultados
concretos –, personagem contraditório e cético quanto ao futuro da arquitetura, mas que teve
e ainda tem enorme importância pelas obras teóricas que publicou e pela influência delas para
as gerações modernas do século XX. O fato da biblioteca da academia abrigar um conjunto
heterogêneo e ao mesmo tempo afinado com as questões contemporâneas relativas à
arquitetura e ao ensino não deixa de ser significativo de uma abertura de espírito no mínimo
saudável para o meio acadêmico.

46
Com o intuito de exemplificar as possibilidades que oferece esse material para o
estudo do ensino acadêmico, e para a desconstrução de uma série de preconceitos que
envolvem a sua história, tomaremos duas obras fundamentais no período: o Précis des
Leçons d’Architecture de J.N.L. Durand e o Traité d’Architecture de Léonce Reynaud. O que
esses dois livros têm em comum, é que foram escritos por professores da École Polytechnique
como resumo do curso de arquitetura ministrado por eles; outro ponto é que adotam como
princípios de base para a composição de arquitetura não o classicismo ou as suas ordens,
mas, cada um a seu modo, a conveniência e o caráter. Isto quer dizer que para ambos não
existe a autoridade de quaisquer modelos formais a serem seguidos no aprendizado e na
prática da arquitetura: o que conta é a capacidade do arquiteto de tomar as decisões corretas
diante das necessidades de um determinado programa.
As ideias de Durand, publicadas nos primeiros anos do século XIX, representam um
rompimento com a tradição da tratadística clássica sob vários pontos de vista. Partindo do
princípio que a arquitetura é uma arte de utilidade pública e privada, cujos meios são a
conveniência e a economia, tece uma dura crítica à ideia generalizada pelos tratados de que
seu objetivo é de “agradar aos olhos” por meio da decoração e, através de uma longa
argumentação, desconstrói toda a teoria das ordens como imitação da natureza defendida por
seu antecessor Laugier: é preciso necessariamente concluir que essas ordens não formam
absolutamente a essência da arquitetura; o prazer que se espera de seu emprego e da
decoração que resulta delas é nulo; que enfim, essa própria decoração não passa de uma
quimera; e a despesa que ela engendra, uma loucura 2.
Em relação à beleza, esta é secundária: a arquitetura pode agradar – porque não
unir o útil ao agradável? – e o fará automaticamente desde que seja fruto dos mencionados
princípios verdadeiros: a disposição mais conveniente e a economia. Desse modo ela terá
naturalmente o caráter apropriado e sua simplicidade resultará num efeito de grandeza já que,
sem se distrair com “belezas parciais”, o olho abarcará de uma só vez o maior número de suas
partes. Resumindo: a disposição, e não a beleza, é o objeto único da arquitetura.
Todo o talento do arquiteto se resume, assim, a resolver dois problemas: primeiro,
com uma soma de dinheiro dada fazer o edifício o mais conveniente possível, no caso dos
edifícios particulares; segundo, sendo dadas as conveniências de um edifício, fazê-lo com a
menor despesa possível, no caso dos edifícios públicos. Na composição, a economia é a fonte
da beleza e não seu obstáculo, as “belezas parciais”, i.e. a ornamentação aplicada, seriam
prejudiciais à verdadeira decoração e por consequência prejudiciais ao caráter da obra.
Considerando então a arquitetura como composição e execução, Durand explica seu
método de ensino : diante do grande número de tipologias e da infinidade de variações que
cada uma comporta – dependendo do uso, costumes, localização, clima, materiais, orçamento,
etc. – seria impossível o exame de cada uma delas. Já que a composição resulta da montagem
das partes, para aprendê-la é necessário primeiro conhecer os elementos que compõem o

47
edifício; esta é a primeira parte do curso, que é seguida então da composição propriamente
dita. A terceira e última parte consiste no estudo das conveniências e das boas aplicações dos
princípios através da análise crítica de um certo número de exemplos. Seu programa contraria
assim a divisão tradicional da arquitetura em tres partes separadas: decoração, distribuição e
construção, para ele uma ideia incompleta e até mesmo perigosa, já que permite que o
arquiteto se atenha a uma delas preferencialmente em detrimento das outras, e ainda porque
a decoração aparece assim em evidência e equiparada às outras duas partes.
Para o ensino da composição, Durand estabelece um método de combinações
horizontais e verticais que parte de uma modulação tridimensional. Numa abordagem
absolutamente racional - o que não deixa de surpreender vinda de uma arquiteto de formação,
aluno do “revolucionário” Boulée – reduz o problema da composição a uma simples equação
capaz de reunir numa só démarche as exigências do programa em relação à disposição e à
construção: da malha resultante das combinações de eixos horizontais resulta a modulação e
a marcação da estrutura, num sistema similar ao da arquitetura gótica. Essa separação entre
ossatura estrutural e paredes com função apenas de vedação favorecerá o desenvolvimento
e a aplicação das estruturas metálicas, ainda incipientes quando da elaboração de suas
ideias. Seu método revela-se de tal eficiência que se torna a base do chamado sistema
Beaux-Arts de composição, adotado para o ensino de arquitetura no período. O estudo da
arquitetura assim, para ele, se reduz a um pequeno número de princípios gerais e fecundos,
a um número pouco considerável de elementos, mas que são suficientes para a composição
de todos os edifícios. As questões relativas ao estilo estão ausentes do seu programa de curso.
Meio século mais tarde, Léonce Reynaud, seu sucessor na cadeira de Arquitetura da
École Polytechnique a partir de 1837, também publica o resumo de seu curso sob a forma de
um tratado dividido em duas partes distintas: a primeira, Arte de Construir - estudos sobre os
materiais de construção e os elementos dos edifícios, e a segunda, Composição dos edifícios
– estudo sobre a Estética, a História e as condições atuais dos edifícios. É nesta última que
centramos nossa análise. Ao contrário de Durand e do que se poderia esperar de um
engenheiro formado pela École des Ponts et Chaussées, suas ideias sobre arquitetura são
uma afirmação da subjetividade.
A arquitetura é a arte das conveniências e do belo nas construções, mas nem a solidez
nem a disposição são suficientes para isso: é preciso que suas formas produzam uma impressão
feliz no espírito do observador, a expressividade ocupando assim um papel fundamental na
composição. Os monumentos do passado devem ser examinados como modelos de princípios
para se atingir a expressão do belo: é preciso procurar neles o espírito que as formas antigas
testemunham, as relações entre os meios e os objetivos, a verdade e charme das expressões,
a harmonia e a distinção das formas.
Distingue dois tipos de belo: o belo racional, oriundo de dados objetivos relativos à
distribuição e à solidez, percebido pela nossa inteligência, e o belo ideal, subjetivo, percebido

48
pelo nosso sentimento – este é o mais difícil de ser atingido já que depende da intuição do
arquiteto e da percepção do observador. As regras, desse modo, devem ser consideradas
com bastante reserva: elas constituem um apoio para os inseguros, impedem as aberrações,
mas os gênios não precisam delas. No campo da arte, é preciso se ater muito mais ao espírito
que às normas 3, afirma o professor.
Essa linha de pensamento atravessa todas as suas considerações relativas à
composição; no que se refere às proporções, por exemplo, questiona a validade de Vitruvio
e Alberti, mostrando-se cético em relação à teoria clássica que associa combinações numéricas
à beleza. A ênfase na expressividade, que o leva a analogias com a língua e a literatura, faz
com que para a arquitetura o caráter seja mais importante que a conveniência. Disso decorre
a importância da ornamentação: afirma que a decoração na arte é como o prazer na vida: não
é o objetivo, mas deve acompanhá-la, é uma necessidade nata para o homem. Contrapondo-
se a Durand, defende a ornamentação aplicada: quando essencialmente racional, i.e. decorrente
dos materiais construtivos, a decoração nem sempre é suficiente pois a arquitetura reduzida a
seus próprios meios se encontra freqüentemente limitada nas suas expressões, deve-se
então recorrer à pintura e à escultura para preencher as lacunas. A decoração pintada e
esculpida tem mais liberdade e é mais marcante em seu caráter, ela pode trazer à arquitetura,
lá onde for conveniente a vida, o movimento, os pensamentos finos e delicados, as graças do
desenho e o charme das cores (...) é graças a ela que nossos edifícios se colocam em
harmonia com seu tempo, ela testemunha o sentimento da época até as nuances da moda.
Sempre submissa à arquitetura, e desde que se evite os excessos, as superposições e a
confusão, a decoração aplicada confere nitidez ao caráter da obra 4.
Os estilos também aparecem relacionados ao caráter já que podem representar os
traços essenciais de uma época. A eles junta-se o estilo do artista, análogo ao do escritor que
se serve da língua para expressar seu pensamento. Reynaud distingue os grandes períodos
de unidade estilística – India, Egito, Grécia e Roma na Antigüidade, na França os séculos XII,
XIII, XVI e XVII – das épocas de inquietação, onde os espíritos, sem fé no presente, tateiam
em todas as direções: i.e., o seu próprio tempo. Neste, em que se acusa os arquitetos de
indecisão e impotência, é fundamental o aprendizado dos principais sistemas de arquitetura do
passado, de seu espírito, para se evitar as cópias servis assim como a associação de formas
emprestadas a épocas diferentes. O estudo dos estilos do passado, assim, serve para evitar
a simples reprodução de suas formas, e não para perpetuá-las, como costumam afirmar os
críticos do ensino acadêmico.
Contrapondo-se Durand e Reynaud, ideias tão diferentes serviram de referência
para o mesmo ensino. O primeiro, arquiteto de pensamento racionalista, sistematiza a composição
de arquitetura reduzindo-a a um método; o segundo, engenheiro de pensamento subjetivo,
considera a boa composição obra do gênio do artista. O racionalismo de Durand centra sua
análise no edifício isolado; a subjetividade de Reynaud e sua ênfase na expressividade têm

49
como pano de fundo o pensamento sobre a cidade, sobre o papel do edifício no
espaço urbano.
Os dois tratados, assim, nos ajudam a relativizar a crítica ao ensino acadêmico em
relação aos já mencionados aspectos “negativos”: conservadorismo, autoritarismo,
anacronismo, inadequação de uma formação de caráter artístico para os arquitetos. Estas no
entanto não são as únicas possibilidades de análise: uma infinidade de outros aspectos podem
ser aprofundados através da leitura desses textos e de outras obras da coleção. Junto com o
acervo do Museu D. João VI, formam um importante instrumental para novas construções
históricas sobre a própria Escola e sobre a produção artística oitocentista.

Notas e referências
1
UZEDA, Helena. O ensino de arquitetura no contexto da Academia Imperial de Belas-Artes do Rio de
Janeiro : 1816-1889. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, 2000, p. 213-214.
2
DURAND, J.N.L. Précis des leçons d’architecture. Paris: Firmin Didot, 1819, p. 16.
3
REYNAUD, L. Traité d’Architecture. Deuxième Partie: Composition des Édifices. 3ème édition. Paris:
Dunod Éditeur, 1870, p. 24.
4
Idem, p.65.

50
Parte II: Pesquisas e reflexões a partir do acervo do museu D. João VI

2.1 As várias faces de uma escola de artes

51
Cupidos e vitórias: Debret e Henrique José da Silva na construção da
modernidade luso-brasileira nos anos 1816-1831

Julio Bandeira
Doutor em Teoria e História da Arte
pela Universidade de Essex, Inglaterra

Saques generalizados de franceses e ingleses, além da política de terra arrasada


desenvolvida por Wellington, fizeram de Portugal o que Oliveira Lima chamou de “um sudário
de miséria e solidão”. O Brasil, porém, crescia de maneira assombrosa com um salto espetacular
na receita do Erário “entre 1808 e 1820, comportando incrementos da ordem de 332”1.
É neste contexto que se insere a vinda dos artistas franceses que seriam a origem da
arte acadêmica no Brasil. Quem a promoveu, Antônio de Araújo e Azevedo, era o então
ministro da Marinha e Ultramar,2 uma pasta que, em princípio, o excluía de qualquer intervenção
oficial na vinda dos artistas franceses, mas que agia como favorito e primeiro-ministro de fato,
na espera do falecimento do Marquês de Aguiar na pasta dos Negócios Estrangeiros e da
Guerra, para substituí-lo. Uma tradição que, como veremos, manter-se-ia também na Academia
de Belas Artes, com a permanência até sua morte de Henrique José da Silva na direção,
apesar de se sujeitar à vontade dos franceses, em especial de Jean-Baptiste Debret.
Araújo sentia-se, portanto, livre para interferir em outro ministério ao buscar a ajuda
do embaixador do Reino Unido luso-brasileiro em Paris, seu amigo o Marquês de Marialva.
Para o futuro Conde — Araújo receberia o título, no dia seguinte ao decreto de 16 de
dezembro de 1815 da elevação do Brasil a Reino — a consolidação do Rio de Janeiro como
a nova capital do império luso-brasileiro estava acima das hierarquias, e a modernidade
francesa da colônia cultural de Joachim Lebreton era uma peça fundamental no jogo maior do
enfrentamento da hegemonia comercial e política britânica3.
Cabe lembrar que apesar da correspondência oficial do Secretário da embaixada,
Cavalheiro Francisco José Maria de Brito estar endereçada ao Marquês de Aguiar, Brito
trocava cartas com Antônio de Araújo e Azevedo, com quem havia trabalhado em Haia
quando este fora ali ministro plenipotenciário em 1787. No correio privado entre os dois,
enquanto Brito ainda negava pública e cabalmente qualquer envolvimento com os franceses,
já escrevia a Barca sobre o adiantamento de 10 mil francos para a viagem.
Isso fica evidente na correspondência descoberta por Marcus Ribeiro no Arquivo
Público e Distrital de Braga. Ela não deixa dúvidas de que a vinda dos franceses se inseria
claramente no contexto de um novo império. A favor do Reino Unido, Brito até se permite o
emprego de derivativos como “Palmelão” ao se referir ao anglófilo Souza-Holstein, enviado
português em Viena, conde e futuro duque de Palmela, que se opunha ao projeto brasileiro e
era a favor do retorno à Europa da Corte.

52
Eis aqui como respondo à pergunta de V. Excia. Sobre o que penso da Lei da
União (do Brasil com Portugal), que me parece uma nova fundação da Monarquia,
que o padre Vieira denominou de “Quinto Império”: muito me desassombra o
ânimo, a certeza que com o Palmelão apenas seis banhos de água benta fazem
vogar anossabarca (grifos nossos) para nossas praias, e nada mais4.”

Naquele mesmo ano de 1815, o Almirante Sir John Poer Beresford, irmão do
generalíssimo e vice-rei de fato em Lisboa, a quem Joyce se referiria mais tarde como um
pirata em Ulysses, partia do Rio com as três fragatas que trouxera para acompanhar Dom
João a Lisboa, ele partia de mãos vazias. Consolidava-se o projeto de Barca para o Monarca
do Sul, o único chefe de uma dinastia europeia no hemisfério austral. Se na Europa, Portugal,
sozinho, era um protetorado inglês, o Reino Unido com sua Corte no Rio de Janeiro o
libertava até certo ponto dos “aliados” ingleses. A hegemonia britânica na Europa invertia
agora: parodiando Milton é melhor ser rei no paraíso (Brasil) que escravo no inferno (Portugal).
O próprio Conde da Barca afirmaria ao músico austríaco Sigismund Neukomm, em
1816 no Rio de Janeiro: “Nós temos a esperança, me disse, de fundar um império novel no
Novo Mundo, e lhe será de grande interesse testemunhar este período de desenvolvimento.”5
Às seis e meia da tarde do dia 26 de março de 1816, quando Debret desembarcou na
rampa do Largo do Paço do brigue americano Calpe no Rio de Janeiro, fazia apenas três
anos que as guerras peninsulares haviam terminado com a expulsão definitiva dos franceses
de Portugal. Era o momento da verdade, chegara a ocasião de confirmar que o fantástico e
anacrônico choque entre mundos de realidades e culturas tão diferentes, como foi a mudança
da Metrópole para a Colônia, seria sem volta. Nesse sentido, como veremos, é paradoxal que
o artista português Henrique José da Silva, quase uma alegoria em si do sistema colonial,
fosse mais tarde nomeado diretor da Academia. Mas, no início de 1816, com a chegada
desses primeiros artistas e intelectuais franceses, a fundação de uma Academia ainda era a
ponta de lança para a modernidade francesa.
O fado da antiga metrópole entre sujeitar-se às decisões do Rio ou perder sua antiga
colônia fora plenamente compreendido e antecipado pelo Conde da Barca. A iniciativa da
imigração francesa era para Barca a semente que desejava plantar numa corte reacionária,
onde 10 mil cortesãos6 portugueses lidavam com brasileiros, numa cidade de aspecto africano,
numa sociedade envolta em fumos ainda barrocos no início do século XIX. Debret encontraria
naquele momento um continente que Portugal guardara por três séculos fechado, cujo conteúdo
extraordinário reunia, em meio à floresta americana, valores culturais vindos do que restara
do império português espalhado pelas Áfricas ocidentais e orientais, desde os empórios
indianos de Goa, Damão e Diu à chinesa Macau.
Na corte do antigo regime português, o partido francês era abertamente favorável ao
Brasil, mais simpático à causa americana, fazendo-se sentir a influência do abade Raynal, o
autor de Des Colonies et de la Révolution, na consciência de que os americanos não tolerariam

53
por muito tempo uma posição subalterna. Já os ministros favoráveis a Sua Majestade Britânica,
apesar do tratado comercial de nação favorecida de 1810, desejavam o retorno da sede da
monarquia para Lisboa e o restabelecimento do antigo status quo colonial no Brasil.
Seriam os franceses, portanto, que dariam prosseguimento ao fortalecimento do Brasil
como sede do Reino Unido; reino que fora, aliás, criado por sugestão do plenipotenciário
francês no Congresso de Viena, o príncipe de Talleyrand, em 1815:

Convém a Portugal e convém mesmo à Europa toda (...) o enlace entre nossas
Possessões européias e americanas. (...) eu consideraria como uma fortuna que
se estreitasse por todos os meios possíveis o nexo entre Portugal e o Brasil;
devendo este país, para lisonjear os seus Povos, para destruir a idéia de Colônia,
que tanto lhes desagrada, receber o Título de Reino, e o vosso Soberano ser Rei
do Reino Unido de Portugal e do Brasil.7

Na disputa entre as órbitas francesa e inglesa, os britânicos também colaboraram


para a vinda da Colônia chefiada pelo publicista Joachim Lebreton. Como se sabe, a gota
d’água para a demissão de Lebreton de seu cargo de Secretário Perpétuo da Seção de Belas
Artes do Instituto de França foi o discurso que fizera contra os ingleses. Na sessão em que era
discutido o saque de obras de arte pelos franceses, ao saber que o Duque de “Vilain Ton”
(tom desagradável) — apelido fonético que os franceses deram a Wellington ao pronunciar à
francesa seu nome— estava presente, Lebreton declarou: “Não foram os franceses que
arrancaram em pedaços as esculturas de Fídias dos monumentos de Atenas e transformaram
em ruínas os pórticos dos templos violados.”
Mas, antes de desafiar os britânicos, Lebreton já tinha as negociações adiantadas
com a Embaixada do recém-criado Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves para
partir para o Rio. Já em 27 de agosto de 1815, apenas dois meses após Waterloo, Francisco
José Maria de Brito comunicava por ofício ao Rio de Janeiro o primeiro contato de Lebreton
com o Embaixador português em Paris, Dom Pedro José Joaquim Vito de Meneses Coutinho
(1755-1823), Grande de Portugal, 6º Marquês de Marialva e Estribeiro-Mor de Sua Majestade
Fidelíssima. Quem o recomendou a Marialva foi, segundo Debret, Alexandre von Humboldt
(1769-1859), o grande naturalista e explorador prussiano — o mesmo que em 1799 fora
considerado um espião pelos portugueses durante a expedição que realizou pela América
espanhola na companhia do francês Aimé Bonpland —, era agora solicitado pelo ex-
revolucionário, seu colega no Instituto, que o recomendasse ao embaixador de Portugal em
Paris, com um grupo de artistas que queriam emigrar para América portuguesa.
Nesse sentido, o projeto Lebreton era como música para o Conde da Barca, o
francês buscava convencê-lo de que a academia mexicana seria o êmulo da escola que
desejava fundar para a grandeza do Reino do Brasil: “Nenhuma cidade do Novo Continente,
incluindo os Estados Unidos, é capaz de oferecer estabelecimentos científicos tão grandes, tão
sólidos, quanto os da capital do México”8.

54
Seguindo as instruções que o já mencionado francófilo, maçom e favorito Araújo, que
para Oliveira Lima já era de fato o Primeiro Ministro, Marialva buscava imigrantes qualificados
para a capital americana do Reino Unido de Portugal e Brasil em vias de ser criado. É em igual
sentido, sugerindo a necessidade de imigrantes de “préstimo”, que escrevia de Londres,
numa carta datada de 3 de janeiro de 1816, o industrial franco-português Jacome Ratton para
o Conde da Barca. Ele lamenta não ter conseguido o próprio Bonpland:

Aqui se acha Mr. Bonpland, companheiro que foi na Viagem à América Espanhola
de Mr. Umbold (sic), o qual que nesta primavera intenta emigrar com sua mulher
e filho para Buenos Aires (...) muitos mais de igual ou maior préstimo o hão de
imitar com vários destinos, eu desejara que preferissem o Brasil9.

No contexto de imigrantes, seria importante destacar que não houve uma opção
russa para Debret. O arquiteto Pierre-François-Léonard Fontaine relata em seu diário que
após ter declinado, alegando sua idade e a situação da França, o convite em outubro para
partir a São Petesburgo, havia sugerido outros artistas: seus colaboradores Debret e Montigny,
dispostos a seguirem para a Rússia:

Alguns artistas distintos desejando também deixar a França me haviam encarregado


de durante a permanência do Imperador da Rússia em Paris de lhe apresentar
suas ofertas de trabalho, e o pedido de seguirem para seus domínios. Não
conseguindo, como já disse, ficar só com o soberano, eu havia falado com
diferentes oficiais de sua Corte e ao Príncipe Wolkonsky. Mas a frieza das respostas
e até humilhantes que me fizeram, quando elogiei o talento desses homens que
desejavam partir para a Rússia, convenceram-me a desviar meus colegas do
projeto que eles tinham de levar as luzes na terra de um povo bárbaro há apenas
cem anos e que após três anos de oportunidades fortuitas se acha acima dos
outros. Estes artistas vão partir buscar fortuna no Brasil, um embaixador do
príncipe regente em Paris, aproveitando-se da recusa da Rússia, os empregou.

Este trecho do diário, escrito no dia 20 de novembro de 181510, deixa claro que
Debret e Montigny só se juntaram a Lebreton bem próximo da partida, como única escolha, e
não, como foi sugerido, até mesmo pelo próprio Debret, por opção.
O êxodo dos bonapartistas chegava justamente num momento de vitória do partido
francês: a aclamação do primeiro soberano europeu do Novo Mundo, o Monarca do Sul,
como passou a ser chamado Dom João VI (1767-1826) durante os 13 anos de seu reinado
brasileiro, até seu retorno forçado a Portugal em 1821. Debret, artista viajante, seria ao
mesmo tempo professor, cenógrafo e pintor de história dos Bragança no Brasil.
Por ironia, nos dois primeiros quadros de Debret, aparece o irlandês William Beresford,
recém-promovido a Marechal-General do exército português, que aportara no Rio em 10 de
agosto de 1815, permanecendo no Brasil até 18 de setembro de 1816. As repetidas ausências
de Beresford de Portugal facilitariam as conspirações que culminaram, em 1817, na execução

55
do general Gomes Freire de Andrade, chefe da maçonaria em Portugal, preparando a
Revolução do Porto em 1820.
Os primeiros adversários de Lebreton e Debret, apesar da óbvia oposição britânica
à vinda dos franceses, seriam, entretanto, os próprios franceses: primeiro Jean-Baptiste
Maler, (Maler significa, ironicamente, pintor em alemão), seguido da família Taunay, excetuando
o escultor Auguste. Maler era um emigrado de 1792 que acumulava o cargo de cônsul da
França com o de coronel do exército português, patente que o obrigava, ao contrário dos
outros representantes estrangeiros, a se prostrar na passagem dos membros da família real.
Ignorado por Debret em sua correspondência, a animosidade do cônsul teria se
concentrado no chefe da colônia. Instigado por Maler, o Intendente Paulo Fernandes Vianna,
cunhado de José Alexandre Carneiro Leão (1793-1863), que acompanhara Debret a bordo
do Calpe, mantém os franceses sob vigilância contínua. Em 28 de julho de 1817, a polícia está,
por exemplo, perfeitamente informada de que os convidados de um jantar oferecido por
Lebreton na Praia do Flamengo são pessoas que vão a independente Buenos Aires, separada
da Espanha desde junho de 181011. Para Afonso Taunay12, foi Maler quem atrasou a criação
da Academia, apesar das ordens de Paris que lhe mandavam tratar os artistas com
consideração: em 25 de abril de 1816, o ministro Duque de Richelieu já havia determinado
que o cônsul deve “considerá-los como franceses e conceder-lhes toda assistência a que tem
direito qualquer súdito de Sua Majestade”13.
Maler insistiu, mesmo assim, e agora sua animosidade engloba o Conde da Barca e
o Brasil como um todo, informando Richelieu de que a intenção do “Sr. da Barca é sacrificar
Portugal, a ver quebrarem-se todos os laços Europeus e a substituir tudo isso pela nova
ordem de coisas na América”14. Isso justificaria, em parte, as instruções que José Bonifácio
daria em 12 de agosto de 1822 ao primeiro encarregado de negócios do ainda Reino do
Brasil na França, Manuel Rodrigues Gameiro Pessoa: “(...) desde já fica autorizado para
requerer a retirada do cônsul João Baptista Maler, que pela sua péssima conduta e sentimentos
contrários ao Sistema Brasileiro tem desagradado ao Governo (...) devendo ficar prevenido
de que o mesmo Maler, se não for mudado, receberá passaportes para deixar esta Corte”.
Já a família Taunay, em especial o patriarca Nicolas Antoine, se mostra mais perigosa
na sua disputa pela Escola Real e futura academia. O episódio é descrito assim pelo próprio
Debret em novembro de 1816 na sua longa carta ao amigo Delafontaine:

Aqui (no Rio) a cena torna-se sombria e o sol ilumina este dia funesto em que tive
a honra de fazer esboços d’après nature da família Real durante uma revista de
tropas que ocorreu na Praya (sic) Grande; duas horas depois soubemos no Rio de
Janeiro que um artista francês presente na revista com M. Lebreton havia realizado
em alguns minutos os retratos de corpo inteiro de suas majestades. Oh dor! oh
desespero! oh Raiva! a família T. reunida julga que essa proteção exclusiva
acordada a mim é um insulto feito a sua pessoa como membro do Instituto de
França e ao seu talento como pintor de gênero. A Lua sozinha soube de seus

56
conluios, dos projetos de vingança que foram planejados durante a noite que se
seguiu a este dia fatal. No dia seguinte, começaram a campanha. Saem todos de
casa e se espalham pela cidade como batedores para propalarem pequenas
confidências capazes de lhe (ao artista, i.e., Debret) criarem muitos inimigos, cada
um, enfim, deu o melhor de si.

Ao longo de seu livro, Debret tenta sempre que possível sugerir um caráter oficial na
vinda dos franceses. Ele busca reafirmar que vieram para cá numa missão civilizadora como
educadores de uma nova nação e convencer mais ainda o leitor do papel de usurpador
representado pelo artista português Henrique José da Silva após 1820.
Para descrever a vinda ao Brasil dos franceses, Debret publicou na página 86 do
3º Vol. do Viagem Pitoresca um texto extraído do Journal de l’Institut Historique, no qual
Araújo Porto-alegre escreveu sobre a vinda da colônia de artistas, chegando a incluir o já
mencionado músico austríaco Sigismond von Neukomm (1778-1858), que fazia parte da
embaixada do Rei Luís XVIII e representante oficioso do Príncipe de Talleyrand:

O governo, decidido a fixar-se na América, sentiu a necessidade de incentivar


cada vez mais as belas artes. Ele voltou seus olhos para a França e o chevalier
Araújo (Conde da Barca) pediu uma colônia de artistas franceses ao Marquês de
Marialva, embaixador de João VI (na época príncipe regente) em Paris. Sua voz
foi ouvida: M. Lebreton, antigo secretário perpétuo da seção de belas-artes do
Instituto de França, partiu para o Brasil, acompanhado dos MM. Debret, pintor de
história; Taunay, paisagista; seu irmão (Auguste), escultor; Grandjean (de Montigny),
arquiteto; Ovide, mecânico; os irmãos Ferrez, escultores e gravadores de medalhas;
Pradier, gravador em talho-doce e do músico Newcom (sic).

É a chegada de Neukomm dois meses depois de Debret, em 30 de maio de 1816 a


bordo da fragata Hermione, vaso de guerra francês, que irá anular a oposição dos Taunay
e de Maler. Tudo sugere que, íntimo de Talleyrand e hóspede do Conde da Barca, Neukomm,
que era velho amigo de Lebreton, irá proteger os franceses dessa primeira intriga, realizada
pela família Taunay, que, na já mencionada carta, acusara o chefe da colônia de regicida.
Na carta que escreveu a Delafontaine em novembro de 1816, Debret revela também
que já então a disputa pelo cargo de diretor chegara a níveis impressionantes de calúnia. Ele
mostra a aleivosia de Nicolas-Antoine Taunay e os filhos ao inventarem qualquer coisa para
se fazerem o primeiro diretor, e um dos segundos, provavelmente o pintor Félix-Émile, secretário
da futura Real Escola de Artes e Ofícios.

O Sr. T. augurou tão bem esse silêncio a ponto de se abrir na primeira visita com
que fora honrado pelo Senhor Duque de simplesmente pedir sua proteção para
conseguir a posição de Diretor e a de secretário (P. Dillon) para um dos seus filhos,
o que causou péssima impressão ao Senhor Embaixador (Duque de Luxemburgo),
isso logo se espalhou provocando esclarecimentos. O Pai Dom Bazile (personagem
bufo de Beaumarchais) T., achando que o seu antagonismo tinha vida curta,

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resolveu para desgraçar-se de todo espalhar que ele (Lebreton) era um dos
Regicidas franceses. Esta última calúnia era tão violenta que o governo buscou
informações até mesmo junto à embaixada e ficou então bem claro que isso era
uma calúnia atroz, a ponto disso tornar o nosso presente diretor mais interessante
aos olhos dos ministros que o protegem. Mas como esses rumores haviam corrido
nas bocas de respeito o caso tornava-se delicado. Nada foi levado a efeito; foi
quando dois meses depois o ministro do tesouro real (Barca), homem cheio de
ânimo e zelo pelo nosso caso, acalmou os espíritos e tranquilizou todas as
consciências provando que a única relação do indivíduo sobre o qual se tinha
essas informações (de regicida) com o nosso Diretor era o mesmo nome. Uma
vez que fora comprovado que o nosso homem não pertencera em absoluto à
Convenção Nacional.

A Corte tivera até a chegada dos franceses no Real Teatro de São João — construído
no Rossio, atual Praça Tiradentes, à imitação do Teatro São Carlos, de Lisboa,— seu único
templo de modernidade na canhestra cidade mestiça. Se durante sete anos foi Debret o
cenógrafo do Teatro São João, atual João Caetano, junto com Grandjean de Montigny e
Auguste Taunay, foi também o encarregado da ornamentação do “palco” maior da cidade dos
grandes eventos da monarquia. Ele montaria os cenários para o desembarque de Leopoldina
(Viena, 22 de janeiro de 1797; Rio, 11 de dezembro de 1826) em 1817, a aclamação de Dom
João VI em 1818, a partida dos reis em 1821, a coroação de Pedro I em 1822, a Assembléia
Constituinte de 1823, os funerais da primeira imperatriz em 1826 e o segundo casamento de
Dom Pedro em 1829. Uma série de atividades que estavam muito acima da competência de
Henrique José da Silva.
Debret é o artista encarregado de mudar a aparência da Corte. Suas atividades,
como outrora as de seu “primo” David (Debret era casado com uma prima irmã do pintor), ou
do miniaturista Jean-Baptiste Isabey, responsável pelos uniformes napoleônicos, são as mais
variadas. No seu ateliê, Debret desenharia os uniformes e trajes de grande gala da Corte,
primeiro do Reino Unido em vermelho e azul, depois do Império em verde e ouro. Sua
produção cobre desde iluminuras nas cártulas dos diplomas, como na cópia da Constituição
de 1824, os projetos para novas condecorações, trompe-l’oeils em arquiteturas, o pano de
boca do Teatro São João, até o pavilhão e a bandeira imperiais. Em 15 anos, as condecorações
desenhadas por Debret vestiriam o peito dos notáveis do Reino Unido e do Império. São dele
os uniformes auriverdes que vestem os archeiros, o condestável, os ministros e as damas de
honra do Império novel, além daquele usado pela Guarda de Honra do imperador ainda em
vigor: é o uniforme dos Dragões da Independência.
Atribuído a Debret, o desenho da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila
Viçosa — instituída pelo rei Dom João VI no dia da sua aclamação, em 6 de fevereiro de 1818,
no Largo do Paço — seria para uma ordem típica do antigo regime. Na insígnia dessa ordem
(de banda azul com risca branca ao meio) constituída por um medalhão coroado, Debret
inseriu, porém, o círculo onde se leem as letras AM, com a inscrição Padroeira do Reino, numa

58
estrela de inspiração napoleônica. Este é um exemplo da ironia do francês nesta condecoração
concedida exclusivamente aos portugueses, sem qualquer menção ao Reino Unido e ao
Brasil. Seguem-se as ordens de Pedro I, semelhante à da Coroa de Ferro criada por Napoleão
em 1805, onde trocou apenas a águia do império francês pelo dragão da dinastia de Bragança,
do Cruzeiro do Sul, muito parecida com a Legião de Honra, cuja coroa de louros foi substituída
por uma guirlanda de ramos de café e fumo e a da Rosa instituída em homenagem à neta de
Josefina, primeira mulher de Napoleão e imperatriz dos franceses: a princesa Amélie Auguste
Eugénie Napoléone de Beauharnais-Leuchtenberg, com quem Dom Pedro I casou em 1829.
Foi Debret “o autor do projeto da bela bandeira do Império do Brasil, com a
colaboração de José Bonifácio de Andrade e Silva”15. As novas cores nacionais, ouro sobre
sinople, são a soma de dois esmaltes dinásticos: o amarelo, a cor da Casa Imperial Austríaca
de Habsburgo Lorena e D. Leopoldina, formando um losango dentro do fundo verde, cor
heráldica da Casa Real Portuguesa de Bragança e D. Pedro. Isso seria apenas uma união
simbólica de duas dinastias, não fosse seu desenho, o mesmo do estandarte das legiões de
Bonaparte, que Jacques-Louis David desenhou para a guarda imperial, a famosa “Vieille
Garde”. Maria Graham descreve a apresentação da bandeira feita no Teatro São Pedro de
Alcântara:

...a peça final despertou muita emoção: era chamada A Descoberta do Brasil.
Apareciam Cabral e seus oficiais logo após o desembarque: haviam descoberto
os indígenas do país e, segundo o costume (...) haviam erguido a bandeira branca
com a cruz vermelha de Cristo (...). Aos pés desse símbolo ajoelhavam-se em
adoração e procuravam induzir os selvagens brasileiros a unirem-se a eles (...).
Estes, por sua vez, procuravam persuadir Cabral a reverenciar os corpos celestes
e a dissensão parecia prestes a perturbar a união dos povos amigos, quando, por
meio de uma máquina grosseira, desceu do alto um pequeno gênio e, saltando de
seu carro, desfraldou a nova bandeira imperial com a inscrição: Independência ou
Morte. Isto era completamente inesperado pela casa, que, por um momento,
pareceu cair eletrizada, em silêncio. Creio que fui eu quem bateu palmas em
primeiro lugar, mas a explosão de sentimentos que rompeu de todos os cantos do
teatro durou muito tempo16.

Nomeado professor de pintura histórica da Real Academia das Belas-Artes em 1820,


Debret só começaria a pintar fora de seu ateliê no Catumbi no final de 1822. Naquele ano,
apoiado pelo Imperador, obrigou seu desafeto, o pintor português Henrique José da Silva,
diretor da Academia, a lhe dar uma chave de uma sala pronta, no prédio ainda inacabado da
agora Imperial Academia das Belas-Artes, para servir de ateliê. Ali iria poder pintar com seis
discípulos a grande tela da coroação imperial, ocorrida em 1º de dezembro de 1822; sua maior
pintura brasileira que só ficaria pronta quatro anos depois, mas só seria assinada em 1828.
Ao publicar um “Programa” para acompanhar A augusta coroação do senhor D.
Pedro I, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, seu único quadro em

59
grandes dimensões pintado no Brasil, Debret irá documentar o fabrico da pintura. Como na
Sagração de Napoleão I por David, ele registra a fundação do novo regime diante da escol
deste Império novel, fazendo uma paródia dos ritos do velho mundo. Apesar da coroação de
Dom Pedro I terminar com o centenário costume português da aclamação, tendo sido regida
pelo cerimonial da coroação do Imperador dos Franceses, antiga capela carmelita não é a
Catedral de Notre Dame, cujo interior fora decorado pelos arquitetos Percier e Fontaine a
serviço de Napoleão; nem Debret, David. Mesmo assim, o pintor de história do Brasil irá fazer
de seu melhor. Seja prolongando indefinidamente, pelos portões abertos atravessando o
antigo Largo do Paço até o horizonte sobre o mar, a perspectiva tomada “sobre o degrau
superior do altar-mor da Capela Imperial, voltado o espectador para entrada principal da
mesma igreja”17.
Esta sua grande tela assinada e datada de 1828 significou também o auge da associação
direta de Debret com a Corte dos Bragança, cujo início data de 12 de maio de 1816, quando
pintou a Revista de Tropas na Praia Grande. Privando sempre de um acesso ao Rei e depois
ao Imperador, que Henrique José nunca desfrutaria.
Uma outra qualidade que possuía o francês era sua aproximação do real, algo que
era impossível para a maioria dos portugueses ainda mergulhados na superstição de fanatismo
religioso. APDG em seu livro, com seu peculiar sarcasmo, conta como o povo se ajoelhava
diante de estatuárias greco-romanas na crença de que “Diana a caçadora” seria uma espécie
de Virgem Maria. Nisso aliás, foi precedido pelo nababo inglês William Beckford.
Já a aproximação dos franceses com o real era evidente. Quase um século após a
chegada da Colônia Lebreton, escrevia em 1905, entre os meses de fevereiro e julho, o
genial escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) em seu Diário Íntimo. “É
curioso comparar a maneira com que Debret pinta os negros e os brancos. O ponto de
verdade dos dois...”
Se o melhor do acervo debretiano é, antes de tudo, o registro cotidiano de negros e
brancos, ele também permite vislumbrar registros topográficos precisos no segundo plano.
Apesar de seu pouco interesse pela arquitetura colonial, o artista francês reconstruía parte do
tecido da urbe brasileira do início do Oitocentos para abrigar suas figurinhas, dos negros de
ganho, dos carregadores, padres e soldados, de sua população geral, pintada em centenas
de estudos de figuras que, isoladas, deixavam de ser comuns. As ruas, praças, igrejas e
casario que formam o suporte para uma enorme colagem de suas figurinhas, retratos de
negros e brancos e mestiços, de intenso realismo, são reconstituídos com rigor documental.
Durante as negociações que manteve com Araújo, antes mesmo da chegada ao Rio
de Janeiro, cedera Lebreton ao aceitar fazer valer um projeto de uma escola de vários ofícios,
mais próxima do espírito enciclopédico, que de uma academia, à imagem da francesa,
exclusivamente dedicada às belas-artes, como era o ideal de Debret. O projeto Lebreton
buscava também encorajar a produção de objetos de luxo, próprio das artes aplicadas, o que
explica, aliás, a variedade “mecânicos, serralheiros, ferreiros”.

60
Com a morte do Conde da Barca em 1817, sem que o projeto de Lebreton fosse
totalmente implementado, a criação nominal da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios ainda
era pouco para Debret. Ele esperava por uma Academia de desenho, pintura, escultura e
arquitetura civil; criada em 1820, mas que será entregue a Henrique José da Silva. A morte de
Joachim Lebreton, na sua casa no Flamengo em 1819, faz recrudescer a disputa de Nicolas-
Antoine Taunay, mais uma vez pela direção da academia, agora com Debret, que terminaria
com a nomeação do lisboeta e anglófilo Henrique José da Silva (1772-1834) para a direção
da academia criada por decreto publicado a 12 de outubro de 1820, assinado por Francisco
Bento Maria Targini, Visconde de São Lourenço (1756-1827). Em 1821, com a partida de
Nicolas-Antoine Taunay, para a França, Debret se torna o líder inquestionável dos franceses
cabendo a ele a direção ideológica do projeto da academia.
O decreto de 1820 que confirma os franceses em suas cátedras com os mesmos
honorários parece não perturbar Debret que, naquele então, já estava envolvido com o seu
projeto maior que seria o Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Para o pintor de história que
é Debret, Silva, que tinha em seu currículo cinco anos de desenho na “Aula Régia” e fez os
retratos, além do próprio Targini, gravado em 1815 em Londres, do Duque de Wellington e do
marechal William Beresford, “rodeados de figuras alegóricas num cenário de apoteose,
posteriormente gravado por Bartolozzi”18, era um retrocesso; Silva também faria um retrato
ingênuo de D. Pedro I em meio-corpo trajando um grande uniforme com a coroa, atualmente
em São Luís, na coleção do Palácio dos Leões.
Com Silva é um pesadelo anacrônico que ressuscita, o mesmo que conheceram os
franceses ao desembarcarem na semana da morte da Rainha D. Maria I. O riscador português
fica encantado em desenhar seus putti e cupidos19, ele será a personificação da contrarreforma
para enfrentar com suas armas barrocas a ilustração neoclássica do Weltanschauung dos
franceses. Debret, apesar de toda a munição que sua intimidade com a Corte oferecia, parece
não dirigir de imediato um antagonismo ao português. São pequenas mesquinharias que
levarão o francês a lembrar Henrique José da Silva sua proximidade com o Imperador,
quando, por exemplo, Silva se opõe ao uso das dependências da academia, ainda inacabada,
por Debret e Grandjean com seus alunos. Conseguindo em 1823, sem dificuldades, que as
chaves de uma sala do prédio em construção lhe fossem entregues antes de uma visita de
Dom Pedro ao prédio. “No ano seguinte, o imperador e seus ministros lhe visitaram o ateliê,
de onde saíram bem impressionados com o desenvolvimento dos alunos. Tão grande foi essa
impressão, afirmam os historiadores, que D. Pedro resolvera, desde então, instalar a Academia,
o que só pôde realizar em 1826.”20
Debret, ex-aluno e professor da Escola de Ponts e Chaussées, além de professor
fundador da Escola Polytechnique, demonstra sempre necessária competência em enfrentar
reacionarismo do diretor português. As descrições das maquinações de Silva e seus dois
aliados, o frade Luís Rafael Soyé e o marceneiro Pedro Alexandre Cavroé, os fazem parecer

61
um trio de trapalhões, sucessivamente admoestado pelos ministros do Império, mas dispostos
a tudo para conservar suas sinecuras. Silva vê desde o início em 182021 seus projetos serem
sistematicamente devolvidos para serem refeitos pelos franceses, leia-se Debret. Isso parece
sugerir em certo sentido uma conveniência de se ter um diretor de fachada como Silva à frente
da Academia? Atrás dos cupidos barrocos estariam seguidas vitórias neoclássicas, um pouco
como as calças de pano azul da China escondem as partes pudendas do chefe botocudo que
Debret pintou, com seu manto de pele de tamanduá22.
Na inauguração da Academia, Dom Pedro I compareceria acompanhado apenas da
filha, Dona Maria II, já feita rainha de Portugal. Apesar de ter sido a data de aniversário de sua
chegada ao Brasil, a imperatriz Leopoldina sentia-se “tão incomodada que não pôde assistir
ao ato”23. Debret, que havia organizado uma exposição de pintura com paisagens, marinhas,
animais, flores e frutos, é agraciado com o oficialato da Ordem de Cristo. A inauguração da
academia, ao mesmo tempo que consagra o pintor de história, prenuncia a morte da Imperatriz,
cujas exéquias foram o penúltimo trabalho histórico de Debret antes do segundo casamento
de Dom Pedro I. Duas mostras de sua proximidade com a dinastia.
Isso permitiria a Debret, por exemplo, escrever o plano de reorganização para a
Academia Imperial, solicitado em 1824 pelo então ministro dos Negócios do Império, Marquês
de Queluz, aos professores da referida academia. O Projecto do Plano para Imperial Academia
das Bellas-Artes do Rio de Janeiro, concebido por Debret, seu redator original, só seria
impresso em 1827 na “Imperial typographia de P. Plancher, Impressor de S. M. I., Rua do
Ouvidor, n. 95”.157. Nele, o pintor de história se refere aos outros professores como “meus
colaboradores” e não como colegas:

Senhor, reunido, debaixo dos Auspícios de V. M. I., o Corpo Acadêmico da


Imperial Academia das Belas-Artes no mês de Março de 1824, foi-lhe incumbido
pelo Ministro dos negócios do Império de se ocupar deste trabalho, que para o
completar só falta depositá-lo aos pés do Augusto Trono de V. M. I. (...) Em fim,
Senhor, Digne-se V. M. I. benignamente Acolher este Plano como um diminuto
testemunho de fidelidade e respeito dos meus Colaboradores, de quem tenho hoje
a honra de ser o intérprete ante a Augusta Presença de V. M. I. Beija a Augusta
Mão de V. M. I., o mais submisso, e fiel súdito, De Bret (sic), redator do original24.

Em muito diferente do projeto original de Lebreton para uma escola que misturava
às belas-artes artes, as aplicadas — i.e., um pintor de história com um serralheiro — no
projeto de 1824, Debret seguiu os cânones das academias de belas-artes de França e da
espanhola Real Academia de las Tres Nobles Artes de San Fernando, de 1752, voltadas
para o ensino das “três nobres artes”: pintura, arquitetura e escultura. Nele, Henrique José
da Silva é mantido na direção, mas “De Bret” (sic), professor de pintura histórica, é feito
primeiro pintor da academia, seguido de Félix-Emile Taunay, pintor de paisagem como o
pai, a quem substituíra em 1821.

62
Após oito anos de intrigas, que descreve em exagerada minúcia no seu livro, sendo
agora o chefe inconteste dos franceses, Debret, com seus discípulos encabeçados por Araújo
Porto-alegre, surge vitorioso em 1828, ano da entrega do quadro da Sagração e Coroação
de Dom Pedro I, e passa a dirigir de fato a academia nos seus três últimos anos de vida
brasileira. Naquele ano, o imperador determina, pelo Aviso Ministerial de 26 de novembro de
1828, a pedido de Debret, que ocorra o primeiro Salão da Academia:

Sua Majestade o Imperador. Há por bem que no dia Terça-feira, 2 do próximo mês
de dezembro, se faça na Imperial Academia das Belas Artes uma exposição
pública de todos os trabalhos mais perfeitos, que os Alunos das respectivas aulas
tiverem desempenhado no corrente ano; e ordena que V. Mcê. tenha para esse fim
uma conferência preparatória com todos os Lentes, sobre o lugar, e melhor modo
de se verificar a referida Exposição; e lhes participe que se achem na mesma
Academia, sábado, 29 do corrente, pelas 11 horas da manhã, a fim de que eu
possa ouvi-los sobre o arranjo definitivo desse negócio — Deus Guarde a V. Mcê.
— Paço, em 26 de novembro de 1828 — José Clemente Pereira.

O primeiro Salão da Imperial Academia das Belas-Artes, que de fato é um Salão


Debret só seria aberto, porém, em 1829. Foi quando Debret introduziu no Brasil uma grande
inovação: o catálogo de exposição. Organizado por autor e categoria de pintura, a pequena
obra editada por Debret é preciosa ao mostrar, além da lista dos artistas, a ordem de importância
que o pintor de história determinou — que começa pelas obras do próprio pintor de história —
e a explicação das obras apresentadas.
São os dois velhos amigos, Debret e Grandjean, que, com obras próprias e de seus
alunos, apresentaram 47 trabalhos de pintura histórica e 106 estudos de arquitetura. Felix-
Emile Taunay, substituto do pai na cátedra de paisagem — concorrendo com Debret, ele
também pintara cenas históricas como o Juramento da Constituição de 1821, a Aclamação de
D. Pedro I em 1822, o Arco do Triunfo da rua Direita, de 1817 —, expõe quatro paisagens do
Rio de Janeiro. O diretor Henrique José da Silva está ausente.
A exposição foi um sucesso, visitada por mais de duas mil pessoas, e dela se
ocuparam os jornais. Debret expõe uma série de índios — óleos que se perderam, mas, a se
julgar pelas suas gravuras e aquarelas, obedeciam aos cânones davidianos. A doutrina do
neoclassicismo também é seguida pelos seus alunos que seguem rigorosamente essa temática.
Como que aceitando sua posição, onde reina mas não governa, Henrique José da
Silva comparece, na segunda exposição em 1830, ao Salão de Debret. Algumas cópias de
obras de Araújo Porto-alegre, o único que é destacado como discípulo, são expostas por
novos alunos como Marcos José Pereira e, como “amador”, Domingos José Gonçalves de
Magalhães (1811-1882) — futuro Visconde de Araguaia, que se tornaria médico, poeta e
diplomata, para quem Debret dedica seu Retrato de Dom Pedro II bebê —, com desenhos,
pinturas, alegorias e cópias de Porto-alegre. Seus alunos iriam formar a elite intelectual e
política do Segundo Reinado.

63
Com a partida de Debret em 1831, a academia passou a ter como professores, além
do diretor português que ensinava desenho, Simplício de Sá (1785-1839), pintura histórica;
Félix-Emile Taunay (1795-1881), paisagem; Grandjean de Montigny, arquitetura; François
Ovide, mecânica; Zepherin Ferrez (1797-1851), escultura; Marc Ferrez (1788-1850), gravura;
Jó Justino de Alcântara (1807-?) e Augusto Muller (1815-?), retrato e paisagem; Araújo Porto-
alegre (1806-79), pintura histórica; José Correia de Lima (1814-57), arquitetura; e Manuel
Corte Real (?-1848), pintura histórica. Henrique José da Silva continuaria como diretor e
professor de desenho, mas com um único aluno matriculado em sua classe, fica evidente o
limbo em que se encontrava25, vegetando na direção até sua morte em 1834 quando será
substituído pelo francês Félix Taunay.

Notas e referências
1
SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil, apud PAIM, Gilberto. “Graves equívocos na
historiografia luso-brasileira”, in Carta Mensal, Rio de Janeiro, vol. 52, dez. 2006, Confederação Geral do
Comércio, p.31.
2
O Conde da Barca só substituiu o Marquês de Aguiar (1752-24/jan./1817) na pasta dos Negócios
Estrangeiros e da Guerra pouco antes da morte deste último em 30 de dezembro de 1816.
3
Barca agira fora de suas atribuições, e Marialva, que não tinha instruções de seu chefe, o Marquês de
Aguiar, deixou Brito encarregado dos imigrantes. O embaixador também nunca esteve no Brasil, o autor
do seu retrato que aparece no Viagem Pitoresca, vol. III, pr. 40, foi o pintor de história e retratista espanhol
José de Madrazo y Agudo (1781-1859), um outro aluno de David, que esteve em Paris acompanhando
o rei Carlos IV prisioneiro na França. Este retrato foi gravado por Charles-Simon Pradier (1783-1847)
depois de sua volta à Europa em 1818.
4
Carta de Francisco José Maria de Brito a Antonio de Araújo de Azevedo, Paris, 3 de maio de 1816,
Arquivo público e Distrital de Braga. Apud in RIBEIRO, Marcus T. D., “O Conde da barca e a vinda dos
artistas franceses: contribuições documentais”, in 180 anos de Escola de Belas Artes, Rio de Janeiro,
UFRJ, 1997, p. 73.
5
Ver NEUKOMM, Sigismund, Esquisse Biographique, Paris, Extrait du Journal La Maitrise, 1859.
6
Numa única nau, a Príncipe Real, havia mil e quatrocentas pessoas. Fidalgos e cortesãs se amontoavam
como a bordo de um navio negreiro, as mulheres sem trocarem a roupa durante a travessia, as cabeças
raspadas para aliviá-las dos parasitas, os homens atirando suas perucas ao mar.
7
OLIVEIRA LIMA, Manuel de. Dom João VI no Brasil 1808-1821, Rio de Janeiro, Tip. do Jornal do
Commercio, 1908, p. 520.
8
Arquivo do Itamaraty, 314, 3, 5, , publicada por Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional n. 14 (Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura), 1959, pp.285-305.
9
Num apêndice de 11 de janeiro Ratton declara que “a França é o país que mais gêneros há de receber
e consumir do Brasil e Portugal”. Arquivo Nacional, Negócios de Portugal, caixa 616, pacote 2.
10
FONTAINE, Pierre-François-Léonard, Journal, 1799-1853, 2 vol., Paris, École nationale Supérieure
des Beaux-Arts, 1987.
11
Arquivo Histórico do Itamaraty MRE, lata 183/maço 2/pasta 4.
12
Ver Taunay, 1985, p. 24.
13
Ofício do Duque de Richelieu, idem, p. 25.
14
Ofício ao Duque de Richelieu, de 11 de junho de 1817, corresp. Diplo. Arquivo do Itamaraty.
15
Ver MACHADO, Luiz Renato Dantas. “Aspectos Astronômicos e Históricos da Bandeira Brasileira”, em
Revista do Clube Naval, n. 286, Dez. 1992, Rio de Janeiro, p. 42.
16
Ver GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante parte dos
anos 1821, 1822, 1823. São Paulo, Itatiaia, 1990, p. 295-296.

64
17
Programa do quadro histórico apresentando a augusta coroação do senhor D. Pedro I, Imperador
Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil, na Capela Imperial no dia 1o de dezembro de 1822,
executado por João Baptista De Bret (sic), professor de pintura da Imperial Academia de Belas-Artes,
Rio de Janeiro, Tipografia de R. Ogier, Arquivo Histórico do Museu Histórico Nacional.
18
Ver catálogo da exposição Dom João VI e seu tempo, Palácio Nacional da Ajuda, Lisboa, Comissão
Nacional para as comemorações dos decobrimentos portugueses, 1999, p. 362. O catálogo da exposição
menciona apenas duas telas a óleo de Silva, os retratos de Dom Pedro I e de um velho anônimo, p. 362.
19
O Museu Dom João VI da Escola de Belas Artes tem uma coleção de mais de dezena desses desenhos
que revelam um fino traço de desenhista, mas com motivos anacrônicos.
20
FREIRE, Laudelino. Um Século de Pintura: 1816-1916. Apontamentos para a história da pintura no
Brasil de 1816-1916. Rio de Janeiro: Typ. Röhe, 1916.
21
Ver TAUNAY, Afonso, A Missão Francesa de 1816, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 228.
22
Ver BANDEIRA, Julio, CORREA DO LAGO, Pedro, Debret e o Brasil: Obra Completa, 1816-1831, Rio
de Janeiro, Capivara, 2008, p. 50.
23
Ver OBERACKER, Carlos, A Imperatriz Leopoldina, sua vida e sua época, Rio de Janeiro, 1973, p. 426.
24
Brochura de 24 x 19cm, B. N. Seção de Iconografia, Arm. 20, 3, 31.
25
Ver Taunay, op. cit. p. 261.

65
Os portugueses na direção da Academia

Valéria Alves Esteves de Lima


História – UNIMEP

O ano de 1819 deu início a uma série de modificações na Academia de Belas Artes
carioca. O ano assinala a morte de Joachim Le Breton, responsável, até aquele momento,
pelos atos diretivos da instituição que ainda se via envolvida em esforços para consolidar sua
existência oficial e regular. A substituição de Le Breton despertou esperanças e expectativas
por parte de artistas que já se encontravam na cidade, mas o cargo foi entregue ao pintor
português Henrique José da Silva. Seu nome integra a “Relação das pessoas empregadas
na Academia e Escola Real, estabelecida na Corte do Rio de Janeiro por Decreto de 23 de
novembro de 1820”1, figurando como Lente de Desenho e como “encarregado da diretoria
das aulas”. Além da nomeação de Silva, outras substituições ocorreram no quadro de pessoal
da Academia e, dos integrantes do grupo original de franceses chegados ao Rio de Janeiro
em 1816, foram mantidos apenas Debret, os dois Taunay, Grandjean de Montigny e François
Ovide. Além do descontentamento gerado com a exclusão de alguns de seus compatriotas, a
nomeação de Henrique José da Silva foi motivo de dupla insatisfação para os mestres franceses:
a cadeira de Desenho, responsabilidade do novo diretor, viria desestruturar a base do ensino
centralizado por eles defendido - antes de frequentar a aula escolhida, os alunos deveriam
cursar três anos de Desenho figurado; além disso, a escolha de Silva para a direção das
aulas desapontava os professores mais antigos, especialmente Nicolas Taunay. Por outro
lado, a decisão de nomear um diretor português para a instituição parecia coerente a seu filho
mais velho, Hippolyte Taunay, para quem a Academia carecia justamente de elementos
nacionais, valorizados tanto no Brasil quanto em Portugal2.
Em 1821, alguns meses depois de aprovado o decreto que mandou dar início às
atividades da “Academia das Artes” no Rio de Janeiro, Nicolas Taunay voltou para a França,
reassumindo o seu posto no Institut de France e deixando sem titular a cadeira de Paisagem.
Mais tarde, seu filho Félix Émilie Taunay solicitaria o lugar que era de seu pai na Academia,
alegando que há três anos se esforçava para demonstrar sua capacidade, tendo para isto
confeccionado vários trabalhos, entre os quais, um panorama da cidade e da baía do Rio de
Janeiro. Argumenta, em requerimento enviado ao Governo, que havia esgotado seus últimos
recursos nestas obras e “n`hum estabelecimento à favor do país, que visto a demora dos
productos não serve senão à peorar a situação delle e de dois seus irmãos”3. Referia-se,
então, à tentativa dos Taunay de se dedicar ao cultivo de café.
Este episódio, bem como a situação do retorno de Nicolas Taunay à França, são
exemplos típicos do cotidiano acadêmico, onde problemas pessoais interferiam na vida
institucional, os professores exerciam ocupações paralelas fora da Academia e a desorganização

66
quanto ao preenchimento das cadeiras era um dado evidente. São bastante conhecidas as iniciativas
de Debret e Montigny de abrirem cursos livres. Até 1826, ano da inauguração oficial da Academia,
os professores dedicaram-se a trabalhos particulares e a algumas encomendas oficiais, mantendo
todavia os vencimentos que lhes foram garantidos pelo decreto de novembro de 1820.
Em 1823 teve início um episódio que, estendendo-se até 1830, ilustra alguns aspectos
da atividade dos professores e da relação conturbada entre o diretor Henrique José da Silva
e os mestres franceses. Em janeiro daquele ano, Debret solicitou ao governo autorização para
utilizar uma das salas da parte que já se encontrava terminada no edifício que seria destinado
à Academia. Por encontrar-se ainda sem utilização, esta sala funcionava como depósito de
uma “collection de tableaux, achettée par le Gouvernement, qui y dépéris, par l`effet de
l`humidité, et du manque d`air”4. Debret solicitava a sala para nela elaborar o quadro da
Sagração do Imperador, de grandes dimensões, aproveitando a oportunidade para
“..commencer de suite l`Education Pittoresque de six individus, chacun dans un genre différent,
comme Portrait, ornements d`architecture, Paisage, Marine, fleurs, animales5. O pintor
argumentava que a liberação da sala não implicava nenhuma espécie de despesa, dependendo
apenas da entrega da chave, que se encontrava nas mãos de Henrique José da Silva, diretor
da Academia. Seu pedido foi atendido e Debret manteve a posse da sala até 1829; segundo
depoimento de Manoel de Araújo Porto-Alegre, que ingressaria na Academia em 1827,
tornando-se o seu principal discípulo, “durante os quatro anos em que trabalhou nesse
grande quadro, (...), estabeleceu uma escola de pintura (...)”6.
Ao que tudo indica, Debret continuou tendo à sua disposição uma sala no prédio da
Academia para trabalhos particulares. Em novembro de 1829, enquanto se faziam as obras
necessárias na dita sala, Debret obteve licença para utilizar outra, ainda que não lhe dessem
a chave, visto que a porta que lhe dava acesso era a da Academia e esta só podia ser aberta
e fechada pelo porteiro da casa. Este, porém, acabou deixando a chave numa loja vizinha,
onde morava Marc Ferrez, para facilitar a entrada de Debret. Henrique José da Silva, em
ofício de 18 de setembro de 1830, explicava que logo proibira esta

...irregularidade, [para lhe não dar outro nome] da qual nada menos resultava do
que o risco de entrar também na Academia qualquer outro indivíduo, e quando bem
lhe parecesse.
Esta medida, justissima e ate indispensavel para a segurança do estabelecimento,
desagradou ao Suppe; e como não desiste jamais do projecto de inquietar-me por
todos os modos, chega ultimamente ao arrojo de alterar a verdade na Augusta
Presença de Sua Magestade, dizendo-se privado do uso da caza que lhe fôra
concedida, quando elle somente o está da chave da porta da Academia, pelas
razões expostas, sem que nisso haja da minha parte contravenção alguma a
ordem superior, como também falsamente assevera o Suppe em seu requerimento.
(...)
A Academia abre-se às sete horas e meia da manhã, e fecha-se às duas da tarde;
e he indubitavel que mais de seis horas effectivas de trabalho são sufficientes para

67
avançar muito, havendo applicação e desvelo. Não entrem os daquela classe às
onze horas [como tenho constantemente presenciado] e não gastem depois o
tempo em conversaçoens inuteis que elle chegará para qualquer trabalho por
grande que seja,...7

Esta atitude rendeu ao diretor inúmeras críticas dos alunos de Debret, entre eles
Porto-Alegre, que, anos mais tarde, lamentava a condição imposta pelo diretor:

Durante essa épocha, em que o relógio marcava o desenvolvimento intellectual, e


era prohibido rigorosamente pelo diretor que o estudante tivesse inspiração depois
que o ponteiro chegasse a tantos minutos, a academia via todas as demais aulas
em hum perfeito silencio8.

Em 1824, o governo autorizou a retomada das obras no edifício que seria destinado à
instituição e, em meio a incansáveis disputas entre franceses e portugueses foram elaborados
documentos que pretendiam rever os estatutos da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.
O Projecto do Plano para a Academia Imperial das Bellas Artes9 foi, segundo Henrique José da
Silva, obra pura e exclusiva dos professores franceses, “que se apropriaram indevidamente da
assinatura do Corpo Acadêmico”, como observa em suas Reflexões Abreviadas sobre o Projecto
do Plano para a Academia das Bellas Artes, que se diz composto pelo Corpo Academico10.
Em nome dos franceses, Debret11 argumenta que apenas respondera a uma
solicitação do Ministro, que se interessara pelo sucesso de suas aulas e demonstrava curiosidade
em saber das razões do atraso na abertura da Academia. Mais uma vez, porém, circunstâncias
políticas impuseram o ritmo da evolução da instituição. A substituição do titular da pasta dos
Negócios do Império interrompeu a aprovação do projeto elaborado, ao mesmo tempo em
que a nomeação de outro português, o arquiteto Pedro Alexandre Cavroé, vinha fortalecer a
posição do diretor. Nomeado arquiteto oficial, sendo inclusive encarregado de acompanhar a
conclusão das obras no edifício da Academia, dirigindo um projeto que havia sido elaborado
pelo francês Grandjean de Montingy12, Cavroé teria influenciado o novo titular da pasta no
sentido de não permitir a implantação do projeto dos franceses, deixando a Academia limitada
ao exercício de algumas aulas de Desenho. Mais uma vez, é Porto-Alegre quem traduz o
incômodo da facção contrária à administração portuguesa:

Hum artigo dos estatutos, baseado em huma aparente verdade, obrigava a três
annos de estudos de desenho a qualquer joven que se dedicasse, não só à pintura,
como também à gravura, à esculptura, à mecânica, à architectura e paisagem,
tendo, excepto a primeira arte, todas ellas o seu desenho próprio, e não necessitando
algumas do estudo da cabeça e partes do corpo humano13.

De qualquer forma, foi somente com a nomeação de novo Ministro, Visconde de São
Leopoldo, que se conseguiu autorização para a abertura oficial da Academia, que aconteceu

68
no dia 05 de novembro de 1826, ocasião em que foram expostos os trabalhos dos alunos que
já frequentavam as aulas de Debret. Como citado, até que se elaborassem novos estatutos,
estariamemvigor aqueles redigidos em1820. Segundo este documento14, o Ministro dos
Negócios do Império recebia o título de Presidente da Imperial Academia; a diretoria da casa
seria entregue ao primeiro pintor da Imperial Câmara, que ocuparia igualmente a cadeira de
desenho na Academia; o restante do Corpo Acadêmico seria composto por um secretário e
cinco professores, encarregados de ministrar aulas de Pintura histórica, Escultura, Arquitetura
civil, Gravura e Mecânica.
Na Classe de Pintura, além de alertar os alunos para os princípios básicos desta
arte, isto é, a composição, o desenho e o colorido, o professor deveria dar ênfase à importância
da invenção na escolha dos temas próprios a cada gênero. A natureza deveria ser sempre
tomada como exemplo, num estudo que privilegiava a prática em detrimento da teoria, como
asseguravam os Estatutos de 1820:

É evidente que a theoria e a pratica formam o bom artista; mas é indubitavel que
a pratica é preferivel nas artes de imitação, porque a theoria ensina os conhecimentos
especulativos; se porém se lhe ajunta a pratica, começa-se então a ver com os
proprios olhos, marcha-se com confiança, e consegue-se a exactidão, porque a
pratica é o complemento de toda a sciencia, destroe prejuizos, dá regras seguras,
fornece recursos abundantes, e produz no pintor a firmeza de pincel, que faz achar
facil e praticavel o que os outros só versados nas lições theoricas julgaram
impossivel. Finalmente da pratica nasce a prudencia e perfeição das bellas artes15.

O regulamento elaborado em 1820 já previa a realização de concursos anuais, a fim


de estimular a competitividade e criatividade entre os alunos e o progresso das Belas Artes. No
entanto, pelo que se pode concluir da marcha das atividades na Academia Imperial logo
depois de sua abertura oficial, os Estatutos tinham uma existência apenas figurativa, não
sendo observados na grande maioria de seus artigos. Felix Émilie Taunay, no texto que
redigiu sobre a história da Academia, comenta que, entre 1826 e 1831 (ano em que se
verificou a renovação dos Estatutos),

...existe já a Academia no estado de corporação; porém, conservando-se os


estatutos como arcanos, nutre-se a desconfiança sobre o futuro; não há nexo nem
coordenação entre as diversas classes. O ensino dos Professores, sempre isolado,
não se vivifica com o grande auxilio das vistas geraes sobre as relações mutuas
das Bellas Artes entre si16.

O mesmo parecer marca a fala de Porto-Alegre, que considerava os estatutos


“v er da de i ros in i mig o s d o p ro gr esso e d o en t husi asm o ”, o po ndo -se a o
desenvolvimento da Academia, bem como a atitude de vários de seus professores.
Segundo comentaria mais tarde,

69
todos estes actos externos, toda esta apparencia eram paralysados por indisposições
particulares, por vis intrigas entre os professores e o director, que cada passo que
intentavam dar em abono da juventude, em proveito do paiz, encontravam huma
barreira terrivel; os estatutos tinham o vicio daquellas leis que se forjam com
intenções secundarias, tinham hum espírito acanhado que predominava no seu
todo; não eram feitos para as artes, mas sim para os homens; não olhavam para
o futuro, mas sim para o dia de hoje17.

O depoimento de Antonio Pinheiro de Aguiar, pretendente à vaga de professor


de desenho em Ouro Preto, também deixa evidente o imenso descrédito em que eram
tidos os Estatutos da Academia. Discípulo de Debret, Aguiar encaminhou, em março de
1831, pedido para que fosse admitido na vaga já mencionada. Em maio do mesmo ano,
reclamando da demora do andamento de sua causa, enquanto que outro candidato,
“simples curiozo em Desenho”, dava mostras de estar mais adiantado na obtenção do
cargo, Aguiar queixa-se que

o Director deste Estabelecimento, que sempre tem aprovado com vistas sinistras
em seus progressos, mostrando sempre huma total antiphatia aos Jovens
Brazileiros, mormente aos discipulos de M. Debret a cujo numero pertence o
suplicante, rancôr este procedido, de entendermos as Artes, não por esse circulo
estreito e viciozo da mera pratica, como elle as entende.
(...)
O suplicante não aponta algum artigo dos Estatutos da Academia, por nunca serem
vistos de pessoa alguma, nem mesmo os Professores da Academia, e à maneira
de hum Alcorão elastico, nas mãos deste Despota das Artes, he estendido e
interpretado como lhe convem18.

O descrédito e a inoperância dos Estatutos pareciam, pois, evidentes. Renovada


iniciativa no sentido de alterá-los parece ter sido a impressão, em 1827, dos já citados documentos
elaborados em 1824: o Projecto do Plano para a Academia Imperial das Bellas Artes e as
Reflexões Abreviadas sobre este mesmo projeto, elaboradas por Henrique José da Silva.
As atividades da Academia, porém, seguiam seu rumo, a despeito da desobediência
aos regulamentos; quando se tornava necessário, alteravam-se as disposições dos Estatutos,
como foi o caso da mudança nos horários das aulas, em 1827. Em 27 de março deste ano,
o diretor da Academia solicitou ao governo que fossem modificados os horários das aulas de
arquitetura, em vista dos frequentes pedidos do titular desta cadeira, Grandjean de Montigny.
Montigny argumentava que, além de serem as tardes muito pequenas e a iluminação
escassa no horário das aulas realizadas à tarde (das 3 às 6 horas), havia o inconveniente
de residir ele fora da cidade e ser-lhe “...mui penoso comparecer às três horas e permanecer
ali até às seis”19. No ofício em que encaminhava a solicitação do professor, Henrique José
da Silva justificava-se:

70
...conheço que estas razões são frivolas, por que se a luz he pouca elle he o
culpado pois como Architeto deste Edificio devia collocala de maneira que fosse
sufficiente e cómmoda a exemplo das Cazas de risco da Europa (...), alem de que
os Estatutos mandão que de inverno principiem os estudos das Aulas de tarde às
duas horas até às cinco, e não mandão que o Professor assista fora da Cidade20.

O ano de 1829 assistiu à primeira exposição de trabalhos da Academia Imperial das


Belas Artes. Com o título oficial de Exposição da Classe de Pintura Histórica na Imperial
Academia das Belas Artes, esta mostra foi produto direto dos esforços de Debret. Auxiliado por
Manuel de Araújo Porto-Alegre e contando com a proteção do Ministro do Império, José
Clemente Pereira, organizou e financiou a publicação do Catálogo das obras expostas.
Apesar do título recebido, a exposição contou também com trabalhos das Classes de Pintura
Histórica, Paisagem, Arquitetura e Escultura. A segunda exposição, também organizada por
Debret, realizou-se em 1830. Contou com trabalhos dos professores e discípulos de Pintura
histórica, Arquitetura e Paisagem e dos alunos de Escultura.
Estas exposições representaram o primeiro contato direto entre a Academia, enquanto
instituição, e o público. A sociedade brasileira podia, doravante, contar entre suas conquistas
culturais uma Academia que, malgrado todas as suas limitações, movimentou o ambiente
artístico da época. Esta condição parece estar reconhecida na seguinte fala de Porto-Alegre:

Nessa época uma prodigiosa revolução se verificou nas idéias do povo brasileiro;
os pintores, que não eram até então apreciados, foram admitidos nas sociedades
mais brilhantes; gozam agora da estima e da consideração geral. O imperador
manda parar sua carruagem na rua para conversar com pintores; um deles,
deixando cair o pincel num momento de inspiração, o Imperador se abaixou,
ergueu-o e o devolveu. Finalmente as belas artes se introduzem no seio das
famílias e raras são hoje aquelas em que o desenho e a música não entrem no
programa da educação das crianças21.

Este depoimento sugere, portanto, que os artistas ganharam um novo status depois
da instalação da Academia, demonstrando que as iniciativas do grupo chegado em 1816
estavam a produzir resultados positivos no que dizia respeito à configuração de um sistema de
artes no país. Na medida em que a Academia ia se estruturando, crescia o número de pedidos
de ingresso e aumentava a lista de alunos que frequentavam as aulas como discípulos
extraordinários. Alunos extraordinários pedindo matrícula como efetivos, efetivos solicitando a
sua aceitação como pensionistas da Academia, pensionistas reivindicando o direito de elevar-
se a titular da Cadeira em que serviam, todos estes pedidos passaram a fazer parte do
quotidiano da Academia Imperial. Em 1830, às vésperas dos acontecimentos políticos que
entregaram a direção do país a uma Regência, o governo solicitou ao diretor da Academia um
relatório sobre o estado dos trabalhos acadêmicos. Os próprios professores pediam autorização
para reformá-la e elaborar novos Estatutos. Também neste ano, a nomeação de Debret como

71
membro correspondente da Academia Francesa levava notícias do Brasil aos acadêmicos em
Paris. Encarregado de remeter relatórios periódicos sobre a evolução das artes no Brasil,
Debret continuou sua tarefa mesmo depois de voltar à França, em julho de 1831. Seu retorno,
tendo coincidido com a instalação de Regência, marcou o início de um período de importantes
alterações dentro da Academia - renovação dos Estatutos em 1831, distribuição pública de
prêmios aos alunos a partir de 1834 e substituição da diretoria em função da morte de
Henrique José da Silva em 1834.
Em 1831, provavelmente baseados no “Projecto de Plano” elaborado em 1824 e
impresso em 1827, os professores elaboraram um Projecto de Reorganização da Academia,
que foi entregue ao Ministro do Império. Com base neste documento, redigiram-se novos
Estatutos para a Academia Imperial das Belas Artes, aprovados por decreto de 30 de dezembro
do mesmo ano, no qual se lia que, com esta reforma, a Regência buscava motivar os trabalhos
na Academia, a qual se encontrava “quasi em huma perfeita nullidade, sem conseguir os fins
para que fora creada, pois que nella não se encontra nem applicação, nem regimen, talvez
pela absoluta falta de Estatutos proprios que regulem hum e outro objecto”22.
O Plano de Reforma autorizado pelo citado decreto previa modificações na
composição e no funcionamento da Academia. Em lugar do “corpo acadêmico” organizado
nos Estatutos de 1820, os professores proprietários e os substitutos (nome dado aos antigos
pensionistas) passavam a compor a Congregação. Entre outras atribuições, cabia à
Congregação escolher os modelos que haveriam de servir a todos os alunos da Academia.
Entre as modificações mais importantes dos novos regulamentos estava, sem dúvida, a eleição
do diretor e do secretário da casa pelo conjunto da Congregação.
Com relação ao ensino, este estaria doravante dividido em quatro ramos: Pintura
histórica, Paisagem, Arquitetura e Escultura. Além destas divisões, haveria uma Aula de Desenho
e outra de Anatomia. A Aula de Desenho seria frequentada por um ano, em paralelo ao
exercício de atividades especificas de cada uma das classes, o que modificava significativamente
as determinações anteriores. Os novos regulamentos previam, igualmente, a realização de
cursos de Osteologia e Myologia e de Physiologia dos temperamentos e paixões, dados por
professores que não fariam parte da Congregação.
As esperanças depositadas nestes novos Estatutos eram grandes e, a julgar pela
observação posterior de Félix Taunay,

em consequencia desta reforma, o estabelecimento governado pela Congregação


dos Professores e Substitutos presidida pelo Director, começa a dar esperanças
de hum desenvolvimento parallelo em todas as partes do seu ensino. Apparece o
salutar systema dos concursos, e torna-se effectivo pela imparcialidade que resulta
da intervenção directa de todos os Professores nos juizos. A emulação entre os
alumnos desponta, à vista das medalhas, e de diversas disposições dos Estatutos23.

72
No relatório sobre as atividades da Academia no ano de 183324, o Ministro do
Império indicava a necessidade de serem reformados alguns artigos dos Estatutos que regiam
o estabelecimento. Em março de 1834, o diretor da Academia enviara ao governo sugestões
de emendas aos Estatutos, redigidas pela Congregação de Lentes da Academia. Entre as
emendas sugeridas estava aquela que se referia à aplicação dos “ramos corolários de estudos”;
doravante, de acordo com as sugestões encaminhadas, não constariam mais dos Estatutos os
cursos de Anatomia, Osteologia e Miologia, bem como as aulas de Geometria e Ótica, que
deveriam ser frequentadas pelos alunos fora da Academia. Os lentes argumentavam que os
cinco anos em que o jovem artista dedicava-se à formação nas belas artes não eram suficientes
para que dominasse, também, disciplinas que estavam fora do regime regular do ensino
artístico. Afirmavam que uma pequena introdução a estas disciplinas bastaria aos alunos das
belas artes, podendo esta ser oferecida dentro dos próprios cursos da Academia.
Estas emendas constituíram, sem dúvida, o último grande fato da gestão de Henrique
José da Silva. Em julho deste mesmo ano, mostrou-se empenhado na constituição da biblioteca
e do acervo da Academia, enviando ao governo um ofício25 no qual solicitava que fossem para
lá transferidos os tratados relativos às artes que se achavam em duplicata na Biblioteca
Pública, assim como peças da coleção de retratos, desenhos e peças de diferentes galerias e
museus da Europa e os esboços originais que estavam na escada da Biblioteca.
Em 29 de outubro de 1834 falecia Henrique José da Silva, encerrando um período
de profundos conflitos internos na Academia. Apesar de tudo, foi durante a sua gestão que se
definiram os alicerces do ensino acadêmico, colocando à disposição da sociedade brasileira
uma instituição que, inspirada no modelo francês, constituía-se de acordo com o ritmo e as
vicissitudes locais.

Notas e referências
1
BRASIL. Leis. Decretos. Decreto. 23 nov 1820.
2
PEDROSA Mário. Da Missão Francesa - seus obstáculos políticos. Rio de Janeiro, Colégio Pedro II,
1955. (mimeo). p.13.
3
TAUNAY, Félix Emilie. Requerimento. Rio de Janeiro, 1824(?). (BN/Man; Doc Biográficos - IABA, doc
c-508,1).
4
DEBRET, Jean-Baptiste. Carta ao Imperador. Rio de Janeiro, 3 jan 1823. (BN/Man.; I-46,4,9, doc 3).
5
Ibid.
6
PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Apontamentos sobre a Academia das Bellas-Artes do Rio de
Janeiro. Bellas Artes. Rio de Janeiro, jan-fev 1934, ano V, nº 45/46.
7
SILVA, Henrique José da. Ofício. Rio de Janeiro, 18 set 1830. (AN/IE<iso>7<fso>10).
8
PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. Belas Artes. Exposição Pública. Minerva Brasiliense.
Rio de Janeiro, nº4, 15 de dez 1843.
9
PROJECTO do Plano para a Imperial Academia das Bellas-artes do Rio de Janeiro, que por ordem de
S.E. o Ministro dos Negocios do Imperio foi feito pelos professores da mesma Academia, no anno de
1824. Rio de Janeiro, Imperial Typographia de P.Plancher, 1827. (BN/Obras Raras)
10
SILVA, Henrique José da. Reflexões Abreviadas sobre o Projecto do Plano para a Academia Imperial
das Bellas Artes, que se diz composto pelo Corpo Academico. Rio de Janeiro, Typographia de P.
Plancher, 1827. (IHGB; doc 12,5,1 - nº3).

73
11
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo:
EDUSP, 1978. p.122-126.
12
Sobre o projeto de Grandjean para o edifício da Academia, ver MORALES DE LOS RIOS Fº, Adolfo. O
Ensino Artístico. Subsídio para a sua história. Um capítulo:1816-1889. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1942, vol.VIII. e GALVÃO, Alfredo. Obras na
Academia Imperial de Belas Artes.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura,
nº15.1961.
13
PORTO-ALEGRE, Belas Artes. Exposição Pública. Minerva Brasiliense. Rio de Janeiro, nº4, 15 de
dez 1843.
14
BRASIL. Leis. Decretos. Decisão 135. 30 set 1826.1826.
15
Ibid.
16
TAUNAY, Félix Emilie. História da Academia das Bellas Artes do Rio de Janeiro desde 1816 até 1838.
Rio de Janeiro, 1838. (AN/IE<iso>7<fso>12).
17
PORTO-ALEGRE,1843, op.cit.
18
AGUIAR, Antonio Pinheiro de. Requerimento. Mai 1831. (BN/Man.; Documentos Biográficos - Imperial
Academia de Belas Artes, doc c-293,1).
19
SILVA, Henrique José da. Ofício. Rio de Janeiro, 27 mar 1827. (AN/IE<iso>7<fso>10).
20
Ibid.
21
DEBRET,1978, op.cit., p.113. Sobre o episódio do pintor que deixa cair seu pincel, trata-se, ao que
parece, do próprio Porto-Alegre. Em carta ao Senador Soledade, a quem relatava os encontros tidos com
o Imperador a fim de pintar o seu retrato, Porto-alegre conta que “...cahio-me o pincel por descuido, ao
que Sua Magestade Imperial sahindo do seu lugar mo apanhou com ligeireza e mo entregou, ao que me
mostrei pleno de reconhecimento por tão grande honra.”
22
BRASIL. Leis. Decretos. Decisão 135. 30 set 1826.
23
TAUNAY, Felix-Émile. História da Academia das Bellas Artes do Rio de Janeiro desde 1816 até 1838.
Rio de Janeiro, 1838. (AN/IE<iso>7<fso>12).
24
GAMA, Antonio Pinto Chichorro da. Relatório do ano de 1833. Rio de Janeiro, 1834. (AN/Relatórios
do Ministério do Império).
25
SILVA, Henrique José da. Relatório. Rio de Janeiro, 1834. (AN/IE<iso>7<fso>10).

74
A consolidação da Reforma Pedreira a partir das teses de Porto-Alegre
em 1855

Cybele Vidal N. Fernandes


EBA/UFRJ

O Decreto número 1603, de 14/05/1855, é parte de um documento que se refere a


uma ampla reforma no sistema de ensino, conhecida como “Reforma Pedreira” (nome do
Ministro e Secretário dos Negócios do Império que a assinou, Luiz Pedreira do Couto Ferraz)1.
Esse Decreto dá novos Estatutos à Academia das Belas Artes (cuja vigência, com algumas
alterações, cobre os últimos trinta e quatro anos do reinado de D. Pedro II). O documento
consta de quatorze Títulos, quatro Capítulos, cento e dez Artigos, e resume no Título 1, ao se
referir ao Corpo Acadêmico, as funções da instituição:

A Academia tem por fim o ensino teórico e prático das Belas Artes e a sua
propagação e aperfeiçoamento. Este ensino será dado por professores nomeados
pelo Governo Imperial sobre proposta do Corpo Acadêmico. Os Professores
formarão duas classes distintas: a dos Efetivos e a dos Honorários. A reunião
dessas duas classes, presidida pelo Ministro e Secretário do Estado dos Negócios
do Império, ou pelo Diretor da Academia, constituirá o Corpo Acadêmico2.

Considerando-se que o conceito de academia difere do conceito de escola, depreende-


se que a instituição de ensino do Rio de Janeiro, enquanto academia, deveria congregar
artistas, intelectuais distintos, mecenas e amantes das artes para refletirem, junto com os seus
professores e alunos, sobre questões relativas às belas artes, em todos os ramos da sua
aplicação, e promoverem reuniões particulares e conferências públicas, divulgando ainda os
resultados desses estudos por meio de publicações. Essas reuniões de estudos deveriam
orientar a organização da academia e da escola e a adoção de seus métodos de ensino e
avaliação, assim como os demais assuntos referentes ao progresso e propagação das artes
no país. A instituição, enquanto escola, deveria promover o ensino teórico e prático das belas
artes, formar artistas em suas diferentes áreas de produção, segundo as regras do estatuto
então vigente.
Observa-se, no entanto, que no texto da Reforma a preocupação de estruturar a
instituição como academia revela-se em poucos artigos, talvez insuficientes para caracterizarem
tal estrutura. Embora ficassem previstos os quadros de Professores Honorários e de Membros
Correspondentes, o texto do Regimento não estabelece uma sistemática para as reuniões de
estudos, referindo-se apenas, no Artigo 8, a Sessões Públicas (onde seriam lidos e discutidos
temas sobre as artes) e, no Artigo 9, à publicação de um periódico. As Sessões Públicas,
previstas em número de quatro por ano eram, na verdade, ocasiões festivas nas quais não

75
havia troca de ideias e sim leitura do discurso do diretor, verdadeiros relatórios das atividades
e dos problemas da instituição3.
Esses discursos eram apresentados ao Imperador, demais autoridades e ao público
presente, em textos longos onde abordavam-se vários assuntos, acompanhados de algumas
observações referentes às questões gerais da Arte. Em tais ocasiões, não havia condição de
se promover a discussão das ideias que, no máximo, eram colocadas nesses longos textos
que a crítica da época denunciava como difíceis de suportar. Os discursos na Academia, já
tradicionais desde o período de Taunay, tornaram-se significativos no período de Porto-
Alegre, porque neles eram observadas a reflexão sobre a Arte e a importância da Academia,
para o país. Esses discursos não foram tão significativos nos trinta e dois anos seguintes à sua
demissão, quando a direção da Academia foi entregue a um médico e a dois professores de
Desenho, e não a um artista.
Nesse aspecto, a sistemática observada na AIBA diferia muito do modelo da escola
francesa, onde a academia programava um número maior de reuniões, caracterizadas
realmente como sessões de estudo, onde o aluno tinha frequência obrigatória nas mesmas e
dela resultavam publicações da mais alta importância. Segundo a tradição, essas conferências
partiam da análise da obra de um grande pintor ou escultor, ou de um projeto arquitetônico, e
o conferencista procurava resumir a sua posição em relação à sua solução estética. Seguia-
se uma discussão sobre os conceitos colocados, até que se chegasse a um ponto de acordo.
Esse processo poderia se desenvolver em uma ou várias sessões, nas quais o assunto era
retomado até que não houvesse mais nada a ser discutido. Esses resultados, após serem
divulgados, eram tomados como referenciais que solidificavam, ao longo do tempo, os princípios
e conceitos artísticos empregados pela academia.
No Brasil, embora houvesse recomendação para a publicação de um periódico,
resultante da reflexão de temas relevantes, isso nunca ocorreu, sendo Porto-Alegre o único
diretor que se empenhou nesse sentido. Na verdade, os novos Estatutos não eram cumpridos
em vários de seus artigos. Esse foi o caso, por exemplo, da disciplina História da Arte, Estética
e Arqueologia, que só teve professor em 1872, mas que nunca realmente funcionou na
Academia. No período em que Porto-Alegre foi diretor, não há explicação, em nenhum
documento, para que ele não tenha assumido a disciplina, para a qual fora indicado como
professor, pelo Imperador D. Pedro II4.
Esse fato é muito significativo, porque trata-se de uma disciplina muito importante para
dar sentido ao papel da instituição como Academia, centro de reflexão e de definição de
posições referentes à arte que se deveria aceitar enquanto modelos ou referenciais,
reconhecidos em seu mais alto valor, e como parâmetros que orientariam a elaboração de
uma produção capaz de identificar o progresso e o amadurecimento do país. Outras questões
podem ter colaborado para inexistência das sessões acadêmicas. Por exemplo, se o novo
Estatuto implantou disciplinas básicas para as diferentes Sessões, não deixou claro que

76
sistemática e metodologia deveriam ser aplicadas, observando-se apenas fatores que se
subordinaram, como parece, à renovação dos programas e ao cumprimento dos mesmos,
após a aprovação da Congregação. Essa exigência não foi respeitada, em diversas ocasiões,
pois há registros nas atas referentes à falta de apresentação ou cumprimento desses programas.
O sistema de admissão dos alunos à Academia também me parece um fator muito
importante nesse aspecto e merece ser avaliado. Os alunos eram admitidos sem base nenhuma,
o que comprometia sobremaneira todo o processo de formação, desde o início até seu
aperfeiçoamento no exterior. O ingresso se baseava em indicações de pessoas “capacitadas”
que viam, em algum jovem, potencialidades para a aprendizagem das artes. Do mesmo modo,
embora o número de alunos admitidos tenha aumentado nos dez primeiros anos da implantação
da Reforma, era muito alta a taxa de abandono dos cursos. É importante também considerar
que a Academia recebia muitos alunos de baixa renda, problema freqentemente apontado
nos relatórios da AIBA. O aproveitamento dos livros da biblioteca também era restrito, porque
a maioria desses livros era escrita em língua estrangeira, havendo necessidade de traduzir os
textos referentes aos assuntos considerados primordiais. Importa também considerar que, no
Brasil, não havia o elenco de obras históricas (monumentos, edifícios históricos, esculturas e
pinturas expostas em museus e galerias) necessárias ao estudo das artes, para serem
fruídas, estudadas evivenciadas pelos alunos daAcademia, tãocomuns naEuropa5.
No entanto, era preciso que houvesse um esforço comum no sentido de vencer esses
obstáculos e buscar avançar, no terreno do ensino e produção das obras de arte no Brasil. É
nesse sentido que se destaca a ação de Manoel de Araújo Porto-Alegre, arquiteto, pintor,
poeta e literato, cenógrafo, crítico de arte. Porto-Alegre foi o primeiro aluno da AIBA a buscar
aperfeiçoamento na Europa, para onde seguiu junto com o pintor J. B. Debret, em 1831,
quando este retornara à França. Foi professor de Pintura Histórica da Academia, entre os
anos de 1837 e 1848, e seu diretor, entre 11/05/1854 e 14/10/1857. Era membro do Instituto
Histórico e Geográfico do Brasil, onde convivia com diversos intelectuais, em diferentes áreas
de atuação. Coube a Porto-Alegre a implantação do novo Regimento, o qual, em sua essência,
refletia o seu pensamento e suas preocupações a respeito do ensino artístico e do estado das
artes no Brasil, questões que haviam sido discutidas com o Imperador, e que motivaram a sua
recondução à Academia, na condição de Diretor.
Cabe aqui considerar o seu empenho no sentido de instaurar, na AIBA, um ambiente
de estudo, necessário à sua condição de academia e escola. Assim sendo, em um documento
indicado apenas como “dia 29” ( não diz o mês, mas o ano é certamente 1855) escreveu : “
Fiz uma circular a todos os lentes da Academia pedindo-lhes que dessem diversas idéias e
informações acerca dos melhoramentos que eles julgam necessários ao ensino e ao progresso
do país”6. Na Sessão Pública solene do dia 27 de setembro de 1855, o livro de atas da
Academia registrava os assuntos tratados, destacando o seu objetivo principal, a criação de
um jornal artístico, em conformidade com o artigo 10 dos Estatutos. Apenas o Vice-Diretor e o

77
professor de Gravuras de Medalhas fizeram a leitura de algumas ideias, que consideravam
muito importantes, e que deveriam entrar no programa do “Jornal da Academia”, que o Diretor
propôs que se denominasse “O Artista”. A seguir, Porto-Alegre enumerou trinta temas, em
diferentes áreas, para serem considerados e discutidos pelos professores da AIBA. Esses
temas ou teses serão apresentados aqui grupados por assunto, e não na ordem em que
aparecem na Ata de 27/09/1855, para que fique mais fácil compreendermos os problemas,
assim considerados dentro de cada manifestação artística7.

1- Temas em Arquitetura
1.1- “ No momento em que os altos poderes do Estado decretarem a edificação de um
palácio para o nosso Imperador, qual será o local mais conveniente, o mais belo, e
mais econômico para esse monumento nacional?” ( tema 11)
1.2-”O Estado, a moralidade pública e o indivíduo lucrariam mais se todas as repartições
públicas estivessem em um só edifício ou convém separar os diferentes ramos da
administração? Qual será o melhor local, na primeira hipótese, para esta edificação, e
que plano geral conviria adotar no desenvolvimento do seu todo para haver nele rápida
correspondência e economia de tempo para o cidadão, de despesa para o Estado e de
ordem para a alta administração?” (tema 12)
1.3- “Nas diferentes arquiteturas conhecidas, será devido o seu caráter especial à
qualidade dos materiais empregados, às crenças religiosas que elas simbolizam, ou à
organização social dos povos que a criaram?” ( tema 14)
1.4- “A arquitetura grega deve ser proscrita dos nossos templos ou modificada, segundo
as exigências do culto? De todas as arquiteturas derivadas da antiga, qual será a que
mais convém adotar no Brasil?” ( tema 15)
1.5- “Se a Santa Sede se estivesse estabelecido fora de Roma a arquitetura cristã teria
continuado na senda que lhe imprimiu o Baixo Império ou Idade Média; teria retrogradado
ao caráter antigo, por causa da sua beleza ou solidez, ou então tomaria uma nova forma
diferente da arquitetura ogival ou bizantina? Não terá sido a causa principal deste
retrocesso a presença constante das ruínas da antiga Roma, o emprego de materiais
arrancados às mesmas ruínas e a constante influência daquela capital do Cristianismo
sobre todas as nações católicas?” ( tema 16)
1.6- “As nossas construções estão em harmonia com o nosso clima e vida doméstica?
Mudarão elas a sua disposição interior, depois da extinção da escravatura e, no caso
contrário, quais serão as introduções úteis que se devem adotar desde já, para que se
tornem mais belas, cômodas e sanitárias? E o que convém ao legislador decretar, para
este fim?” ( tema 18)
1.7- “Se o imposto da décima fosse substituído pelo das portas e janelas, o que
sucederia à arquitetura urbana?” ( tema 19)
1.8- “ O que tem mais concorrido para o atraso da arquitetura: as leis do nosso país, a
educação dos nossos homens de Estado, ou a falta de gosto nos particulares?” ( tema 20)
1.9- “Quais são as vantagens do emprego da arquitetura chamada doméstica pelo
Senhor Canin;, quais os edifícios que melhor comportarão este sistema e quais os que
perderiam com ele?” ( tema 22)
1.10- “O estudo da arquitetura clássica, conforme o sistema de muitas escolas, será
bastante para criar arquitetos úteis a todas as necessidades sociais, ou deve ele entrar na
educação artística contra o estudo dos clássicos na literatura?” ( tema 26)
1.11- “Sendo um país agrícola, não convirá ao jovem arquiteto um estudo sério sobre
a arquitetura rural, aplicada ao fabrico e custeio das nossas fazendas, e a maneira de

78
melhor colocá-las e tornar alegres, cômodas e saudáveis todas as suas fábricas e
habitações?” ( tema 27)
2- Temas em Pintura e Fotografia
2.1- “As diferentes escolas de pintura procedem mais da natureza do país onde
florescem, ou das doutrinas especiais de seus mestres? Deverão elas serem
consideradas pelos caracteres técnicos ou pelos morais? Será boa a atual classificação
das escolas, ou convém adotar outra mais explícita e menos confusa, na sua ordem
e filiação?” ( tema 17)
2.2- “Que utilidade poderá colher o paisagista com o estudo da Botânica e da Geologia?”
( tema 23)
2.3- “A descoberta da Fotografia foi útil ou perniciosa à pintura? E se ela chegar a
imprimir as cores da natureza, com a fidelidade com que imprime as formas
monocromicamente, que será da pintura e mormente dos retratistas e paisagistas?” (
tema30)

3- Temas em Desenvolvimento do Gosto e do Ensino


3.1- “Donde procede o mau gosto, e mesmo a indiferença que temos tido até hoje, para
com a arquitetura; quais as razões porque os exemplares de Mr. Grandjean não
frutificaram, e o que convém fazer, em favor desta arte, para ter um maior e seguro
desenvolvimento?” ( tema 2)
3.2- “Que conveniências podem resultar das restrições impostas nos novos estatutos
a respeito de serem preferidos os sujeitos dos concursos tirados da história nacional e
religiosa? Não teria sido melhor deixar plena liberdade de escolha?” ( tema 5)
3.3- “O novo sistema de educação artística, ordenado pela reforma, preencherá os
seus fins, ou será necessário um novo método? Qual será mais proveitoso, começar
pelos processos puramente técnicos, para depois passar-se à teoria, ou começar-se
pela teoria, para depois passar-se à prática, ou o sistema de estudar a teoria de envolta
com a prática?” (tema 6)
3.4-”Para que o Brasil forme uma escola sua, que princípios deverá adotar a Academia,
como cânones invariáveis, para preencher esse caráter peculiar que mereça o nome
de escola, sem precipitar-se no estilo amaneirado?” (tema 8)
3.5- “O princípio chamado da imobilidade, no Egito, foi útil ou fatal ao desenvolvimento
das belas artes naquela região?” ( tema 9)
3.6- “Se o sistema das recompensas públicas dos Atenienses fosse adotado no Brasil,
frutificaria ele como na Antiguidade, apesar da nossa diferente organização social e do
nosso caráter individual, ou daria um resultado moral e artístico superior ao dos títulos
e condecorações? Não pelejaria esta adoção com os resultados do passado, e não
seria ela a base de uma revolução pacífica, porém completa, no futuro?” ( tema10)
3.7- “Que meios pode empregar já o governo para enraizar o gosto das belas artes no
Rio de Janeiro, e torná-lo de utilidade pública?” ( tema 13)
3.8- “Qual será a razão porque muitas Academias se tem tornado infrutíferas e mesmo
prejudiciais às belas artes em diferentes épocas e países?” ( tema 25)
3.9- “A ornamentação e decoração dos edifícios principalmente a executada pela
pintura, deverá substituir os grotescos e arabescos pelos objetos da nossa natureza
americana; e qual tem sido a causa por que este caminho novo, apenas encetado por
Mr. Debret e Francisco Pedro do Amaral, nos seus últimos dias, ainda não tomou o seu
necessário e útil desenvolvimento? Nesta nova estrada, convirá abandonar inteiramente
os exemplares da Antiguidade na composição, ou conservar somente a harmonia das
linhas ou a simetria, como base geométrica e inalterável?” ( tema 29)

79
4- Temas em Escultura, Pintura e Desenho
4.1- “Onde está a verdade dessa máxima: a Anatomia é o segredo da Arte?”
( tema 24)
5- Temas em Azulejos e Decoração
5.1- “A introdução dos azulejos nas fachadas das nossas casas será o começo de uma
decadência prematura? Convirá destruir esta introdução ou aproveitá-la com melhor
direção na decoração externa? Será melhor combatê-la rigorosamente, para substituir
este gosto dos habitantes pela pintura a fresco, pelo desenho chamado sgrafignato,
pelo estuque, ou promover no país fábricas desta indústria?” ( tema 3)
6- Temas em Cerâmica e Gravura
6.1- A arte da Cerâmica, depois de aperfeiçoada entre nós, dará para as Belas Artes os
mesmos resultados que deu na Grécia, na Itália, na Saxônia e na França?” ( tema 1)
6.2- “Convirá mais auxiliar a Litografia, já implantada entre nós e com vida independente,
ou pedir ao Governo Imperial uma escola de Gravura a talho doce? A Litografia, em seu
estado atual, só peca pelo Desenho, e a Gravura está ainda na infância, mormente a
Gravura Histórica?” ( tema 4)
6.3- “Nas formas especiais das nossas plantas, flores e frutas, não terá a arte da
Cerâmica, principalmente a Mictenia, um manancial fecundo para as nossas inspirações?”
( tema 28)
7- Temas em Cenografia e Música
7.1- “Escrever a história da Cenografia no Rio de Janeiro e dar razões por que esta arte
não tem progredido entre nós” ( tema 7)
7.2- “Onde estão as causas da decadência da Música no Brasil, onde a Música é uma
necessidade, e onde se pagam aos cantores preços fabulosos? O que convirá fazer
para restaurar a Música religiosa, profanada escandalosamente pelos próprios músicos?
Donde partirá essa reação que encontra, nos devotos e nos artistas, tão formidáveis
adversários?” ( tema 21)

O novo Regimento, em seu Título dez, tratava das Sessões Públicas e Privadas da
AIBA. Deveriam ser realizadas quatro Sessões Públicas por ano, às quais deveriam comparecer
todos os professores da Casa, Membros Honorários e Correspondentes, e ali teriam lugar as
discussões sobre temas artísticos considerados relevantes. Desse modo, compreende-se por
que Porto-Alegre solicitara aos professores a elaboração desses temas, tendo ele mesmo
colaborado com trinta questões. Na verdade, os demais professores da Academia, a exceção
de dois, não ofereceram sua colaboração. Seja por decisão política, ou mesmo por
incapacidade, a maioria dos professores desconsiderou o pedido do Diretor sobre o assunto.
Para julgar o modelo de ensino acadêmico, as Exposições Gerais fornecem um bom
painel, onde observa-se que os resultados não foram equilibrados, nem na quantidade nem
na qualidade das obras expostas. Os temas nacionalistas despertaram grande interesse e
absorveram a figura do índio, comprometida com as representações simbólicas e alegóricas
mais diversas, dentro da temática nacional. A retratística, integrada ou não a um tema celebrativo,
era o gênero mais comumente realizado, em especial a iconografia do Imperador e da Família
Real, que povoaram as galerias dos edifícios públicos, religiosos, salões, as Exposições
Gerais. As tendências que observamos na Pintura, seja nas grandes batalhas de Victor

80
Meirelles de Lima ou de Pedro Américo, ou nos demais gêneros representados pelos diversos
artistas, revelam um academismo de tendência romântica, que serve à narrativa dos temas
nacionais, de inspiração nativista, mais raramente à tendência realista, observada, por exemplo,
na obra de Almeida Júnior
As trinta teses de Porto-Alegre eram a primeira proposta de estudos temáticos, cuja
real motivação era o necessário acompanhamento dos diferentes Títulos e Artigos do Regimento
de 1855, que alteravam procedimentos, orientavam novas práticas, propunham uma nova
filosofia para o ensino da Academia. Além disso, antes de serem entendidas como simples
argumentos para as Sessões Públicas - onde não caberiam, a bem da verdade, discussões
mais aprofundadas, por ser um ambiente festivo e impróprio para a discussão de temas tão
relevantes, – deveriam acompanhar a implantação da Reforma acadêmica, verificando se as
suas propostas estavam ou não colaborando para a melhoria da arte produzida na Academia.
Participavam também da ideia de conferir à instituição os conceitos de escola e academia,
estimulando a constante reflexão e buscando alternativas de adequação para a Reforma em
relação às exigências e realidades do país. Assim sendo, o esforço de revisão e aprimoramento
do Regimento visou colocar a Academia em conformidade com os preceitos de ensino da
França, Alemanha, Itália mas enfrentou, dentre os maiores entraves, o despreparo dos
professores da Academia, muito mal formados, e dos seus alunos, cujo ingresso era muito
precoce e por indicação, não por seleção8.

Notas e referências
1
Conferir: Decreto número 1.603, de 14 de Maio de 1855, que “Dá novos Estatutos à Academia das
Bellas Artes”, que consta de nove Capítulos, cento e setenta Artigos, e onze Títulos numerados,
repetindo os Títulos 4 e 5. Arquivos de Museu D. João VI/EBA/UFRJ.
2
Estatutos da Academia das Belas Artes, Título número um, “Do Corpo Acadêmico”. Acervo do Museu
D. João VI/EBA/UFRJ.
3
Sobre as questões mais aprofundadadas referentes ao ensino e à produção acadêmica, ver:
FERNANDES, Cybele V. N. “Os caminhos da arte.O ensino artístico na Academia Imperial das Belas
Artes, 1850 – 1890.” Tese de Doutorado; Rio de Janeiro: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais
(GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado, Orientação), 2001.
4
O professor indicado para a disciplina, mas que praticamente não atuou, foi Pedro Américo de
Figueiredo.
5
Sobre a dificuldade com a língua francesa, o Pensionista Cândido de Almeida Reis, em uma carta à
Academia, fez a seguinte observação: “Estou morando no Hotel Camões onde, além de achar-me bem,
entendo-me perfeitamente com os seus proprietários que, como o nome do Hotel indica, são portugueses.
Minha filha acha-se em um colégio francês de pensionistas onde terá a vantagem de ajustar à sua
instrução o conhecimento, ao menos prático, da língua do país”. Trecho de carta datada de 22/03/1866,
vinda de Paris. Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.
6
GALVÃO, Alfredo. “Manoel de Araújo Porto-Alegre. Sua influência na Academia Imperial das Belas Artes e no
meio artístico do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro: MEC/IPHAN, Revista do IPHAN número 14, 1959, p. 33.
7
GALVÃO, Alfredo.“Manoel de Araújo Porto-Alegre”. Opus cit. p. 42 a 47.
8
Uma reflexão mais delongada sobre o assunto, além da tese citada, pode ser buscada em: FERNANDES,
Cybele V. N. “O ensino de Pintura e Escultura na Academia Imperial das Belas Artes” e “A construçã
o simbólica da Nação: a pintura e a escultura nas Exposições Gerais da Academia Imperial das Belas
Artes”. In: PEREIRA, Sonia G. (org.) 185 anos de Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: EBA/UFRJ, p.
09 a 40 e 179 a 190.

81
A reforma Pedreira (1854-57) e seus desdobramento: uma reavaliação

Leticia Squeff
História da Arte/UNIFESP

Em uma das vezes em que visitei o Museu D. João VI para fazer minha pesquisa de
mestrado, a Universidade estava em greve (1998 ou 99). Numa época em que a internet e o
email ainda não eram tão difundidos, eu só soube disso quando cheguei às portas do Museu.
Os funcionários do órgão, sabendo que eu viera de tão longe, e que era uma simples bolsista
de mestrado, tiveram uma atitude, para aquela situação, verdadeiramente grandiosa: resolveram
permitir que eu fizesse a pesquisa. Todos os dias eles abriam a sala de pesquisa e o museu
para mim e para outras duas pesquisadoras.
Esse fato, aparentemente tão prosaico, foi fundamental para minha pesquisa e também
para minha trajetória como historiadora. Foi no Museu D. João VI que tomei contato com uma
faceta fundamental da trajetória de Araújo Porto Alegre: sua atuação como diretor da Academia
Imperial de Belas Artes. Essa descoberta não apenas renovou completamente as reflexões
que vinha fazendo até então, como redirecionou minha pesquisa. Se até aquele momento eu
vinha discutindo a figura de Porto Alegre apenas como homem de letras, após a pesquisa no
Museu D. João VI comecei a descobrir o quanto sua trajetória estava comprometida com um
projeto artístico. Mais do que isso, essa etapa da pesquisa chamou minha atenção para o
papel da Academia de Belas Artes entre as instituições do Império.
No Arquivo do Museu D. João VI consultei as atas das sessões ordinárias da Academia
e os discursos de Porto Alegre como diretor da instituição entre 1854 e 1856. Sua atuação
como diretor da AIBA mostrou também aspectos cruciais da vida artística carioca no século XIX.
As reflexões suscitadas pela pesquisa no arquivo do Museu D. João VI foram incluídas
no meu livro O Brasil nas Letras de um Pintor: Manuel de Araújo Porto Alegre (1806-79) (Ed.
da Unicamp, 2004). Nesta oportunidade, gostaria de retomar alguns aspectos da trajetória de
Porto Alegre abordados no livro, particularmente no que se refere à chamada Reforma
Pedreira.

A Reforma Pedreira
Luiz Pedreira do Couto Ferraz, realizador da chamada Reforma Pedreira (1854-57),
foi chamado pelo Marquês de Paraná para assumir uma pasta do Império no Gabinete de 6 de
setembro de 18531. Nesse momento, a necessidade de reformar a instrução pública do
Império era consenso entre os membros do governo. Não apenas o novo ministro, como o
próprio D. Pedro II concordavam a respeito da urgência da matéria. Concebida como etapa
fundamental para o progresso, a instrução prometia garantir o alinhamento do Império com as
chamadas nações civilizadas.

82
Concebida num momento em que o Império alcançara acabar com as rebeliões que
vinham ocorrendo, com intervalos, desde a Regência, e de relativa tranquilidade política, a
Reforma Pedreira constitui um episódio em que o governo central intenta, através de um
programa abrangente e minucioso, reestruturar a instrução pública no Império. Pela ambição
de seu programa de reformas, e principalmente pelo momento peculiar em que foi concebida¾
marcado pela introdução de produtos manufaturados e pela inserção do Império na
‘modernidade’, a Reforma Pedreira torna-se assunto privilegiado para refletir sobre a forma
como a política de instrução pública relacionava-se com um projeto civilizatório comandado
pelo Paço Imperial.
Os cursos jurídicos foram totalmente reformulados, ganhando minuciosos estatutos e a
denominação de faculdade. Para diminuir a evasão do Colégio Pedro II, o ministro Pedreira
determinou que a conclusão do curso desse ao aluno o diploma de bacharel em letras,
capacitando-o a entrar automaticamente nos cursos superiores. Também outras instituições
como a Academia Militar, a Escola de Medicina, o Conservatório de Música, foram reformulados
durante a Reforma Pedreira de 18542. A reforma também incluiu a criação do Instituto dos
Cegos. A Academia Imperial de Belas Artes foi uma das instituições que também sofreram
grandes mudanças durante a gestão de Pedreira à frente da pasta do Império.

Araújo Porto Alegre e a reforma Pedreira


Araújo Porto Alegre começou a estudar pintura na Academia do Rio de Janeiro em
1827. Foi discípulo dileto de Debret, tendo feito uma viagem pela Europa entre os anos de
1831 e 1837. Como membro ativo do grupo que liderou a vida intelectual do primeiro romantismo
carioca, escreveu diversos artigos em jornais e revistas da época. Nesses textos, comentando
as exposições de arte da corte, a arquitetura de igrejas da cidade ou a história das artes no
Rio de Janeiro, Porto Alegre estabeleceria vínculos estritos entre o desenvolvimento artístico
e o progresso da civilização no Império.Como elemento que resguardava as tradições e a
história de um povo, mas principalmente por seu compromisso com a difusão de valores, as
“belas artes” teriam uma função civilizatória3. Desse ponto de vista, certamente também por
suas idéias o artista chamou a atenção de Pedreira e do próprio D. Pedro II.
Como ele mesmo conta em seus “Apontamentos Biográficos”, foi chamado pelo
Imperador para escrever suas ideias a respeito da Academia e, pouco depois, assumiu a
vaga deixada vaga pelo antigo diretor, Felix-Émile Taunay alguns anos antes.
Com os cinco contos de réis dotados pelo governo para reestruturar a Academia,
Porto Alegre modificou os estatutos, criando novas disciplinas e novas vagas. Os novos
estatutos abordavam minuciosamente uma ampla gama de aspectos: o conteúdo das disciplinas;
as atribuições de todos os profissionais da instituição: desde o diretor, passando pelos
professores, conservador da pinacoteca, até o porteiro e o guarda; os dias letivos e quantidade

83
de feriados; as exposições públicas, premiações, pensionato na Europa; frequência dos
alunos e punição em caso de faltas e indisciplina4.
O novo diretor também se preocupou em aumentar a importância da AIBA entre as
instituições culturais da corte. Assim, o ambicioso projeto de reforma incluiu a incorporação do
Conservatório de Música à Academia. Na visão de Porto Alegre, a AIBA deveria controlar
todas as manifestações artísticas que se realizassem na corte: da cenografia e vestuário das
peças de teatro, passando pela distribuição de certificados aos professores estrangeiros e
independentes que chegavam à corte todos os dias5. A Academia devia se transformar em
instância máxima não apenas de formação de artistas, mas de fiscalização e controle de tudo
que se referisse às artes no próprio Império. Nesse sentido propôs que a instituição julgasse
previamente até mesmo monumentos construídos em outros pontos do território e incluiu a
Academia, como instituição julgadora, no concurso para construção da Estátua Equestre6.
Foi realizada uma enorme reforma no edifício da instituição, com a reestruturação de
seu interior e o acréscimo do segundo andar, completando, finalmente, o projeto inacabado de
Montigny. Como se sabe e tem sido apontado por diversos historiadores, foram muitos os
projetos, grandes as intenções de Porto Alegre como diretor da Academia. Muito do que quis
fazer ficou inacabado ou mesmo não chegou a sair do papel pelo curto espaço de tempo em
que ficou no cargo.
Atrapalharam Porto Alegre diversos fatores, entre os quais certamente um dos mais
preponderantes cabe às peculiaridades da vida política no oitocentos brasileiro. As mudanças
de ministério levavam, muitas vezes, às famosas “derrubadas”, como se falava na época: do
primeiro ao último escalão, administradores e funcionários eram substituídos ao sabor das
transações políticas, da alternância dos partidos no poder e até mesmo das oscilações de
humor do imperador.
Em 1857 caía o ministério, já enfraquecido desde a morte de seu líder- o senador
e conselheiro Honório Hermeto Carneiro Leão. Nesse mesmo ano, o novo ministro do
Império, Marquês de Olinda, promoveu uma limpa nos cargos mais importantes sob seu
controle. Antigo inimigo de Porto Alegre, nomeou como professor de pintura histórica da
Academia outro - mais um - inimigo de Porto Alegre: o pintor Joaquim Lopes de Barros
Cabral Teive. Considerando a nomeação uma afronta, Porto Alegre pediu demissão em
3 de outubro de 18577.
Mas para se compreender a demissão de Porto Alegre, há que levar em conta
igualmente o mau gênio do artista. Entrando em confronto aberto com alguns professores
antigos da Academia, como August Muller e José Correia de Lima, Porto Alegre rapidamente
se indispôs com a Congregação dos Professores. Não se pode deixar de lembrar também,
finalmente, que algumas de suas propostas para a Academia eram pouco usuais, algumas
mesmo inovadoras, diante das concepções de alguns contemporâneos. Caso, por exemplo,
de suas ideias a respeito do ensino da pintura de paisagem.

84
Levando-se em conta os limites de tempo deste encontro, seria excessivo entrar na
questão. Gostaria de ressaltar aqui a importância de apenas uma das iniciativas de Porto
Alegre à frente da Academia.
A criação de um curso de ofícios dentro da Academia trazia não poucos desafios a
valores arraigados e preconceitos de uma sociedade escravista e estamental8. Apesar da
instalação efetiva da Academia datar de 1826, os escravos continuavam realizando atividades
consideradas, no âmbito da instituição, como próprias ao artista. Vale retomar, a propósito, a
observação do pastor americano Thomas Ewbank, que esteve no Rio de Janeiro em 1845:

Já vi escravos trabalhando como carpinteiros, pedreiros, calceteiros, impressores,


pintores de cartazes e ornatos, fabricantes de carruagens e escrivaninhas e litógrafos.
É também verdade que esculturas em pedras e imagens sagradas em madeira
são freqüentemente feitas com admirável habilidade pelos escravos e negros
libertos. (...) Todas as espécies de ofícios são executados por homens e rapazes
negros9.

Um curso de ofícios ministrado dentro da Academia de Artes destoava, assim, de


hábitos e valores fortemente arraigados, associados à vigência da escravidão. Era contra
isso, fundamentalmente, que os homens engajados na legitimação da Academia tinham que
lutar. Curioso, nesse sentido, o silêncio de Porto Alegre a respeito da escravidão. Em nenhum
de seus discursos como diretor da AIBA há qualquer menção sobre o fato de que os chamados
“ofícios” também eram feitos por escravos. Indício do quanto o tema era incômodo e
desconcertante. Mas também pode ser interpretado, por outro lado, como parte da postura
programática do autor no sentido de proclamar a importância do artista.
E os estatutos criados por Porto Alegre são bastante claros nesse sentido. Se as
disciplinas próprias ao curso técnico eram frequentadas por alunos-artífices e alunos-artistas,
os estatutos de 1855 determinavam que a formação dos primeiros ficava circunscrita somente
àquelas disciplinas: matemáticas aplicadas, desenho geométrico, além dos cursos de desenho
de ornatos e escultura de ornatos. Todos as outras matérias da Academia eram voltadas para
a formação de artistas. Porto Alegre chegou a definir o artista nos seguintes termos:

O homem que nasce artista não é uma organização mecânica aplicada a esta ou
aquela parte de uma das harmonias do belo, é uma organização fecunda em
pensamentos, é uma cabeça como a de Fábio, que ensinou Marco Aurélio a
distinguir o falso do verdadeiro, o aparente do real; é uma cabeça como a do
mestre do divino Platão, como a de Luciano, que passam das formas à essência,
e da matéria ao espírito, e do mundo geométrico ao metafísico, são forças da
natureza, que aplicadas às ciências dão Newton, Leibnitz, e Filangieri, ou essas
melodias do espírito reveladas pelo metro, que atravessam os séculos com toda a
inteireza de sua nobre entidade, como Homero e Virgílio, como Dante e Ariosto,
como Camões, Manzoni, ou como Mozart e Pergolesi10.

85
O diretor demarcava, de modo explícito, as profundas diferenças que separavam o
artista do artífice. Não bastava o domínio da técnica, o aprendizado de matemática, desenho
ou geometria. A primeira qualidade do artista era a capacidade de criação. ‘Criação’ que tinha
muito de mental e racional, daí as comparações com filósofos e cientistas. Em segundo lugar,
o artista era definido como aquele capaz de separar o aparente do real, alguém cujo olhar
penetrava através das formas visíveis, captando o âmago, a essência das coisas. Por essa
concepção, a obra de arte era vista como depositária do sagrado, como manifestação física do
contato quase religioso que ele, e só ele— o artista— tinha com o mundo espiritual. E aqui a
concepção de arte e artista de Porto Alegre parece se aproximar do Romantismo11.
A defesa do ensino técnico na Academia por Porto Alegre liga-se, também, à
observação das profundas mudanças trazidas com a revolução industrial, perceptíveis
de forma mais radical nas sociedades europeias. Deve-se lembrar, a propósito, que
livros e principalmente revistas estrangeiras eram consumidos avidamente pelos letrados
do Império, que podiam, dessa maneira, se manter a par do que acontecia no Velho
Continente. Em mais de um discurso e em artigos deste período o diretor menciona ícones
da modernidade na época, como o trem, o barco a vapor, as exposições universais,
entre outros. Deve-se lembrar também, por outro lado, que a partir dos anos 1850
também a cidade do Rio de Janeiro passava por grandes mudanças. Com o fim do tráfico
de escravos, novos investimentos foram feitos, com a importação, em escala e variedade
até então inéditos, de produtos que teriam enorme impacto sobre os modos de vida das
elites cariocas. A própria cidade refletiria esse clima de mudanças, com a introdução da
iluminação a gás, das primeiras linhas de trem, além da renovação das rotas comerciais
com a chegada ao porto dos navios movidos a vapor12.
A procura pelo ensino técnico foi menor do que Porto Alegre esperava, apesar do
número de matrículas ter dobrado entre 1856 e 1857. Mesmo assim, certamente a experiência
na Academia serviu de parâmetro para a ideia da fundação do Liceu de Artes e Ofícios, criada
pelo arquiteto Bethencourt da Silva em 1858.
Enquanto na Europa as academias surgiram como efeito da emancipação do artista,
no Brasil foi a Academia que promoveu o artesão à artista13. A Academia de Belas Artes, como
instituição consagrada às artes, foi o locus privilegiado do longo processo, que certamente
durou todo o século XIX, de separação do artista do simples artífice e do escravo. E Porto
Alegre, e a reforma que promoveu na AIBA, teve papel essencial neste processo.
Outro aspecto importante de sua administração ainda pouco abordado é o que se
refere ao encaminhamento que deu à pinacoteca da instituição. Afinal, a pinacoteca da
Academia é um dos pontos de partida para a formação do acervo tanto do Museu D. João
VI quanto do Museu Nacional de Belas Artes. Mas essa discussão terá que ficar para uma
outra oportunidade.

86
Notas e referências
1
O Gabinete de 6 de setembro de 1853, chamado da Conciliação, tinha como presidente Honório Hermeto
Carneiro Leão (Visconde, Conde e Marquês do Paraná). Sobre o cenário político no período ver, por
exemplo. Francisco Iglesias. “ Vida Política, 1848/ 1868”. In: S.B. de Holanda. HGCB. - II O Brasil
Monárquico, v. 3, 2ª ed., São Paulo: DIFEL, 1978.
2
CF. HAIDAR, 1971, PILETTI, 1990.
3
Na maior parte de seus artigos o pintor aponta este vínculo. Cf por exemplo PORTO ALEGRE, 1843;
PORTO ALEGRE, 1854. Para o pintor a arte também tinha função de divulgar uma determinada interpretação
da nacionalidade. Essa questão não será abordada aqui.
4
Os estatutos da Reforma Pedreira foram transcritos em pelo menos três publicações: In: RIOS F°, O
ensino artístico: subsídios para sua história. In: Anais do Terceiro Congresso de História Nacional, IHGB,
1938. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942 e MOACYR, p. A instrução e o Império- subsídios para
a história da Educação no Brasil , São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1936-39 (v. 3), e In: Revista Crítica de
Arte (edição especial dedicada a uma antologia da crítica de arte no Brasil) , n°4, dez. 1981. Utilizo
principalmente a última.
5
Ao que parece esta norma nunca saiu do papel.
6
O projeto da reforma deixa entrever que Porto Alegre também tentou promover o aumento de salário dos
professores, o que não foi alcançado. Mas, a julgar por uma passagem de seus “Apontamentos”, parece
ter conseguido aumentar a gratificação anual dos docentes da AIBA.
7
A questão foi aprofundada em minha dissertação de mestrado. Cf. SQUEFF, O Brasil nas Letras de um
pintor, Op. Cit..
8
A partir de fins do século XVIII, algumas academias européias também incluiram o ensino técnico entre
suas atribuições. Como mostra Nikolaus Pevsner, a academia do século XIX também “(...)devia não só
incluir cursos internos de desenho a partir de modelo-vivo mas também de ‘especialidades menores da
arte, como a paisagem, os animais, as flores”. Pevsner mostra como alguns diretores de Academia
afirmavam, assim como faria Porto Alegre, a importância das artes para a promoção da “indústria
nacional”. Apud PEVSNER, N. As academias de arte. Passado e Presente. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005, p. 202.
9
EWBANK, T. Vida no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1976, p.153.
10
Porto-alegre. Discurso de posse, pronunciado na Academia de Belas Artes em 11 de maio de 1854",
apud. GALVÃO, Alfredo. “Manuel de Araújo Porto Alegre; sua influência na Academia Imperial de Belas
Artes e no meio artístico do Rio de Janeiro”, in Revista do Patrinônio Histórico e Artístico Nacional, Rio
de Janeiro, 14: 19-20, p.26.
11
Nesse sentido, a referência ao poeta Manzoni também é indicativa do conhecimento do pintor da lírica
romântica. Para G.C. Argan, romantismo e neoclassicismo pertencem ao mesmo período histórico, a
diferença é o tipo de atitude, preferencialmente racional ou passional, do artista. Argan vê o neoclassicismo
como uma fase da concepção romântica de arte. Cf. A arte moderna. 9ª reimpressão, São Paulo: Cia das
Letras, 2004.
12
Sobre a questão, ver por exemplo ALENCASTRO, Luis Felipe de. “Vida privada e ordem privada no
império” In: Idem. (org.) História da vida privada no Brasil: Império. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
13
Cf. “O século XIX, o advento da Academia de Belas Artes e o novo estatuto do artista negro”, In:
ARAÚJO (org.), Reflexões iconográficas- memória. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo,
1994. Até mesmo artistas negros teriam se beneficiado do prestígio da Academia, conquistando legitimidade
e até uma certa ascensão social através dela.

87
A ‘Reforma da Academia’ no relatório de Rodolpho Bernardelli ao Ministro
da Instrução Pública (1891)

Camila Dazzi
Doutoranda PPGAV/EBA/UFRJ

O presente texto tem como objetivo apresentar algumas considerações sobre o Projeto
de Reforma elaborado por Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoêdo para a Academia das
Bellas Artes, no início de 18901. Procuraremos mostrar em que medida as propostas contidas
nesse documento têm continuidade nos Estatutos de Escola Nacional de Belas Artes2, assinados
por Benjamin Constant, então Ministro da Instrução Pública, em novembro de 1890. Para a
realização dessa análise, fizemos uso, sobretudo, do Relatório sobre a Reforma da Academia3
que Rodolpho Bernardelli envia ao Ministro da Instrução Pública, Correios e Telegraphos,
João Barbalho Uchôa Cavalcanti, em maio de 1891.
Para compreendermos o posicionamento de Rodolpho Bernardelli, seja na realização
do Projeto de Reforma, seja no seu Relatório sobre a mesma, faz-se necessário, dentre
outras coisas, procurar compreender qual era o posicionamento dos jovens artistas sobre a
Academia, a arte e o seu ensino, ainda que hoje tais posicionamentos possam nos parecer
exagerados e mesmo bastante contestáveis.
A revisão sob a qual vem passando nas últimas duas décadas a atuação da Academia
(seus professores, alunos, seu sistema de ensino, etc), nos tem ensinado que muito da visão
negativa que se tem/tinha sobre ela é, em grande medida, injustificada. Aprendemos que
durante décadas vigorou na história da arte um notório antiacademismo, popularizado pelos
nossos modernistas, ao enfatizarem uma imagem da Academia/Escola como instituição
repressora, contra a qual se opunham heroicamente4.
No entanto, ao entrarmos em contato com os escritos sobre arte publicados no Rio de
Janeiro nas décadas finais do século XIX, é possível notar que esse antiacademismo, do qual
os modernistas são culpados por difundir, já estava presente nos debates sobre o sistema de
ensino acadêmico. Esse antiacademismo é, por exemplo, um dos poucos traços constantes do
pensamento crítico de Gonzaga Duque e pode ser igualmente detectado no círculo de intelectuais
ligados à célebre Revista Illustrada, como Angelo Agostini5. O mesmo posicionamento
antiacadêmico verificamos nos escritos de alguns artistas, dentre eles um dos autores do
Projeto de Reforma da Academia, Rodolpho Bernardelli.
Os mais de 100 anos que nos separam dos acalorados debates travados, nas décadas
finais do século XIX, entorno do propósito e da existência das academias (seja no Brasil, seja
na Europa), nos permitem ver os acontecimentos de uma forma, poderíamos dizer
‘desapaixonada’. Sabemos que o ensino ministrado no interior da Academia Imperial de Bellas
Artes não era tão retrógado assim, sabemos que inovações eram propostas no seio da

88
instituição. Temos uma visão de conjunto, possibilitada pela análise de documentos, de críticas
de arte e pela comparação da nossa Academia com as suas congêneres europeias. Porém,
compreender o posicionamento antiacadêmico dos artistas em finais dos oitocentos, significa,
em parte, colocarmos um pouco de lado esse cabedal de conhecimentos, significa lembrar que
os personagens dessa história defendiam, acreditavam e lutavam por algumas causas sem
fazer uma análise fria e minuciosa das próprias ações. Pensar que os artistas que se voltaram
contra o sistema de ensino ministrado na Academia em 1890 estavam simplesmente colocando
em prática uma estratégia, cujo propósito era conseguir afastar do cenário artístico os antigos
professores e gestores da Academia e com isso conseguir cargos e garantir posição de
destaque no meio artístico, é não ter em conta que, muito possivelmente, esses jovens
acreditavam no que estavam defendendo, que acreditavam na causa pela qual estavam
lutando. Se não todos, pelo menos alguns.
Não estamos aqui defendendo que devemos acreditar em tudo que lemos,
inocentemente, mas também não devemos crer que todo e qualquer comentário negativo
sobre a Academia é destituído de veracidade, um discurso sem fundamentos, assumido para
justificar intenções subjacentes.
É com esse duplo posicionamento que acreditamos ser necessário analisar, por
exemplo, o Relatório assinado por Rodolpho Bernardelli, em 15 de maio de 1891, sobre a
Reforma da Academia, elaborado a pedido do Ministro da Instrução Pública, João Barbalho
Uchoa Cavalcanti, e a ele enviado. Para além de claramente reforçar a importância da
Reforma e o seu próprio papel dentro dela, as palavras do escultor revelam, e de uma forma
ainda bastante vivida, a forma como ele concebia o ensino artístico ministrado na Academia.

Figura 1: Rodolpho Bernardelli com o seu irmão,


Henrique Bernardelli, c. 1890.
Foto pertencente ao Acervo do Museu Dom João
VI/EBA/UFRJ.

No Relatório de 1891 encontramos


igualmente algumas explicações para as
mudanças que foram propostas por Rodolpho
Bernardelli e Amoêdo no Projeto de Reforma,
de 1890, e que tiveram continuidade nos
estatutos de novembro daquele mesmo ano.
Vejamos com que termos Bernardelli se refere
à antiga Academia e a sua reforma:

89
Transformação radical o completa, mais do que simples reforma, foi o decreto
de 8 de novembro. Substituindo a Academia creou-se a Escola Nacional da
Ballas Artes, que pôde definir todo o seu programa na repulsa com que foi
condennado o título pretencioso e nefastamente sugestivo de sua antecessora.
A Academia era a contemplação ritual do passado; era a veneração do canon
inviolável das convenções plásticas dos antigos, distrahindo o espírito dos
artistas do espetáculo ensinador da natureza, era a lição tyrannica do como
viam, contrapondo-se ao ensino intuitivo e natural do como vêdes; era o
academismo, em suma, com todas as suas modestas ambições de corrigir a
scena das cousas. [...]
O próprio Director, que ultimamente presidia os destinos da academia, apezar
de meio vencido pelo embate dos princípios modernos, que iam innovando no
ensino alguns professores de nomeação recente, deixava-se reconhecer, num
disfarce mal arranjado dos seus preconceitos, quando escrevia no relatório de
1888. “....a Academia das Bellas Artes, cuja missão actual não deve ser outra
mais que a de exclusivamente votar-se ao verdadeiro culto da forma esthetica
da arte clássica e da sua propagação evolucionista fomentadora do
aperfeiçoamento da arte moderna”... a Academia era, assim, a convenção
irremediavelmente revoltada contra a impressão6.

Poderíamos analisar vários pontos desse trecho, como por exemplo, o uso de conceitos
como Convenção e Impressão, tão presentes nos escritos sobre arte das últimas décadas dos
Oitocentos. Mas, nos deteremos, por hora, na ideia de um ensino tirânico, no qual o professor
bloqueia a individualidade do aluno, se contrapondo a um ensino intuitivo.
Rodolpho Bernardelli demonstrou estar em sintonia com o descontentamento de uma
significativa parcela de artistas e intelectuais europeus e norte e sul-americanos, em relação à
maneira como o ensino artístico era conduzido no interior das Academias. Em um período
marcado por uma busca cada vez maior por individualidade, originalidade e autenticidade na
produção da arte, o ensino nas academias era compreendido por significativo percentual das
figuras envolvidas com o meio artístico, como possuidor de uma série de princípios definidos e
regras fixas que inibiam os jovens artistas de desenvolverem uma produção pessoal7.
Nessa perspectiva, compreendia-se que o “velho sistema de ensino oficial”
precisava passar, e com urgência, por reformas. Ao lermos textos, livros e artigos
publicados durante e após a reforma de algumas academias na Europa, percebemos que
o discurso que as sustenta gira, em parte, entorno desse fator. Como colocou Louis Vitet,
por exemplo, em um artigo publicado na Revue dex deux mundes, em 1864, o fundamento
do decreto de 1863, que havia reformado a École des Baux Arts era desenvolver nos
alunos a originalidade pessoal:

Organiser de telle sorte l’enseignement des arts qu’avant tout ilexcite et développe
chez les élèves’ originalité personnelle, telle est l’idée fondamentale, la raison d’être
du décret. Lisez-le, consultez le rapport qui lui sert de préface, étudiez les réponses
et les apologies de l’administration; partout vous trouverez cette même pensée, que

90
l’originalité personnelle est chez nous en péril et qu’il faut lui porter secours. Le
décret vient en aide à ces pauvres élèves quiont vécu si longtemps sous le joug;
il les arrache à la domination d’un pouvoir immobile, inflexible, ennemi de toute
indépendance, sans égards pour les dispositions,les instincts, le sentiment individuel
de chacun de ces jeunes gens, et abusant contre eux de l’appât des récompenses
jusqu’à les faire passer dans une sorte de filière qui les façonnait tous sur un même
patron. Enfin les voilà libres! l’ère de l’originalité commence! Tel est le signalé
service que le décret, de bonne foi, croit rendre à l’art, à la jeunesse et au génie
français8.

Segundo ele, o decreto colocava o antigo sistema de ensino no papel de um poder


imóvel, inflexível, e inimigo de toda independência, destituído de espaço para os sentimentos
individuais de cada um desses jovens que na Academia ingressavam.
A busca por um ensino intuitivo, do como vêdes, é facilmente identificável no Projeto
de Reforma assinado por Bernardelli e Amoêdo em fevereiro de 1890. A 5ª sessão,
intitulada Ateliers evidencia a importância que seus autores atribuíam à possibilidade dos
alunos terem um espaço de formação da individualidade artística, operada com independência,
mas sob as vistas de um mestre. Não negamos que a busca pela originalidade esteve sempre
presente no sistema de ensino acadêmico, a noção de individualidade e a de originalidade só
aparecem introduzidas como um critério escolar após a reforma de 1890.
Ainda nesse sentido, existe outra passagem no Relatório de Rodolpho Bernardelli
ao Ministro que merece ser destacado:

Também foi condenado o ensino especial da esthetica [presente na Academia].


O critério do bello formar-se-ha na consciência do alunno, si for um espirito
capaz de synthese [...] formar-se-ha espontaneamente com a summa das
doutrinas que professores habilitados lhe forem ministrando em cada matéria;
nascerá como uma opinião individual da simples convivencia e pratica com o
alto objecto de sua estudiosa applicação9.

A passagem justifica a ausência do ensino da estética, apontando que o critério do


‘que é ou não belo’ como algo individual. Não deveria haver, portanto, nenhum pressuposto.
Na nova Escola não existia espaço para um pensamento como aquele registrado por Ernesto
Gomes Moreira Maia em 1888, ano que fora nomeado Diretor da Academia10, para quem a
missão da Academia não era a de exclusivamente voltar-se ao verdadeiro culto da forma
esthetica da arte clássica e da sua propagação.
Outro ponto significativo do relatório do Diretor da ENBA é a forma como ele opõe ao
ensino ministrado anteriormente na Academia àquele formulado no Projeto de Reforma de
Bernardelli-Amoêdo, e que foi mantido nos Estatutos de 1890, que propunha uma estrutura
seriada de ensino, pensada de forma progressiva. Nas palavras do próprio Bernardelli:

91
Na organização didática dos novos estatutos reina, sobretudo, o primeiro dos
elementos de que deriva a efficácia de qualquer estudo - a sistemática.
Como conjunto teórico, ahi está preparada a seriação dos conhecimentos, de
maneira que o aluno progrida dos mais accessiveis aos mais difíceis, na
razão do desenvolvimento das faculdades e o tempo dos exercícios11.

O Projeto de Reforma, conhecido pelo nome Bernardelli-Amoêdo, dividia a estrutura


de ensino da seguinte forma, como que em seções ou departamentos: I. Curso preparatório
para pintores, escultores e gravadores; II. Curso preparatório para arquitetos; III. Cursos
orais; IV. Escola técnica, para pintores, escultores e gravadores, com aulas específicas para
esses segmentos, além de modelo vivo e outro curso para arquitetos. E, por fim, uma seção
intitulada V.Ateliers. Os Estatutos mantiveram a proposta dos dois artistas, apresentando, no
entanto, uma estrutura mais simplificada, constando de: I.Curso Geral, com duração de três
anos, e composto por disciplinas práticas e teóricas; II. Cursos Especiais, com duração de três
anos, sendo o primeiro ano dedicado ao estudo do Modelo Vivo e os dois últimos à pintura ou
escultura, conformeatabelacomparativaaofinal dotexto12.
Tal forma de se conceber o ensino da arte se opunha àquela que vigorava com base
nos estatutos precedentes, aqueles da Reforma Pedreira, ocorrida em 185513.
Cabe aqui mencionar que alguns itens dos Estatutos de 1855 sofreram alterações
entre o ano que entram em vigor e 1890, afinal, estamos falando aqui de um intervalo de 35
anos. E ainda que o sistema de ensino da AIBA tenha sido taxado de ‘estacionário’, as
mudanças certamente ocorreram. Existe, porém, certa dificuldade em rastrear essas mudanças.
Como o próprio Bernardelli coloca em seu relatório:

A única legislação da casa eram os anachronicos estatutos de da Lei. n. 1603


de 14 de maio de 1855, assignados pelo Ministro Pedreira, era escassa em
recursos; não tinham a elasticidade indispensável ás molas administrativas.
Não lhe valiam pendiculos diversos que espaçadamente se lho foram
acrescentando.
Bem digna imagem de semelhante ruína era aquele pobre canhanho, mal
asseiado e roto, metade impresso, metade rabiscado a penna e a lápis, infestado
de retalhos de jornal, que foi por longuíssimos anos o raro e único exemplar
completo dos estatutos acadêmicos,tristíssimo documento que o derradeiro
chefe administrativo da Academia das Belas Artes teve o bom gosto de
consumir14.

Ao comparamos os Estatutos de 1855 com os de 1890, o que mais desperta a


atenção nas duas estruturas é a existência, nesses últimos, do curso preparatório, ou seja, a
exigência do aluno levava um considerável tempo, ao todo três anos de ensinos práticos e
teóricos, para chegar ao Curso Especial, onde finalmente teria acesso aos ateliers de pintura,
escultura e gravura.

92
Já a progressão dos alunos, antes e após a Reforma Pedreira estava longe de ser
tão sistematizada. Para frequentar a classe de Pintura Histórica bastava o aluno ter sido
aprovado em Matemáticas Aplicadas, e frequentado com proveito Desenho Geométrico e
Figurado. Para seguir para a classe de Pintura de Paisagens o processo era ainda mais
simples, bastava a aprovação na classe de Matemáticas Aplicadas e Desenho Geométrico. O
aluno não se via obrigado a cursar Desenho Figurado para somente depois frequentar a
classe de Pintura de Paisagens, embora pudesse cursar as duas ao mesmo tempo, caso o
desejasse15.
Na realidade, ao lermos o relatório escrito em 1891 por Rodolpho Bernardelli, a
concomitância entre disciplinas parece ter sido ainda maior nos anos de 1880, quando o artista
atua como professor de estatuária na Academia. Diz ele:

A Academia era o academicismo, foi dito.


Nem isso era... [...] No terreno dos princípios a velha instituição era o
academismo - em derrota. [...] Praticamente, concretizando-se em ensino, a
desordem era mais flagrante e a mais funesta.[...] A incoerência rudimentar dos
estatutos acadêmicos consummava o ideal de organização, que eram os estudos.
Não ao havendo classificado os trabalhos n’uma série evolutiva que fossem
ao mesmo tempo a ordem e a facilidade, só o improviso dos diretores
determinava aos alunos o seguimento do curso.
Sucedia que era proferido dentro da lei para primeira applicação de actividade
dos alunnos o estudo do desenho figurado, como poderia dentro da mesma lei
ser preferido o da pintura histórica16.

As disciplinas que no Projeto e nos Estatutos de 1890 antecediam o ensino no atelier


de pintura poderiam ser cursadas simultaneamente às classes de Pintura Histórica e de
Pintura de Paisagem, na antiga Academia, uma vez que não eram pré-requisitos.
No que diz respeito a essa sistematização progressiva do ensino, podemos pegar
como caso específico a disciplina de Modelo Vivo, que passou por mudanças significativas
com os estatutos de 1890, a fim de possibilitar o aperfeiçoamento artístico dos alunos.
Segundo os Estatutos de 1855, - a exemplo da Escola de Belas Artes francesa antes
da famosa reforma de 186317 -, a aula de Modelo Vivo deveria ser regida a cada semana por
um professor. Só eram admitidos na turma, os alunos que por suas habilitações eram designados
pelo corpo acadêmico no princípio do ano. Essa disciplina deveria ser cursada simultaneamente
àquela de Pintura Histórica, como podemos averiguar na Secção X, que trata da Pintura
Histórica, na seguinte frase: “Os alunos deveriam pintar grupos de bustos, estátuas antigas e
se exercitarem na aula de modelo vivo e no estudo da anatomia e physiologia”. Ou seja, era
um conhecimento que podia ser adquirido simultaneamente ao da pintura, não anterior a ela.
Já nos Estatutos de 1890, a classe de Modelo Vivo deveria obrigatoriamente ser
cursada antes de o aluno chegar aos dois anos finais do Curso Especial, dedicados

93
exclusivamente à pintura. Além disso, um único professor era responsável pela disciplina.
Nesse ponto, as mudanças colocadas nos Estatutos de 1890 referentes ao estudo do Modelo
Vivo se aproximam aos princípios que nortearam as mudanças desse mesmo ensino na
reforma da École de Beaux Arts, de 1863, como coloca Viollet le Duc, um dos principais
articuladores da reforma de 1863, nas páginas da Gazete des Beaux Arts:

L’enseignement de la figure à l´École des Beaux-Arts, dessin corrigé par sept


maîtres à tour, trouble plus les jeunes gens qu´il ne leur profite; chaque maître voit
la nature à sa manière et l´interprèt suivant certaines méthodes qui lui sont
particulières. Cet écletisme ne peut rien produire de bon chez de jeunes esprits qui
demandent une direction, non des directions (...)18.

Verifica-se, então, que ensino do Modelo Vivo adquiriu após a Reforma de 1890 uma
maior importância. A disciplina era obrigatória a todos os alunos de pintura, não somente os
“escolhidos”; era uma aprendizagem prévia ao estudo da pintura; deveria ser regida por
somente um professor, - e não por um professor diferente a cada semana - , o que certamente
facilitava uma orientação única para os alunos.

Figura 2: Rafael Frederico:


Nu masculino de pé
(academia), 1891. Crayon/
papel. 62,0 x 47,5 cm. Antonio
de Souza Vianna: Nu
masculino (academia), 1895.
Óleo/tela. 100,0 x 61,0 cm.
Obras pertencentes ao Acervo
do Museu Dom João VI/EBA/
UFRJ.

São muitos os
pontos a serem abordados
quando se tem como
pretensão analisar as
propostas contidas no
Projeto Bernardelli-
Amoêdo e as suas
continuidades nos estatutos da Escola Nacional de Belas Artes. Tais propostas, sobretudo
aquelas que serão postas em prática no cotidiano da Escola ao longo dos anos finais do século
XIX, nos ajudam a compreender as mudanças pelas quais passou o sistema de ensino artístico
nesse período e a produção artística que nele foi gerada. Não oferecemos com a nossa fala
mais do que uma breve pincelada sobre alguns tópicos, mas esperamos, contudo, que ela

94
tenha, minimamente, revelado que a reforma da Academia não foi, como disse uma vez
Gonzaga-Duque, uma mera mudança no nome da instituição.

I. Tabela comparativa das disciplinas


Estatutos de 1890 da ENBA
.
I. Curso Geral
Projeto de 1890: 'Bernardelli-Amodo'
.
.
1o Ano do Curso Geral
I-Curso preparatório para pintores, escultores e gravadores:
I-História Natural (noções concretas)
I-Desenho figurado, cópia do antigo e do natural;
II-Mytologia
II-Desenho de anatomia artística
III-Desenho Linear
III-Elementos de arquitetura decorativa e desenho elementar de
IV-Desenho Figurado (estudo elementar)
ornamentos;
.
IV-Preleções de história das artes, mitologia, costumes e roupagens,
2o Ano do Curso Geral
noções de química aplicadas às tintas, vernizes e secativos;
I-Química e Física
V-Ótica elementar, perspectiva prátca, sombras geométricas e físicas.
II-Geometria descriptiva. Trabalhos gráficos e correspondentes.
.
III-Archeologia e Etnographia
II-Curso preparatrio para arquitetos
IV-Desenho Figurado
........
.
III- Nos cursos orais:
3o Ano do Curso Geral
Anatomia artística;
I-História das Artes
Phisiologia das paixões;
II-Perspectivas e Sombras. Trabalhos gráficos e correspondentes.
História da Arte;
III-Elementos da architectura decorativa e desenho elementar de
Archeologia
ornatos.
.
IV-Desenho Figurado
IV-Escola técnica
.
.
II-Cursos Especiais
1° Curso para pintores, escultores e gravadores, abrangendo:
.
I - Aula de Desenho de Modelo Vivo;
Curso de Pintura
II - Aula de Pintura;
1o Ano
III - Aula de Escultura;
I-Anatomia e phisiologia artisticas
IV - Aula de Gravura.
II-Modelo Vivo
.
2º ano e 3º
2o-Curso preparatório para arquitetos
I-Pintura (duas cadeiras)
........
.
.
Curso de Escultura
IV-Nos Ateliers:
1o Ano
Exercícios técnicos, práticos e concursos.
I-Anatomia e phisiologia artisticas
O ensino no atelier deve ser feito de modo a aperfeioar o trabalho do
II-Modelo Vivo
aluno até o ponto de poder criar por si mesmo obras de arte.
III-Escultura de Ornatos
2o ano e 3o
I-Estatuária

Notas e referências
1
Calculamos que o projeto de Rodolpho Bernardelli e Rodolpho Amoêdo tenha sido elaborado, ao menos
uma versão inicial, por volta de fevereiro de 1890, pois encontramos referência, na Ata de 22 de
fevereiro, ao referido documento. O então Diretor da instituição, Gomes Moreira Maia, fala que não pode
dar os novos Estatutos como prontos, pois ainda não os havia visto. Cabe lembrar que a comissão
nomeada para a realização da Reforma dos Estatutos ara composta por Gomes Moreira Maia, Rodolpho
Bernardelli e Rodolpho Amoêdo. Além disso, sabemos que o Projeto assinado por Bernardelli e Amoêdo
foi publicado, em 12 de março de 1890, na Gazeta de Notícias. As datas, portanto, apontam uma sequê
ncia bastante clara, entre o projeto ser redigido e a sua publicação.
2
Os Estatutos da Escola Nacional de Bellas Artes (1890) estão disponibilizados no site DezenoveVinte,
a partir de uma fotocópia do documento pertencente ao D. João VI/EBA/UFRJ. Endereço do site: <http:/
/www.dezenovevinte.net/documentos/docs_primeira_republica.htm>.
3
O Relatório de Rodolpho Bernardelli pode ser encontrado no site DezenoveVinte <http://
www.dezenovevinte.net/documentos/documentos.htm>. A transcrição baseia-se na cópia
disponibilizada pelo site do Brazilian Government, ligado ao Latin American Microfilm Project do Center
for Research Libraries.
4
Poderíamos aqui citar vários textos que já se tornaram referência para os estudiosos da arte do
século XIX no Brasil, mas aqui mencionarei somente um exemplo, trata-se do livro Arte, privilégio e
distinção: artes plásticas, arquitetura e classe dirigente no Brasil, 1855/1985, de José Carlos Durand,
publicado em 1989.

95
5
Para se ter uma noção aprofundada do posicionamento desses críticos, ler: SILVA, Rosangela de Jesus.
A crítica de arte de Angelo Agostini e a cultura figurativa do final do Segundo Reinado. Campinas:
programa de Pós-graduação em História da Arte/IFCH/UNICAMP, 2005. (Dissertação de mestrado) e
GRANJEIA, Fabiana de Araujo Guerra. A critica de Arte em Oscar Guanabarino: Artes plásticas no século
XIX. Campinas: Programa de Pós-graduação em História IFCH/UNICAMP, 2005. (dissertação mestrado).
6
Op. cit. p. 13-14.
7
Uma antologia que fornece uma boa idéia da concepção dos críticos de arte da época sobre o que
deveria ser um artista moderno, é: BOUILLON, Jean-Paul et al. La Promenade du Critique influent –
Anthologie de la Critique d‘Art en France 1850-1900. Paris: Hazan, 1990. Em relação ao meio artístico
carioca ver: DAZZI, Camila; VALLE, A. Modernidade na Obra e na Auto-Imagem de Henrique Bernardelli.
Anais do XIX Encontro da ANPAP – ‘Entre Territórios’. Salvador: EBA/UFBA, 2010.
8
M. Vitet: De l´enseigenment des arts du dessin. Revue des deux mundes, novembro de 1864, p. 74-108.
9
Op. cit. p. 18.
10
Por Decreto de 9 de março foi nomeado Diretor da Academia das Belas Artes, na vaga deixada pelo
Conselheiro Antonio Nicolau Tolentino, a quem se concedera, a 30 de maio do ano findo, a exoneração
que tinha pedido, o Vice-Diretor Conselheiro Ernesto Gomes Moreira Maia, jubilado em 30 de agosto no
lugar de professor de desenho geométrico. Relatórios Ministeriais sobre a Academia Imperial das Belas
Artes. Transcrição de Arthur Valle e Camila Dazzi. Texto com grafia atualizada, disponível em: http://
www.dezenovevinte.net/ , p. 63.
11
Op. cit. p. 18.
12
Uma comparação mais demorada sobre a Estrutura do Projeto de Reforma assinado por Rodolpho
Bernardelli e Amoêdo e os Estatutos da Escola Nacional de Belas Artes -1890, é feita no texto: DAZZI,
Camila. O Projeto de Reforma Bernardelli-Amoêdo e os Estatutos da ENBA: mudanças e continuidades.
DAZZI, Camila; VALLE, Arthur (Org.). Oitocentos – Arte Brasileira do Império à República. Tomo II. Rio
de Janeiro: UFRRJ/DezenoveVinte, 2010.
13
Os Estatutos da Academia Imperial de Belas Artes (1855) estão disponibilizados no site DezenoveVinte,
a partir de uma fotocópia do documento pertencente ao D. João VI/EBA/UFRJ. Endereço do site: <http:/
/www.dezenovevinte.net/documentos/documentos.htm>.
14
Op. cit. p. 16.
15
Ver os Estatutos de 1855, conforme mencionado logo acima.
16
Op. cit. p. 14-15.
17
Para compreender a reforma de 1863, pela qual passa a École des Beaux Arts, sugerimos a leitura do
livro Monique Segré, L’Art comme institution, l’École des Beaux-Arts, 19ème–20ème siècle. Paris:
Editions de l’ENS-Cachan, 1993. Também interessantes são os artigos: ENFERT, Renaud d’: Bonnet
(Alain). L’enseignement des arts au XIXe siècle. La réforme de l’École des beaux-arts de 1863 et la fin
du modèle académique. BONNET, Alain: La réforme de l’Ecole des beaux-arts de 1863: Peinture et
sculpture. VAISSE, Pierre: Considérations sur la Seconde République et les beaux-arts.
18
Viollet-le-Duc, E: L´enseignement des arts: il y a qualque chose à feire. Gazette des Beaux-arts, mai
1862. (1o artigo).

96
Poder, disputas e controle do ensino de gravura na ENBA nos anos 50/60

Maria Luisa Luz Tavora


EBA/UFRJ

Desde a criação da Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios (12/08/1816) embrião da


Academia Imperial das Belas Artes, criada dez anos mais tarde, o ensino da gravura estava
incluído em seus projetos. Tal inclusão conjugava o interesse na formação do artífice que
atenderia às demandas comerciais e o artista ligado às exigências das belas artes. Todavia,
inúmeros decretos testemunham decisões que retardaram e perturbaram o plano original,
refletindo o papel secundário desse ensino no quadro geral da formação proposta pela
Instituição. A propósito da xilogravura, cuja cadeira permaneceu sem titular até 1890 quando
foi extinta, o comentário do estudioso Antonio Costella situa bem a questão: [...]...criou-se a
cadeira de xilografia, mas para instalar-se na Academia de Belas Artes, ambiente muito
elitista e pouco favorável à iniciativa.1
Pontuada por diversas interrupções, a trajetória irregular do ensino da gravura plana
e em relevo desde a gênese da Academia Imperial das Belas Artes, no Rio de Janeiro, reflete
questões relativas ao papel social do gravador definido pela sociedade. No âmbito da gravura
plana, o interesse por sua aplicação direcionava-se ao campo da ilustração comercial, anúncios,
vinhetas de livros e periódicos, valorizando-a enquanto técnica de reprodução.
Interesses políticos de manutenção do sistema de ensino acadêmico mostram a
reduzida valorização do aprendizado da técnica quer como gravura em medalhas, quer
como gravura plana.2
Quando a Família Real aqui aportou, a gravura plana já possuía nível técnico
elaborado, dada a essa, destinação comercial. O principal centro de produção de inúmeros
artífices era a Casa da Moeda (8/03/1694), em cujas máquinas, por volta de 1839, os alunos
da Academia buscariam intensificar a sua prática. Posteriormente, a Impressão Régia e o
Arquivo Militar tornaram-se importantes centros para o trabalho de gravadores. Nos períodos
subsequentes, a formação de gravadores dava-se em espaços que buscavam a pronta
resposta de um técnico especializado à crescente demanda comercial. Os que faziam o serviço
eram considerados gravadores comerciais, “abridores” de chapas de metal, madeira, cobre
e pedra, situação que os distanciava do perfil e o lugar social pretendidos para os discípulos
das Belas Artes.
A Academia não conquistou prestígio no âmbito da formação de gravadores, tendo
em vista a visão pragmática que acompanhava este ofício. Outros núcleos3 desenvolveram
um ensino mais adequado aos fins comerciais da técnica de gravar, contribuindo para o
esvaziamento do curso de medalhas e de xilografia oferecidos pela Academia. Nesta Instituição,
a gravura plana constituia campo de treinamento e uma prática a mais na formação do

97
gravador de medalhas ou mesmo do pintor e do escultor, realidade que se manteria até os
anos 1940, na então Escola Nacional de Belas Artes. No Regimento da ENBA, aprovado pelo
Conselho Universitário, em 17 / 8 /1948, e que entrou em vigor em 1949, a gravura plana
ainda mereceu o tratamento de técnica complementar ao ensino do gravador de medalhas.
Na Europa, nos meados do século XIX, como as técnicas tradicionais de gravar
agonizavam frente aos processos tecnicamente mais eficazes de difusão da imagem,
intensificaram-se as ações de resgate dessas técnicas, alçando-as para o mundo artístico. E
este entendimento seria defendido e conduzido por pintores, escritores, marchands4 que
desencadearão uma luta para salvar a arte da gravura, redirecionando seus fins. Formaram-
se grupos de artistas, as Sociedades dos Aguafortistas (1862) e dos Pintores Gravadores
Franceses (1889), interessados em destacar cada vez mais as possibilidades expressivas da
gravura, através da xilogravura e das técnicas do metal. O mundo artístico europeu incorporava
a gravura original como linguagem, campo criativo e de expressão.5 Experiências relevantes
deste entendimento foram oferecidas pelos impressionistas e pelos artistas do expressionismo
alemão, na entrada do século XX.
Entre nós, tal visão, - a possibilidade de integração da gravura ao campo artístico,-
conduziu pioneiramente as atividades de Carlos Oswald (Florença,1882/Rio de Janeiro,1971),
à frente da oficina de gravura do Liceu de Artes e Ofícios, no Rio de Janeiro, a partir de 1914
numa primeira fase até 1919 e, posteriormente, dos anos 30 aos 50.6
Ao voltar definitivamente para o Brasil em 1913, Oswald deixara para trás o ambiente
florentino, onde se dera sua formação em gravura, o qual acolhia com entusiasmo a proposta
dos impressionistas de introduzir a cor, trabalhar com a chapa de zinco, obtendo texturas e
efeitos que se distanciavam da limpeza e rigor do cobre, tão explorados e necessários na
gravura de reprodução.
O trabalho de Carlos Oswald atraiu a atenção de Tomás Santa Rosa que, em 1946,
convidou-o para dar aulas de gravura em metal no curso de Desenho de Propaganda e de
Artes Gráficas da Fundação Getúlio Vargas.7 Oferecia-se para profissionais em atividade nas
empresas gráficas particulares ou de institutos oficiais, uma visão mais abrangente e inovadora
para a formação do artista gráfico que, além do aprendizado das diferentes técnicas de
gravar, estudava História da Arte. Esta oportunidade estendeu-se a estudantes de desenho e
pintura, seguindo o posicionamento pioneiro de Carlos Oswald de expandir a prática da
gravura entre os artistas. Esta abertura de limites da técnica foi destacada pelo crítico Mário
Pedrosa, ao dizer:

A iniciativa é da maior importância para a vida artística do Rio. Até agora, a gravura
era um mistério para meia dúzia de entendidos que a guardavam a sete chaves.
A água-forte tinha o privilégio das coisas raras e desconhecidas [...] Agora, Carlos
Oswald, Santa Rosa e o Leskoschek acabaram com o mistério, e o segredo está
abertoparaquemquiser vir eaprender.”8

98
Também chamou atenção dos críticos o método de ensino de Santa Rosa, Carlos
Oswald e Leskoschek, uma vez que buscavam salvaguardar a personalidade do aluno,
embora exigissem um apurado conhecimento técnico.9 A criação de núcleos de ensino conferia
à gravura artística cada vez mais uma importância, consolidada também por outras medidas
complementares que proporcionavam a circulação e absorção dos trabalhos.10
A criação do curso de Especialização da Gravura de Talho-Doce, da Água-Forte e
Xilografia, em 1951, nos recintos da Escola Nacional de Belas Artes, deve ser pensado dentro
deste cenário de gradual valorização da gravura que se configurou no Rio de Janeiro.
Inaugurava-se outra etapa marcada por uma singularidade no tratamento reservado por essa
Instituição a esta atividade. Tratamento que materializa o lento processo de assimilação da
gravura como meio expressivo e sua total integração ao ensino oficial através dos procedimentos
administrativos de legitimação dos cursos da então Escola Nacional de Belas Artes.
Para orientar este primeiro curso foi indicado pela Congregação da Escola, o artista
Raimundo Brandão Cela (Ceará,1890 / Rio de Janeiro, 1954), com formação em gravura,
em Paris, realizada com o gravador inglês Frank Brangwyn. Fora aluno de pintura de Eliseu
Visconti, de Batista da Costa e de Zeferino da Costa. Quirino Campofiorito dele escreveu com
propriedade: “Foi artista de formação acadêmica, com a persistência do rigor do desenho,
mas teve que elaborar uma nova expressão para poder colher um pouco o homem rude do
Nordeste, cuja realidade formal não é propriamente a dos modelos da escultura”.11 Tem
razão Campofiorito. Se por um lado sua formação acadêmica justificava a opção em aplicar, no
ateliê da ENBA, uma metodologia de ensino baseada na cópia de modelos e estampas
estrangeiras, por outro, em suas gravuras, tomara a liberdade em relação a esta herança,
produzindo estampas voltadas para uma temática regional nordestina.12
Todavia a coragem e a obstinação dos pescadores, tratados como verdadeiros heróis,
glorificados em seu árduo trabalho, ainda é o assunto das obras. Cela subordina sua
composição a uma inteligência ilustrativa desses valores. Não há questionamento em relação
aos modos de ver e à própria noção de espaço, indagações pontuais da modernidade artística.
Embora aprovada pela Congregação, a presença de Cela à frente da orientação do
ateliê de gravura é marcada por um certo distanciamento. Foi preciso “descobrir “ o novo
professor e o ateliê, segundo afirmou-nos Adir Botelho O lançamento do curso de especialização
em gravura não foi acompanhado de uma divulgação que refletisse um maior comprometimento
da Instituição com essa arte.Dentro deste contexto de “isolamento”, Raimundo Cela acreditou
nas possibilidades artísticas da gravura em metal à qual restringiu o ensino. Elaborou, no
entanto, um programa que contemplava várias técnicas do metal e da xilogravura, o
conhecimento sobre a história do papel e da arte, em geral.
Com a saúde fragilizada, Cela tinha uma frequência irregular. Os alunos, no afã de
manter a dinâmica do ateliê, solicitaram a aprovação do nome de Henrique Oswald (filho de
Carlos Oswald e seu assistente no Liceu, desde 1950) para auxiliar o mestre, o que obtiveram

99
em reunião do Conselho Departamental, realizada no dia 31/3/52. Todavia, o Professor
Quirino Campofiorito rejeitou tal solicitação, defendendo a posição de sempre aproveitar
alunos da própria Escola, o que afinal não aconteceu naquele momento. Em 1954, Cela veio
a falecer de câncer.
Para assumir a orientação do ateliê em substituição a Cela, foi contratado Oswaldo
Goeldi (1895-1961). Ao chegar à Escola, este artista, homem maduro, às vésperas dos 60
anos, já desfrutava de prestígio por sua xilogravura, que além de ser amplamente utilizada em
ilustrações de livros e periódicos, participara da representação brasileira da Bienal de Veneza
de 1950, fora premiada na I Bienal de São Paulo, em 1951, e obtivera a Medalha de Ouro no
Salão de Belas Artes da Bahia, em 1950. Desde 1951, até o ano de sua contratação, Goeldi
atuara como membro da Comissão Nacional de Belas Artes, contribuindo para a seleção e
premiação de artistas no Salão Nacional.
A contratação de Goeldi repercutiu na imprensa, através de artigo de Mario Barata,
também professor da Belas Artes, que apostava na renovação do ensino na Escola.13 Todavia,
os próprios mecanismos de sua incorporação à Escola assentavam-se em uma visão
discriminadora em relação à hierarquia das artes. Falar de participação no corpo docente,
como no artigo referido, significaria dar ao professor oportunidades de participar dos
colegiados decisórios, o que não acontecia com os professores contratados, cuja atuação
prevista em regimento era de menor porte.
Na Congregação, órgão superior da direção didática da Escola, participavam por
regulamentação regimental de 1948, ( Cap. I, art. 67 e 68 ) os professores catedráticos
efetivos e aqueles em disponibilidade, os professores interinos nomeados, um professor docente
livre e os professores eméritos. Excluído do limbo decisório da Instituição, cabia ao professor
contratado a regência de turma, a colaboração com o catedrático quando fosse esse o caso,
e a realização de cursos de especialização ou aperfeiçoamento. A proposta de contratação
dos professores devia ser iniciativa do Conselho Departamental à Congregação da Escola
que, por sua vez, encaminharia à Reitoria da Universidade do Brasil. O Regimento exigia
que o contratado apresentasse títulos culturais e artísticos compatíveis com o nível do corpo
docente da Escola. Como as gravuras de medalha ou plana caracterizavam-se por sua
natureza prático-especial, sua responsabilidade devia caber a um especialista. Goeldi foi
contratado dentro desta realidade. Se como professor, este artista criou um ambiente de ampla
liberdade para seus alunos, estendendo em muito sua missão, no campo institucional Goeldi
vivia dentro de limites que impediam uma participação efetiva na esfera das decisões que
transformavam e atualizavam o ensino na Belas Artes.
A “renovação do ensino,” de que trata o artigo de Mário Barata, revestiu-se, no caso
da gravura, de um caráter muito singular. Sua gravura, diferentemente da de Cela, insere - se
no processo de crise da representação vivido por artistas expressionistas alemães, no início
do século, que estiveram voltados para a subjetivação da realidade. Era um artista moderno

100
que trilhava um caminho singular, se considerarmos sua inserção no modernismo
brasileiro. Na Escola não havia qualquer espaço para a figuração nos moldes “goeldianos”,
figuração esta que muito influenciou um grupo dissidente, formado na ENBA, o Grupo
Paisagem Brasileira.14 A xilogravura entrava e iria se firmar na Escola pelas mãos e
orientação de um artista que integrava ao sentido formal de seu trabalho uma visão de
mundo, um caráter ético próprio aos artistas que modernamente buscaram uma relação
mais estreita entre arte e a realidade.
Identifica-se, em Goeldi, uma autonomia no trato com a arte que se refletiu no ateliê da
ENBA. Bastaram seis anos sob sua orientação para que este espaço ganhasse um perfil
próprio: fazia parte da Escola mas independente das questões que esta priorizava para seu
ensino regular. Esta autonomia devia -se à personalidade de Goeldi, retraído e solitário.
Resultava também de sua opção estética na via expressionista, cuja positividade estava na
ruptura radical com os pressupostos estéticos da tradição acadêmica, e ainda explicava-se
pela escolha da técnica de gravura, de pouco reconhecimento no âmbito institucional.
Em fevereiro de 1961 Goeldi faleceu. A Belas Artes comportou-se formalmente no
registro de sua morte em atas da Congregação e do Conselho Departamental, com apresentação
de “votos de pesar” que ocuparam poucas linhas do texto.15 Nenhuma retórica que fizesse
justiça à obra e a seu papel naquela Instituição, na implantação da xilogravura como meio
moderno de expressão artística. Por outro lado, no âmbito externo, Goeldi recebeu
postumamente toda sorte de homenagens, dos mais diferentes setores ligados ao mundo
artístico e cultural.16 A iniciativa de homenagear o grande artista, em âmbito interno, coube ao
Diretório Acadêmico que, em agosto de 61, editou no n° 4 de seu jornal MACUNAIMA,
matérias assinadas por críticos e intelectuais do maior prestígio no ambiente artístico brasileiro,
fotos do artista e de sua obra constituindo este jornal uma edição especial, em quatro folhas,
todo ele dedicado a Goeldi.17
A substituição de Goeldi foi tratada em Sessão Especial da Congregação, realizada
em 20 de março daquele ano. O professor Abelardo Zaluar propôs a escolha mediante
concurso de títulos. Como Presidente da referida sessão, o Vice-Diretor, Quirino Campofiorito
manifestou-se para que a escolha recaísse em um nome que ombreasse Goeldi, em qualidade
artística. Atendendo a esta condição, via como candidato de peso o artista Iberê Camargo,
cujo nome submeteu à avaliação daquele colegiado. Todavia, o professor Alfredo Galvão
apresentou o nome de Adir Botelho, justificando sua proposta: [...] considerando que o
mesmo foi aluno da Escola e vem servindo àquela disciplina com dedicação e capacidade
desde o seu primeiro professor que foi Raimundo Cela.18 O argumento de Alfredo Galvão
pesou na definição do nome de Adir que obteve sete votos contra um, dado a Iberê
Camargo. A orientação do ateliê de xilogravura e gravura em metal passou então para Adir
Botelho, que desde 1955, fora assistente do mestre falecido.O sentido da modernidade do
expressionismo será explorado pelo artista, herança de Goeldi.

101
O período de atuação de Adir Botelho, junto à gravura em madeira e em metal,
significou uma adequação das oficinas para a formação de um novo profissional das artes
gráficas. As experiências pioneiras nas diferentes técnicas findaram por viabilizar a criação do
Curso de Desenho e Artes Gráficas, cujo projeto, elaborado pelos professores Carlos Del
Negro e Abelardo Zaluar, foi aprovado em 19 de novembro de 1958, pelo Conselho
Departamental, e sua implantação definida dois dias depois em sessão da Congregação19.
Com a abertura do curso de Desenho e Artes Gráficas, iniciado em 1959, as atividades
de gravura integraram-se ao ensino oficial, sofrendo, por isto mesmo, um controle mais
estreito e inaugurando uma outra relação com a estrutura administrativa e as disputas de
poder da Escola. Composto de dois ciclos, o primeiro de três anos e o segundo de dois anos,
o curso incluía a gravura em metal da 3° à 5° série; a xilogravura nas 4° e 5° séries e a
litografia no último ano, na 5° série20.
A implantação do Curso de Desenho e Artes Gráficas significou um passo decisivo
para a integração da Belas Artes aos movimentos do final da década de 50, redefinindo seu
papel como centro oficial do ensino artístico. Este curso passou a espelhar a face mais
atualizada da Escola, respondendo a uma mudança em relação ao perfil do artista gráfico. A
proposta, revolucionária, reduzia as distâncias entre a passagem pela Belas Artes e o
mercado de trabalho, integrando os dois campos. A interface com a moderna indústria gráfica
estava prevista em visitas dos alunos às respectivas oficinas. Em sua exposição detalhada da
estrutura e propósitos do curso, Zaluar afirmou diante do Conselho Departamental que:

O Curso de Desenho e Artes Gráficas da ENBA visa, portanto, a formação de


artistas capazes de expressar-se através do desenho e que, de posse do
conhecimento das técnicas e dos processos de realização gráfica, se tornem um
artista gráfico de padrão estético elevado, a fim de influir na melhoria do nível
artístico da produção gráfica industrial21.

A proposta da gravura como meio artístico e expressivo, que desde Raimundo Cela
vagara sem uma definição na galeria de honra da Escola, conquistava um lugar seguro na
grade curricular da formação do moderno artista gráfico. O trabalho de Adir Botelho insere-se
nesta fase de transmissão institucionalizada deste saber e do empenho dos criadores do curso
em ampliar a visibilidade social do artista-gravador, garantindo-lhe a repercussão pública de sua
produção. Outro ciclo se abria. Em suas diferentes modalidades, passava a gravura a desfrutar
por um lado dos benefícios oficiais. submetendo-se, todavia, às exigências institucionais.
Resta-nos neste processo que culmina com a criação do Curso de Desenho e Artes
Gráficas, tratar das circunstâncias da introdução da litografia artística na ENBA. Coube ao
Diretório Acadêmico da Escola convidar Darel Valença (Palmares, PE, 1924) e oferecer-lhe
sua sala para que a litografia fosse ensinada a outros artistas, de 1956 a 1957, na qualidade
de professor não vinculado à ENBA. Darel levou sua prensa e suas pedras tendo como

102
objetivo: “[...] mostrar que a lito era uma forma de expressão de arte e não um mero processo
de reprodução”.22 Mesmo não sendo curso oficial, o Diretório submeteu ao Conselho
Departamental, em reunião de 3/10/56, as normas de seu funcionamento obtendo autorização
para funcionar inclusive nas férias. O Diretório considerou o curso o ponto alto de suas
atividades, em 1956.23 Tudo começara com uma palestra de Darel, atividade complementar à
sua exposição, parte da intensa programação do Diretório, naquele ano. 24
Darel Valença Lins chegava à Escola, também com um respeitável currículo que
incluía premiação de Viagem ao País, obtida com gravura em metal, em 1953, no Salão
Nacional de Arte Moderna. A litografia que queria ensinar, aprendera com profissionais das
gráficas antigas, desenvolvendo-se por conta própria. Adquiriu uma prensa e montou seu
ateliê na Lapa, na Rua Taylor.
Sua ida para o Diretório deveu-se a Campofiorito, que reconhecendo seu esforço de
reativar a litografia como arte, acreditou poder este projeto ganhar contornos mais amplos
numa instituição de peso como a Belas Artes. A experiência de Darel, nos anos 50, de
apropriação artística da técnica, apresentava-se como uma alternativa para a continuidade de
seu uso. A litografia instalava-se no espaço da Escola buscando a via da pesquisa e da
liberdade. Mas, em 1957, Darel Valença precisou se afastar face à premiação com a Viagem
ao Exterior, obtida com a litografia “Ciclista”, no Salão de Arte Moderna. Sem o orientador e
ainda sob a responsabilidade do Diretório Acadêmico, foram muitas as dificuldades enfrentadas.
Aprendia-se errando, buscando informações com impressores de gráficas antigas. Como não
se fazia mais lito no Rio, os poucos profissionais esqueciam o processo.
Na busca por um substituto para Darel, o Diretório contou mais uma vez com a
atuação de Campofiorito, sendo contratado Ahmés de Paula Machado (Espírito Santo,1921/
Petrópolis,1984), seu assistente na Cadeira de Arte Decorativa. A proposta de Darel Valença
de compreensão da litografia como meio de expressão teve continuidade com o novo professor.
A situação material do ateliê viria a melhorar a partir de 1961, quando foram buscadas e
liberadas verbas oficiais para equipar o curso, já incluído no ensino regular da Escola.25
O currículo de Ahmés26 incluía também uma lista de premiações, dentre as quais
Viagem ao Exterior, obtida com pintura, no curso realizado na ENBA. A litografia aprendera na
Itália, no Instituto Statale d’Arte de Florença. Foi em seu período que a litografia foi absorvida
como disciplina obrigatória do citado Curso de Desenho e Artes Gráficas. Em 1961, seu nome
foi aprovado para a regência da Litografia, tendo sido vencedor da Prova de Títulos. O
processo de aprovação de seu nome foi acompanhado de acalorada discussão na
Congregação, onde os mais modernos, entre eles Campofiorito, preferiam a indicação de
Darel Valença, cuja obra marcava mais presença no meio artístico. O professor Gerson
Pompeu Pinheiro, por outro lado, defendeu a posição de que o preenchimento dos cargos no
magistério da Belas Artes deveria ser feito por egressos da Escola que tivessem demonstrado
inclinação para as tarefas do ensino. Acompanhou-o neste posicionamento o Diretor, professor

103
Calmon Barreto. Darel, com trabalho pioneiro em tempos difíceis, não tinha chances de ser
escolhido por causa de sua posição de esquerda. Ahmés, ao contrário, mantinha-se próximo
à ala tradicional de Escola.
Dentre as considerações que podemos apresentar sobre a trajetória peculiar do
ensino da gravura na ENBA, uma diz respeito ao caráter positivo da autonomia do ensino
praticado no ateliê, em relação à estrutura curricular da Escola. Durante os primeiros dez anos
de implantação do ensino da gravura plana, em suas diferentes técnicas, o ensino se dava na
Escola mas não sujeito totalmente a seus ditames: Era um espaço livre, é bom pensar nisso,
porque o Diretório é que cuidava dele.27
A condição de contratados, dos professores que orientaram a implantação do ensino
da gravura, na Belas Artes, pode ser vista na dupla face de suas relações. Primeiramente, no
que ela reduz sua atuação, em termos institucionais: “Os professores contratados, conforme
o disposto neste regimento, não fazem parte da Congregação da Escola Nacional de Belas
Artes, nem poderão propor, nem ser propostos Chefes de Departamento”28. Excluídos, por
sua condição, do espaço de deliberações da Escola, - Congregação e Conselho Departamental
- constituíam segmento frágil para empreender mudanças estruturais no ensino da Escola.
Ainda que excluídos das instâncias decisórias, professores como Goeldi e Darel gozavam de
respeitabilidade pública por suas obras e pelo conhecimento amplo das questões da arte, o
que lhes possibilitou a implantação de uma metodologia de ensino livre do quadro ideológico
mais conservador da ENBA. Estes artistas independiam dos mecanismos de controle e de
juízo da Instituição cuja estrutura administrativa para o ensino da gravura, ainda a concebia
como arte menor, ofício de especialista. Puderam desenvolver uma relação com os aprendizes
fundada na autoridade de mestres, não imposta institucionalmente com a cátedra, relação que
emergia de um saber e de uma poética compartilhados com os alunos.
Se, no âmbito das Belas Artes, permanecia a visão da gravura como arte menor, coisa
de especialista, seus orientadores eram artistas maiores, celebrados pelo conjunto do sistema
de arte, em eventos legitimadores da sensibilidade moderna de suas obras. Era indiscutível
seu valor no cenário artístico nacional e a independência que gozavam do controle e da
avaliação da Escola. Por sua orientação, a gravura consolidou-se como algo mais que um
desenho multiplicado, incorporando as propostas modernas de livre criação e conseqüente
adequação técnica. O lugar reservado à gravura, pelas vias regimentais, não constituía
ameaça às lutas internas pela hegemonia de visão e métodos de trabalho. O mesmo não
acontecia com o curso de pintura, cujos alunos insatisfeitos promoviam atos de protesto contra
a orientação da ENBA. No caso da gravura, a relação era menos tensa com a Instituição e
favoreceu um diálogo extramuros dos alunos e mestres, sua participação nas discussões
relativas às artes plásticas, no Rio de Janeiro. Tendo fortalecido e justificado a metodologia da
liberdade de criação, pôde o ensino da gravura ser oficializado,29 sem perder suas
características que tão positivamente o constituíram e o marcaram, em sua primeira fase,

104
profundamente ligadas a seus orientadores, Raimundo Cela, Oswald Goeldi, Darel Valença,
Ahmés de Paula Machado e Adir Botelho.
A retomada da trajetória desse ensino, interesses específicos, lutas internas e mudanças
significativas para a consolidação da gravura na ENBA, foram levantadas pela pesquisa que
realizamos junto às atas do Conselho Departamental e das Congregações onde estão
contidas importantes discussões e decisões institucionais. Da mesma forma, os Regimentos
da Escola permitiram uma análise das bases conceituais de sua estruturação. Todo esse
acervo do Museu D. João VI constituiu fonte de interesse para uma melhor compreensão dos
anos 1950 / 60 e para a necessária construção de sentido do período por nós pesquisado,
em trabalho que redundou em nossa tese de doutorado intitulada: Gravura Artística Brasileira
Contemporânea Posta em questão: Anos 50 e 60.

Notas e referências
1
COSTELLA, Antonio. Introdução à Gravura e História da Xilogravura. Campos do Jordão: Mantiqueira,
1984, p.90.
2
Em 1820, em decreto de 23 de novembro, anunciava-se o início das aulas na Academia, constando a
gravura ao lado do desenho, da pintura e da escultura. Como professor nomeado, o gravador Zepherin
Ferrez, especialista em cunhagem de medalhas, com destacada atividade na Casa da Moeda. No
âmbito oficial, sua atividade estendeu-se à escultura em baixo-relevo, com trabalhos realizados juntamente
com seu irmão Marc Ferrez. Não tendo sido registrada inscrição para a gravura em medalhas durante
onze anos, a cadeira sob sua responsabilidade foi extinta, vindo a ser reabilitada em 1837, ainda sob
sua orientação, com a inscrição de três alunos, um dos quais José da Silva Santos, posteriormente
nomeado seu substituto por Carta Imperial de 2 de junho de 1840. Em 1851, morre Zepherin Ferrez. José
da Silva já se transferira para a cadeira de Escultura, tornando-se seu proprietário em 1869, ano também
do seu falecimento. Assim, mais uma vez, por vacância, a cadeira de gravura em medalhas era extinta
sendo substituída por uma de xilografia que, de imediato, não chegou a ser provida com titular,
permanecendo vaga até sua extinção em 1890. No plano oficial, o ensino da xilografia não teve melhor
sorte. Neste mesmo ano, com a aprovação do Novo Estatuto, a extinta cadeira de gravura em medalhas
foi restabelecida. Assumiu-a Augusto Giorgio Girardet, em 1891, permanecendo quarenta e dois anos à sua
frente. A partir de 1934, Dinorah Azevedo de Limas Enéas, aluna de Girardet, tornou-se responsável por este
ensino, em caráter provisório, permanecendo até 1957. Neste ano, Leopoldo Campos, concursado, assume
a cátedra de gravura permanecendo até os anos 60, embora tivesse pedido aposentadoria em 1957.
3
O Liceu de Artes e Ofícios, criado em 1856, tornou-se o núcleo de formação dos “abridores”.
Anteriormente, em 1850, fora criado por Henrique Fleiuss e seu irmão Carl, o Instituto Artístico, núcleo
independente, uma espécie de empresa tipo-litográfica, onde se oferecia cursos de xilogravura.Como
reconhecimento por sua atuação, este núcleo recebeu em 1863, a honra de acrescentar o título de
Imperial ao Instituto que continuou desenvolvendo suas atividades até 1876, ano da morte de Carl
Fleiuss.
4
Théophile Gauthier, Roger-Marx, Ambroise Vollard, Baudelaire, Bracquemond, entre outros.
5
Fizeram parte destas Sociedades artistas como Manet, Daumier, Jongkind, Dégas, Pissaro, Courbet e
Eugène Boudin. Atravessando o século, em 1923, foi fundada por Laboureur e Dufy, a Sociedade dos
Pintores-Gravadores Independentes que se fundiu à antiga Sociedade dos Pintores-Gravadores Franceses,
da qual participaram artistas como Matisse, Braque, Picasso e Vlaminck. Em 1938, Pierre Guastalla
organizou também outra sociedade, A Jovem Gravura Contemporânea, nos mesmos moldes das
anteriores.
Ver BERSIER, Jean-E. La gravure: les procédés, l’histoire. Nancy: Berger- Levraut, 1984, p.312. Em
1963, esta última sociedade contava com 25 membros titulares gravadores dentre os quais Johnny
Friedlaender e Stanley William Hayter, artistas cuja presença foi relevante no processo de ativação da
gravura nos anos 50/60, no Brasil. O primeiro deu o curso inaugural do Ateliê do MAM-Rio, em 1959,

105
quando também expôs. O segundo, além de expor no mesmo Museu, em 1957, publicara em 1949, com
segunda edição em 1966, New Ways of Gravure, livro que circulou muito entre os nossos gravadores
nos anos citados.
6
Sobre o assunto ver: TAVORA, Maria Luisa Luz. A gravura no Liceu de Artes e Ofícios-RJ: tensão entre
métier e meio expressivo. Encontro Nacional de Pesquisadores de Artes Plásticas/ANPAP, 2007,
Florianópolis. Dinâmicas epistemológicas em artes visuais. p.381-390. Disponível em: <http://
www.anpap.org.br/2007/2007/artigos/039.pdf>.
7
Sobre o assunto ver: TAVORA, Maria Luisa L. Fundação Getúlio Vargas: O curso de Desenho de
Propaganda e de Artes Gráficas. In: Gravura Artística Brasileira Contemporânea Posta em questão: Anos
50 e 60. Tese Doutorado, Programa de Pós-graduação em História Social/ IFCS/UFRJ, 1999, p.31-37.
8
PEDROSA, Mário. Curso de Desenho e Artes Gráficas. Correio da Manhã, 15 fev. 1947.
9
KAMENHA, Michel. A propósito de uma exposição. Jornal do Commercio, RJ, 18 mar. 1947.
10
Carlos Oswald, em 1948, propôs a premiação de viagem para as Artes Gráficas no Salão Nacional de
Belas Artes. Nos primeiros anos de premiação, são destacados os seus ex-alunos. Neste ano, Livio
Abramo recebe Medalha de Prata neste Salão, na Divisão Moderna. Em 1949, é criado com o apoio do
jornal O GLOBO, o 1º Salão Municipal de Gravura. Em 1952, é criada por Raymundo Castro Maya, a
Sociedade Amigos da Gravura que promove e divulga a produção gráfica.
11
CAMPOFIORITO, Quirino. Raimundo Cela: Luz, Natureza e Cultura. Fortaleza:Secretaria de Cultura e
Desporto do Ceará,1994, p.15.
12
Após gozar por 5 anos o Prêmio de Viagem ao estrangeiro, recebido em 1917, Cela volta de Paris para
a cidade de Camocin (Ceará) onde passara sua infância e adolescência. Depoimentos de parentes
explicam este afastamento dos centros artísticos devido a uma espécie de derrame de que fora acometido,
tendo, a pedido médico, que abandonar suas atividades. O contato renovado com a cidade cearense
reavivou-lhe sentimentos e experiências que suas gravuras condensaram artisticamente.
13
BARATA, Mario. Goeldi na Escola Nacional de Belas Artes, Diário de Notícias, Suplemento Literário, 16
jan. 1955, p. 5.
14
Grupo do Diretório Acadêmico que, em 1959, fundou a galeria MACUNAIMA, cuja atividade voltou-se
para os modernos brasileiros, para os jovens artistas da Escola, para as vanguardas internacionais.
15
Ata da Congregação de 6 mar 1961, Livro 30, p. 53. Ata do Conselho Departamental de 22/ 2/61, Livro
30, p. 99.
16
A revista Leitura n° 45 de março de 61 apresenta Editorial e matérias dedicadas a Goeldi; a Leitura n°
49 do mesmo ano, inicia experiência de usar obras como capa escolhendo a obra de Goeldi e, no seu
interior à p. 3, comentários de sua biografia, “... devíamos começar com Oswaldo Goeldi, mestre
querido, numa justa homenagem ao companheiro”.; a Petite Galerie incluiu obras do mestre em
exposição de março/ 61, constando do Catálogo a observação: “Os 4 trabalhos de Goeldi foram
expostos como uma espécie de pequena homenagem póstuma ao grande gravador desaparecido e
bastaram somente eles para elevar o nível de qualquer exposição.”; criação do Museu Goeldi, em São
Paulo, que, em julho de 61, traz exposição para o MNBA ; o MAM-Rio, a Associação de Artistas
Plásticos Contemporâneos, (ARCO) e a Associação Brasileira de Críticos de Arte expõem obras de
Goeldi, de maio a julho de 61; a VI Bienal de São Paulo de 61 monta Sala Especial em homenagem ao
mestre, apresentando texto crítico de Ferreira Gullar. Em 1963, foi inaugurada pelo Estado a Escola
primária Oswald Goeldi à Rua Luiz Coutinho Cavalcanti, no bairro de Guadalupe, em Deodoro.
17
O aluno Cleber Teixeira, Diretor do jornal, reuniu opiniões sobre Goeldi de Ferreira Gullar, Mário
Barata, Adonias Filho, Murilo Araújo, Newton Freitas, Quirino Campofiorito, Sérgio Milliet, Geraldo
Ferraz, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Mário Pedrosa, Anibal Machado, Pedro Manuel, Murilo
Mendes, Carlos Drumond de Andrade, Otto Maria Carpeaux e Luiz Paiva de Castro.
18
ATA da Sessão Especial da Congregação . ENBA, 20 mar 1961. Livro 2, p. 55. Fizeram parte desta
sessão, além dos professores citados: Leopoldo Alves Campos, Mário de Faria Belo Junior, Mário
Barata, Carlos del Negro, Calmon Barreto, Armando Sócrates Schnoor, Lucas Mayerhofer e Jordão de
Oliveira.
19
O Curso de Desenho e Artes Gráficas passou a funcionar, em 1959, ainda sem a aprovação do
Conselho Universitário, em cujo parecer indicava para tal funcionamento uma reforma no Regimento da
Escola. Ver sobre o assunto ATA da Congregação ENBA 21 jan 1959. Livro 1. A alteração do referido
Regimento foi aprovada somente em 12 jun 1961 assim permanecendo: “ onde se lê Professorado de
Desenho, leia-se Desenho e Artes Gráficas; onde se lê- Gravura e Arte Decorativa, leia-se Gravura de

106
Medalhas e Pedras Preciosas, Arte Decorativa e Desenho e Artes Gráficas”; na enumeração de disciplinas
acrescentar ...litografia”.
20
Ver Regimento da ENBA. 1965, Art.13 p. 9-10.
21
Documento de divulgação do Curso incluído em ATA Conselho Departamental. ENBA 2 maio1962.
22
Em depoimento gravado a Adamastor Camará, 21 dez 1986. SESC /Tijuca.
23
Ver ARQUIVOS da ENBA, 1956 p. 145
24
No relatório de atividades da Secretaria de Arte do Diretório Acadêmico, em 1956, constam as
exposições: Litografias de Darel; Gravuras Mexicanas; Axel Leskoschek; Gravura da Escolinha de Arte;
Salão Geral dos Alunos; Exposição de Gravura dos Alunos; Palestras de Darel sobre a técnica da
Litografia e do Professor Campofiorito sobre a exposição de Darel. Ver ARQUIVOS da ENBA, 1956 p. 43.
25
Em Sessão de Congregação de 27 / 11 / 61, o Diretor Calmon Barreto informou sobre autorização de
compra de 2 prensas e 50 pedras litográficas pela importância de C$ 60.000,00. Em 16 / 12 / 64 consta
também em Ata de Congregação informação sobre obras de instalação da oficina. Em 12 / 4 / 65, ainda
em Ata de Congregação, encontra-se o registro de solicitação da aula de lito à Reitoria do adiantamento
da importância de C$ 200.000,00, valor que foi concedido conforme notícia dada em 5 / 05 / 65.
26
Medalha de Prata, Pequena Medalha de Ouro, a Grande Medalha de Ouro da ENBA; Medalhas de
Bronze e Prata no Salão Nacional de Arte Moderna e participação nas Bienais de São Paulo de
1951 e 1953.
27
GROSSO, Antonio. In: PIRES, Heloisa; TAVORA, Maria Luisa L. GRAVURA HOJE: depoimentos. Rio
de Janeiro: SESC/ARRJ, 1995, v.1, p. 100.
28
REGIMENTO da Escola Nacional de Belas Artes, 1948, Art. 73, p. 39.
29
Posteriormente à sua integração, em 1959, ao citado Curso de Desenho e Artes Gráficas, em 1971,
seria criado o Curso de Graduação em Gravura, no bojo de nova reforma dos cursos da ENBA.

107
2.2 Ensino, métodos, concursos

108
A especialização do pintor acadêmico por tipologias: um estudo do
acervo de cópias do Museu D. João VI/EBA/UFRJ

Reginaldo da Rocha Leite


Doutor PPGAV/EBA/UFRJ
professor e coordenador do curso de Licenciatura em Artes Visuais
do Centro Universitário Metodista Bennett

A partir da criação do Prêmio de Viagem à Europa (Prêmio de Primeira Ordem) em


1845, o então diretor Félix-Èmile Taunay oficializou e possibilitou a ida de alunos brasileiros a
Roma e Paris objetivando o aperfeiçoamento da formação do seu corpo discente. O contato
com os museus constituía-se numa experiência indescritível para os alunos que enfrentavam
a ausência deles no Brasil. Podiam exercitar-se na imitação dos antigos e na reprodução de
relevantes telas europeias (elemento condicionador do amadurecimento do aluno frente às
regras acadêmicas).
A vida de um pensionista na Europa não era fácil, o aluno devia superar inúmeros
obstáculos em sua trajetória não só com o idioma local como também nas exigências quanto ao
desenho e à pintura. Os pensionistas em meio às suas obrigatoriedades estavam submetidos
ao envio de cópias das pinturas europeias ao Brasil como instrumento de avaliação do
aprendizado, constituindo assim, importante fonte alimentadora do acervo da Pinacoteca da
instituição. As cópias enviadas pelos pensionistas agiam, também, como material didático na
formação de outros alunos no Brasil que não tinham a oportunidade de estudar in-loco as
obras dos grandes mestres. A partir dos modelos plenamente fornecidos pelos museus
visitados durante o pensionato, o aluno aproximava-se dos pilares de sustentação da sua
formação artística: as contribuições de cada Escola Europeia de pintura, os tipos eternizados
pela tradição e as Retóricas Visuais.
Não queremos com este trabalho limitar a função do Prêmio de Primeira Ordem a um
manancial copista, não temos uma visão reducionista do assunto. Mas acreditamos nas
evidências que apontam duas possíveis causas para a consequente criação do Prêmio: a
necessidade do aperfeiçoamento do aluno brasileiro frente à tradição pictórica europeia e o
enriquecimento da Pinacoteca da AIBA com reproduções de importantes obras da pintura
ocidental enviadas ao Brasil.
Um detalhe a ser verificado é a aquisição das cópias das pinturas europeias. Na
segunda metade do século XIX o acervo de cópias da Academia Imperial cresceu
significativamente em relação à primeira metade do oitocentos. Nos anos cinquenta a aquisição
de reproduções de obras europeias atingiu seu clímax, pois foi o período dos pensionatos de
Francisco Antônio Nery, Jean Leon Pallière Ferreira, Agostinho José da Motta e Victor Meirelles
de Lima na Europa e, consequentemente, a década de seus envios ao Brasil. Nos anos
sessenta e setenta a produção de envios sofreu uma significativa queda, constando apenas os

109
de João Zeferino da Costa e de Rodolpho Amoêdo; no entanto, durante os anos oitenta a
Academia voltou a adquirir uma boa quantidade de cópias por meio de doação ou compra. Vale
ressaltar que os envios de Oscar Pereira da Silva, último pensionista da antiga Academia, ao
Brasil tomam vulto durante os anos noventa, já na existência da Escola Nacional de Belas Artes.
No Museu D. João VI/EBA/UFRJ encontramos parte das cópias enviadas à Academia
Imperial pelos pensionistas, pois a partir da criação desse Museu em 1979 o acervo de
pinturas oriundo da antiga Academia foi dividido entre o museu citado e o Museu Nacional de
Belas Artes. No que cabe aos envios de pensionistas, mais especificamente as cópias das
pinturas europeias, estão localizados atualmente no Museu D. João VI/EBA/UFRJ os exercícios
dos pintores históricos: Francisco Antônio Nery, Jean Leon Pallière Ferreira, Victor Meirelles
de Lima, João Zeferino da Costa, Rodolpho Amoêdo e Oscar Pereira da Silva. Os envios de
Agostinho José da Motta, único pensionista do âmbito paisagista, estão situados no Museu
Nacional de Belas Artes.
Uma visão de conjunto do acervo de cópias localizado no Museu D. João VI/EBA/
UFRJ revela a inclinação que a antiga Academia alimentava em sua metodologia de ensino
artístico por gêneros específicos de pintura que variavam de acordo com as Escolas Europeias.
Cada Escola se destaca por uma determinada temática, por exemplo: a Italiana e a Espanhola,
pela religiosa; a Francesa, pela história europeia e; a Flamenga, explicitando duas vertentes:
a mitológica e a retratística. Todavia, durante a confecção da cópia, eram estudados os
elementos que a Academia detinha o extremo controle, exigindo então do aluno exímia
dedicação. São eles: a figura humana, a estruturação da composição em seus aspectos
formais (as configurações) e a assimilação, também compositiva, das tipologias europeias em
sua adequação ao tema proposto (os tipos). É importante salientar que além dos envios dos
pensionistas, os alunos na Academia Imperial também recorriam às cópias de autoria
desconhecida como material didático, obras essas adquiridas por meio da compra pelo Estado
ou da doação à instituição por particulares e que tinham a função de apresentar ao corpo
discente a produção dos grandes mestres europeus. Assim, tanto as cópias confeccionadas
por pensionistas na Europa quanto as de autoria não identificada introduzem o aluno brasileiro
no campo do que Erwin Panofsky chama “história da tradição” consolidando, então, o
aprendizado artístico a partir das tipologias europeias concatenando diferentes semânticas.
Semânticas essas que podem ser classificadas como: religiosa, mitológica, alegórica ou da
história europeia. Além das quatro temáticas, que para serem executadas pelos pintores
exigiam a relação direta entre pintura e um texto escrito, a Academia Imperial também incitava
os alunos a copiarem retratos e academias de nu.
No caso das cópias produzidas por pensionistas na Europa verificamos a supremacia
quantitativa da semântica religiosa e dos artistas ditos ‘exímios coloristas’, como é o caso de
Tiziano. Também constatamos que Victor Meirelles de Lima é o único aluno da Academia
brasileira a produzir cópias, na Europa, de todos os seis gêneros classificados acima,

110
contribuindo, dessa forma, para o seu amadurecimento frente às regras tipológicas sem se
enclausurar num único assunto. É necessário, ainda, citar que, a partir do variado envio de
cópias proporcionado por Meirelles, a Academia brasileira conseguiu diversificar o seu acervo
de pinturas, ocasionando uma preparação mais bem fundamentada para os alunos principiantes,
fazendo com que eles pudessem conhecer uma gama maior de Escolas Europeias e de
semânticas pictóricas.
De maneira geral, grande parte dos mestres copiados era italiana e os temas,
provenientes da pintura histórica: os acontecimentos do passado europeu, episódios da história
sacra e as cenas mitológicas.
Por mais que os artistas italianos ocupassem lugar privilegiado no patamar hierárquico
da cópia, os pintores franceses também representavam uma fonte propiciadora do conhecimento
pictórico em seus caracteres plásticos e retóricos.
O amadurecimento do pensionista da Academia Imperial na Europa tinha como
alicerce o estudo em ateliês particulares, o enriquecimento teórico nas Academias de ensino
e fundamentalmente o aprendizado a partir do exame atento das pinturas expostas nos
museus e igrejas, como podemos observar no pensionato de Zeferino da Costa1. Era uma
regra bastante comum os pensionistas concluírem seus estudos e durante o último ano de
estada percorrerem vários países europeus com o objetivo de visitar renomados museus
recomendados pelos professores brasileiros. Luciano Migliaccio aborda esse ponto ao referir-
se à aproximação de Zeferino da Costa a obras de pintores italianos em seu período de
estudos em Roma2. Ao citar o trabalho do pintor brasileiro no plafond da Igreja da Candelária
no Rio de Janeiro, Luciano implicitamente aponta para a assimilação tipológica da tradição
italiana por Zeferino da Costa.

A primazia da semântica religiosa


Pode-se notar que a temática religiosa é extremamente valorizada no âmbito da
pintura histórica pelos docentes da Academia Imperial das Belas Artes. Vários professores
envolvem-se na produção de telas de cunho religioso como: Pedro Américo de Figueiredo e
Mello, Victor Meirelles de Lima, João Zeferino da Costa e Rodolpho Amoêdo, assim como
alunos que não se tornaram docentes da instituição: José Ferraz de Almeida Júnior e Oscar
Pereira da Silva. Vale lembrar que, quando nos referimos à pintura histórica, estamos
englobando quatro gêneros pictóricos que fazem parte da sua constituição: as temáticas sacra,
mitológica, da história europeia e nacional. Alguns professores como Pedro Américo e Zeferino
da Costa dedicaram vários anos das suas vidas às telas religiosas. O primeiro nunca escondeu
sua preferência pelos assuntos sacros3 e o segundo mergulhou durante vinte e dois anos nas
pinturas marianas da Igreja de Nossa Senhora da Candelária do Rio de Janeiro.
Dentre os Prêmios de Viagem à Europa, conquistados por sete pintores, durante a
existência da AIBA, quatro constituem quadros religiosos. São eles: “São João Batista no

111
Cárcere” de Victor Meirelles, 1852; “Moisés Recebendo as Tábuas da Lei” de Zeferino da
Costa, 1868; “O Sacrifício de Abel” de Rodolpho Amoêdo, 1878 e “Flagelação de Cristo” de
Oscar Pereira da Silva, 1887.
No campo da cópia a semântica religiosa alcança sua primazia contabilizando cerca
de 60% das reproduções enviadas pelos pensionistas da Europa ao Brasil. Sem dúvida
alguma foi o gênero mais copiado na AIBA e o que mais contribuiu com as tipologias pictóricas
explicitadas pelas Escolas Europeias e com a assimilação das Retóricas Visuais no aprendizado
artístico do aluno brasileiro.

Rafael e Tiziano: referências tipológicas para os alunos brasileiros


Na visão do corpo docente da Academia Imperial das Belas Artes o aluno brasileiro
precisava ter contato com as tipologias consolidadas pela tradição pictórica europeia tendo
como ponto de referência, principalmente, as obras de Tiziano e Rafael. A observação e cópia
das composições dos dois artistas italianos tornaram-se exercício obrigatório não só para os
brasileiros que desejavam obter uma exímia formação artística em território nacional como
também para os pensionistas que buscavam o aprimoramento de seus estudos em solo
internacional. Podemos citar a título de exemplificação as cópias enviadas à Academia brasileira
pelos pensionistas Francisco Antônio Nery e Jean Leon Pallière Ferreira, respectivamente:
“Salomé com a cabeça de São João Batista” e “A Virgem de Foligno”.
Francisco Antônio Nery ao produzir uma cópia de “Salomé com a cabeça de São
João Batista”, de Tiziano (Fig. 1), durante o seu pensionato em Roma, não está somente
reproduzindo uma tela para atender uma das obrigatoriedades do Prêmio de Viagem. Além
de assimilar as configurações propostas pela Escola Veneziana também está alimentando o
seu repertório temático absorvendo, assim, tipos de representação. Ao observarmos a cópia
de Tiziano pintada por Nery e localizada no Museu D. João VI/EBA/UFRJ, o objetivo desse
exercício didático torna-se bastante claro. Sabemos que os docentes da AIBA tinham Tiziano
como o mais importante representante da Escola Veneziana por seu trabalho cromático.
Portanto copiar a “Salomé com a cabeça de São João Batista” significava mergulhar num
manancial de conhecimentos que a tradição consagrou. O pintor italiano explora com maestria
a profusão de cores na cena bíblica no contraste entre o vermelho e o verde tradicionalmente
utilizado em obras de Giorgione e do próprio Tiziano. Salomé inclina a cabeça para o lado
esquerdo da tela aproximando-se da sua criada. O olhar da serva forma uma diagonal ao
encontrar com o rosto de Salomé que direciona o seu olhar para fora da composição ao
ultrapassar a cabeça do Batista. O choque entre luz e sombra é bastante intenso, pois
hipervaloriza as figuras que se destacam do fundo. Salomé encontra-se extremamente iluminada
configurando uma instável composição ao evidenciar uma enorme diagonal. O arco pleno
localizado ao fundo funciona não só como equilíbrio entre zonas de sombra e luz, mas

112
transparece o escapismo da cena ao representar a transcendência espiritual de João ao
universo celestial.
Não era qualquer artista que os pensionistas da Academia copiavam, apenas os
indicados pelo corpo docente. Assim, a seleção das obras e autores a serem reproduzidos
representava uma séria preocupação para a instituição, pois deveriam ser exímios exemplares
para os estudos, a fim de não permitir que o aluno copiasse uma obra com incoerências
tipológicas ou retóricas.

Figura 1. Fracisco Antonio Neri. Salomé com a cabeça de


São João Batista, 184?, óleo/tela, 91,3 X 70,0cm. Cópia de
Tiziano. Museu D. João VI/EBA/UFRJ.

Se os venezianos contribuíam com suas


composições magistralmente confeccionadas
cromaticamente com o ensino acadêmico brasileiro,
Rafael mostrava-se como a principal fonte para o
aprendizado estrutural no que concerne à organização
de uma composição na relação entre a história das
configurações e a história dos tipos. Tal situação pode
ser visualizada na cópia “Virgem de Foligno” executada
pelo pensionista Jean Leon Pallière Ferreira.
Originalmente, a “Virgem de Foligno” de Rafael (Fig. 2) foi pintada para o altar
principal da igreja franciscana de Sta. Maria em Aracoeli, no Capitólio romano, construída
sobre o local onde (de acordo com a Mirabilia
Urbis Romae medieval) o imperador Augusto teve
uma visão em que uma Virgem com o Menino, de
uma beleza esmagadora, apareceu por entre um
disco luminoso dourado, sobre um altar. As figuras
representadas na zona terrena retomam o topo
arredondado do quadro, completam o círculo e
simultaneamente projetam-no, através do seu
posicionamento escalonado no primeiro plano,
para a terceira dimensão. A forma circular repete-
se novamente na auréola que envolve Maria e
no arco-íris sobre a paisagem.

Figura 2. Rafael Sanzio. A Virgem de Foligno, 1512.


Óleo s/tela, 320 x 194 cm.
Pinacoteca do Vaticano, Roma.

113
A estrutura da composição proposta por Rafael serviu de referência para artistas de
diferentes nacionalidades e épocas, consolidando dessa maneira, a assimilação das tipologias
ideais para a materialização do tema em discussão, ou mesmo como alicerce para composições
com outras vertentes da iconografia mariana.

Figura 3. Jean Leon Palliere Ferreira. A Virgem de


Foligno, 184?, óleo/tela, 165,0 x 108,0cm. Cópia de
Rafael Sanzio.
Museu D. João VI/EBA/UFR.

No caso do aluno da AIBA, Pallière, a cópia


enviada à instituição brasileira compreendia
somente um fragmento da tela original (Fig. 3). E
então nos questionamos: por que apenas a área
superior do quadro foi reproduzida pelo
pensionista? Tudo nos leva a crer que a
resolução de Rafael ao criar elementos curvos
que se repetem seja tão harmônica que
possivelmente tenha encantado os docentes e o
próprio Pallière. A nossa hipótese toma vulto ao visualizarmos que vários artistas extraíram
essa mesma resolução de Rafael e transladaram-na para o universo das suas criações (Fig. 4).

Figura 4. Carlo Maratta. Assunção da Virgem, 1689.


Óleo s/tela, 273 x 188 cm.
Santa Maria del Popolo, Roma.

O que nos é bastante transparente é que a


configuração criada por Rafael para atender às exigências
temáticas da tela “Virgem de Foligno” consolidam a
necessidade de o pintor inventar tendo a tipologia como
eixo criativo. Com isso, a noção estilística não
representava na Academia Imperial das Belas Artes um
referencial, ao contrário da tipologia que manteve-se
durante todo o oitocentos como pilar da construção e da
formação artísticas4. Portanto, o aperfeiçoamento do
pensionista na Europa não estava restrito ao aprendizado
em ateliês particulares ou nas Academias de ensino. A
educação do olhar do aluno brasileiro se fazia
fundamentalmente pela observação das obras dos

114
grandes mestres europeus localizadas em museus e igrejas e, na prática da cópia delas, que
funcionava como ferramenta para a assimilação da história das configurações e da história
dos tipos convencionados pela tradição.

Notas e referências
1
“Ministério dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, em 20 de fevereiro de 1874. Sua Majestade o
Imperador, atendendo ao que requereu o aluno dessa Academia, João Zeferino da Costa, que se acha em
Roma estudando pintura como pensionista do Estado, houve por bem prorrogar por três anos, o tempo
de aprendizado na Europa, sendo dois para concluir os seus estudos e um para visitar os museus e
galerias de toda Itália, Áustria, Alemanha, França e Espanha”. (lido em Sessão de 28 de fevereiro de
1874). Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.
2
“Quando todos os artistas brasileiros corriam a Paris para se atualizar quanto às novas tendências,
Zeferino passou seus anos de bolsista na Roma de Pio IX, fechada e retrógrada. (...) Parecia sentir-se
destinado a um empreendimento diferente, tão anacrônico quanto ambicioso, de modo que estudava a
pintura mural no Vaticano, desde Rafael até a Capela dell’Immacolata, onde Podesti dava forma à
imagem da Chiesa del Sillabo. De volta ao Rio de Janeiro, seguindo o exemplo de Meirelles, dedicou-se
ao ensino do desenho, chegando a colaborar com Amoedo e Villares na fundação de uma escola livre.
Depois, a partir de 1891, foi professor da cátedra de desenho com modelo vivo da Academia. O restante
de sua vida foi dedicado à decoração mural da Igreja da Candelária. Os seis grandes painéis do teto
dessa igreja representavam uma oportunidade única na carreira de um pintor brasileiro, quer por suas
dimensões, quer pela ocasião inusitada. As grandes pinturas contavam a história da evolução da cidade,
simbolizada pela construção do templo, sugerindo um paralelo com as grandes catedrais europeias. A
Candelária era uma igreja do povo, fundada em pagamento a uma promessa feita por um grupo de
portugueses salvos de um naufrágio. Assim, a pintura tratava das vicissitudes da cidade e da religiosidade
de sua gente, de seus hábitos, desde o século XVII até a época contemporânea. O catolicismo fundador
da Primeira Missa no Brasil tornava-se relato da contribuição da religião para o desenvolvimento civil da
sociedade. Vemos como Zeferino havia estudado a composição das grandes obras do barroco romano,
Domenichino e Lanfranco, e a pintura mural da Roma do século XIX: os ciclos de San Paolo fuori le Mura
e as pinturas do Vaticano. Nas cenas, de uma religiosidade coral, o esmero na documentação dos trajes
une-se a um conhecimento invulgar dos recursos da perspectiva.”. MIGLIACCIO, Luciano. “Arte do
Século XIX”. In: AGUILAR, Nelson (org.). Mostra do Redescobrimento, São Paulo: Associação Brasil
500 anos Artes Visuais, 2000, p. 147-148.
3
“Minha natureza é outra, e creio dobrar-me com facilidade às exigências passageiras dos costumes de
cada época, que também são uma das fontes em que um talento como o seu pode achar pérolas. A
minha paixão só a história sagrada sacia-a.”. Carta escrita por Pedro Américo em 06/05/1864 e enviada
a Victor Meirelles. – Arquivo do Museu D. João VI/EBA/UFRJ (pasta do artista Victor Meirelles de Lima).
4
“Tanto na Europa quanto no Brasil, a versatilidade estilística dos artistas desse período tem origem
num fato, que parece estar sendo desprezado pelos estudiosos: a importância das tipologias, isto é, as
soluções de compromisso entre tema e forma, que eram sugeridas pelos grandes mestres e que
passaram a constituir a tradição artística ocidental. Sabemos que o grande objetivo da pintura desde o
Renascimento era ‘contar história’, ou seja, a sua função narrativa. Dessa forma, cada tema apresentava
um caráter específico, com suas exigências iconográficas e a necessidade de construção de um clima
emocional adequado à história narrada. Assim, do ponto de vista da prática artística – e o ensino
acadêmico estava particularmente atento a esse fato -, as escolhas dos artistas eram muito mais
tipológicas do que estilísticas. Isto explicaria porque os artistas dessa geração apresentam esse
comportamento eclético: o estilo seria escolhido em função da sua adequação ao tema e à função,
apoiando-se num repertório de tipologias compositivas sugeridas pela tradição pictórica europeia.”.
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte Brasileira no Século XIX, Belo Horizonte: C/Arte, 2008, p.70.

115
A Pintura Histórica em dois Concursos da AIBA – 1865 e 1887

Ana Cavalcanti
EBA/UFRJ

Há quase trinta anos, as teorias modernistas que tanto marcaram a história da arte no
século passado começaram a ser questionadas. Ao mesmo tempo em que a “pureza” da arte
moderna dava lugar à permeabilidade da arte contemporânea, os olhares que julgavam
inexpressiva e equivocada a produção dos mestres atuantes nas Escolas e Academias de
Belas Artes europeias deixaram de ser consensuais. Aos poucos, um interesse renovado por
trabalhos que estavam guardados nas reservas dos museus ganhou espaço. Um caso
exemplar, a ser lembrado, foi o do Museu d’Orsay, em Paris. Inaugurado em dezembro de
1986, o museu tornou disponíveis ao público, além das pinturas impressionistas, quadros de
Cabanel, Gérôme e outros artistas pompiers que durante várias décadas ficaram escondidos.
A mesma abertura se deu em relação à arte brasileira do século XIX, por tanto tempo
considerada sem valor, mero pastiche da arte europeia, conforme propagavam os primeiros
modernistas nacionais, opondo-se radicalmente às gerações que os antecederam.
Hoje já não há necessidade de posições extremadas entre a arte moderna e a arte
vinculada às Academias. O desafio atual é escrever sobre a diversidade artística do século
XIX, a partir de novas questões estimuladas pela vivência no século XXI. O contato com a
arte contemporânea nos faz rever obras antigas a partir de outra mirada e outros sentidos.
E no trabalho de reescrever a história, enfatizam-se aspectos até então despercebidos e
descobrem-se significados antes impensáveis. Deste modo, é sempre bem vinda uma nova
consulta às fontes primárias conservadas em arquivos e museus, permitindo-nos desconfiar
de certezas inabaláveis.
Para o historiador da arte brasileira, sobretudo aquele que se interessa pelo século
XIX e início do XX, o Museu D. João VI é um manancial. Integrando obras e documentos
provenientes da Academia Imperial das Belas Artes (AIBA) e da Escola Nacional de Belas
Artes (ENBA), seu acervo tem favorecido as análises, contribuindo para uma revisão da
historiografia sobre nossa produção artística.
De fato, o estudo das imagens do acervo, em seus aspectos formais e iconográficos,
assim como a leitura dos pareceres dos professores, revelam um contexto plural cujos aspectos
não correspondem inteiramente às interpretações aceitas sobre a arte produzida no Brasil,
entre os séculos XIX e XX.
Há consenso entre os historiadores sobre o papel central ocupado pela Pintura de
História1 no ensino acadêmico. Porém, o que era exigido dos pintores dedicados a este
gênero de pintura? No correr do século, o que mudou na concepção da Pintura Histórica, na
Academia brasileira? Para aprofundar a questão, é interessante confrontar os pareceres e

116
telas do concurso de 1865 – para Professor de Desenho Figurado da AIBA – com os de 1887
– para Prêmio de Viagem2.
“Sócrates afastando Alcibíades do Vício” foi o ponto sorteado em 1865. As pinturas dos
concorrentes Pedro Americo (1843-1905) e Le Chevrel (c.1810-1872), hoje no Museu D.
João VI, obedecem à iconografia tradicional, mas diferem em concepção e expressão. Dentre
as duas, os professores preferiram a de Pedro Americo, destacando sua adequação ao
assunto representado, e sua qualidade superior à de Le Chevrel.
Em 1887, “A Flagelação de Cristo” foi o tema proposto aos pintores concorrentes ao
Prêmio de Viagem. O júri concedeu o prêmio a Oscar Pereira da Silva (1867-1939), cuja tela
pertence ao Museu D. João VI. Mas Rodolpho Bernardelli e Zeferino da Costa protestaram
contra o resultado, pois preferiam o trabalho de Belmiro de Almeida (1858-1935).
O estudo comparativo das quatro pinturas mencionadas, de Pedro Americo, Le Chevrel,
Oscar Pereira da Silva e Belmiro de Almeida, realizadas em contexto pedagógico semelhante,
porém em momentos diferentes, assim como o levantamento das críticas que receberam, são
muito proveitosos. Nos ajudam a pensar sobre a Pintura histórica, a partir de algumas perguntas:
Quais foram os critérios de avaliação empregados em 1865 e em 1887? Que aspectos das
obras foram analisados pelos professores em seus pareceres? Que exigências permaneceram
vigentes entre as décadas de 1860 e 1880, e que mudanças podemos perceber?
Para começar, é interessante situar estas obras nas trajetórias de seus autores. No
ano de 1865, Pedro Americo (1843-1905) e Le Chevrel (c.1810-1872), os concorrentes ao
lugar de professor de Desenho na Academia, se encontravam em etapas bem diversas em
seus percursos artísticos. O jovem Pedro Americo, aos 22 anos, voltava ao Brasil após um
período de estudos na Europa, onde vivera custeado pelo “bolsinho do Imperador”, auxílio
dado por Pedro II para o pintor se aperfeiçoar em Paris. Em 1865, além de prestar concurso
para magistério, recebera, pela primeira vez, uma medalha de ouro na Exposição Geral da
Academia, com a tela “A Carioca”. Le Chevrel, por seu lado, já era um homem de meia idade.
Pintor francês, chegara ao Brasil na década de 1840, participara com assiduidade das
Exposições Gerais. Além disso, desde maio de 1864, era professor interino de Desenho
Figurado na Academia3.
Ao comparar as duas telas, hoje expostas lado a lado no Museu D. João VI,
percebemos que Pedro Americo foi mais inventivo na composição da cena, além de mais
desenvolto no desenho e no colorido. Teriam sido estas características que agradaram aos
professores Maximiano Mafra4, Agostinho José da Motta e Victor Meirelles, membros da
Comissão julgadora?
Sabemos que em 9 de agosto de 1865, o parecer final da comissão foi lido para todos
os professores à vista dos trabalhos expostos na sala de modelo-vivo da Academia, e foi
aprovado sem contestação. Na votação secreta para escolha do melhor entre os dois candidatos
aprovados, Pedro Americo recebeu nove votos e Le Chevrel apenas um. Portanto, a

117
preferência quase unânime foi para Pedro Americo. Mas o professor interino foi consolado. A
Congregação, logo após comunicar a Pedro Americo sua vitória no concurso, conferiu a Le
Chevrel o título de Professor honorário da seção de Pintura5.
Devemos mencionar que, finalmente, foi Le Chevrel quem continuou a lecionar a
disciplina, já que Pedro Americo solicitou e obteve licença sem vencimentos para continuar
seus estudos de Pintura histórica na Europa6.
Dentre os aspectos detalhados no parecer dos professores, um nos chama a
atenção: o elogio da adequação da pintura ao tema proposto. Enquanto Pedro Americo
foi fiel ao título “Sócrates afastando Alcibíades do Vício”, a cena pintada por Le Chevrel
mais parece uma conversa amena entre os três personagens principais. A Comissão
julgadora sublinhou esta diferença:

Na 3a prova (…), (quadro historico) a diferença entre elles é muito (...) notavel: -
O candidato [Le Chevrel] cujo anagramma é = To be or not to be = representou o
momento em que as admoestações judiciosas de Socrates cálão no espirito de
Alcibiades, que medita no que deve fazer; a amante do jovem Atheniense procura
em segredo destruir a impressão das palavras do sabio; Socrates espera a
resolução de seu discipulo; as figuras accessorias do fundo do quadro contribuem
pela expressão, e pelo movimento à representação deste momento, que talvez
não seja todavia o mais immediatamente deduzido das palavras do programma7.

Ao analisar o quadro de Pedro Americo, os professores afirmaram:

Aquele que tem por anagramma a judiciosa sentença de Leonardo da Vinci = Um


pintor sabio na theoria da sua arte póde sem muita difficuldade tornar-se universal
[Pedro Americo] = representou justamente o momento em que Socrates affasta
Alcibiades do vicio. (...) - Alcibiades, pensativo e obediente, deixa-se levar por
seu sabio Mestre;(...)8.

Essas observações mostram como a representação do momento justo era importante,


e como o trabalho do pintor de história era comparável ao de um romancista ou diretor teatral.
Pedro Americo soube contar melhor a história, destacando a ação e a expressão de cada
personagem.
Há ainda outra observação importante a ser feita. Trata-se da referência à pintura
“Socrate allant chercher Alcibiade chez Aspasie”, que Jean Léon Gérôme (1824-1904) havia
exposto no Salão de Paris, em 1861. É praticamente certo que os candidatos do concurso da
AIBA conhecessem a obra de Gérôme, ao menos pela reprodução fotográfica posta à venda
em 1862, disponível no catálogo da Maison Goupil com o nome de “Alcibiade chez Aspasie”.
Já comentamos que a escolha compositiva de Pedro Americo era mais original que a de Le
Chevrel. Ao posicionar a tela na vertical e buscar um ângulo de visão que enfatizasse a ação,

118
Pedro Americo optou por uma perspectiva acentuada, contrastando as dimensões dos diversos
personagens. Este recurso acrescentou dramaticidade à cena. Comparando essa estrutura
com a composição de Le Chevrel, nota-se sua novidade, pois este último recorre ao padrão
típico dos baixorrelevos da antiguidade clássica, com os personagens alinhados em paralelo
ao plano da tela, modelo utilizado por Gérôme no quadro já mencionado. E devemos reconhecer
que a comissão julgadora foi favorável à novidade, pois Pedro Americo venceu o concurso.
Curiosamente, 22 anos mais tarde, a comissão julgadora do concurso de Prêmio de
Viagem de 1887, foi mais conservadora que a comissão de 1865. No entanto, seu parecer
não foi aprovado por unanimidade, como o fora o da primeira comissão. Na reunião do corpo
acadêmico em 8 de novembro de 1887, o parecer do júri formado pelos professores de
arquitetura, Francisco Joaquim Bethencourt da Silva; de desenho figurado, José Maria de
Medeiros; e de desenho de ornatos, João Maximiniano Mafra, foi aprovado pela quase
totalidade dos professores, com a exceção de duas vozes divergentes: Rodolpho Bernardelli
e Zeferino da Costa. Ambos preferiam o trabalho de Belmiro de Almeida (1858-1935) ao do
vencedor, Oscar Pereira da Silva (1867-1939), e protestaram contra o resultado9. No entanto,
o Diretor declarou que não aceitava o protesto “porque, [em suas palavras,] nem tem
fundamento, nem encontra nos Estatutos disposição alguma que o autorize”10.
Ocorre que os descontentes foram pedir o apoio da Princesa Isabel, por meio de uma
carta datada de 11 de novembro, publicada no jornal O Paiz em 13 de novembro de 1887.
Neste recurso, Bernardelli e Zeferino criticavam o quadro do laureado Oscar Pereira da
Silva, e afirmavam que Belmiro de Almeida fora injustamente excluído pela congregação.
Vejamos sua argumentação:

“Senhora – Os abaixo assinados, professores de escultura e de pintura da imperial


academia de bellas artes, vem respeitosamente, junto ao governo imperial, interpor
o presente recurso contra a deliberação, tomada pela maioria da congregação da
mesma academia, acerca do último concurso – Viagem à Europa.
“Os recorrentes, fundamentando o recurso que ora apresentam à justiça de Vossa
Alteza Imperial regente dizem:
“ (...) Que o parecer apresentado pela comissão nomeada (...) não está de acordo
com a opinião dos abaixo-assinados; (...) que as qualidades artísticas do quadro
n.6 [de Oscar Pereira da Silva], apresentadas como superiores às dos quadros
ns. 5 [de Belmiro de Almeida] e 3 e classificadas pela comissão em condições de
maior merecimento, são pelo contrário inferiores às destes quadros (...).
“Os abaixo assinados (...) não podem deixar de estranhar que a comissão, tendo
sido analítica na apreciação artística de alguns quadros e sintética nas de outros
(como procedeu principalmente a respeito do quadro n.6) fosse analítica e
contraditória, em relação ao quadro n.5, (...).
(...)
“A composição do quadro n.6 (o escolhido), conquanto se vê claramente que foi
inspirada sobre a de um quadro existente na galeria da academia e de igual
assunto, obra de um dos nossos notáveis artistas, foi ainda assim infeliz em

119
virtude das alterações [com] que o autor do referido quadro n.6 procurou disfarçar
aquela inspiração.
“A grande coluna que parte do primeiro plano e centro do quadro dividindo-o em
três seções produz um efeito muito desagradável; não tanto pelo paralelismo das
linhas, mas muito principalmente pelo contraste das tintas cruas e duras.
“Como localidade, não se compreende onde se passa a cena.
“Como desenho, tome-se a figura principal. (...) A figura nem é nobre nem expressiva:
os olhos desproporcionados; os braços, mãos, pernas e pés tudo foi descurado!
“As demais figuras ainda são piores.
“Tudo é desenhado ali por um maneirismo, que não é possível admitir que o autor
deste quadro saiba observar a natureza.
“A perspectiva está errada, a arquitetura sem caráter e o baseamento da grande
coluna é horrivelmente desenhado.
“Quanto ao colorido, efeitos de claro-escuro, vê-se facilmente quanto o autor deste
quadro infelizmente tem-se viciado em adquirir as fórmulas antigas e convencionais
nos destaques de claros sobre escuros impossíveis e completamente fora do bom
senso!
“Assim é que a luz crua que ilumina a cena principal não suaviza o tom do fundo
do quadro, que é completamente preto. Dado mesmo o caso de ser a parede
pintada de preto, aquela luz produziria um efeito vaporoso, que sóe observar-se
nos ambientes.
“Ainda mais, a distribuição geral da luz parte de três pontos diferentes!
“O colorido das carnes, dos panos, enfim de todo o quadro é falso e sem harmonia.
“Imperial senhora, os abaixo assinados com o presente protesto cumprem o dever
que lhe impõem sua posição e o amor à arte que professam.
“Intransigentes quanto são, não deixam à consciência ocasião para acusá-los de
um delito de lesa-arte, em que incorreriam fatalmente se não confiassem que,
procedendo assim, pugnam pela verdade de uma causa e pela reparação de uma
injustiça.
“E.R.M. Rio de Janeiro, 11 de novembro de 1887 – Professor Rodolpho Bernardelli
– Professor João Zeferino da Costa11.

Embora não se conheça a resposta da Princesa, sabemos que os dois vencedores


do concurso (havia duas vagas para pensionista), o arquiteto Ludovico Maria Berna e o
pintor Oscar Pereira da Silva, não puderam seguir viagem, tendo que esperar até 1890,
quando finalmente o caso se resolveu, já sob regime republicano.
Em seu recurso, Bernardelli e Zeferino da Costa notam que a composição de Oscar
Pereira da Silva “foi inspirada sobre a de um quadro existente na galeria da academia e de
igual assunto, obra de um dos nossos notáveis artistas”. Trata-se, evidentemente, da Flagelação
de Cristo de Victor Meirelles, pintada em Roma, em 1856. É interessante ressaltar a
ambiguidade das observações sobre esta inspiração. Por um lado, Zeferino e Bernardelli não
recriminam a referência, e elogiam o “notável artista” que era Victor Meirelles. Por outro,
sugerem que Pereira da Silva buscou “disfarçar” a fonte de sua inspiração com alterações
infelizes. Isto nos faz voltar à reflexão sobre a originalidade, cada vez mais em foco e dividindo
a opinião dos críticos, tornando-se uma exigência feita aos artistas, por parte de alguns.

120
Na verdade, Belmiro de Almeida fora mais original no equilíbrio assimétrico de sua
composição em diagonal, mas, justamente por isso, foi depreciado por Francisco Joaquim
Bethencourt da Silva, José Maria de Medeiros e João Maximiniano Mafra:

O n.5 está sofrivelmente composto; há mesmo riqueza, quer no número das


figuras, quer nos acessórios, apesar do vazio da parte esquerda da composição,
e da linha oblíqua que divide o quadro da direita para o ângulo inferior esquerdo; o
colorido frio e acinzentado, é falso; a figura principal está mal desenhada,
desequilibrada, e incompleta; todo o quadro é chato e sem relevo, e a perspectiva
está errada; entretanto, se seu autor, que mostra ter, não só facilidade na execução,
pela maneira porque estão tocados alguns acessórios, mas também riqueza de
imaginação, tivesse empregado mais cuidado, talvez o seu trabalho superasse
aos dos seus competidores12.

O “vazio da parte esquerda” e a “linha oblíqua que divide o quadro” foram criticados,
mas a “riqueza de imaginação” de Belmiro, ao contrário, mereceu elogios. Vejamos agora
como a comissão avaliou o quadro de Oscar Pereira da Silva:

O n.6 está bem composto, muito regularmente desenhado; tem um colorido brilhante,
limpo e harmonioso; as figuras principais foram executadas com vigorosa energia;
está pintado com mais segurança, e mais firmeza que todos os outros; enfim tudo
nele revela um talento de ordem superior; não é porém, isento de senões; a
perspectiva não é de bom efeito, por ser muito próximo o ponto de distância, e no
fundo há uma parede demasiado escura, e de um tom sem transparência13.

Embora apontassem defeitos na perspectiva e criticassem o exagero no tom escuro


da parede do fundo (falha igualmente mencionada por Zeferino e Bernardelli na carta à
Princesa), os professores consideraram o quadro “bem composto”, ao contrário do de Belmiro
que estaria “sofrivelmente composto”. Enquanto a figura principal deste último estaria “mal
desenhada”, o desenho foi considerado “regular” em Pereira da Silva. Como se vê, a comissão
valorizava a correção do desenho e o respeito às tradições compositivas.
Mas a polêmica sobre o resultado do concurso não se restringiu ao âmbito da Academia,
e a discussão alcançou as páginas dos jornais. E aí, a originalidade e a quebra de convenções
ocuparam o centro do debate. O articulista que assinava sob o pseudônimo de Zeuxis,
publicou no Jornal do Commercio o seguinte comentário:

Animou-nos ainda a tratarmos deste concurso a leitura de um artigo (...) publicado


no Jornal do Commercio de 13 do andante, tão vigoroso na forma, quanto
irrespondível na citação que fez dos trechos do Sr. Bethencourt da Silva, que, a
estas horas, deve estar perguntando a si próprio se foi quem, em tempos, escreveu,
incitando e aconselhando aos artistas dedicarem-se e produzirem trabalhos que
sejam tratados de modo diferente, original, (...), ou se, realmente, ele mesmo
impugnou, à exceção do quadro n.6, todos os outros deste concurso, acusando
especialmente o de n.4, por ter saído da convenção da arte. Como se a verdadeira
arte admitisse convenções!

121
Mas estas e outras heresias não seriam proferidas, se estivessem presentes um
dos dous eméritos artistas – Pedro Américo ou Victor Meirelles14.

Interessante a referência aos dois mestres, que se encontravam licenciados na Europa.


A ideia corrente nos faz relacioná-los a pinturas tradicionais, mas, se pensarmos no concurso
de 1865 e na inventiva composição de Pedro Americo, é possível concordar com o articulista.
Portanto, o estudo de caso nos faz repensar a ligação habitual entre Victor Meirelles, Pedro
Americo e regras compositivas afeitas a padrões neoclássicos.
Para concluir, devemos sublinhar que os episódios do concurso de 1887, ou seja, o
confronto tão grave entre os professores e a chegada do debate, inicialmente interno à
Academia, ao público leitor dos jornais, sinalizam as inquietações pelas quais passava o meio
artístico brasileiro. Constata-se que permaneceu vigente, entre as décadas de 1860 e 1880,
um modelo de concurso focado na produção de Pintura histórica e na exigência de domínio do
desenho, perspectiva, luz, relevo, colorido, proporções anatômicas, expressão da figura,
equilíbrio na composição e fidelidade aos detalhes históricos. Mas as transformações estéticas
e as polêmicas artísticas que marcaram a Europa no correr da segunda metade do século XIX
não podiam deixar incólume o nosso meio que mantinha os olhos voltados para Paris. Assim,
no final da década de 1880, se enfatiza a necessidade de evitar convenções e valoriza-se a
originalidade de propostas e tratamentos diversos, num anseio por artistas libertos das “fórmulas
antigas e convencionais”, conforme a expressão empregada por Zeferino e Bernardelli no
recurso de 1887.

Pedro Americo (1843-1905)


Sócrates Afastando Alcibíades do Vício - 1865
óleo sobre tela -130.5 x 97 cm
Museu D. João VI

Le Chevrel (c.1810-1872)
Sócrates Afastando Alcibíades do Vício - 1865
óleo sobre tela - 98 x 123 cm - Museu D. João VI

122
Belmiro de Almeida Oscar Pereira da Silva
A Flagelação de Cristo 1887 A Flagelação de Cristo – 1887
o s/t – 88 x 115cm o s/t – 117 x 89,5cm
Museu de Arte Sacra da V. O. T. de S. Museu D. João VI – EBA/UFRJ
Francisco da Penitência - RJ

Notas e referências
1
“Pintura de História” ou “Pintura histórica” era o gênero de pintura mais valorizado nas Academias de
Belas Artes, desde o final do século XVIII. Este rótulo abarcava pinturas cujos temas eram retirados da
História da Antiguidade clássica, da Mitologia greco-romana, da História Sagrada (textos bíblicos), das
histórias nacionais (episódios antigos ou contemporâneos), ou da literatura.
2
Neste trabalho, utilizo pesquisas que realizei no Museu D. João VI nos anos de 2006 e 2009. O concurso
de 1887 foi meu objeto de estudos em 2006, quando preparava a comunicação “Belmiro de Almeida,
Oscar Pereira da Silva e o polêmico concurso para Prêmio de Viagem de 1887", apresentada no XVI
Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Em 2009, estudei o concurso de 1865, ao preparar o
capítulo “Uma visita a Sócrates e Alcibíades no Museu Dom João VI (UFRJ)” para o livro “Futuro do
Pretérito – história dos museus e escrita da História” organizado por Francisco Régis Lopes Ramos e
Manoel Luiz Salgado Lima Guimarães.
3
Ata da sessão da Congregação da Academia Imperial das Belas Artes realizada em 9/6/1864, p. 61 –
verso. In: Atas das Sessões da Congregação da Aiba, 1864-1865. Acervo arquivístico do Museu D. João
VI / EBA / UFRJ, notação 6152. [manuscritos].
4
Mafra também fez parte da comissão julgadora do concurso de 1887. Porém, encontramos variações no
registro de seu nome nos documentos, ora aparecendo como Maximiano, ora como Maximiniano.
5
Ata de 9/8/1865, p.74 – verso. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ, notação 6152.
[manuscritos].
6
Documento avulso. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ, n. 3696.
7
Ata de 9/8/1865, p.73, verso – 74. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
8
Ata de 9/8/1865, p.74. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
9
Ata da sessão de 8 de novembro de 1887, p.43 verso. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA
/ UFRJ.
10
Ata da sessão de 8 de novembro de 1887, p.43 verso. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
11
Bellas Artes. In: O Paiz . Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1887, p.1-2. Biblioteca Nacional, Seção
de Periódicos, código PR – SPR 00006 [7].
12
Ata da sessão da congregação em 8 de novembro de 1887 (continuação da sessão iniciada em 7 de
novembro), p.42-verso. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
13
Ata da sessão da congregação em 8 de novembro de 1887 (continuação da sessão iniciada em 7 de
novembro), p. 42-verso. Acervo arquivístico do Museu D. João VI / EBA / UFRJ.
14
ZEUXIS. A Academia das Bellas Artes. In: Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 15 de novembro de
1887, p.1. Biblioteca Nacional, Seção de Periódicos, código PR-SPR 1 (158). O quadro de n.4 era de
autoria de Eduardo de Sá, de acordo com artigo intitulado Bellas Artes, publicado no mesmo jornal.

123
A importância da estampa didática no ensino da Academia Imperial de
Belas Artes do Rio de Janeiro

Cristina A. Rios de Castro Ouchi


Mestre em História da Arte – EBA/UFRJ

Relacionado diretamente com a produção artística brasileira, sobretudo carioca, o


Museu D. João VI/EBA/UFRJ possui um acervo museólogo e arquivístico, documental e
histórico, o qual é fundamental para a compreensão da trajetória das artes no País.
No acervo encontram-se aproximadamente 800 estampas artísticas que estão
separadas em dois grupos distintos. O primeiro grupo, orientado para o ensino de desenho na
Academia Imperial de Belas Artes do século XIX, é composto por estudos de estampas que
representam imagens de esculturas da antiguidade clássica; de estudos elementares de decoração
arquitetônica; de obras dos grandes mestres e de modelo do natural. Já o segundo grupo,
refere-se às gravuras artísticas do século XX, do período da Escola Nacional de Belas Artes1.
A coleção está registrada e organizada em ordem alfabética a partir de nomes dos
gravadores, desenhistas, pintores ou escultores, os quais representam as principais escolas
artísticas do continente europeu: francesa, italiana, holandesa, flamenga, espanhola, alemã e
inglesa. Essas escolas estilísticas europeias possuem particularidades e correlações de grande
relevância. As estampas das escolas flamenga, espanhola, alemã e inglesa são exclusivamente
de retratos clássicos em buril sobre papel, datadas dos séculos XVI e XVII. Já naquelas
oriundas das escolas francesas e italianas, há temáticas e técnicas mais variadas: retratos de
alegorias, gêneros e clássicos (litografia, maneira negra e buril), alegorias (litografia), decoração
(litografia, zinconografia e buril sobre têmpera), histórica (litografia e maneira crayon) e religiosa
(litografia, água-forte, maneira crayon, buril e buril sobre têmpera), do período entre os
séculos XVI e XIX. Já as da escola holandesa são dos séculos XVII e XVIII e constam a
retratística clássica, em buril sobre papel.
Essa variedade de referências estilísticas das estampas foi muito útil para o ensino
artístico acadêmico brasileiro no século XIX, sobretudo no processo inicial de instrução de
desenho ao aluno, em que o desenvolvimento técnico e mental acontecia por meio de exercícios
sequenciais de observação de estampas. O estágio do ensino baseado nos desenhos gravados
era dividido em três partes fundamentais: a fase preliminar, com cópias de estampas de
esculturas da antiguidade clássica, de partes anatômicas até o corpo completo; a fase mediana,
com cópias de estampas de composições dos mestres antigos; e, finalmente, a fase final, com
cópias de estampas de modelos vivos.
A proposta deste artigo é destacar a fase mediana, que exigia do aluno uma dedicação
minuciosa de estudo do desenho, por meio da prática da cópia de pinturas dos grandes
mestres europeus2. Nessa fase a prática da cópia de pinturas tradicionais por meio da estampa

124
era utilizada na formação do aluno como tradução da ideia formal mais próxima à obra original
do artista. O artigo analisa especificamente as estampas de composições religiosas e históricas
dos grandes mestres3.

Temas religiosos no ensino de desenho por meio da cópia de estampas


Entre as reproduções das obras – ou de partes delas – que se encontram no Museu
D. João VI destacam-se as cópias de Rafael Sanzio (1483-1520), as quais relatam momentos
históricos do Antigo Testamento como dois detalhes da Sagrada Família. Essas reproduções
(Figs. 2 e 4), que são fragmentos compositivos da cabeça de São José, foram muito importantes
para o estudo de desenho do aluno na Academia, em relação à compreensão formal de figura
masculina virtuosa e expressiva. Foram gravados em maneira de crayon pelos artistas
franceses Noel-François Bertrand (1785-1852) e Antoine Hubert Levêfre (atuante entre 1804
e 1815).
O primeiro detalhe (Fig. 2) faz parte da pintura La Grand Saint Famille (ca. 1518), em
que os personagens bíblicos são Santa Isabel, São João – ainda jovem e segurando uma
cruz –, dois anjos, a Virgem com o menino Jesus e, finalmente, São José, ao lado direito da
cena, encostado em um pavimento de mármore antigo e observando cuidadosamente a
Virgem (Fig. 1).
Figura 1 – La Grand Saint
Familie
Rafael Sanzio – óleo sobre tela
Acervo do Museu do Louvre

Figura 2 – Estudo de fragmento


compositivo
Noel-François Bertrand – cópia
em maneira de crayon
Acervo do Museu D. João VI

Já o segundo fragmento (Fig. 4), que é muito semelhante ao anterior, foi copiado do
quadro La Saint Familie, au pied du chêne (ca. 1518) (Fig. 3), em que São José foi representado
com a mesma estrutura formal, ou seja, apoiado em uma ruína clássica, e tem o olhar
verticalmente voltado para a Virgem com o menino Jesus. Assim, ao relacionar as estampas
com as pinturas, é possível notar a semelhança estrutural da postura e da direção do olhar
brando de ambas as figuras.
Como a Academia tinha a pretensão pedagógica de instruir um desenho preciso,
refinado e minucioso, baseado nos estilos diferenciados europeus, chegou a adquirir, além

125
das reproduções de quadros renascentistas, cópias de estampas de pinturas barrocas. A
famosa cena de David com a cabeça cortada de Golias (figura 5), do pintor italiano Guido Reni
(1575-1642), é uma delas. Ao relacionar a litografia (figura 6) com a pintura original, percebem-
se algumas diferenças nas soluções estruturais dadas pelos artistas. O pintor resolveu a
composição pictórica no primeiro plano, com linhas horizontais e paralelas, simulando pouca
profundidade. Já a imagem gravada invertida, no século XIX, por Bernard Romain Julien
(1802-1871), induz profundidade, sugerindo planos diferentes que causam uma sensação
equilibrada em todo conjunto. Aparentemente, Julien quis elaborar uma cópia de pintura
religiosa em que o aluno pudesse aplicar todos os requisitos técnicos de desenho, para os
quais teria sido treinado até então.

Figura 3 – La Saint Familie


Rafael Sanzio – óleo sobre tela
Acervo do Museu do Prado

Figura 4 – Estudo de fragmento


compositivo
Antoine Hubert Levêfre – cópia em
maneira de crayon
Acervo do Museu D. João VI

Figura 5 – David e Golias


Guido Reni – óleo sobre tela
Acervo do Museu do Louvre

Figura 6 – Estudo de cena religiosa


Bernard Romain Julien – cópia em
litografia
Coleção Grand étude aux deux
crayon n.52
Acervo do Museu D. João VI

Artistas de grande importância nos oitocentos, como Girodet-Trioson (1767-1824) e


Henri-Frédéric Schopin (1804-1880)4, se destacaram também com pinturas religiosas. O
primeiro ganhou o Prêmio de Roma em 1789 e foi estudar por cincos anos na Itália. Ao voltar
para França em 1795, passou algum tempo retratando membros da família de Napoleão e,
somente no Salão de1806, com o quadro Cena do Dilúvio (Fig. 7), conquistou definitiva
atenção dos parisienses. Observando a pintura, percebe-se que a composição retrata, de
uma maneira dramática e grandiosa, o desespero de uma família tentando se salvar do dilúvio
em uma árvore. No entanto, cada estampa que se encontra no Museu apresenta um fragmento
compositivo da cena, como uma cabeça feminina (Fig. 10), duas figuras masculinas (Fig. 8) e

126
três figuras que representam uma mulher (figura 9), um homem e uma criança. Em particular,
cada personagem foi representado com idades, massas coporais e expressões diferentes. E
estruturalmente as figuras estão posicionadas em linhas diagonais e paralelas, as quais
equilibram toda a cena acrobática. Provavelmente, copiar esse tema trágico, em que as
figuras são exageradamente representadas com gestos agressivos e pavorosos, foi
profundamente válido para os alunos da Academia Imperial, pois, ao receberem encomendas
de cenas históricas dramáticas desse porte, após o aprendizado já teriam uma ideia de como
resolver várias questões técnicas e estruturais.
Figura 7 – Cena do Dilúvio
Girodet-Trioson – óleo sobre tela
Acervo do Museu do Louvre

Figura 8 – Estudo de fragmento


compositivo
Alexis- François Girard – cópia em
maneira de crayon
Desenho de Edme-Gratien Parizeau
Acervo do Museu D. João VI

Figura 9 – Estudo de fragmento


compositivo
Alexis- François Girard – cópia
em maneira de crayon
Desenho de Edme-Gratien
Parizeau
Acervo do Museu D. João VI

Figura 10 – Estudo de fragmento compositivo


Henri Guillaume Chatillon – cópia em maneira crayon
Desenho Francic Gédéon Reverdin
Acervo do Museu D. João VI

Outra estampa de grande relevância que se encontra no acervo é a cópia de Julien


sobre a obra do pintor francês Schopin, que narra o julgamento de Salomão (Fig. 11) sobre
duas mulheres que afirmavam ser a mãe da mesma criança. No Museu, o detalhe reproduzido
mostra exatamente o momento mais tenso da história, com a mãe protegendo seu filho de
maneira desesperada (Fig. 12). Examinando o desenho gravado, é perceptível a atenção
dada pelo gravador para o vestido da mulher que ocupa quase a toda a prancha. O

127
drapejamento, bem definido por luzes e sombras, causa um ritmo agressivo bem propício à
cena relatada5. Há cópias em desenho desta estampa (Figs. 13 e 14), feitas por alunos da
Academia Imperial em carvão sobre papel na década de 1860. Os autores são F. L. Pinna
(atuante na 2ª metade do século XIX) e Pereira da Silva Manuel Poluceno (atuante na 2ª
metade do século XIX).

Figura 11 – O julgamento de Salomão


Henri-Frédéric Schopin – óleo sobre tela
Coleção particular

Figura 12 – Estudo de fragmento


compositivo
Bernard Romain Julien – cópia em litografia
Coleção Grand étude aux deux crayon n.29
Acervo do Museu D. João VI

Figura 13 – Estudo de fragmento compositivo


Pereira da Silva Manuel Poluceno – cópia
em carvão/giz/papel
Acervo do Museu D. João VI

Figura 14 – Estuto de fragmento compositivo


F. L. Pianna - cópia em carvão/papel
Acervo do Museu D. João VI

Temas históricos no ensino de desenho por meio da cópia de estampas


Além da temática religiosa, outros temas muito utilizados na Academia para o
aprendizado de desenho foram os associados à mitologia greco-romana e aos romances
orientalistas e literários. Assim, entre as pinturas que foram elaboradas e narraram histórias
monumentais da mitologia no século XIX, se destacam no acervo algumas cópias em litografia
do quadro A Intervenção das Sabinas (Fig.15), do pintor Jacques-Louis David (1748-1825).
Essa batalha lendária romana, do século VIII aC., foi reproduzida por vários artistas nos
oitocentos, sobretudo pelo gravador como Nöel François Bertrand (1785-1852). Uma das
estampas (Fig.16) representa Hersília, personagem central e apaziguadora do conflito entre

128
romanos e sabinos. Já outra estampa (Fig.17) representa
duas cabeças de crianças (filhos de Hersília).
Provavelmente, a relevância desses detalhes
compositivos mitológicos para o ensino de desenho está
no estudo voltado para a sensualidade da figura feminina
Figura 15 – A intervenção das Sabinas
Jacques-Louis David – óleo sobre tela clássica e no estudo expressivo gestual agressivo e de
Acervo do Museu do Louvre pavor, sobretudo de crianças.

Figura 16 – Estudo de fragmento


compositivo
Noel-François Bernard – cópia em
maneira crayon
Desenho de Eugène Bourgeois
Acervo do Museu D. João VI

Figura 17 – Estudo de fragmento compositivo


Noel-François Bernard – cópia em maneira de crayon
Desenho de Eugène Bourgeois
Acervo do Museu D. João VI

Entre as estampas adquiridas pela Academia, as cópias dos romances pictóricos


orientalistas e literários eram, em geral, marcadas por episódios de referências heroicas,
dramáticas ou violentas. Assim, há no acervo estampas que demonstram uma beleza
deslumbrante da cultura oriental em fragmentos compositivos com figuras humanas enfeitadas
com objetos exóticos como joias, bordados, tecidos, armas e animais. Tais estampas foram
elaboradas a partir de pinturas de grandes mestres como Girodet-Trioson (1767-1824), as
quais representam perfeitamente o fascínio por um mundo totalmente desconhecido, que
surgiu entre os artistas no decorrer do século XIX.
Entre os fragmentos compositivos gravados, selecionados para análise, está A Revolta
numa Mesquita do Cairo (Fig.18) que foi encomendada a Girodet por Napoleão Bonarparte,
para comemorar suas conquistas militares no Egito no final do século XVIII. A pintura retrata um
conflito confuso, brutal e tenso de uma revolta egípcia contra os franceses. Assim, observando
atentamente a cena, percebe-se que duas figuras masculinas se destacam entre os
personagens. Os detalhes dessas figuras estão no acervo (Figs. 19 e 20) e fornecem, de uma
maneira admirável, recursos técnicos e formais de fisionomia, roupagens e acessórios típicos
dos costumes tradicionais do Oriente. Além disso, há um importante estudo de musculatura, de
uma figura masculina com características de um egípcio rude, que luta contra um soldado napoleônico
para defender seu líder, caído em seus braços. São perceptíveis fortes linhas diagonais e a
transmissão de uma emoção elevada nas figuras características típicas de uma cena romântica.

129
Figura 18 – A revota numa Mesquita do Cairo
Girodet- Trioson – óleo sobre tela
Acervo do Museu de Versalhes

Figura 19 – Estudo de fragmento compositivo


Alexis François Girard – cópia em maneira de Figura 20 – Estudo de fragmento compositivo
crayon Alexis François Girard – cópia em maneira
Desenho de Edme-Gratien Parizeau de crayon
Acervo do Museu D. João VI Desenho de Francis Gédéon Reverdin
Acervo do Museu D. João VI

Considerações finais
Utilizadas no estágio inicial do ensino do desenho no Brasil do século XIX, as
estampas didáticas europeias tiveram grande importância na Academia Imperial de Belas
Artes. Nas três etapas de seu uso, a fase mediana envolvia o desenho com base nas estampas
de composições de mestres antigos da arte europeia.
As evidências dessa importância podem ser constatadas por meio da análise do
acervo do Museu D. João VI, que conta com um significativo conjunto dessas estampas, além
de desenhos elaborados, a partir das mesmas, pelos alunos da Academia.

Notas e referências:
1
Esse grupo de estampas está relacionado diretamente com as gerações de professores e alunos do
século XX: Raimundo Cela, Oswaldo Goeld, Adir Botelho, Kazu Iha e Marcos Varela.
2
Entre as cópias de estampas de pintores renomadas que se encontram no acervo do Museu D. João
VI estão: Rafael Sanzio (1483-1520), Guido Reni (1575-1642), Pierre Mignard (1612-1695), Jacques-
Louis David (1748-1825), Annes-Louis Girodet de Roussy–Trioson (1767-1824), François Gérard
(1770-1837), Émile-Jean-Horace Vernet (1789-1863), Raymond Auguste Quinsac Monvoisin (1790-
1870), Joseph-Désiré Court (1797-1865), Frederic Henri Shopin (1804-1880), Charles Louis Bazin
(1802-1859), Eugène Devéria (1808 -1865), Charles Landelle (1812-1908), Charles-Louis Lucien
Müller (1815-1892), Joseph Constant Brochart (1816-1899).
3
No acervo do Museu D. João VI, há um número relevante de estampas de composições de grandes
mestres sobre assuntos religiosos, históricos, heróicos, mitológicos, litrários, orientalistas, retratísticos
e alegóricos, principalmente da escola francesa e italiana.
4
Schopin foi aluno de Antoine-Jean Gros (1771- 1835), que foi discípulo de Jacques-Louis David
(1748-1825).
5
Essa estampa faz parte do curso de Bernard Roamain Julien, que se chama “Grand étude aux deux
crayon n.29”.

130
“As circunstâncias peculiares da terra”: o modelo-vivo nas belas artes
no Brasil oitocentista1

Daryle Williams
Department of History, University of Maryland

Within a relatively short period, following their arrival in Rio de Janeiro, the members
of the French Artistic Mission of 1816 accomplished several notable interventions in the artistic
life of Brazil, particularly in the organization of several grand civic ceremonies, including the
Acclamation of D. João and the royal wedding of Prince Pedro to the Austrian Princess
Leopoldina, as well as the completion of a number of portraits of the royal family and other
notables of the displaced Bragança Court2. Other early successes of the French Artistic Mission
include the consolidation of neoclassicism as the preeminent style of public architecture and
urban improvements in Rio de Janeiro, a growing city that served as the seat of the Luso-
Brazilian Co-Kingdom and, after 1822, the independent Brazilian empire3. Nevertheless, the
French academics were initially frustrated in fulfilling a royal assignment to systematize,
modernize, and institutionalize a new form of arts education in Portuguese America. João VI’s
general indifference to the academy, particularly after the death of its founding director Joaquim
Lebreton (1760-1819), in combination with intense rivalries between French and Portuguese
artists and their patrons, contributed to a paralysis of the royal arts school authorized by D.
João in the carta-régia of August 12, 1816. Only after 1826, under the reign of D. Pedro I, did
the royal academy begin to function on a regular basis in the scaled-down custom-built structure
designed by the French architect Auguste Henri Victor Grandjean de Montigny (1776-1850).
The early institutional histories of the Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), written
by Jean-Baptiste Debret, Henrique José da Silva, Félix-Émile Taunay, and Manoel de Araújo
Porto-alegre, situate the inconsistent institutionalization of neoclassical arts instruction in a cultural
landscape marked by the political, aesthetic, and pedagogical rivalries between the French
and Portuguese factions who formed the first two generations of professors. Later chroniclers,
including by Gonzaga-Duque, Afonso de E. de Taunay, and de los Rios, point to the ongoing
detachment of the Brazilian public, steeped in Luso-Catholic baroque arts traditions, from the
newcomers. Curiously, neither the classic nor the modern histories made an explicit case for
the role of Brazilian slave society in the difficult institutionalization of fine arts education in
nineteenth-century Brazil. From Luiz Edmundo to the present, historians and memorialists
return frequently to Debret, among others, to illustrate Brazilian slave society, but few scholars
— with some notable exceptions like Rodrigo Naves and Valéria Lima — turn to Debret to
analyze and interpret Brazilian slave society4. Among art historians, the complex questions that
concern how other academics “modeled” their aesthetic sensibilities, pedagogical objectives,
and artistic productions to the actual circumstances of arts production in a tropical American

131
context that was at the center of the Atlantic world made by enslavement, have gone largely
unasked. While it is known that Debret and his colleagues took a keen interest and a certain
inspiration in the unfamiliar “customs” and “types” to be found in Portuguese America — and
that numerous foundational academics from the Taunays to Porto-alegre integrated slaves into
their domestic, economic, and artistic lives — we still know relatively little about the theorization
and the praxis of fine arts in a city whose defining characteristic in the 1820s and 1830s was the
explosivesuccess of theslaveholdingand slavetrafficking5.
The paper asks how the members of the French Artistic Mission and their successors
in the AIBA came to teach fine arts in the milieu of Brazilian slave society. The production of a
pedagogical aesthetic of the human form in an Atlantic slave society is the primary concern of
this paper. More specifically, I consider how the live model—a pillar of the neoclassical arts
education tradition—was a troublesome, but illuminating feature of the early decades of fine arts
instruction in slavocratic Brazil. The research, based largely in the AIBA administrative and
payroll records, divided between the Brazilian National Archive and the archive of the Museu
D. João VI, as well as the Livros de Atas of the Congregação dos Professores, also archived
at the Museu D. João VI, examines the establishment of a curriculum of the live model [aula do
modelo-vivo], from the first recruitment of individuals deemed suitable and willing to pose nude
to the regularization of a system of live model instruction that would endure until the 1890s.
My central argument is that the routinization of arts instruction based upon the live
model was a product of rather explicit adaptations to certain “circunstanciais peculiares da
terra” that initially frustrated the professors, but in time, brought the teachers to see beauty in
bodies largely unfamiliar to European training. In this adaptation, the enslaved black body
became suitable—episodically—for live modeling. Black models were a small minority of those
employed by the Academy, especially after the late 1850s. Nevertheless, black men and
women remain a documented part of fine arts instruction from the 1830s onwards. Given their
association with the lack of beauty of the slave body and slave labor (and by the late nineteenth
century, racial degeneracy), these black models and their blackness, I argue, were always
subject to pressures of suspicion and erasure. However, a close examination of the sources left
to us by academics illuminates a hidden history of beauty and its pedagogy shaped by a
pragmatic, sometimes affinitive, search for the idealized elements of the human form in the
bodies of laboring men and women, largely black, to be found in nineteenth-century Rio. The
sources illuminate how the recruitment of live models was shaped by the market economy of an
American society indelibly marked by the massive enslavement of Africans and their gradual,
fractured integration into a post-emancipation market economy. Finally, they show how the
cultural historian might understand alternative histories of blackness in the nineteenth century
that locate beauty within and without Eurocentric and white neoclassical academic tradition.
As they worked to institutionalize a fine arts curriculum that included instruction from live
models, the Mission members who actively took up the institutionalization of a royal arts school

132
drew upon the aesthetic repertoire of fine arts instruction imported from Europe. This repertoire
included the live model, who had served as part of arts production since the Renaissance and
a formal part of royal art academies since the mid-seventeenth century, as well as anatomy
manuals and various casts and moldings of the human form, taken from exemplary works of
Greco-Roman sculpture, used in arts education. Nevertheless, the academics had to grapple
with the limited availability of the standard instructional tools of a European curriculum. A legacy
of colonial restrictions on the production and circulation of printed materials in Portuguese
America, in combination with the distance and expense of imports from Europe, rendered
scarce the instructional materials deemed suitable by the French artists for the new academy.
National rivalry and ethnic bias played their roles as well, as the Frenchmen took little inspiration
in the pedagogical traditions of Luso-Fluminense arts, including the precedent of live model
instruction first instituted in Lisbon in 1780 and brought to Brazil by Manoel de Dias Oliveira’s
(1764-1837, O Brasilense) in 1800. Rather, the Lebreton Colony built its teaching collection
around the works of art brought by the Court in its exodus from Lisbon, as well as a modest
transatlantic trade in engravings, prints, illustrated books, and copies purchased by the director
during his three difficult years in Rio.
The early history of live models within the academy is largely undocumented, but the
catalog for the 1830 exhibition, which appeared in Debret’s monumental Voyage au Brésil
(1834-1839), indicates that the first generation of Academy students worked from live models as
well as castings of famous works of classical sculpture, such as Laocoön. The 1831 draft for the
new estatutos makes mention of the live models, among other instructional tools, but Henrique
José da Silva, Lebreton’s successor, found it difficult to muster the support of his colleagues and
the Brazilian authorities necessary to establish a new instructional regime that included live
models. Formal authorization would only come in 1833, seventeen years after the French
Mission first arrived in Rio.
Perhaps some of the difficulties in the formal regularization of a live model class stemmed
from the late-1830 municipal regulation that established a penalty of 6$000 or three days’
imprisonment for the exhibition of pictures of obscene art6. In a political environment in which an
artist working from a live model might run afoul of the police, a lack of enthusiasm for the drawn
nude makes a certain sense. But, surely, the problem of the live model was not merely a
problem within the artistic circle. That is, few individuals in Rio society appeared willing to heed
the Academy’s search for models. In fact, if we think of the images produced within the ambit of
academic arts in the 1820s that give prominence to the nude body, we confront a visual
landscape whose key features include many versions of the emaciated slaves on sale at
Valongo and the raw flesh of black people at the whipping post, but few disrobed Venuses and
emperors. That is, the early academics appear to have been drawn to the disrobed body at its
most vulnerable and humiliated. Under these conditions, it is less than surprising to encounter
a difficult relationship between the Academy and the potential live model.

133
Under the instructions of the minister of the empire, signed 19 August 1833, the AIBA
faculty secured legislative approval and an annual budget to establish a live model class. But,
the recruitment of individuals willing to serve as live models remained a major concern, as
fluminense society continued to yield few individuals willing to be paid a wage in exchange for
the service of posing nude before a classroom of students. So, the professors initially took it
upon themselves to locate prospective candidates. In October 1833, Francisco Ovidio, professor
of applied mechanics, reported to his colleagues that he had identified a promising candidate7.
The unnamed individual was later found to have left the country (suggestive that the subject
was a freeborn foreigner). In the meantime, the Academy doorman identified another individual,
who turned out to be too ill to take the position.
The minutes of a faculty meeting held in mid-October 1833 summarized an early
recognition by the professors, the majority of whom were foreign-born and foreign-trained, that
the introduction of live models to the Brazilian fine arts academy was not going to be easy. The
recording secretary summarized the discussion that concluded “foram de novo recomendadas
as diligencias a respeito do modelo, o qual, pelas circunstanciais peculiares da terra, torna-se
difícil de achar”8. These local circumstances, I, went well beyond matters of recruitment strategies
and classroom space, and hit upon the jarring disconnection between Eurocentric notions of
beauty and the American slave society.
Throughout the mid-1830s, the Academy professors continued to cast about in search
of suitable live models. Those models that were hired on a short-term basis were often described
in less-than-favorable terms; their selection was, more-often-than-not, a matter of compromise
and expediency. For example, a candidate who presented himself in March 1834 had to be
rejected “em razão de ser não só idoso, mas estragado.” After adverts were placed in the Rio
dailies in April of the same year, the only candidate deemed acceptable was described as “a
pesar de ser medíocre na partes superiores do corpo que assim mesmo são de muito melhores
do que o resto.” This unfortunate soul likely worked in the inaugural class, held 2 May 1834.
The following year, the model was dismissed for reasons of “sua idade e estado de magreza
já é quase incapaz deste exercício.” This individual was replaced in July 1835 by “um homem
ainda jovem,” found to possess qualities such as “a parte inferior do corpo boa; a superior peito
e ombros, de forma mole e feminina”9. The term of employment must have been short, as there
are no records of further salary payments.
Even when a suitable model could be located, the working conditions were compromised
by the direct and unfettered circulation between the AIBA building, located near the Largo do
Roçio, and the adjacent Tipografia Nacional. The supposedly silent work of fine arts instruction
had to compete with the noisy work of printing presses. If the professors’ complaints are to be
taken literally, the nude models were under the gaze of not only teacher and student but also an
unruly class of typesetters10.

134
Equally troublesome was the scarcity of suitable non-live models for the study of the
human form. At the close of classes in late 1835, Taunay observed that the lack of availability of
classic statuary denied the students of art and architecture the appropriate inspirational examples
of the “mais fecundo princípios das artes de imitação, a harmonia das linhas.” By the opening
session of 1837, Taunay proposed that the students study the works of the Frenchman François
Tortebat (1635-1709) who had authored a number of seminal works in anatomy intended for
arts education, as well as essays by Charles Le Brun on the physiology of the passions.
Availability, again, remained a problem, with Taunay lamenting the high costs of reproducing a
sufficient number of Tortebat’s work for instruction. His solution—a sensible adaptation to arts
instruction on the periphery—was to exhibit some of the illustrations, making indications as to the
corresponding text and publishing his own fifty-page instructional text, Epítome de Anatomia
relativa às Bellas Artes11.
The publication of Taunay’s Epítome corresponded with an explicit reappraisal of the
ideal conditions for live model instruction. In the same session that Taunay, French-born but the
first Academy director whose artistic upbringing was largely Brazilian including residence at his
famous father’s slaveholding household, proposed to introduce Tortebat into the curriculum, he
made note that live models must be found. Two months later, at the March 1837 faculty meeting,
Taunay admonished his colleagues not to neglect the necessity of finding a man suitable to pose
in the nude, “ainda que fosse um preto, visto haver, entre estes indivíduos dotados de formas
artísticas”12. As a matter of practicality and of substance, Taunay opened up the possibility that
artistic form could exist in the blackness that surrounded the Academy.
The immediate reaction to Taunay’s proposal went unrecorded, but one of the Academy
professors must have heeded the director’s admonishment, as an unidentified black man was
located within days. The man failed to appear, but the presence of black models in the instruction
of the human form and the physiology of the passions had become a possibility, suited to the
peculiarities of Brazilian slave society. Might, then, a black man have been the “homem robusto
que passa de meia-idade” who served as the model for Gaius Marius seated at the ruins of
Carthage, the compulsory theme for the September 1837 concurso for substitute professor of
historical painting and design, which, according to Alfredo Galvão, was the first competition to
use a live model?13 Certainly, by the end of the year, a slave owned by painter Zepherino
Ferrez, described as “jovem e de forma elegante,” was employed in the engraving class14. Or,
to put it differently, for the academic year ending in 1837, a preto served as the template for
numerous students’ works of the human form.
Over the next two years, blacks (pretos and pardos) remained part of a regular, if
unstable, rotation of live models hired by the Academy. The names and occupations of these
early black male models and their non-black counterparts generally went unrecorded (at least
in the surviving documentation), perhaps because the recruitment included some informal
arrangements between slaveholding professors and their bondsmen. However, these early

135
rehearsals in the recruitment of models illuminate how the Academy was drawn into a market of
aesthetics that found some equality between the white and black body. Moreover, in its recruitment
of models, the Academy entered into a labor market largely determined by the prevailing
wages of black people. The competition for the chair in elementary drawing, held in 1840,
offers an exceptionally interesting perspective of the time, as the two models recruited for the
concurso— a young professor of gymnastics, presumably French, and a water carrier, almost
certainly black, recruited by the Academy doorman at the Chafariz da Carioca—were paid
virtually the same wage, about $3 per day. The descriptions of the physical qualities of these
two models — the gymnastics professor possessing “formas sem comparação mais belas, e
haver mesmo um sentimento liberal no oferecimento que ele faz” and the water carrier, described
as “magro e tem as extremidades inferiores defeituosos” — suggest a hierarchy (real or
purported) of beauty, but the modeling wages were apparently set by the work of blacks wages
of black workers to be found around the Chafariz da Carioca15.
The late 1830s and 1840s, then, serve as a transitional period, when an adaptation to
the “peculiar circumstances of the land” allowed the Academy to understand the live model as
the foreigner of “liberal sentiment” and the laboring, physically-broken black man. Most often
selected out of desperation, and often described as defective in one way or another, these
models were used as the basic template for the male human form as a generic (if idealized) type
and not merely as a specific, ethnically- or status-marked type, of the African or the slave, as
was the case for Joseph Le Nègre, known for his work for Théodore Gericualt in the monumental
Raft of the Medusa (1819).
What relationship, we ask, might this shift have with the closure of the slave market at
Valongo and the displacement of the slave trade towards clandestine ports to the north and
south of Guanabara Bay? Was the Academy, in its own peculiar way, negotiating a new
territory for black people that curtailed the presence, at least in Rio, of the most desperate of all
black people, the preto novo just disembarked from the hold of the slave ship? Additional
research may shed some light onthis intriguing supposition. What becomes clearer to the
historian is that the image of the water carriers and other manual tradesmen that so commonly
appear in the illustrated plates of nineteenth-century viajantes and twentieth-century history
books may require new scrutiny. That is, these images of laboring men’s bodies were not
merely the casual impressions of the foreigner observed in situ nor ethnographic typologies of
others, but rather (sometimes) part of a visual tradition that included careful, repetitive study of
classic models of the human form. This proposition might be especially germane to the
reassessment of the early education of the rising masters of Brazilian academic art —Porto-
alegre (1806-1879), Francisco Manoel Chaves Pinheiro (1822-1884), Vitor Meireles (1832-
1903), and Pedro Americo (1843-1905), among others— active in the Academy precisely at
the moment when the live model curriculum was being institutionalized around a series of
human forms that included the black male body.

136
Returning to the history of live model instruction, we see that the practice earned
permanent regulatory standards in August 1841, and went through various alterations throughout
the remainder of the empire. In the new standards approved in 1841, the professor remained
master of the live model classroom, where students were expected to follow their assigned
tasks without speaking directly to the models. The classroom was strictly regulated by time,
throughout the duration of the class (two hours, from eleven in the morning to one in the
afternoon) and during the intervals the models were allowed (two fifteen-minute breaks, measured
by the hourglass)16. The regulations, which were roughly equivalent to rules in place in the
academies of Paris and London, insisted on new recruitment strategies in the employment of
models17. In a shift from the haphazard practice of procuring what amounted to casual day-
laborers, the Academy began to hire models on yearly contracts. The first model hired under
the new system, Francisco José de Souza Braga, was found to posses “robusteza, belo
desenvolvimento dos músculos superiores do tronco e as articulações livres e sãs.” On the
payroll from April 1842 until 1846, Souza Braga was paid $25 per month, equal to the monthly
wages of a substitute professor but less than the wages paid to the doorman. Souza Braga’s
successor, Manuel Pereira da Silveira, also hired on an annual contract, increased his wages
by doing various housekeeping and maintenance duties [“pelo serviço de lavagem e limpeza
que fez no Edifício para a Exposição Pública”] in the Academy (suggesting that the live model
continued to be associated with the manual laborer.) Silveira would remain on the payroll as
the exclusive live model until 1858, and then as a weekly contractual employee until 1860.
Souza Braga and Silveira differ from the first live model hires in several respects. Aside
from the contractual obligations (and guarantees) of an annual salary, Souza Braga was
employed at a time when the Academy had undertaken a specific search for white male models.
On 20 May 1843, the Academy placed on advertisement in the Jornal do Commercio that
announced an opening for “um homem branco de idade de 20 a 35 anos, que queira servir
como modelo.” Just a few years prior, Taunay had enthused about the possibilities of finding
beauty among black men. Whether the search for a white male — frustrated by the enduring
lack of interest among Rio’s free white population — reflected some form of shift in aesthetics, or
rather it reflected the still haphazard way in which models could actually be recruited, the
explicit color criteria in a widely-circulated publication, rather than internal documentation of the
Academy, does suggest that the Academy professors were most interested in the establishment
of a white model of beauty even if they were willing to entertain the possibility of black beauty.
With just two models on the payroll between 1841 and 1858, the instructional possibilities
of the live model class were clearly limited in variety and, if we are to believe Porto-alegre, the
director who succeeded Taunay, in quality as well. In making his case for improvement in live
model instruction, the obstreperous artist, who generally had the ear of the Emperor, exhorted,
“para esta aula não deve haver economia, por que ela é tudo, e indispensável ao ensino e
progresso de todas as artes superiores”18.

137
Porto-alegre’s successor, Thomaz Gomes dos Santos, came to a similar conclusion
about reform, citing the general insufficiencies of the length of the live model classes and the
limitations of contracting a single model. His reforms included the expansion of the number of
days and hours devoted to live model instruction, and, most significantly, the short-term contract.
In making his case for the latter, Santos, wrote to the minister of the empire, “os indivíduos que
servem de modelo vivo, são pagos semanalmente segundo o que eles valem, estudando
assim os alunos modelos de diferentes constituições físicas, de raças diversas, e de ambos os
sexos”19. The reforms were quickly adopted, yielding the first female live model — Ana Maria
da Silva - who posed from 10 May 1858 (five years prior to the introduction of the female model
in the French École de Beaux-Arts). The professors reported to have found Silva to possess
“as formas sofrivelmente belas, boas proporções, e um belo colorido”20. Another female model,
named Massia Ognisante, followed in June 1858.
Santos’ reforms produced a marked shift in the number of models in the Academy,
which ranged from three or four per year in the early 1860s, to annual figures as high as
twenty-five in 1880. The 350 male and female models hired between 1858 and 1892 fulfilled
Santos’ vision of a live model curriculum that drew upon a wide variety of physical forms,
genders, and ethnic types.
Nevertheless, the professors continued to complain about the low quality of the live
models presenting themselves at the Academy doors over the later years of the Second Reign.
On one occasion, the popular press joined in on the complaints, as an author writing under a
pseudonym took to the Rio statistical paper, O Mosquito, to lament “entre os homens que
encontram para modelos não há um só que sirva para o estudo da musculatura, que tenha
proporções, em fim que não seja um Quasimodo de fazer fugir. Tanto vale copiar um anão ou
um corcunda”21.
Biographical information on these models has been extremely difficult to locate, but
paylogs and payment stubs, which the model had to countersign, suggest that many of the
models, especially by the mid-1870s, were European immigrants. This is especially evident
among Italian immigrants hired in the 1880s, who signed their pay stubs with names such as
Francesco, Matteo, and Nicolà, even when the secretary recorded their names Francisco,
Mateus, and Nicolao. But, if we can discern, with a certain amount of imprecision, the national
origins of some of the models hired to pose for the Academy classes, it is nearly impossible to
determine the proportion of models of African-descent, be they born in Brazil or elsewhere.
Neither color nor place of birth were recorded in the Academy pay logs, and without some
obvious nominal indicator such as an African nation, the ethnic identity of the black models hired
after the reforms of 1858 is extremely difficult to determine.
What is undoubtedly clear — a point to be made about the academic fine arts writ large
in nineteenth-century Brazil — is that the live models worked with and among people of color,
free and enslaved. The wages of the live models were determined by a labor market that was

138
dominated by black labor. Both of these assertions are especially evident throughout the
1860s, when africanos livres, pretos de ganho, and serventes appear throughout the Academy’s
administrative and financial registers. The Academy doormen of the 1860s and 1870s, João da
Costa, like his predecessor in the Victorino Pinto de Sampaio (who served from 1826 to 1862),
played a crucial role in administering the presence of black servant laborers and their workaday
contact with a wide range of day, contract, and salaried workers who came through the
Academy on a daily basis. The last confirmed entry for a rented servente is made in 1878,
several years before the passage of the Law of Free Womb and the concomitant spike in the
cost of urban slaveholding, reinforcing the hypothesis that labor relations and wages of free
and slave labor were coequal in the Imperial Academy from its origins until the final decade of
the empire.
In coming to a conclusion, we might consider the two best-known works of Brazilian
academic art to depict the live model — Descanso do Modelo (1882) and O Importuno (1898)
by José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899). Most of us know Almeida Júnior as a pensioner
and painter of rustic figures and popular customs. However, it is important to remember that
prior to his long residence in Paris, Almeida Junior spent his formative years in the AIBA, which
he entered in 1869 to study under Vítor Meireles. While at the academy, Almeida Junior
received prizes for his studies of live models, among other subjects. Although a certain amount
of attention has been paid to Almeida Junior’s choice of model for O Derrubador Brasileiro, we
need to keep in mind that he also knew live models hired by the academy.
In the Salon of 1884, the former AIBA student exhibited Descanso do Modelo, which
also had been completed in Paris. The work, like its later echo, O Importuno, depicts a quiet,
intimate moment between painter and female model. Both canvases capture, in an idealized
way, the typological relationship between the clothed white male painter and the disrobed white
female model. In the earlier work, the model, whose bare back is to the viewer, sits at the piano
to entertain the fully-dressed painter in his well-appointed studio. In the later work, the female
model, again in a state of semi-undress, coquettishly hides behind the easel as the painter, with
brush in hand, lifts aside a drape to attend to an unexpected visitor who has come to call at the
studio door.
Both works are set not within the Academy, but rather within an artist’s private studio. In
both works, the painter is an unsupervised adult of some apparent stature. He seems distant
from the servile, dependent adolescent of the Imperial Academy classes. The artist has a direct,
intimate relationship with the model, whose nudity is celebrated, in the case of Descanso, or a
source of coquettish shame, in the case of O Importuno. These works seem to fit well the
typology of the female model in late nineteenth-century France22. However, these two may be
rather poor representations of the actual practice of live model instruction in the Brazilian
academy tradition, as both erase not only the long history of male live models, but also the labor
situation of a slave society that conditioned the institutionalization live model instruction.

139
That is, these paintings consolidate a kind of visual erasure of a longer, colored,
history of live modeling that Brazilian art historians have adopted in their studies of nineteenth-
century arts. Such images, moreover, help reinforce the image, suggested in various works by
historians, that the fine arts were in the service of whitening, the most notorious example being
Modesto Brocos’ oft-reproduced, but still poorly understood Redenção de Cã (1895). But,
given what we know to be the cultural milieu of live models in Brazilian academic fine arts, and
given what we may be able to infer from the documentations of the studies of art students and
the employment of their models, we might wish to see a more complex and nuanced relationship
between the production of fine art and the social and racial diversity of Brazilian society as well
as the diverse social and racial composition of Brazilian fine arts. What else might be going on
in the relationship between the artist and model, and what, in turn, do those relationships tells us
about cultural production in Brazil and about Brazilian identity? What, then, does this say about
this diversity, and how much must we rethink the fine arts as illustrations of Brazilian life and as
historical sources?
Between 1937 and 1956, the National School of Fine Arts maintained a detailed
register of all live models. The log included full name, residence, age, gender, date of first
service, color, and a photo. Unfortunately, no such record exists for the nineteenth century.
However, the records of the Vargas era, a period in which the academic arts and its practitioners
grew increasingly conservative in the face of the dynamic modernist insurgency, tell us that
sixteen of the 42 models on the payroll — overwhelmingly females in their 20s and 30s — were
identified (or identified themselves?) as morena, parda, or preta. It would, of course, be
fallacious to draw too many inferences about nineteenth-century practices from mid-twentieth
century records. However, these unusual logbooks are suggestive of the long arc of black
people as live models, from the unidentified male water carriers of the 1830s to these women of
color of the 1930s. And in looking at this arc, I argue, we are asked to rethink what the seeming
whiteness and “whitening” of Brazilian fine arts actually means, as well as question what a focus
on blackness might do to a rethinking of the broad tradition of academic arts in the nineteenth-
century Atlantic.

Notas e referências
1
Revisão do inglês por Jan Onoszko.
2
The classic histories of the French Artistic Mission include Afonso de E. Taunay’s, A Missão Artística de
1816. (Brasília: Universidade de Brasília, [1912] 1983) and Adolofo Morales de los Rios’ Grandjean de
Montigny e a evolução da arte brasileira. (Rio: A Noite, 1941). More recent perspectives are to be found
in Julio Bandeira, Pedro Xéxeo, and Roberto Conduru, A Missão Francesa no Brasil. (Rio de Janeiro:
GMT, 2004).
3
Gustavo Rocha-Peixoto, Reflexos das luzes na Terra do Sol: Sobre a teoria da arquitetura no Brasil da
independência. (Pro Editores, 2001).
4
See Rodrigo Naves’ essay on Debret in his A forma difícil: ensaios sobre arte brasileira. Second Edition.
(São Paulo: Ática, 1998) and Valéria Lima, J.-B. Debret, historiador e pintor: a Viagem Pitoresca e
Histórico ao Brasil (1816-1839) (Campinas: Editora da UNICAMP, 2007). The question of academics and

140
slavery is treated in Schwarcz, Lilia Moritz’s Nicolas-Antoine Taunay no Brasil: uma leitura dos Trópicos.
(Sexante, 2008).
5
On the Africanness of Rio in the first half of the nineteenth century, see Mary Karasch’s Slave Life in Rio
de Janeiro, 1808-1850 (Princeton: Princeton University Press, 1987) and the more recent, excellent,
publications of Juliana Barreto Farias, Carlos Eugênio Líbano Soares, Mariza de Carvalho Soares, and
Flávio Gomes, among others.
6
Orlando da Costa Ferreira, Imagem e letra: Introdução à bibliologia brasileira: A imagem gravada. (São
Paulo: EDUSP, 1994) p. 444 n.16.
7
M. D. João VI/EBA Doc. 6150 p. 40 Livro de Atas, 1 October 1833.
8
M. D. João VI/EBA Doc. 6150 p. 40 Livro de Atas, 16 October 1833.
9
M. D. João VI/EBA Doc. 6150 p. 101-2 Livro de Atas, 23 July 1835.
10
ANRJ-92 IE 7 10 Flhs 217 Henrique José da Silva to Antonio Pinto C. de Gama, 5 February 1834.
11
Félix-Émile Taunay, Epitome de Anatomia Relativa às Bellas Artes seguido de hum compendio de
physiologia das paixões, e de algumas considerações geraes sobre as proporções, com as divisões do
corpo humano (Villenuve e Cia., 1837).
12
M. D. João VI/EBA Doc. 6150 p. 272 Livro de Atas, 1 March 1837.
13
M. D. João VI/EBA Doc. 6150 p. 300 Livro de Atas 4 September 1837 and Alfredo Galvão, Subsídios
para a história da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes. (Rio de Janeiro, 1954) p. 54.
14
M. D. João VI/EBA Doc. 6150 p. 308 Livro de Atas, 16 November 1837.
15
M. D. João VI/EBA Doc. 432-433 Livro de Atas 1 March 1840 and 2 April 1840.
16
Museu D. João VI/EBA Doc. 1199 “Regulamento da aula do modelo-vivo” 21 August 1841.
17
Frances Borzello, The Artist’s Model. (London: Junction, 1982); Susan Waller, “Professional Poseurs:
The Male Model in the École des Beaux-Arts and the Popular Imagination, “ Oxford Art Journal 25:2
(2002): 41-64.
18
ANRJ-92 IE7 16 Flhs. 107-116 “Apontamentos para a reorganização da Academia das Bellas Artes
feitos por Ordem de Sua Magestade Imperial O Senhor D. Pedro II” 29 November 1853.
19
ANRJ-92 IE7 17 Flhs. 272-276 Thomaz Gomes dos Santos to Min. dos Negócios do Império, 9 March
1858.
20
ANRJ-92 IE7 17 Flhs. 290-291 Thomaz Gomes dos Santos to Min. dos Negócios do Império, 10 June
1858.
21
“C ***” O Mosquito (Rio) 281 (30 January 1875).
22
Marie Lathers, “The Social Construction and Deconstruction of the Female Model in 19th-century
France,” Mosaic: A Journal for the Interdisciplinary Study of Literature 29:2 (Jun 1996): 23-31.

141
A importância do aprendizado na Escola de Belas Artes para o início
de uma etnografia no Brasil no século XIX

Fátima Regina Nascimento


Museu Nacional / Curador Técnico do Setor de Etnologia

Ao iniciar minha pesquisa com vista a formação da coleção etnográfica do Museu


Nacional, me deparei com a relação entre o ensino de desenho na academia de Belas Artes
e a produção de uma iconografia etnográfica documentando e auxiliando a promover e
sedimentar uma imagem geral dessa coleção.
Jean Baptiste Debret fundador e professor da disciplina de pintura histórica da Academia
de Belas Artes executa um trabalho de cunho histórico – etnográfico que viria a ser seguido
por seu discípulo Manoel de Araújo Porto Alegre. Inicialmente na participação do Projeto de
Debret para a composição das Viagens Filosóficas acompanhando-o nos estudos á coleção
de vestimentas dos indígenas brasileiros do Museu Nacional, da qual mais tarde em 1844,
Porto Alegre viria a ser diretor empenhado em preservar e expor o testemunho artístico e
científico contido no material coletado pelos indígenas brasileiros.
Apesar de não participar da Comissão Científica do Império proposta pelo IHGB e
levada a cabo entre 1859/1861, Porto Alegre redige as normas de conduta da expedição
onde normatiza como e o que deveria ser desenhado pelo encarregado de retratar a parte de
Antropologia e Etnologia da Expedição.
Essa tarefa é executada por José Reis de Carvalho futuro professor de pintura
histórica da Academia e possivelmente complementado na parte dos objetos coletados por
Ladislau Netto ex-aluno da Academia e futuro diretor da secção de Etnografia e Arqueologia
e diretor do Museu Nacional. As relações entre o Museu Nacional e a Academia Imperial de
Belas Artes foram bem mais próximas no século XIX, não só por ser o Museu a instituição que,
por um período, abrigou a Academia no prédio do Museu em 18221. As relações tiveram
continuidade, através de Manoel de Araújo Porto Alegre, não só nos nomes que exercerão
funções na Academia, como também nos nomes da Academia que participarão do Conselho do
Museu Nacional, como Victor Meirelles. Além disso, havia a participação de pintores da mesma,
quando necessário nas atividades do Museu, como a atuação de Décio Villares e Aurélio de
Figueiredo, que pintaram os quadros a óleo para a Exposição Antropológica de 1882.
O Museu D. João VI guarda testemunhos preciosos de observação etnográfica através
do desenho ensinada na Academia na obra de desenho de Reis de Carvalho nos desenhos e
aquarelas onde são narradas a vida do Ceará em 1961, com imagens como o grupamento de
indígenas ou a do vaqueiro que iria se transformar no Séc. XX em tipo nacional.
Marcar essa cooperação etnográfica e artística é um passo para o entendimento das coleções
de etnografia do Museu Nacional, bem como dos desenhos do acervo do Museu D. João VI .

142
Manuel de Araújo Porto Alegre
Porto Alegre, como é mais conhecido, principalmente enquanto pintor, tem narrado em
suas biografias, as origens humildes, no entanto sem grandes especificações do quão humildes.
O termo deixa claro que não era um homem bem nascido para época, apesar de possuir
recursos suficientes para empreender viagem da província à corte, com intenção de se tornar
pintor. Torna-se discípulo de Debret, inclusive acompanhando-o em sua volta a Paris e
fazendo a viagem de estudo quase que obrigatória para pintores da época à Itália. O texto de
Debret sobre a fundação da Academia de Belas Artes2 coloca Araújo Porto Alegre como um
jovem parente do Visconde de São Leopoldo, Ministro que inaugura a Academia, acrescentando
o elogio de ser o mesmo dotado das mais felizes qualidades e que já vencera todos as
dificuldades do desenho durante três anos cursando sua classe. Coloca o nome de Porto
Alegre na lista de alunos fundadores da Academia de Belas Artes.
Em Paris em 1834, Manuel Araújo Porto Alegre escreve na companhia de dois brasileiros,
José Gonçalves Magalhães e Francisco Torres Homem, o resumo da história da Literatura, das
Ciências e das Artes Brasileiras. Escreveria a parte referente às Belas Artes, sendo o artigo
publicado por Debret, quando já membro do IHGB, usando, como apresentação, o artigo escrito
por “meus colegas de Instituto”. Participou ainda em Paris de seu primeiro empreendimento como
editor: a Revista Nitheroy, fundada com Francisco Torres Homem e Azevedo Coutinho e tida
como primeiro veículo de difusão do Romantismo no país. Escrita e impressa em Paris, cidade
onde os autores se encontravam para estudo, em Língua Portuguesa, veiculavam, em seus
artigos e estudos, o programa de reforma e nacionalização da Literatura Brasileira. Em 1836, foi
convidado pelo Historiador Francisco J. Nichaud, Presidente do Institut Historique, para fazer
parte, com os pintores franceses Leon Cogniej e Raymond Auguste Quinsce-Movisan, da
Comissão que deveria dar conta da Exposição Geral do Louvre. Uma parte de seus relatórios
a respeito das reformas foi publicada, em 1837, no jornal do L’Institut.
De volta ao Brasil, Porto Alegre assume várias funções. Entre elas, a partir de 1842,
a de Diretor da 4ª Seção do Museu Nacional, apesar de poder exercer o cargo apenas
honorificamente, como fará seu adjunto Pedro Américo, nomeado após sua partida para
exercer o cargo de cônsul em Dresden. Empenhou-se na sua tarefa que hoje pode ser vista
como a primeira curadoria da coleção, sendo um dos primeiros sócios permanentes do IHGB,
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Suas relações o faziam próximo das discussões a
respeito das populações indígenas brasileiras, que defendia, dentro das possibilidades de
época, dando à mesma uma qualidade estética aos artefatos, atestada por seus escritos de
História da Arte, nos quais avalia o material indígena como portador de um certo “pendor
industrial” e estético.
Os principais cargos que acumulou foram: Professor de Pintura Histórica, Diretor e,
depois, Membro Honorário da Imperial Academia de Belas Artes, da Escola Militar, Pintor
Imperial da Câmara, Primeiro Secretário, Orador e depois Membro Honorário do Instituto

143
Histórico e Geográfico Brasileiro, Diretor das Obras da Alfândega, Fundador da Imperial
Academia de Música e Ópera Nacional. Hélio Leboum, um de seus biógrafos, denomina-o de
“Homem faz tudo”, possuidor de uma atividade incessante. Apesar de manter sua atividade
como pintor, procurava exercer suas atividades com presteza, era especialista em relatórios
bem feitos, nos quais apontava os problemas das tarefas deixadas a seu cargo.
A respeito do Museu Nacional, vemos sempre seus relatórios preocupados com a
preservação da coleção e de seus significados. Para Porto Alegre, o principal objetivo da
coleção parece ser o de um grande arquivo de documentos, conceito surpreendente, já que
a coleção como arquivo é evocada de forma recorrente a partir da década de oitenta do
século XX, quando as coleções, sob denominação de patrimônio, passam a ser objetos de
vários estudos. Devemos ressaltar também que as suas idéias de documentar tinham por
matriz suas teorias da irreversível extinção dos indígenas, discutidas em vários fóruns de
debate (como por exemplo o IHGB), como constatamos em trecho de um de seus relatórios.

A coleção do museu dos indígenas do Brasil de importância tão instrutiva que não
se pode desconhecer, e torna-se-á de dia a dia mais preciosa, à proporção que
penetre a civilização do nosso país, pode conseguir uma coleção tal qual marque
com perfeição a natureza, e caracteres peculiares de todas as tribos deste continente,
o Museu Nacional será o único no mundo com arquivo de documentos originais
sobre o estado destes aborígines desta parte d’América Meridional...3

Podemos também inferir, a partir do trecho destacado, sua preocupação com o que
atualmente se institucionalizou como patrimônio nacional. A ser mantido em território nacional,
concorrendo com outros patrimônios. Acompanhando seu discurso, podemos identificar suas
reclamações para melhor atender a divulgação e guarda do mesmo, caracterizando, assim,
as suas preocupações patrimoniais, uma vez que a noção de um patrimônio público vem
sempre associada às suas condições de preservação e divulgação. Suas atitudes, sempre
propondo obras e compra de mobiliário, encaixando as mesmas em suas tarefas de arquiteto,
combinavam-se com suas preocupações acerca de preservação, desenvolvidas na Escola
de Belas Artes, durante o breve período que administrou a Academia. Eram preocupações
obsessivamente repetidas que ainda são atuais, como a citada:

Relatório dos trabalhos, e aquisições havidas no Museu Nacional desta corte,


durante o ano de 1845”.
-Secção de Numismática e Artes Liberais, Arqueologia ,Usos e costumes das
nações modernas.
Pouco avançou no decurso d’este ano, por se terem deslocado todos os objetos
da sala arruinada em que estavam e acharem-se amontoados em armários e
gavetas sem ordem conveniente...
As reclamações constantes, que o conselho tem tido a honra de dirigir ao governo
Imperial sobre o edifício do Museu, aumentam cada vez mais a necessidade da
conclusão da obra, que salvará objetos tão preciosos e importantíssimos para os
estudos históricos, não só dos outros povos, como particularmente do Brasil,
desde os aborígines até a invasão do homem civilizado e seus progressos4.

144
Podemos também constatar a sua evidente escolha de, no meio da mistura de
objetos que compunha a seção, privilegiar os acervos indígenas nacionais, principalmente
em termos de exposição, escolha essa coerente com sua posição no movimento nativista e
que, sem dúvida, permitiu a chegada da coleção ao século XXI. Sua experiência em
exposições no exterior faz com que provavelmente ele transporte modelos europeus, como
os troféus, para a exposição do Museu Nacional, permitindo uma maior divulgação das
mesmas, que, na época, podem ter produzido o efeito de suavizar o barbarismo com que
essas populações eram normalmente vistas pelo senso comum. Esse efeito comungava com
o projeto do romantismo literário, do qual era partícipe; sua preocupação com as exibições
públicas era evidente.
Na Academia Brasileira de Belas Artes, ele provoca grandes discussões, ao defender
os interesses de uma Arte voltada para a natureza nacional e ao se insurgir contra a
naturalização do comando de estrangeiros na direção da Escola. Após se retirar como docente
da Academia, em 1838, volta, em 1852, como seu primeiro diretor brasileiro. Amplia seu
edifício, inaugura novas cadeiras, inclusive a de Desenho Industrial, e areja seu ensino.
No entanto, Félix Taunay (ex-diretor da Escola), à frente, por meio de intrigas na
corte, nomeia à sua revelia um professor para a cadeira de Pintura Histórica. Indignado, Porto
Alegre se demite e se afasta do Brasil. Passa, então, a exercer funções diplomáticas na
Europa, em Dresden, Berlim e Lisboa. Seu trabalho junto a exposições passa a ser o de
colaborar na organização dos pavilhões brasileiros, na Exposição de Paris, em 1867, e em
Viena, em 1873.
Junto ao trabalho diplomático, é tido como excelente diplomata e seus relatórios são
elogiados. Dedica-se ainda a escrever literatura: deixou 135 trabalhos publicados, 20 peças
teatrais e quatro traduções.
Ao embarcar para a Europa como diplomata, pede demissão de seu cargo no Museu:
“Tendo sido nomeado Cônsul Geral do Brasil na Prússia e devendo brevemente partir para
o meu destino... / Manoel de Araújo Porto Alegre / 1 de junho de 1859”5.
O governo não se apressa em realizá-la e nem em substituí-lo, nomeando, em 1872,
Pedro Américo para o lugar de adjunto e concedendo uma dotação para que Porto Alegre
compre moedas para o Museu, o que ele efetiva, como comprova uma carta no Arquivo Geral.
Parece que ele mantém correspondência com Freire Alemão, então Diretor do Museu de
Nacional. Oficialmente se mantém como Diretor da Quarta Seção até sua transformação em
seção anexa.
Apesar de ser, por vezes, superficialmente descrito como “o amigo de D. Pedro II” ou
como “pintor oficial”6, Porto Alegre só acolhia a política imperial até certo ponto. Levava seus
interesses científicos, literários e artísticos acima dessa amizade e, como editor de várias
revistas, defendia esse interesse. Na Lanterna Mágica, primeira revista ilustrada brasileira de
caricaturas críticas, não concordava com as políticas imperiais na área artística e científica.

145
Embora considerasse D. Pedro II como amigo, amizade essa vinda de seu pai Pedro I, o qual
inclusive visitou no exílio em Paris. Em sua carta de demissão da Academia,Porto Alegre
escreve: “Vossa Excelência sabe quem combate hábitos de relaxação, não é amado pelos
mandraços; e quem é justo, sofre dos que contam com o poderio misterioso do Patronato”.
A paixão que o movia, e como gostava de ser reconhecido, era a de ser visto como
um funcionário à serviço da nação brasileira. Para isso, renunciou a uma possível glória como
Pintor Acadêmico. Seus interesses o levavam a uma grande ansiedade de conhecer, organizar
e modificar, mantendo parte de seus quadros inacabados. A preservação da coleção de
plumária do século XIX, tida como miraculosa nos dias atuais, certamente se beneficiou do seu
zelo, acompanhada da intencionalidade de guardar um registro suave dos indígenas nacionais.
Nas suas mãos, a coleção de Etnologia toma a sua forma inicial: os adornos plumários
valorizados, as armas, principalmente as flechas, organizadas em troféus para exposições.
Contemporaneamente, temos como corrente, como a seleção curatorial diz, muito
sobre o que é preservado e exposto. No século XIX, essas decisões acarretaram o que seria
transmitido ao seu próximo sucessor de fato, a curadoria de Ladislau Neto, em 1976. As peças
que sobreviveram dos caixotes iniciais, os esforços para as peças coletadas pela Comissão
Imperial (pejorativamente denominada de Comissão das Borboletas), cujo integrante em
Etnografia, Gonçalves Dias, era amigo de Porto Alegre de longa data, como demonstra a
indicação de Porto Alegre para que Dias seja aceito como sócio do IHGB, permanecessem no
Museu Nacional e passassem a integrar a coleção por sua insistência, apelo de Porto Alegre
e de Capanema, Diretor de Anatomia Comparada. Essas coleções foram preparadas para
preservarem o que hoje se constata: o apuro estético. Isso não ocorreu por acaso, mas pela
valorização que Porto Alegre acrescentava ao material nativo, em sua visão de um intelectual
que se inspirava na criação de uma feição artística romântica para um país em processo de
construção de sua imagem.

Ladislau de Souza Mello Neto


Nascido em 1838, na cidade de Maceió. Filho de fazendeiros, ele veio para a corte
aos 18 anos, onde cursou Matemática e História Natural, na Academia Imperial de Belas Artes,
sempre lembrado enquanto diretor do Museu Nacional. Sua institucionalização foi tão forte que
pouco se encontra de sua biografia; alguns dados são encontrados em Costa7, em breve
artigo no qual o mesmo lamenta não encontrar referência sobre a infância de Ladislau Neto,
a não ser que aprendeu Grego e Latim com Padre Joaquim, vigário da Freguesia de Maceió
e que se recusou a cursar o bacharelado em Direito.
A autoria dos desenhos científicos da coleção da comissão científica do Império de
1961 é uma incógnita, pois pode ter sido feito pelo editor das pranchas como por algum
praticante do próprio museu, existe um texto bastante curioso de Silvio Romero8 na biblioteca
do Museu Nacional , uma pequena publicação sobre o Título de apontamentos para o quarto

146
volume da História da Literatura, onde o mesmo faz uma crítica bastante dura á Ladislau Neto,
começando por seu currículo, menciona o fato de Ladislau não possuir comprovação de
diploma e ter entrado no Museu como praticante de desenho,fazendo ilustrações, antes de ter
seguido para a França e voltado Botânico” .Todos nós conhecíamos o nosso amável Ladislau,
moço vivo e cheio de habilidade para o desenho”.
Esses dados não aparecem na História da Literatura9 publicada como tal onde Ladislau
é tratado como um cientista romântico (termo pejorativo para um membro da geração de 1870,
como Silvio Romero). No entanto a biografia oficial mostra ter Ladislau Neto cursado a
academia de Belas Artes, nada impossível portanto de ter Ladislau estado no Museu com a
entrada do material da Comissão do Império como praticante de desenho, seu interesse pelos
padrões geométricos seria evidenciado mais tarde pelos seus estudos da cerâmica arqueológica.
Em 1860-1861, Ladislau participou da viagem da Comissão Astronômica e Hidrográfica,
incumbida dos estudos da costa de Pernambuco, publicando uma série de artigos, no Correio
Mercantil. Em 1863, trabalhou como geógrafo e botânico da Comissão de Exploração do Vale
São Francisco, datando dessa época suas primeiras pesquisas sobre cerâmica e líticos. Um
ano mais tarde, seguiu para Paris, sob patrocínio imperial para cursar Botânica, no Jardim das
Plantas. Participou de excursão à Argélia para o estudo de plantas, segundo Costa, em Argel
estudou a flora, observou o homem, examinou as raças, interpretou a história mais antiga,
familiarizando-se com as línguas orientais, cujo curso seguiria em Paris, estendo a viagem até
a “terra dos faraós” de onde viria sua inspiração para o estudo das civilizações e povos
distintos. Ao chegar ao Brasil, ingressa na Seção de Botânica do Museu Nacional.

Secretaria de Estado dos Negócios do Império.


Rio de Janeiro, 30 de março de 1865
Pela secretaria de estado dos negócios do império se comunica ao Illmo Senhor
Diretor do Museu Nacional, que, por decreto do corrente mês, foi nomeado Ladislau
de Souza Mello Netto para o lugar de Diretor da Secção de Botânica, Agricultura
e Artes Mecânicas do Mesmo Museu10.

Em 1868, foi nomeado Diretor Substituto do Museu Nacional e Diretor efetivo, de


1876 até 1894. Seus interesses pela Quarta Seção se evidenciam com clareza, quando no
regulamento de 1876 no qual passa para sua direção direta a Seção, “Enquanto não se
realizar a criação do estabelecimento especial para o estudo da Arqueologia, Etnografia e
Numismática”. Sua justificativa que, a meu ver, foi utilizada para retirar a seção da direção
fictícia de Pedro Américo, sucessor de Manoel de Araújo Porto Alegre, e lhe dar destinos mais
“científicos”. Seu interesse pela Etnologia e Arqueologia, que acabaria por empenhar em
representar na Exposição Antropológica de 1882 , ficaria evidenciado no prefácio da edição
comemorativa dos Arquivos:

147
Mal volvi ao solo natal foi meu primeiro cuidado socorrer-me dos meios que
melhores e mais prontos se me afiguraram para a realização das minhas cada vez
mais alimentadas esperanças. Neste propósito oficiei a 18 de maio de 1867 ao
senhor Conselheiro Dantas, então ministro da agricultura, pedindo aos poderes
públicos e ao país inteiro a mais viva atenção para o estudo dos antigos iconoclastas
desta terra, onde vagam, há já três séculos, forasteiros e perseguidos seus malfadados
descendentes11.

A Exposição Antropológica de 1882 foi de grande importância para a expansão da


coleção e sua divulgação no século XIX. Seu empreendedor Ladislau Neto, que dirigiu a
instituição, no que Maria Margareth Lopes12 denominou de “anos de ouro do Museu Nacional”,
foi de fundamental importância para a formação da coleção etnológica. Houve uma grande
expansão da coleção, com o evento da exposição, por sua causa e em sua consequência.
Um dos fatores de grande importância foi a realização de pesquisa de campo no Pará,
visando achados arqueológicos. Os Tembé tiveram a vida cotidiana reconstituída na Exposição,
a partir dos dados de sua viagem. Os anos de preparação da Exposição são uma das pistas
da importância do jogo de relações que se desenvolvia na formação da coleção. A viagem de
Ladislau ao Pará, por exemplo, é fruto de uma intensa relação por correspondência com
Ferreira Penna, Diretor do Museu Goeldi. As relações que se travam entre as duas instituições
no período causam bastante confusão posterior, uma vez que a coleta não fica diferenciada
dos empréstimos institucionais. A não restituição de acervos institucionais emprestados ao
Museu Nacional, por ocasião da Exposição de 1882, ecoaria pelo século XX.
A aceitação do público, os elogios da Imprensa e uma condecoração recebida como
idealizador da exposição por parte do governo fizeram da Exposição Antropológica um evento
de repercussão altamente positivo. Independentemente da Exposição, Ladislau Netto, em
nome de um maior cientificismo, irá priorizar coleções efetuadas por naturalistas viajantes
treinados. Conduziria o Museu em direção à institucionalização científica, promovendo pesquisas
direcionadas, ensino através de cursos públicos e divulgação, como a promovida pela
Exposição Antropológica, e publicações. A partir da exposição passa a ser encarregado de
missões internacionais como a representação brasileira no Congresso de Antropologia, em
Berlim, 1888, o segundo a se realizar no mundo. Organizou e dirigiu a mostra “Amazônia”, na
Exposição de Paris, 1889. Foi condecorado com uma ordem honorífica alemã, em 1890, e
representou o Brasil na Exposição de Chicago, 1890.
Costa menciona o fato de Ladislau ter se recusado a qualquer função política. Tendo sido
nomeado deputado para a Constituinte Republicana de 1891, recusou o mandato, já havia
marcado sua dedicação exclusiva à instituição. Costa termina seu artigo enumerando seus
artigos científicos e títulos honoríficos nacionais e internacionais e sua amizade com Ernest Renan.
Ladislau Neto ficou conhecido como um homem dedicado a uma instituição e, dentro
dela, desenvolveu seus múltiplos talentos e interesses em Botânica, Arqueologia e Etnologia.
Ele foi um homem do seu tempo, com interesses inseparáveis entre os estudos naturais e
aqueles que contemporaneamente denominaríamos de culturais.

148
Sua formação pela Academia de Belas Artes, sua habilidade em conceber e montar
exposições, traz assim como em Manuel de Araújo Porto Alegre uma marca do ensino da
Academia de Belas Artes. Marca que ficaria impressa na coleção hoje conhecida como coleção
etnográfica do Museu Nacional, bem como na imagem do índio por ela produzida.

O índio símbolo
Um dos quadros de imagem persistente no Museu, é o único quadro da Exposição
Antropológica que representa um indígena de corpo inteiro, com informações conflitantes
sobre a autoria, pois não se trata de um quadro assinado, e não aparece no catálogo da
Exposição, a informação de sua localização na exposição se deve a imprensa nos
Jornais como o Jornal do Comércio aparece a seguinte referencia:” Retrato de corpo
inteiro de indígena do Alto Amazonas. Pintado por Francisco Aurélio de Figueiredo”. Já
no Livro de Registro catalográfico do Museu podemos ver a seguinte referencia: “ 873.
Retrato de um índio do Rio Uaupés por Décio Villares. As duas informações obtidas no
entanto conduzem ao fato da sua presença na exposição de 1882. Podemos apenas
dizer que no catálogo do setor existe um excesso de autoria atribuída a Décio Villares,
que não concorda com o guia da época.
Outro fato a gerar dúvidas devido a ausência da descrição no guia, é a falta de informação
sobre o fato de ter sido ou não pintado a partir de um modelo natural, um esboço a crayon ou uma
fotografia. O quadro não estava colocado na sala Anchieta, junto com maior parte da iconografia.
Sua presença na sala Lund, sala de Antropologia, que exibia, crânios, esqueletos e ossos em
geral, além das fotografias de Marc Ferrez, documentais e antropométricas dos botocudos.
Servindo provavelmente de parâmetro para um indígena em toda a sua plenitude corporal.
O quadro está em perfeita sintonia com os principio do Academicismo brasileiro;
destaque para a figura humana, figura humana idealizada próxima do ideal grego, com
proporções mais adequadas a idealização do que a realidade, mesmo quando se trava de
um estudo de modelo vivo, no caso da tela surge mesmo um dado curioso, seu corpo surge
na mesma postura de um desenho de estudo muscular da Escola de Belas Artes, embora não
esteja esfolado ( mostrando sua parte interna) existe um grande destaque na composição
muscular da figura. A figura abaixo um estudo de esfolado da academia demonstra não só o
estudo muscular próximo ao da tela mas a posição semelhante. Esse estudo retirado da tese
de Ivan Coelho de Sá sobre o ensino de desenho na Acadêmia Imperial de Belas Artes e cuja
imagem cedida pelo mesmo esta aqui reproduzida é necessário para a demonstração da
construção da idealização corporal presente na figura da tela.
A meu ver a tela foi construída a partir de um estudo de fisionomia do rosto bem
próximo do original, tenha ele sido feito diante do modelo ou a partir de imagem e uma
idealização do corpo levando-se em conta o estudo da academia demonstrado acima. Outro

149
Figura 1- Indígena do Alto
Amazonas. Óleo sobre tela,
Décio Villares.
Foto da Exposição Antropológica
1882. Acervo MN

Figura 2 - Estudo Anatômico de


corpo, Sanguínea e Crayon.
Zeferino da Costa.
Foto: Paulo Castigliani
Cedida por Ivan Coelho de Sá e
pertencente ao acervo do Museu D.
João VI/EBA/UFRJ.

fator é a moralização dada pela peça de roupa que encobre as partes viris da figura agindo
como um elemento de moralização e ao mesmo tempo despertando um olhar curioso, devido
às formas perfeitas com que o corpo é descrito.
A descrição das peças de adorno salvo o adorno plumário Tukano que possui mais
destaque trata-se de uma composição estética e de pouca fidelidade aos adornos ou a
representação de um índio específico. Na tela, figura aparece com cinto de penas sobre um
short, pintado em cor clara, bandoleiras de contas, colares de dentes, diadema vertical (
Tukano) com pendentes de penas laterais sobre o peito e pulseiras de contas em ambos os
pulsos, tirando a faixa frontal do diadema , não existe possibilidade de se pensar em um
estudo prévio de peças a maneira do recomendado pela academia, nem de uma identificação
da cultura material do Uaupés.
O quadro lembra ainda as imagens de índios de estúdio fotográfico, como as que
aparecem nas imagens fotografadas por Marc Ferrez, provavelmente no Rio de Janeiro e
com acervo do Museu, como a imagem de um indivíduo vestido á maneira indígena com a
camisa com penas Apiaká, um adorno não identificado e um maracá. O modelo fotográfico com
seu painel de fundo é certamente mais exagerado no toques exóticos do que a tela.
A tela representa um ideal de masculinidade e virilidade próximo do grego, mas
bastante interessante quanto ao fato de se encontrar na sala com peças de Antropologia , onde
os estudos de Lacerda representados pelo “diploma Comemorativo da Exposição Antropológica
de Paris, 1878, concedido ao dr. João Batista de Lacerda pelos seus trabalhos de antropologia
brasileira”. Os estudos contribuíam para uma medição de força muscular, com resultados nem
sempre positivos para os indígenas, como os músculos apresentados na tela.
A imagem da tela também pode ser considerada como possuindo uma característica
documental e cientifica forte, principalmente quando cotejada com a fotografia acima, não
chega a ser a imagem de uma pintura romântica acadêmica , temos uma economia de
recursos pictóricos ao fundo e uma necessidade de clareza e realismo presentes, além da
diminuição de expressão facial bem como da ausência de fundo, apesar do influxo romântico

150
poder ser atribuído a postura heróica e pela idealização da figura. A tela se torna simbólica
justamente por promover em seu enxugamento de detalhes ao fundo um destaque da figura e
ao mesmo tempo uma racionalização da mesma, lembrando o proposto para se retratar a
figura humana pelo iluminismo descrito na Enciclopédia:

A cor e a figura, propriedades sempre ligadas aos corpos, embora variáveis para
cada um deles, serve-nos, de alguma maneira para destacá-los do fundo do
espaço; uma dessas duas propriedades é mesmo suficiente neste sentido: por
isso, para considerar os corpos sob uma forma mais intelectual, preferimos a figura
á cor.... Assim, através de operações e abstrações sucessivas do nosso espírito,
despojamos a matéria de quase todas as suas propriedades sensíveis, para
considerar, de certa maneira, apenas o seu fantasma... p.2913

Nesse despojamento do sensível e na criação de um corpo descrito muscular e


idealmente ao mesmo tempo surge uma imagem paradoxal em sua própria construção e
simbólica na medida em que está referida a busca de símbolos que se efetivassem como
nacionais. Elias14 se refere aos símbolos nacionais ou as auto-imagens da nação como
usualmente dando a impressão de profundidade temporal da nação, criando a sensação de
que a nação sempre existiu. A imagem simbólica ideal portanto para a nação brasileira foi a
inspirada no indígena, elemento nativo que idealizado pelo romantismo se tornou símbolo para
o Império brasileiro. O posicionamento da tela no hall de entrada do Museu Nacional até a
primeira década do séc. XXI revela que a imagem simbólica do indígena, resistiu a
transformação do índio em objeto de estudo, a passagem de Império a republica e se
estabeleceu como um símbolo do indígena apresentado a gerações e gerações de visitantes
do Museu Nacional ao longo de sua existência.

Notas e referências
1
“vemo-lo dar agasalho em, em janeiro de 1822, à Academia de Belas Artes e ao seu diretor, Henrique
José da Silva, á pretexto de se tornar oneroso ao estado o aluguel do prédio em que então trabalhava”.
P.28/29 in “Investigações” . Ladislau Netto, RJ: Instituto Philomático, 1870.
2
DEBRET.J.b. - Viagem Pitoresca e Filosófica ao Brasil. Tomo II, volume III. São Paulo: USP,1966, p.112
3
Relatório 1844.
4
Relatório 1845.
5
DOC. 63 (1859).
6
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador. São Paulo: Companhia das letras, 1998.
7
A Comissão Imperial, pejorativamente denominada de Comissão das Borboletas, teve Gonçalves Dias
como integrante em Etnografia, o qual era amigo de Porto Alegre de longa data, como demonstra a
indicação de Porto Alegre para que Dias seja aceito como sócio do IHGB.
8
COSTA, Angyone- Indiologia, RJ: Gráfica Laemmert ltda.
9
Romero, Silvio, Apontamentos para a História da Literatura Brasileira no Séc. XIX. p.134.
10
Romero, Silvio, História da Literatura Brasileira. Vol.4,RJ: livraria José Olinpyo Editora, 1954. p. 1784.
11
AGMN doc. 150.
12
Prefácio Arquivo do Museu Nacional, vol. VI.
13
LOPES, Maria Margaret . O Brasil Descobre a Pesquisa Científica: Os Museus e as Ciências Naturais
no Século XIX, São Paulo: Hucitec, 1977.
14
Diderot e D’Alembert. Enciclopédia ou Dicionário Raciocinado das Ciências das Artes e dos Ofícios por
uma sociedade de letrados, Discurso preliminar. São Paulo: UNESP, 1989. p.29.
15
Elias, Noberto. Processos de Formação do Estado e a Construção da Nação.

151
Questões de percepção no método de ensino da Academia Imperial de
Belas Artes de Rio de Janeiro

Fábio D’Almeida
Mestrando em Artes Visuais ECA/USP

Introdução
Este trabalho estabelece algumas reflexões sobre questões didáticas e disciplinares
da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro no século XIX. Interessa nele discutir
as etapas percorridas pelos alunos matriculados na Academia durante o oitocentos e, em
específico, discutir a importância no estabelecimento da ordem destas etapas dentro de uma
análise sobre questões perceptivas do ofício pictórico.
É um dado que diversos estudos em história da arte, nacionais e internacionais, têm
demonstrado a força dos métodos de ensino das Academias, entre o século XVII e XIX, como
importantes ferramentas de aprendizado.
A Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, desde o seu efetivo
funcionamento, em 1826, mostrou-se evidentemente inclinada, mas com algumas
especificidades, à adoção de modelos de ensino oriundos, sobretudo, da academia francesa,
pioneira, no século XVII, na sistematização de um programa discipinar voltado à produção
artística. É um dado que a ligação entre as duas instituições, no século XIX, pode-se mostrar
como um dado natural quando se consideram as bases de formação da AIBA, alicerçadas
também por artistas franceses.
Já muitas vezes apresentado, o programa de estudo posto ao aluno, o levava a
começar sua formação executando cópias de desenhos, gravuras e de pinturas, seguindo,
após algum tempo, para o desenho da estatuária (ou desenho de moldagens). Somente após
essas etapas era encaminhado ao enfrentamento do modelo vivo, o ponto mais importante de
sua formação.
Dentro de uma perspectiva tradicional de análise, desenvolvida acerca da validade/
eficiência desse método, diversos estudos chamam a atenção para um de seus principais
escopos: permitir que o aluno absorva, através do estudo dos mestres (vistos por suas
gravuras, pinturas e estatuária), toda a idéia da grande Arte, para, em seguida, “deixá-la”
transparecer em seu trabalho1.
A assimilação de arquétipos “doutrinadores” difundidos pelas academias, principalmente
nas duas primeiras etapas de formação, deveria favorecer o reconhecimento de uma forma
ideal, buscada, em especial, na pintura histórica, “contaminando” a produção do artista com
um leque de formas herdados de seus mestres.
Dentro daquela perspectiva, a metodologia acadêmica reconhecia que o mundo
visível (enfrentado apenas na última etapa), antes de uma instância a ser literalmente imitada,

152
afigurava-se como uma instância a ser transformada. O artista expressava individualmente
seu motivo, contudo dialogando com um vasto sistema visual de formas com que fora ambientado
nas primeiras etapas da academia. Não interessava, nesse contexto, a tradução direta das
aparências formais (ainda que fosse possível), mas a construção de um modelo ilusoriamente
real, filtrado por uma necessária abstração idealizada do objeto.
Assim, seria possível entender o método de ensino das academias como o propulsor
de uma atividade compulsória de aprendizado e de filtragem de uma produção que precedia
as intenções individuais de cada artista. Um caminho construído para “contaminar” previamente,
com formas artificiais (oferecidas pelos mestres anteriores), a percepção artística frente ao
mundo visível.
Um caminho muitas vezes entendido, ao menos desde o século XVIII, como
amaneirador, pois buscava educar, insistentemente, o olhar do artista nos limites de uma
cultura visual estimada – da citação, da herança artística, do conhecimento da história em seus
diversos aspectos, verbais e pictóricos.
Quando deparava-se com a última e mais importante etapa de sua formação – após
percorrer as demais fases – o estudante dificilmente poderia ignorar tudo o que aprendeu
para lançar-se à tradução transparente daquilo que via.
Era o método, por meio desse viés, uma ferramenta provocadora de uma divergência
psicológica entre o motivo visto e o motivo traduzido. Divergência que se dava pela afetação
do conhecimento adquirido nas primeiras etapas de formação sobre a natureza que se
observava nas últimas epatas.
Alguns exemplos que remontam a Diderot, no século XVIII, passando pelos Românticos,
no século XIX, e chegando mesmo ao Brasil por intermédio de críticas de um artista como
Zeferino da Costa, fazem entender o programa acadêmico como uma barreira psicológica
programada para não permitir a transposição literal do motivo, na etapa do modelo vivo, em
seu respectivo modelo pictórico2.
Essas opiniões assumem o método como um doutrinador (daí a intenção de termos
como abstração idealizada), ou como uma ferramenta articulada para que o aluno veja a partir
do que sabe e não consiga traduzir puramente aquilo que vê. Nesse sentido, se essa era boa
parte da intenção na formação de um artista na academia, fazê-lo dialogar com a tradição, em
certa medida, também implicava em erigir um sistema que o fizesse rever a tradição em tudo
aquilo que fosse novo.
Essa, portanto, é uma perspectiva tradicional de análise do método acadêmico que
encontra críticas e desdobramentos reflexivos desde o século XVIII.
No entanto, um outro tipo de estudo que me interessa levantar, e que é o foco desta
apresentação, é proposta não a partir da validade do método acadêmico do ponto de vista da
manutenção de uma cultura visual – entendendo-o como um doutrinador, ou amaneirador –,
mas a partir de considerações perceptivas que envolveram a sua formação.

153
Uma análise perceptiva do método acadêmico
Para começar a leitura do programa acadêmico sobre uma vertente perceptiva, talvez
seja necessário colocar mais claramente duas perguntas que retomam algumas questões
rapidamente traçadas aqui: por que o estudante matriculado na academia devia começar seus
trabalhos dentro da sequência estabelecida (desenho de gravuras, desenho de estatuária e
desenho de modelo vivo)? Que outros aspectos delimitariam essa sequência fora o provimento
inicial da tradição pictórica?
Por certo, além do caráter cultural da prática da cópia, é possível perceber na formação
e no desenvolvimento daquele método a constituição de um claro didatismo produtivo e
perceptivo, que tinha como uma de suas metas também ensinar efetivamente o aluno a
construir, aos poucos, comparações pictóricas do mundo visível.
Uma primeira asserção que evidencia essa sentença é o fato de que o estudante era
inserido na prática pictórica primeiramente pelas etapas mais fáceis, e, apenas gradualmente,
deparava-se com maiores dificuldades. Isto é, pedir a um ingressante no ofício artístico que
iniciasse as suas tarefas pela cópia de outras obras se tornava um trabalho muito mais fácil do
que desenhar prontamente do natural.
Enquanto provedor de uma prática artística, alicerçado sobretudo para a pintura
histórica, o método acadêmico endossava um forte pragmatismo perceptivo na formação e
ordenação de suas etapas. Em seus aspectos pedagógicos parece repousar um plano racional,
no qual variáveis eram adicionadas paulatinamente com vistas a introduzir o estudante no que
era considerada uma concepção de visão cada vez mais avançada do mundo visível.
Um dos seus principais objetivos era a validação de um sistema perceptivo, construído
rigorosamente para prover ao aluno meios necessários para ter acesso, por fim, à tradução
da natureza – recorrentemente entendida como a fonte primária de toda imitação –, atribuindo-
lhe equivalentes pictóricos para serem utilizados em narrativas artísticas.
Assim, sob esse aspecto, quando se propunha primeiramente a cópia de desenhos e
gravuras de outros artistas, defendia-se, antes de mais nada, uma frente de produção que
delimitava a prática artística naquele que era considerado o nível didático mais adequado à
iniciação pictórica. Um nível perceptivo e técnico que prepararia os estudantes para as etapas
posteriores, até o desenho de modelo vivo.
Por um lado, ao copiar desenhos, o estudante era incentivado a iniciar a sua formação
com a produção de um trabalho que, em níveis visuais, permanecia perceptivamente equiparado
ao objeto que lhe servia de referência. Tratava-se de uma etapa de produção cujo objeto a
ser copiado – a imagem bidimensional de um objeto, monocromática, estática e traduzida em
pigmentos claramente arranjados sobre uma superfície delimitada por outro artista – encontrava
sua tradução num objeto de mesma natureza visual: permanecia plano, articulado com manchas
e traços monocromáticos.

154
Henrique José da Silva. Boca (2 estudos), Crayon/Papel
– s/d, 18,8 x 22,9cm. Museu Dom João VI, Rio de
Janeiro. reg. 380

Isto significa dizer que o percurso de


tradução de um objeto a outro ocorria num plano
de mesmas variáveis perceptivas.
Por outro lado, a mesma ação de copiar
obras bidimensionais de artistas predecessores
tornava-se, para um estudante recentemente
iniciado na prática artística, uma fase sistematicamente proposta para prover esquemas de
tradução que o ajudariam a desenvolver um vocabulário gráfico a ser utilizado nos anos
seguintes. Era nessa fase que a articulação de manchas, traços e cores, visualizados e
copiados a partir de outras obras, ambientava o estudante em uma linguagem artística. O mote
“a arte imita a arte” caberia nesse contexto como uma sugestão de que a cópia de um desenho
era, em muito, um exercício perceptivo, uma alfabetização gráfica.
À diferença de uma análise cultural, uma análise perceptiva permite assim supor que
um artista deveria buscar os trabalhos de outro não apenas por referência temática, ou por
uma contaminação visual, mas, também, para assimilar suas configurações pictóricas, suas
soluçõesgráficasexecutadasparafazer equivaler umobjetoemseurespectivosignonatela3.
De acordo com essa perspectiva, o historiador da arte Michel Ribon4, entre
vários outros, escrevia que um artista não aprendia primeiro a perceber a natureza para
então desenhar.
Ribon defendia que, ao contrário, ele aprendia a desenhar por outras obras, construindo
um vocábulário visual para, então, transpor esquemas para perceber a natureza:

Como toda pintura é de fato linguagem e sua intenção de significar está em busca
de significantes destinados a preencher seu projeto, é de uma lingua já constituída
que o artista recebe primeiro seu vocabulário e sua sintaxe; ele retira seus primeiros
modelos da língua de seus predecessores: forma, códigos, convenções que
exprimem as condições semiológicas da representação da natureza elaboradas
pelos grandes mestres, reconhecidos como tal5.

Lida em termos perceptivos, a primeira etapa asssentada pelo método buscava unir o
desenvolvimento de esquemas de tradução na mesma proporção em que facilitava essa
tarefa. Tal facilidade relacionava-se ao fato de que, como dito, o objeto copiado era da mesma
natureza visual da cópia. Isso deveria ser o suficiente para preparar o aluno para a fase
seguinte de formação.
Para além desse dado, há mais uma nota quanto à dificuldade perceptiva nessa
primeira fase. Se primeiro nos deparamos com a monocromia das gravuras, equiparando-se

155
com a mesma monocromia do desenho (como meio impulsionador da cópia), não é menos
relevante considerar, em seguida, a comum prática de se desenhar primeiro algumas partes
do corpo humano, como os olhos, a boca, o nariz, a orelha. Desenhando, em princípio,
separadamente as partes componentes do corpo humano, entedendo-as bem, criava-se,
teoricamente, um melhor entendimento da composição do corpo inteiro. Do ponto de vista de
uma análise perceptiva, entretanto, estabelecer relações entre pequenas partes, claramente,
tornava-se mais fácil para um estudante ingressante do que desenvolver logo relações de um
todo. Traduzir um olho apenas significava estabelecer um número bem menor de relações
gráficas e visuais em lugar de desenhar esse mesmo olho relacionando-o também com os
demais elementos constituintes do corpo humano.
Com relação à segunda etapa, marcada pelo desenho de estatuária, se contraposta
à fase inicial, introduzia importantes mudanças visuais na execução de tarefas. De uma
referência plana e monocular, oferecida pelas gravuras e desenhos no começo do curso, o
aluno era direcionado ao desenho de um objeto tridimensional, contudo ainda estático. Era
uma primeira aproximação em que se propunha a sugestão de um modelo relacional de um
objeto visto estereoscopicamente em meio a um campo visual sem limites ou cortes definidos
(cortes estes típicos das obras gráficas da etapa anteior), cuja tradução ainda deveria
permanecer vinculada à uma superfície plana delimitada.

Francisco Joaquim Bittencourt da Silva. Herma de Homero, 1850. Carvão/


Papel – 1850. 62,0 x 49,0cm – Museu Dom João VI, Rio de Janeiro. reg.
268

Embora também fosse uma forma artificial, a estatuária não


era o resultado visual de manchas e traços como eram os trabalhos
das primeiras etapas. Era afetada pela iluminação e pelo ponto de
vista em que era observada. Nem mesmo dispunha de
equivalências gráficas tão claras quanto na cópia de desenhos e
gravuras. Cabia ao aluno combinar os esquemas gráficos que
havia aprendido na fase anterior – esquemas obtidos do plano ao
plano –, para readequá-los a uma sugestão cujo objeto a que fazia
referência não era mais um trabalho plano mas um objeto
tridimensional posto à sua frente.
Reduzir dimensões, transformando uma impressão
binocular em uma tradução bidimensional, monocular, que ainda sugerisse uma ilusão
tridimensional, tornava-se seu principal desafio nesse momento.
Talvez não seja menos importante constatar que, para facilitar essa tarefa, já muito
complexa ante a fase precedente, as esculturas mantinham, em sua grande maioria, a

156
configuração monocromática (predominantemente branca, diga-se de passagem, devido a
constituição do material dominante das peças, o gesso); o que, de fato, evidencia um acréscimo
calculado de variáveis perceptivas presentes em cada etapa6.
As moldagens compareciam como objetos que ressaltavam mais claramente, num
estágio de importante transição visual, as relações contrastantes de sombra e luz presentes
em sua forma. Um passo muito maior do que esse possivelmente não seria dado sem prejudicar
o aluno no êxito de suas tarefas.
Era somente na última etapa – o ponto máximo da formação pictórica –, que todas as
dificuldades perceptivas esperadas à produção artística tornavam-se aparentes.
Nessa fase, o estudante se deparava com a aplicação de todas as variáveis visuais
que poderia encontrar em sua formação, simulando um ambiente em que trabalharia quando
concluísse seu aprendizado.
Desenhar diretamente do natural, ou do modelo vivo, implicava articular também
configurações gráficas que transpusessem uma referência tridimensional. No entanto,
essa referência era agora muito instável quando comparada à etapa anterior. Ao contrário
da estatuária, havia agora a cor, a mobilidade das luzes e das sombras em toda sua
profusão; havia a imobilidade controlada, mas não permanente, do modelo vivo; havia o
pouco tempo para poder desenhar esses modelos vivos, que eram pagos. Desenhar
bem e rápido, portanto, não era apenas uma habilidade frívola, mas uma economia
monetária indispensável ao bolso do artista.

Francisco de Paula Medeiros Gomes. Nu Masculino Recostado, crayon e


carvão sobre papel, 1843. 69,6 x 49,0cm. Museu Dom João VI, Rio de
Janeiro. reg. 535

Não obstante, não há dúvida de que, segundo as


diretrizes perceptivas planejadas nesse método, o artista que
havia passado afortunadamente por todos o pontos de formação
requeridos não teria problemas para elaborar com desenvoltura
seus estudos do natural.
No Brasil, um episódio que ilustra adequadamente a questão
dos problemas de percepção visual inseridos dentro do método
acadêmico refere-se a uma proposta feita por Victor Meirelles,
quando atuou como professor de pintura histórica na Academia
Imperial de Belas Artes. Imagino que consciente do pragmatismo
perceptivo presente na ordem daquelas etapas, Meirelles propunha
a adição de mais uma etapa de desenho no programa da academia.
Ele planejava, entre a cópia de esculturas e a cópia de modelos
vivos, que os alunos executassem estudos de natureza-morta.

157
O desenho de um objeto tridimensional, monocromático e estático, como era uma
escultura, deveria oferecer menores complicadores do que o desenho de objetos também
estáticos, mas policromos e multitexturizados, como eram aqueles que compunham uma
natureza-morta, cuja evidência das luzes e sombras não era tão simples. Todavia, esse
tipo de desenho ainda permanecia aquém do grau de dificuldade exigido pela etapa do
modelo vivo.
Meirelles propunha assim mais uma etapa que prepararia, entre as demais, uma
transição visual e produtiva mais amena ao aluno, e que o deixasse ainda melhor armado
para enfrentar as dificuldades sentidas na última fase.
Ademais, sendo o modelo vivo a instância mais complexa para ser imitada, a bem
conhecida dificuldade em consegui-lo, no Brasil, faz entender a fase adicional imaginada por
Meirelles. Ela fornecia ao aluno um caminho prolongado para melhor elaborar a sua técnica
pictórica e enfrentar o curto e raro tempo que dispunha do desenho do natural. Seguindo esse
percurso o estudante conseguiria, até ali, mais experiência para aprimorar seus esquemas de
tradução, articulando-os dentro de uma concepção de imitação cada vez mais laboriosa.
Com ou sem a implementação da fase adicional proposta por Meirelles, a mesma
lógica de construção permaneceria. A lógica perceptiva de aprendizagem assim poderia ser
resumida: o percurso destinado à adição de variáveis visuais tendia a levar o aluno a uma
visualização do plano ao tridimensional, do estático ao móvel, do monocromático ao cromático,
e, por último, de um “mundo” já traduzido em manchas a um mundo profuso e ainda sem
tradução pictórica.
Sem dúvida, quando confrontada com uma perspectiva de análise mais tradicional,
que considerava o método como um programa que “ensinava a ver” o mundo pela tradição
(um programa amaneirador, idealizante), uma segunda perspectiva do mesmo objeto, aqui
apresentada, torna possível pensá-lo como um programa que tentava efetivamente “ensinar
a ver” o mundo visível sob aspectos gráficos.

Notas e referências
1
Entre alguns estudos que abordam essa posição, chamo a atenção para aquele desenvolvido pelo
historiador da arte norte-ameridcano, Thomas Crow: “essa sequência de estudo elevava a herança da
arte clássica sobre a evidência direta da natureza, na qual o jovem estudante somente poderia acessar
uma vez que tivesse absorvido inteiramente uma abstração idealizada”. CROW, Thomas. Patriotism and
virtue: David to the young Ingres. in: EISENMAN, Stephen F. Nineteenth Century Art: a critical history.
New York: Thames & Hudson, 2002, p.14.
Juntamente com Crow, outros dois exemplos podem ser dados para enfatizar a predominância desse
tipo de análise sobre o método de ensino acadêmico até o século XIX. O historiador da Arte, Giulio Carlo
Argan, a respeito dessa questão escreve: “Naturalmente, na época neoclássica atribuia-se grande
importância à formação cultural do artista, a qual não se dava pelo aprendizado junto a um mestre, e sim
em escolas públicas especiais, as academias. O primeiro passo na formação do artista era desenhar
cópias de obras antigas: portanto, pretendia-se que o artista, desde o início, não reagisse emotivamente
ao modelo, mas se preparasse para traduzir a resposta emotiva em termos conceituais”. In ARGAN,
Giulio Carlo. Arte Moderna / Giulio Carlo Argan; tradução de Denise Bottmann e Federico Carotti. São

158
Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.25.
No Brasil, a historiadora da arte, Cybele Vidal Neto Fernandes, oferecendo uma leitura desse método
dentro do desenvolvimento da AIBA, chegaria a conclusões similares aos autores supracitados: “esse
processo consagrava o ensino clássico-acadêmico, cujos princípios norteadores eram a supremacia do
desenho, a natureza como mestra na busca da beleza ideal, o ensino disciplinado e gradual. Tinha como
ponto de partida a imitação, seguida da invenção e da expressão, pressupostos racionalistas que
orientavam o ensino acadêmico. in FERNANDES , Cybele Vidal Neto. O ensino de pintura e escultura na
Academia Imperial de Belas Artes. in: Sonia Gomes (org). 185 anos de Escola de Belas Artes. Rio de
Janeiro: PPG Artes Visuais, 2001-2. p.14.
A historiadora da arte, Annateresa Fabris, também enfatizaria para a importância da idealização dentro da
concepção classicista, a partir do século XVII.
Por um lado, a historiadora fazia uma ressalva quanto à importância da prática da abstração nesse
método, enquanto, por outro, demonstrava as diferenças na abordagem do objeto de imitação, em
diversas correntes artísticas a partir daquele período:
“...[No Classicismo] a própria natureza deveria se vista a partir dos exemplos gregos e romanos e é por
isso que a viagem a Roma é parte integrante da formação do artista.
O classicismo no século XVII opõe-se ao seu par complementar, o barroco, e aos resquícios maneiristas
ainda presentes num bom número de artistas. Sua tomada de posição é dupla: combate, de um lado, a
chamada pintura de maneira, isto é, a pintura gerada pela pintura, sem relações com a natureza; critica,
por outro, o naturalismo representado por Caravaggio, falho de invenção, submisso à natureza, incapaz
de seleção e, portanto, de idealização. Nesse contexto, o recurso ao exemplo clássico torna-se um
princípio regulador, um caminho a ser trilhado necessariamente pelo artista plástico que desejasse
reconquistar o sentido do natural... O ‘erro’de maneiristas e naturalistas seria sanado pela obsevação da
arte antiga, natural, mas não naturalista, isto é, penetrada pela idéia, expressão de uma realidade
purificada pela operação artística...
Ao combater contra maneiristas e naturalistas, a estética classicista do século XVII toma consciência de
sua tarefa: afirmar que a arte necessita da natureza como substrato e como material a ser sublimado e
negar, ao mesmo tempo, a natureza comum, não sujeita a regras, diante da qual a arte demonstra a sua
superioridade. FABRIS, Annateresa. O Classicismo nas Artes Plásticas. In: GINSBURG, Jacó (org.). O
Classicismo. São Paulo: Editora perspectiva, 1999. p. 271-272.
2
Assim o método acadêmico, já na metade do século XVIII, Denis Diderot, quando inaugurava fortes
críticas endereçadas à dita pintura acadêmica e às suas instituições fomentadoras: “E esses sete anos
passados na Academia, a desenhar segundo o modelo, julgais que foram bem empregados? Quereis
saber o que penso? É lá e durante esses sete penosos e duros anos que se aprende a maneira no
desenho .... se esquece a verdade natural; a imaginação se enche de ações, de posições e de figuras
falsas, afetadas ridículas e frias. Elas são armezanadas e daí sairão para fixar-se na tela. Todas as vezes
que o artista pegar seus lápis ou seu pincel, esses fantasmas enfadonhos reanimar-se-ão, aparecerão
diante dele; ele não poderia deles desviar-se e será uma façanha se conseguir exorcizá-los para
expulsá-los de sua cabeça.” DIDEROT, Denis. Ensaios sobre pintura. Campinas: Papirus, 1993. P.34-
35. Mais à frente Diderot reiterava: “De modo algum haveria maneira, nem no desenho nem na cor, se
a natureza fosse imitada com fidelidade. A maneira provém do mestre, da Academia, da escola e ate é
mesmo dos modelos da antiguidade.” Idem, p. 40.
A crítica de Zeferino da Costa a que me referia acima diz respeito ao julgamento dos trabalhos escolares
dos estudantes ao final do ano letivo de 1887: “Tendo [os alunos da classe fundamental] continuado
[posteriormente] no curso superior de desenho a copiar sempre e sempre bustos, extremidades e
estátuas de gesso sem alternarem o estudo com o natural vivo, amaneiraram-se por isso; uma vez
matriculados na aula de pintura, vêem-se em sérios embaraços na presença do modelo-vivo.” Cf.
GALVÃO, Alfredo. João Zeferino da Costa. Rio de Janeiro: Departamento Gráfico do Museu de Armas
Ferreira da Cunha, 1973. p.115.
Outras críticas nesse sentido, no Brasil, podem ser encontradas em textos de Gonzaga Duque, no seu
A Arte Brasileira; também em Angelo Agostini, em especial sobre a polêmica da exposição de 1879:
Revista Illustrada (dezembro de 1879, ano IV, n.187, p.2). Ou mesmo, sobre a mesma polêmica, por
meio de crítica de Mello Moraes: SAMPAIO, Rangel de . O quadro A Batalha dos Guararapes: seu autor
e seus críticos. Rio e Janeiro: Tipografia de Serafim José Alves, 1880. p.107.

159
3
Chamo aqui a atenção para um sugestivo exemplo que retoma a proposta oferecida pelo pintor Zeferino
da Costa, em uma carta enviada à AIBA nos anos de 1870, sobre a compra de fotografias inalteráveis das
obras de grandes mestres europeus. Para o artista, as fotografias dos desenhos dos mestres assemelhavam-
se a documentos visuais que ensinam ao aluno como aqueles artistas haviam traduzido o mundo visível
a partir do natural do passado. Mais do que isso, permitiaram-no assimilar a linguagem utilizada por
esses mestres em tal tarefa, para seguir em frente com seus próprios trabalhos.
4
Entre eles Ernst Gombrich, em seus livros Norma e Forma e Arte e Ilusão; W.T. J. Mitchell, em seu
Iconology; e também John Berger, no seu introdutório Modos de ver.
5
RIBON, Michel. Arte e Natureza. Campinas: Editora Papirus, 1991, p.81. Mais à frente, Ribon reitera
as conclusões aqui apresentadas: “O artista sabe que, para chegar ao desenho artístico que canta, é
preciso, através do desenho de observação limitado a falar e descrever, conhecer a natureza de que
poderá extrair infinitas possibilidades de expressão. Assim, a natureza coloca-se como um dicionário;
depois de tê-la estudado, o artista utiliza suas palavras-imagens-cores na sintaxe de seu estilo, para
lhe atribuir conotações e ressonâncias inauditas”. Idem, p.90.
6
É nessa relação que podemos também ressaltar o fato de que os alunos desenhavam com
estatuária de gesso e não de bronze. O gesso, naturalmente, evidencia relações de forma, luz e
sombra, de maneira muito mais clara do que o bronze.

160
Projeto premiado: a estátua eqüestre de d. Pedro I no desenho de
Maximiano Mafra1

Paulo Knauss
História/UFF
Diretor do APERJ

As imagens do Império que faltam


A proposta desse estudo surgiu da intenção de localizar o projeto de João Maximiano
Mafra escolhido no concurso de 1855 para a estátua eqüestre de d. Pedro I. Naquela altura,
o artista deixava a posição de professor substituto de pintura histórica da Academia Imperial
das Belas Artes, para se tornar professor do quadro da instituição de desenho de ornatos,
disciplina que somente ele ensinou até ser extinta em 1890. O inusitado da conquista do
concurso decorre do fato de que o jovem brasileiro concorreu com outros artistas estrangeiros
experimentados na escultura, como o francês Louis Rochet, cujo projeto obteve o 3º lugar no
concurso, e que terminou recebendo a encomenda de realização do projeto de Mafra. A
localização desse projeto premiado seria fundamental, considerando a importância da obra
criada a partir dele: a primeira escultura pública do Brasil2.
Para desenvolver o projeto escolhido pela comissão, o escultor francês Louis Rochet
esteve no Rio de Janeiro fazendo contatos e estudos para realizar a grande obra de arte
pública. Finalmente, em 18 de setembro de 1856, Rochet apresenta o modelo em gesso do
monumento realizado por ele na Academia Imperial das Belas Artes, além de apresentar um
relatório do seu trabalho em que constavam os detalhes de sua concepção final do monumento,
destacando as soluções que propunha para sua construção e opções de materiais, bem como
as modificações que propunha em relação ao projeto original do monumento3. É por meio
desse documento que conhecemos detalhes do projeto original de Maximiano Mafra. Assim, a
forma retangular do pedestal ganhou um formato octogonal quebrando os ângulos retos
previstos originalmente com volumes salientes de quina, como se fossem colunas. Foram
suprimidas, ainda, as palmeiras que deveriam servir de lampadários na proposta original.
Além disso, dois personagens foram acrescidos aos grupos escultóricos do pedestal que
deveriam representar os rios Amazonas e Paraná, localizados nas faces laterais e mais largas
do monumento, respeitando a proporção das superfícies. O chapéu na mão da estátua do
imperador foi substituído pelo Manifesto das Nações. Por fim, proponha a substituição do
granito como material previsto para o pedestal, por uma solução inteiramente em bronze.
A estátua eqüestre de d. Pedro I foi uma das maiores realizações em escultura de
bronze do século XIX e até hoje impressiona pela sua escala e monumentalidade. Ela se
compara a grandes e famosas estátuas eqüestres dos monarcas europeus, como a de
Napoleão, na cidade de Lyon (França), a do rei d. Joséi I, em Lisboa (Portugal), a de Pedro,

161
O Grande, de São Petersburgo (Rússia),e, especialmente, com a estátua eqüestre de Frederico
II, situada na cidade de Berlim (Alemanha), também toda em bronze – todas referidas por
Rochet em seu relatório de 1856. Além das qualidades simbólicas da obra brasileira, situada
na atual praça Tiradentes da cidade do Rio de Janeiro, ainda hoje, pode-se admirar o esmero
de sua realização conduzida por Louis Rochet na França que se caracteriza pela qualidade
do material empregado, a perfeição da fundição e, evidentemente, pela expressividade e
elegância plástica dos elementos escultóricos e ornamentais.
Importa salientar, porém, que o projeto original terminou ganhando adaptações que
inscreveram na concepção da obra a marca do escultor francês Louis Rochet. Ora, fica
evidente no relatório do escultor francês na AIBA que ele se reportava o tempo todo ao projeto
de Maximiano Mafra, procurando valorizar sua intervenção, mas sem deixar de reconhecer
que compartilhava a autoria da obra. Ocorre que também o original desse discurso de Louis
Rochet é desaparecido, sendo conhecido, sobretudo, pelas referências de Alfredo Galvão a
uma publicação do século XIX4. Assim, a história do projeto da estátua eqüestre de d. Pedro
I convive com lacunas dos documentos-chave de sua criação.
Na verdade, o desenho do projeto de Mafra se junta assim ao rol de imagens que
faltaram ao Império, como o projeto não realizado da estátua eqüestre de d. Pedro II e a
famosa tela inacabada da coroação de d. Pedro II, de autoria de Manoel Araújo Porto-Alegre.
Nesse sentido, podemos dizer que o projeto de Mafra não está só na história visual do
Segundo Reinado e é desta falta que precisamos partir.

O Brasil na escultura de Louis Rochet5


Muitos estrangeiros visitaram o Brasil no século XIX e deixaram suas impressões
registradas. Os mais lembrados costumam ser os autores de crônicas de viagem que em suas
narrativas deixaram não apenas uma descrição da terra e da gente do país como também
apresentaram sua interpretação do Brasil. Ocorre que, ao lado dos cronistas das narrativas
de viagens, inúmeros artistas estrangeiros deixaram o registro de sua passagem por terras
brasileiras, componde uma vasta iconografia do Brasil no século XIX. Como não poderia
deixar de ser, é o caráter artístico de sua interpretação do Brasil que salienta o interesse e a
originalidade da experiência desses artistas estrangeiros que visitaram o Brasil.
Louis Rochet foi um conhecido escultor francês do século XIX cuja vida e obra foram
marcadas pelo contato com o Brasil6. Em 1855 ele obteve o terceiro lugar no concurso público
de projetos para a estátua eqüestre de d. Pedro I. O projeto do monumento era antigo. A
iniciativa original do jornal Despertador Constitucional é do final do ano de 1824 e foi assumida,
no início do ano seguinte, pelo Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro7. Considerando
a magnitude da obra e as dificuldades técnicas de sua realização no Brasil, mesmo não sendo
vencedor, Louis Rochet recebeu a encomenda da obra para realizar o projeto vencedor.

162
Assim, o escultor francês realizou duas viagens ao Brasil previstas em seu contrato: a primeira
em 1856, ano da encomenda do serviço, para estudar os meios de realização da obra e
recolher as informações necessárias à confecção da estátua; e a segunda em 1862, ano da
montagem e inauguração do monumento público na cidade do Rio de Janeiro, para dirigir os
trabalhos de sua instalação8.
A estátua eqüestre de d. Pedro I foi inaugurada com grande cerimônia cívica que
devia celebrar a Constituição fundadora do Império do Brasil, pela homenagem ao seu autor,
o imperador d. Pedro I. A cerimônia de colocação da pedra fundamental do monumento
ocorreu em 1º de janeiro de 1862. Um cofre foi colocado aos pés da pedra com objetos que
como um exemplar da Constituição de 1824, além de cópia do Manifesto das Nações, peças
de moedas com a efígie dos dois imperadores do Brasil e documentos relativos à iniciativa da
construção do monumento. A inauguração propriamente dita da grande obra de arte pública
estava prevista para o dia 25 de março, data da constituição, mas devido às chuvas terminou
se realizando no dia 30 de março. Na praça, além da estátua em posição central, de um lado,
foi erguido um grande arco do triunfo e, de outro, foi instalado um templo romano para a
realização do ato religioso, o Te Deum, que marcaria a ocasião. Por trás dessa instalação,
uma tribuna foi preparada para a grande orquestra que acompanharia a ocasião. Junto à
praça, a varanda do teatro de São Pedro serviu como local para que a família imperial e
autoridades assistissem o evento. Não só a praça se decorou para a festividade cívica, mas as
janelas e portas dos edifícios da cidade ganharam bandeiras, flâmulas e enfeites que
expressavam a mobilização coletiva. O ponto alto, contudo, da organização foi o cortejo cívico
organizado que atravessou a cidade até atravessar o arco do triunfo e a multidão cercar o
monumento antes de descerrar o pano que deixaria amostra a primeira escultura pública
cívica do Brasil. Tratava-se de uma verdadeira festa da imagem, com programa diversificado,
acompanhado de salvas militares, benção religiosa, música e teatro, caracterizando um grande
ritual cívico que celebrava a monarquia imperial brasileira. O ritual definiria o modelo de uma
prática que se multiplicou ao longo do tempo em torno do culto a monumentos cívicos9.
O monumento realizado por Louis Rochet afirma certa leitura da afirmação do estado
nacional no Brasil, a partir de uma estrutura narrativa que define o papel das diferentes partes
da composição. O gradil, que foi realizado apenas em 1866, portanto, posteriormente à
inauguração da peça e de autoria de Miguel do Couto dos Santos, traz em suas colunas a
inscrição das datas históricas que formam um circuito temporal que apresenta as etapas do
processo de Independência e de definição da ordem institucional por meio da Constituição de
1824. O pedestal, por meio de suas alegorias que representam os quatro principais rios do
país Amazonas, Paraná, São Francisco e Madeira, representa a unidade do espaço nacional,
reforçada pela inscrição do nome das províncias imperiais no topo do pedestal. Acima, a figura
do imperador d. Pedro I surge como o sujeito decisivo da ação histórica, trazendo nas mãos

163
o símbolo da transformação social - as folhas do Manifesto das Nações, documento de referência
para afirmar a independência nacional do Brasil. Na face principal, um escudo se destaca, na
interseção do pedestal com a estátua, com a inscrição: “D.Pedro I - gratidão dos brasileiros”.
Ora, assim na concepção da escultura se propõe uma articulação simbólica entre o tempo, o
espaço, o sujeito e a obra da história, traduzindo um certo modo de entender a história do
Brasil que identificava o tempo e a o espaço da nação com a forma do regime da monarquia
imperial.
Se d. Pedro I pode ser considerado o sujeito principal da construção do estado
nacional no Brasil, cabe a José Bonifácio, como patriarca da Independência, o papel de sujeito
da razão de estado. Não sem motivo, sua estátua foi proposta junto com o monumento ao
imperador. Coube também a Louis Rochet completar esse projeto com a estátua de José
Bonifácio, inaugurada em 1872, no largo de São Francisco de Paula, na cidade do Rio de
Janeiro. A segunda escultura pública completava a narrativa proposta pela primeira,
considerando, que a primeira pode ser considerada uma representação da ação e a segunda
a representação da razão da história da afirmação do estado nacional no Brasil. Para completar
sua obra no Brasil, no mesmo ano, ele entregou uma estátua da imperatriz Teresa Cristina.
Mas o que chama atenção na obra brasileira de Louis Rochet é o fato de que ele com
o monumento a d. Pedro I colocou em praça pública as primeiras imagens escultóricas de
indígenas do Brasil. Em 1856, durante sua estada no Rio de Janeiro, o escultor francês se
dedicou a preparar estudos para sua criação artística. Desses estudos restaram até os dias de
hoje 12 bustos em gesso coloridos de índios do Brasil, existentes ainda hoje no Museu do
Homem, em Paris. Essas imagens de estudo serviram para o desenvolvimento dos rostos das
personagens alegóricas do pedestal da estátua eqüestre de d. Pedro I. Ao lado disso, Rochet
deixou também uma imagem em bronze do busto de um negro, chamado de Horácio. Consta
que a obra teria sido executada no Rio de Janeiro e exposta no Salão parisiense de 185710.
Por meio de sua obra escultórica, assim como outros viajantes estrangeiros do século
XIX, Louis Rochet teve seu interesse despertado pela diversidade étnica da sociedade local,
desenvolvendo as primeiras esculturas em bronze de índios e de um escravo negro do Brasil.
Com estas imagens o escultor francês certamente se integrava numa tendência artística européia
da época em torno do gosto pela escultura etnográfica, reunindo o gosto da ciência e o gosto
pelas artes11.

A estátua no arquivo do museu D. João VI


No acervo do museu d. João VI, que guarda a documentação da antiga Academia
Imperial das Belas Artes, encontram-se várias fontes para a história da estátua eqüestre de d.
Pedro I. Os desenhos inscritos no concurso compõem o acervo museológico da instituição,
enquanto o acervo arquivístico contém documentos escritos relevantes, como ofícios da Câmara

164
Municipal da cidade do Rio de Janeiro, ofícios da própria AIBA e atas das sessões da presidência
do diretor, entre os anos de 1855 e 1866. As informações contidas no arquivo da AIBA,
contudo, são esparsas e traduzem a frágil participação da instituição artística no movimento de
promoção da estátua eqüestre do imperador do Brasil liderado pela Câmara Municipal,
nomeando comissão específica. No projeto da Câmara, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro era mencionado, o que justifica porque documentos da comissão tenham sido
guardados no arquivo do IHGB. Contudo, não se pode deixar de destacar que Manuel
Araújo Porto-Alegre, diretor da AIBA, era membro da comissão nomeada com influência
decisiva12.
Um olhar sobre os projetos não identificados existentes no arquivo do museu, deixa
claro que o concurso foi marcado pela participação de concorrentes qualificados. As soluções
foram variadas, o que se observa, especialmente, pela diferença na concepção de pedestal
dos diferentes projetos. Um deles se aproxima de uma estrutura arquitetônica, sugerindo uma
composição de escala exagerada; outros propõem soluções distintas de pedestal, variando
entre a base retangular e oval, ou sua combinação entre volumes. Além disso, entre os vários
projetos, observa-se o gosto classicizante da composição proposta. Em todos eles, também,
nota-se o contraste entre o material do pedestal e da estátua, sugerindo que predominava a
intenção de usar o metal para a estátua, enquanto a opção pela pedra definia o material a ser
empregado no pedestal. Em um dos desenhos fica a sugestão de utilizar alguns detalhes em
relevo em bronze para o pedestal, dando-lhe acabamento. Um dos projetos chama atenção
pelos lampadários que complementam o conjunto e pela proposta de um leão deitado, como
alegoria de pedestal, buscando assim também uma referência à fauna, tal como no projeto
selecionada de Mafra. Contudo, nesse caso, é menos uma referência à terra que se alegoriza,
fazendo antes uma referência à monarquia, tendo o leão como um dos ícones tradicionais do
regime político. Por contraste, o que se distingue no projeto de Mafra, desenvolvido por
Rochet, é que a referência ao mundo natural dos trópicos nas alegorias do pedestal, pela
referência aos índios, ao lado dos animais da terra, conferia um caráter ímpar à proposta
premiada.
Ao lado disso, algumas passagens dos documentos do museu d. João VI evidenciam,
ainda, a tensão que existiu entre a AIBA e a comissão promotora da estátua do imperador d.
Pedro I. De modo menos contundente, ao lado de uma minuta aparentemente mais bem
sistematizada do programa para inauguração da escultura pública do imperador, há outra
minuta em que aparecem riscadas, na passagem final, várias instituições sociais que deveriam
estar representadas na ocasião, entre elas “as congregações da academia de belas artes”. O
fato é que a minuta mais acabada inclui todas as instituições riscadas no outro documento,
incorporando-as na ordem do préstito que foi organizado, inclusive a representação da AIBA.
O que fica sugerido é antes uma mudança de ordem de apresentação, que propriamente um

165
corte. Contudo, evidencia-se que a forma de integração da representação da AIBA foi colocada
em questão.
Contudo, a tensão entre a AIBA e a comissão promotora da escultura pública fica mais
evidente em ata da sessão de 21 de agosto de 1855. Na pauta da reunião, incluiu-se um ponto
provocado por ofício de Roberto Jorge Haddock Lobo, secretário da comissão promotora da
estátua do imperador d. Pedro I, em que se convidava o corpo acadêmico da AIBA “a escolher
entre os modelos da mesma estátua que foram expostos, três para serem premiados conforme
o programa da Comissão da Estátua, devendo a Academia remeter o seu parecer a dita
Comissão em ofício reservado”. A reunião tinha assim o objetivo de decidir se o corpo acadêmico
aceitaria o convite da comissão promotora. Aberto o debate, o primeiro pronunciamento foi do
prof. Lima, que expressou sua posição ao afirmar que “a Academia devia excusar-se por ter
sido sempre depreciada pela Comissão da Estátua, e nunca ouvida a tal respeito”. O mesmo
professor afirmava ainda que “o desprezo e a desatenção”, conforme suas palavras, fizeram
com que os professores tenham sido excluídos do séquito que acompanhou o imperador d.
Pedro II na visita que fez à exposição dos modelos. Adiante, consta que o mesmo professor
dizia que a Comissão não tinha um programa artístico e acrescentava que, por isso, somente
agora apelava para a Academia para resolver um embaraço que ela mesma criara. Seguindo
a mesma ata, o dr. Oliveira também acompanhou o argumento de que a Academia não tinha
porque se comprometer com a escolha dos modelos. Em outro momento, o prof. Müller
manifestou que do seu ponto de vista não “reputava nenhum deles em estado a ser executado”.
Antes de colocar em votação, porém, o diretor da AIBA procurou rebater a crítica e consta que
advertiu para as conseqüências da decisão, pois a recusa poderia abrir um precedente que
permitiria contestar o mesmo direito em outras ocasiões. Além disso, esclareceu que à Academia
cabia escolher três modelos e que a comissão promotora da estátua faria o julgamento final.
É preciso esclarecer quem são os personagens do debate. Naquela altura, o diretor
da casa, desde o ano anterior de 1854, era Manuel Araújo Porto-Alegre, originalmente
professor de pintura histórica da AIBA; o prof. Lima provavelmente era José Correia Lima,
professor de pintura histórica como Porto-Alegre, ou poderia ser Honorato Manoel de Lima,
professor de escultura de ornatos, mas que ingressara na escola naquele mesmo ano de
1855 e que mesmo sendo da área artística do concurso, pode-se supor que era ainda muito
novo na instituição para entrar em polêmicas; o dr. Oliveira certamente era o professor José
Joaquim de Oliveira, professor de matemática aplicadas na AIBA e professor militar da Escola
Militar; e o prof. Müller, certamente, era Augusto Müller, professor de pintura de paisagem,
flores e animais e que havia travado embates com Porto-Alegre durante a reforma do ensino
implementada naquele ano de 1855, a chamada Reforma Pedreira13.
Finalmente, houve uma votação que decidiu pela seleção dos projetos de número 28,
12 e 3, tendo o primeiro obtido 7 votos e os outros dois 6 votos cada, fechando-se a reunião

166
com a notícia de que o resultado seria oficiado à comissão da estátua. O que fica evidente,
portanto, é que a congregação reclamava um posto de liderança no projeto da primeira
escultura pública. Desse modo, ela demonstrava uma dificuldade de admitir que a elaboração
de uma obra de arte pública se definia por um contexto de autoria compartilhada, onde a
autoridade artística era dividida por muitos outros atores sociais.
Por outro lado, é preciso salientar que esta votação estava diretamente relacionada
com a reforma da instituição que Porto-Alegre implementou durante sua gestão. Com o objetivo
de transformar a Academia na instância máxima das artes no Brasil, exercendo controle e
fiscalização, a reforma previa, inclusive, que a AIBA deveria organizar concursos de
monumentos. A votação, nesses termos, significava por em prática o que estava previsto na
reforma da instituição. Assim, a aprovação da participação da AIBA no concurso confirmava a
liderança e o projeto de Porto-Alegre para a instituição.
Anos depois, quase um ano antes da inauguração da escultura pública, em ata da
sessão de 3 de maio de 1861, registra-se que a AIBA foi convocada a se manifestar a partir de
ofício da Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro sobre a organização do espaço
urbano que envolveria a estátua do imperador na antiga praça da Constituição. O presidente
da seção de arquitetura, e secretário da AIBA, registra as idéias que já haviam sido adotadas:

1º que o prospecto geral seja feito de modo que cada quarteirão de casas apresente
na fachada a aparência de um só edifício; 2º que as casas tenham pelo menos dois
andares; 3º que as fachadas opostas sejam iguais e todas semelhantes; 4º que se
indique a construção de galerias exteriores abertas em todas as edificações; diz
mais que a confecção dos desenhos foi confiada ao Sr. Professor de Arquitetura; e
que se esse professor não puder, pelos seus afazeres, [incompreensível] com a
necessária brevidade; o Sr. Professor de Desenho Geométrico , que espera estar
brevemente mais aliviado de trabalho, se encarregará de alguns: estas idéias
merecem a aquiescência do Corpo Acadêmico.

Nessa altura, o que se percebe é um ambiente de colaboração da AIBA com a


administração municipal. A história do logradouro, no entanto, indica que a proteção do derredor
não foi bem-sucedida. Poucos anos depois, a praça que nasceu com vocação de praça
cívica, terminou sendo toda ajardinanda, para desgosto de Moreira de Azevedo, o primeiro
estudioso da história da estátua do imperador14.
Não sem razão, nos arquivos do museu d. João VI, encontra-se ofício de Francisco
José Bithencourt da Silva, professor de arquitetura civil da AIBA, que solicitava os desenhos
dos dois projetos de estátua do imperador de autoria de Grandjean de Montigny, que se
encontravam na Câmara Municipal. Não há como avaliar com precisão essa demanda do ano
de 1864, dois anos depois da inauguração da estátua e dois anos antes da instalação do
gradil. Mas, certamente, essa demanda expressa por Bithencourt da Silva se relaciona, de

167
outro modo, com a valorização do papel que a Academia Imperial das Belas Artes deveria
exercer no mundo das artes, afinal esse era o debate interno que tomava a congregação de
professores da instituição.

168
Figs 1 a 5. Projeto apresentado ao concurso da estátua equestre de D. Pedro I. Museu D. João VI/EBA/
UFRJ.

Notas e referências
1
Esse texto deve um agradecimento especial a Douglas Thomaz de Oliveira que colaborou com
dedicação no levantamento de fontes.
2
Para uma caracterização da história da estátua eqüestre de d. Pedro I, veja-se: KNAUSS, Paulo. A festa
da imagem; a afirmação da escultura pública no Brasil do século XIX. IN: CAVALCANTI, Ana M.T.;
DAZZI, Camila; e VALLE, Arthur. Oitocentos; arte brasileira do Império à Primeira República. Rio de
Janeiro: EBA-UFRJ, 2008.
3
GALVÃO, Alfredo. A estátua eqüestre de d. Pedro I. Arquivos da Escola de Belas Artes. ano.XIV, n. 14,
p. 52-62, Rio de Janeiro: ago/1968.
4
O documento foi publicado por Alfredo Galvão com a seguinte referência: “Estátua Eqüestre do Senhor
D. Pedro I - Contrato do Sr. Rochet, Estatuário, e Proposta apresentada por ele à Comissão – Em 1856
- Typ. Dous de Dezembro, de Paula Brito – Impressor da Casa Imperial - Rio de Janeiro”. Segundo
Alfredo Galvão, a publicação seria parte do acervo da biblioteca da Sociedade Brasileira de Belas Artes,
no Rio de Janeiro que se encontra fechada há alguns anos.
5
Esse item tem como base o artigo publicado em: KNAUSS, Paulo. O Brasil de Louis Rochet. IN:
PINHEIRO, Liliana (org.). O olhar dos viajantes; o Brasil ao natural. São Paulo, Duetto, 2010. v. 1.
(História Viva – 1). P. 78-81.
6
A biografia de Louis Rochet é conhecida pelo livro escrito por seu sobrinho-neto: ROCHET, André. Louis
Rochet: sculpteur et sinologue, 1813-1878. Paris: André Bonne, 1978.
7
Informações sobre a iniciativa original de promoção do monumento cívico, encontram-se no primeiro
trabalho sobre a história da estátua eqüestre de d. Pedro I: AZEVEDO, Moreira de. O Rio de Janeiro: sua
história, monumentos, homens notáveis, usos e curiosidades. Rio de Janeiro: Livr. Brasiliana Ed., 1969.
v. II, cap. 1.
8
Veja-se, ROCHET, A. op. cit.
9
Para uma caracterização dos festejos que envolveram a inauguração da estátua eqüestre de d. Pedro
I, veja-se: RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Memória em bronze; estátua eqüestre de d. Pedro I. IN:
KNAUSS, Paulo (coord.). Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7 Letras,
1999.; e SANTOS, Gisele Cunha dos & MONTEIRO, Fernanda Fonseca. Celebrando a fundação do
Brasil: a inauguração da Estátua Eqüestre de D. Pedro I. Revista Eletrônica de História do Brasil. UFJF,
v. 4, n. 1, p. 59- 76, Juiz de Fora: jan.-jun./2000.

169
10
A referência a esses bustos de Louis Rochet existentes no Museu do Homem, em Paris, encontra-se
em: MIGLIACCIO, Luciano. A escultura monumental no Brasil do século XIX; a criação de uma iconografia
brasileira e suas relações com a arte internacional. IN: CONDURU, Roberto & PEREIRA, Sonia Gomes
(org.). Anais do XXIII Colóquio do Comitê Brasileiro de História da Arte. Rio de Janeiro: CBHA – UERJ
- UFRJ, 2004. Além disso, em artigo recente publicado no jornal Folha de São Paulo Jorge Coli também
faz referência aos bustos indígenas modelados por Rochet. Veja-se: COLI, Jorge. Idealização do índio
moldou a cultura nacional. Veja-se: http://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/imagens5.htm. acessado
em 05/03/2010.
11
Sobre a escultura antropológica, veja-se: LE NORMAND- ROMAIN, Antoinette et alii. La sculpture
ethnographique; de la Vênus hottentote à la Tehura de Gauguin. Paris: Réunion de Musées Nationaux,
(Les Dossiers du Musée d´Orsay).
12
É comum a referência à participação de Porto-Alegre na concepção do projeto de Mafra, fato que ele
mesmo menciona em seus diários como calúnia. Contudo, mesmo afirmando que o desenho não era de
sua autoria, admitiu que era sua a “idéia geral”, advogando o ponto de vista que tinha direito de dar uma
idéia a um dos seus discípulos. Esse fato corrobora como a construção do monumento cívico se fez num
ambiente de autoria compartilhada, reforçado ainda por um programa artístico que remontava aos anos de
1820. Essa informação consta em: FRIEDMAN, Sergio A. Posteridade em pedra e bronze. Rio de
Janeiro: /s.ed./, 1996. p. 34-35.
13
Para uma consideração sobre a reforma do ensino na AIBA durante a gestão de Porto-Alegre, veja-se:
SQUEFF, Letícia. A Reforma Pedreira na Academia de Belas Artes (1854-1857) e a constituição do
espaço social do artista. Caderno Cedes , v. 20, n. 51, Campinas: Nov. 2000. http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622000000200008. Acessado em: 03/05/2010.
14
AZEVEDO, M. de. Op. cit.

170
Pensionistas da Escola Nacional de Belas Artes e seu diálogo com a
arte de Munique nos anos 1890

Arthur Valle
UFRRJ

Na primeira década da República, os anos 1890, o ensino artístico oficial no Rio de


Janeiro, centrado na Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), exibiu uma singular abertura
com relação à diversidade estética da arte europeia contemporânea. Nesse sentido, é
particularmente significativo que tenham sido transcendidos os tradicionais laços com países
como a Itália e a França, e que alguns artistas brasileiros, na qualidade de pensionistas
custeados pela ENBA ou às suas próprias expensas, tenham passado temporadas de estudo
na cidade de Munique, capital do estado alemão da Baviera e um dos mais dinâmicos centros
artísticos da segunda metade do século XIX. Configurou-se, assim, um capítulo singular e
ainda pouco estudado daquilo que é hoje corrente chamar “transferências artísticas” entre a
Europa e o Brasil.
A relação com a arte da Alemanha e de outros países de língua germânica, como
Áustria e Suíça, não era, de maneira alguma, uma novidade no Rio de Janeiro quando a
República foi proclamada. Todavia, as novas determinações da direção da Academia de
artes fluminense, após a reforma que em 1890 a transformou em Escola Nacional de Belas
Artes, imprimiram um novo significado a essa relação. Resumindo em poucas palavras a
questão, eu afirmaria que o interesse pela arte “alemã” passou a gozar, na década inicial da
República, de um respaldo oficial dentro da Escola. Isso fica evidente quando se analisa,
por exemplo, para quais cidades europeias os pensionistas da ENBA foram então enviados.
Os seis pintores laureados na década de 1890 com o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro1,
sem dúvida o mais importante então oferecido pela instituição, foram igualmente “distribuídos”,
seguindo um desígnio bastante sistemático, por três cidades diferentes: Roma, Paris e - o
meu interesse imediato aqui - Munique.
As Atas das sessões do Conselho Escolar da ENBA dão testemunho dessa
determinação, que emanava da própria direção da instituição. O primeiro dos dois pensionistas
da ENBA designado expressamente para realizar sua temporada de aperfeiçoamento artístico
na cidade de Munique foi José Fiúza Guimarães. A Ata de 26 de novembro de 1895 transcreve
as palavras de Rodolpho Bernardelli, então Diretor da ENBA, propondo que o pensionista
Fiúza prosseguisse seus estudos na cidade de Munique, “atendendo a só se ter enviado
alunos até a atualidade, para Roma e Paris, sem haver razão que se justifique não se assim
proceder para com a cidade proposta, onde as Belas Artes têm desenvolvimento progressivo,
e o gosto artístico é bastante cultivado”2.

171
No ano seguinte, 1896, como consta em parecer transcrito na Ata da sessão do
Conselho Escolar de 5 de dezembro, a comissão julgadora do concurso ao Prêmio de Viagem
definiu que “para sede dos estudos nos dois primeiros anos”, o então laureado Antonio de
Souza Vianna fosse igualmente enviado para “a cidade de Munique, podendo, entretanto, o
aluno premiado caso seja seu desejo, e isto não acarrete mais para o estado, ser transferido
mediante autorização da Diretoria da Escola Nacional de Belas Artes, para outro centro
artístico de equivalente importância”3.
Além desses dois pensionistas oficiais, outros artistas brasileiros que passaram por
estágios de formação na ENBA, na qualidade de alunos-livres, também se fixaram na Alemanha,
onde estudaram e entraram em contato com os círculos artísticos locais. O caso certamente
mais conhecido é o de Helios Aristides Seelinger. Em 1896, às expensas de sua própria
família, Seelinger se estabeleceu pela primeira vez em Munique, na companhia de Fiúza
Guimarães, que para lá se dirigira na mesma época como pensionista oficial da ENBA. Nas
palavras do próprio Seelinger, o conselho para tanto teria partido diretamente de um dos
irmãos Bernardelli4. Filho de pai alemão, pode-se supor que Helios fosse bem familiarizado
com a cultura germânica, mas a destinação de sua viagem parecia convir também às suas
inclinações artísticas. Em seus quadros já então se insinuavam os primeiros indícios daquilo
que o próprio Seelinger certa vez definiu como o “fundo místico” que viria a caracterizar boa
parte de sua produção, e que, nos países de língua alemã - como bem sabiam os Bernardelli
-, encontrava então um dos seus mais férteis campos de expansão. No início do século XX, o
pintor retornou ao Brasil e, após obter o Prêmio de Viagem na Exposição Geral de 1903,
novamente se dirigiu para a Europa, dessa vez à custa da ENBA, voltando a frequentar o
meio artístico de diversas cidades, com especial destaque para a sua já conhecida Munique.
As pesquisas por mim conduzidas até o momento permitem conhecer alguns detalhes
da trajetória de estudos dos brasileiros em Munique. Correspondências e depoimentos
pessoais, documentos institucionais, bem como as próprias obras dos artistas envolvidos são
as principais fontes que permitem esclarecer o tema. Por
exemplo, em uma carta endereçada a Rodolpho Bernardelli
(Fig. 1), datada de 8 de maio de 1897 e pertencente ao acervo
do Museu Dom João VI/EBA-UFRJ, o acima citado Souza
Vianna informava: “Tenho a honra de comunicar a V. Exa. ter
chegado a München anteontem (6 de maio) na qualidade de
pensionista do Governo Brasileiro e achar-me frequentando o
Atelier Ažbe, onde preparo-me para a matrícula na Escola de
Belas Artes”.
Figura 1 - Carta de Antonio de Souza Vianna a Rodolpho
Bernardelli, 8 de maio 1897. Acervo Arquivístico do Museu
Dom João VI, EBA/UFRJ, Livro de Correspondências n/p.

172
A primeira instituição a qual Souza Vianna se refere é o ateliê de Anton Ažbe, artista
nascido na Eslovênia, que se estabelecera em Munique em 1884. Depois de frequentar por
alguns anos a renomada Akademie der Bildenden Künste (Academia de Belas Artes) de
Munique, ele fundou, em 1891, a sua própria escola privada de arte, que logo se tornou uma
das mais populares do gênero em Munique, atraindo estudantes de todo o mundo, em especial
do leste da Europa. Alguns de seus alunos ficaram posteriormente famosos no contexto das
correntes vanguardistas modernas, como os russos Alexei Jawlensky e, sobretudo, Wassily
Kandinsky. Este último frequentou o ateliê de Ažbe entre 1896 e 1898, e teria sido ali, portanto,
contemporâneo de Vianna.
O ensino na Ažbe-Schule era centrado no estudo do modelo vivo, à maneira dos
estabelecimentos congêneres em outras cidades europeias, como a conhecida Académie
Julian em Paris. Mas a pedagogia do esloveno era bem particular, como sintetizou Peg Weiss,
procurando entender como esta se refletiu na obra de Kandinsky:

Havia, no ‘método’ de Ažbe, quatro aspectos principais particularmente relevantes


[...] Estes eram: sua ênfase no uso de cores puras aplicadas diretamente à tela,
sem misturas; seu amplamente conhecido principe de la sphère ou Kugel-system,
como ele o chamava; seu conselho para trabalhar com linhas ousadas, ondulantes,
e com um pincel bastante largo; e, finalmente, seu comprometimento em encorajar
o desenvolvimento individual de seus estudantes5.

Existem poucas obras conhecidas de Souza Vianna, falecido precocemente em 1903,


após seu retorno de Munique, para que se possa verificar, em detalhes, se e como ele
absorveu o método de Ažbe. Ainda assim, minhas pesquisas revelaram duas academias
(trabalhos a partir do modelo vivo) que apresentam características formais compatíveis com as
que, segundo Weiss, eram preconizadas pelo esloveno. Ambas as academias são
presumivelmente datadas de 1899, o segundo ano da estada de Souza Vianna em Munique.
A primeira pertence ao Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro (MNBA/RJ): nela,
o contorno da figura nua de costas, aparentando ser uma menina mais do que uma mulher
adulta, é configurado quase somente com linhas amplas, contínuas e curvilíneas, e se destaca
sobre um fundo verde-escuro bastante vibrante, que evoca o “uso de cores puras” referido
por Weiss em relação à pedagogia de Ažbe. A segunda pertence ao Museu Dom João VI/
EBA-UFRJ (Fig. 2): novamente temos uma figura feminina de costas, e, embora dessa vez a
obra seja quase monocromática, reencontramos o mesmo tratamento sintético nas linhas de
contorno, acompanhado por largas pinceladas e empastamentos de tinta, praticamente
independentes de qualquer sugestão de modelado. De fato, nas duas obras, a vista de costas
das modelos, que pouco revela sobre suas individualidades, parece ter encorajado o pintor
a enfatizar um jogo quase abstrato de massas de valor contrastantes e praticamente uniformes.
Se consideradas no conjunto de academias pintadas pelos estudantes da ENBA nos anos
iniciais da República - inclusive se comparadas com outras realizadas pelo próprio Souza

173
Vianna antes da ganhar o Prêmio de Viagem -, essas duas obras são atípicas. Isso reforça a
hipótese de que elas tenham sido executadas em Munique, sob uma orientação estética como
aquela vigente no ateliê de Anton Ažbe.
Figura 2: ANTONIO DE SOUZA VIANNA (1871- 1903): Nu
feminino, c. 1899. Óleo sobre tela, 89,5 x 72 cm. Rio de Janeiro,
Museu Dom João VI/EBA/UFRJ, n. Registro 5.

Já a instituição designada por Souza Vianna como


“Escola de Belas Artes” é, certamente, a Akademie der
Bildenden Künste de Munique. Embora eu não tenha
encontrado nenhum registro da efetiva matrícula de Vianna
nessa instituição, o primeiro pensionista da ENBA enviado
para Munique nos anos 1890, Fiúza Guimarães, realmente
lá ingressou. O livro de matrículas da Akademie que cobre
o período de 1884-19206 acusa o ingresso de Fiúza em
17 de junho de 1896, sob o n . 1552, com a grafia de seu nome germanizada para “Joseph
o

Fiuger Guimaraes”, na Naturklasse7 dirigida por Karl Raupp. Raupp, ex-aluno de Karl Von
Piloty na própria Akademie de Munique, realizou principalmente pinturas de paisagem e de
gênero, impregnadas de um sentimentalismo reminiscente da chamada Era Biedermeier, na
primeira metade do século XIX. Porém, e de forma talvez ainda mais aguda do que no caso da
relação Ažbe -Souza Vianna, a pequena quantidade de obras de Fiúza Guimarães atualmente
conhecidas não permite precisar em que medida o brasileiro absorveu a maneira de seu
mestre Raupp.
Ainda que pouco abundantes, os trabalhos artísticos executados pelos brasileiros em
Munique ou após os seus retornos ao Brasil sugerem algumas hipóteses a respeito de quais
aspectos da cultura figurativa alemã contemporânea atraíram a atenção de nossos artistas.
Julgo interessante aprofundar esse tópico, uma vez que, no meu entender, o caráter distintivo
que a arte “alemã” possuía, na perspectiva do meio fluminense dos anos 1890, foi provavelmente
um dos principais fatores que contribuíram para que a ENBA estreitasse os seus laços com o
meio artístico da capital bávara.
O historiador de arte norte-americano Joshua Taylor sugere um bom ponto de partida
para minhas considerações quando procura caracterizar o que, aos seus olhos, constituiria,
nas décadas finais do século XIX, uma autêntica “Escola de Munique”: “ao contrário da severa
especificidade linear a qual os críticos regularmente se referiam como a maneira de Düsseldorf8,
Munique apoiava uma pintura sombria e rica, com reminiscências da Renascença, Velásquez,
e da Holanda seiscentista”9. Durante os anos 1870 e 1880, os artistas norte-americanos
instalados em Munique fizeram experiências com o estilo derivado dessas referências,
caracterizado por pinceladas impetuosas, emprego de blocos de cor justapostos e omissão do

174
modelado cuidadoso dos métodos mais tradicionalmente identificados à pedagogia das
Academias de arte. Entre o estilo da “Escola de Munique” definido por Taylor e o tipo
de execução supostamente propugnado por Ažbe em sua escola parecem existir
analogias notáveis.
Embora datados já nos anos 1890, alguns retratos realizados por Souza Vianna e
Seelinger combinam com a definição de Taylor. O aspecto peculiar dessas obras, expresso na
execução franca, nos contornos simplificados e na predominância de contrastes bruscos de
claro-escuro pode também ser percebido, em grande medida, nas academias realizadas em
Munique pelo mesmo Seelinger (Fig.3a) e por Fiúza Guimarães (Fig.3b). Comparando tais
trabalhos com as academias executadas pelos nossos pensionistas estabelecidos em Paris ou
em Roma nos mesmos anos, parece possível generalizar certas diferenças, especialmente no
que diz respeito ao tenebrismo carregado dos primeiros, que remete novamente às palavras
de Taylor, segundo o qual os trabalhos dos artistas de Munique refletiam, com frequência, as
tonalidades sombrias dos mestres seiscentistas holandeses e espanhóis.

Figura 3a - HELIOS SEELINGER (1878-


1965): Nu masculino de costas, 1900.
Crayon e giz branco sobre papel, 60,8 x 36
cm. Rio de Janeiro, Museu Dom João VI/
EBA/UFRJ, n. reg. 490.
Figura 3b - JOSÉ FIÚZA GUIMARÃES (1868-
1949): Nu feminino, 1898. Óleo sobre tela,
137 x 61,6 cm. Rio de Janeiro, Museu Dom
João VI/EBA/UFRJ, n. reg. 37.

Características análogas
podem ser encontradas em
composições bem mais ambiciosas,
como é notavelmente o caso da tela de
Seelinger chamada Boemia, executada
pouco após sua volta de Munique e
que conquistou, para o seu autor, o
Prêmio de Viagem na Exposição Geral de 1903 e hoje pertencente ao MNBA/RJ10. O
aspecto todo particular dessa obra, que, apesar de suas dimensões, guarda muito da
aparência de um esboço, chama de imediato a atenção. Já em 1902, resenhando uma
exposição individual de Seelinger, o crítico Carlos Américo dos Santos opinava que os
quadros do artista então mostrados “impressionam mais como esboços para ser pintados
em grande”11. Mas, a respeito de Boemia, o articulista do Jornal do Commercio -
possivelmente o mesmo Américo dos Santos -, foi ainda mais preciso. Embora fizesse notar
os “defeitos” do quadro, imputados “à pressa de terminá-lo e à falta de estudo de diversas
figuras”, o crítico simultaneamente frisava o que este possuía de louvável:

175
Mas [Boemia] tem qualidades vigorosas e no seu efeito geral é bastante
impressionador. A sua execução é larga e nervosa: o colorido é quente, bem feito,
bem distribuído e bem estudado o efeito da luz artificial de querosene [...]. A
perspectiva aérea é boa; os agrupamentos têm movimento e vida [...]. Há um quê
de romântico na escolha da hora e o elemento simbólico é introduzido com a figura
da mulher, nua, apenas coberta por um véu roxo-escuro12.

Documentos por vezes inusitados permitem uma consideração ainda mais ampla dos
vínculos entre os brasileiros e a cultura figurativa da Munique finissecular. Por exemplo, uma
entrada recentemente descoberta no livro de visitas oficial (Fremdenbuch), mantido entre
1853 e 1905 na estalagem da família Streicher, na cidade de Polling, próxima a Munique,
acusa a visita de Fiúza Guimarães no dia 19 de agosto de 189913. Fiúza visitou Polling
acompanhado de outros dois brasileiros, um deles o músico Francisco Braga - amizade esta
que, por si só, é digna de nota e de um estudo aprofundado; mas, o que me interessa aqui,
nesse momento, é certa produção artística vinculada estreitamente a Polling.
Um vilarejo pitoresco situado aos pés dos Alpes bávaros, 30 milhas ao sul de Munique,
Polling foi o refúgio favorito de diversos artistas norte-americanos que estudaram na Alemanha
no final do século XIX, especialmente entre anos 1870 e 188014. Pintores como Frank Duveneck,
William Merritt Chase e John White Alexander, entre outros hoje menos lembrados, frequentaram
a cidade e, inspirados pelo que lá vivenciaram, produziram paisagens e cenas de gênero
onde o ambiente e os modos de vida do camponês bávaro ocupavam o papel principal.
Tendo isso em mente, é possível levantar hipóteses sobre uma das únicas pinturas
de Souza Vianna hoje conhecidas que parece não se vincular de maneira direta a práticas
pedagógicas. Trata-se de uma obra intitulada Estábulo - Munique, que se encontra
reproduzida no conhecido livro Um século de pintura (1916), de Laudelino Freire15. Se
compararmos a reprodução desse quadro - que pertencia à galeria de Freire e cujo
paradeiro atual é desconhecido - com obras de pintores como Walter Shirlaw, um dos norte-
americanos que frequentaram Polling, as analogias saltam aos olhos: teria também Souza
Vianna visitado a cidade, assim como fizera seu amigo Fiúza? De qualquer maneira, o
quadro de Vianna testemunha o seu interesse, em um registro realista, pela vida campesina
europeia - interesse que, no final do século XIX, se difundiu entre os brasileiros expatriados
e que logo reivindicou a figura do nosso próprio homem do campo, de seus modos e de seu
habitat, como motivos privilegiados16.
Outros trabalhos evidenciam ainda a recepção dos brasileiros do tipo muito particular
de modernismo praticado em Munique e manifesto, de maneira programática, nas exposições
promovidas pela Secession local, nos anos 1890. Considerando em conjunto o que os mais
importantes artistas alemães, bem como os convidados de outros países, ali expunham, Maria
Makela afirmou que as variantes de Naturalismo e Simbolismo presentes nas mostras da
Secession possuíam, não obstante a sua diversidade, algumas características comuns, que

176
definiam o que ela designou com a expressão “tradição lírica”, “uma variante do
Modernismo que geralmente evitava a expressão direta de conteúdos emotivos intensos
em favor de um lirismo natural mais evocativo e filtrado”17. Essa “tradição lírica”, ainda
segundo a visão de Makela, alcançaria a sua mais brilhante expressão no início dos anos
1910, nas obras de artistas como Kandinsky, Paul Klee e Franz Marc, ligados então ao
famoso grupo do Blaue Reiter.
O interesse por um verdadeiro patrono desse “lirismo” da arte de Munique, Arnold
Böcklin, se encontra formalmente indicado em uma outra carta de Sousa Vianna, datada de
1900 e endereçada a seu ex-mestre na ENBA Rodolpho Amoêdo. Nela, o pensionista
manifestava o desejo de copiar um quadro do renomado pintor suíço, justificando-se nos
seguintes termos: “proponho à escola a cópia do quadro de Arnold Böcklin, - Das Wellen Spiel
[sic] - uma obra prima da escola alemã, um poema de fantasia enorme, e uma cópia dificílima
sobretudo”18. Muito provavelmente o quadro ao qual se refere Souza Vianna é aquele hoje
conhecido pelo título Im spiel der Wellen, realizado por Böcklin em 1883 e pertencente à Neue
Pinakotheke de Munique. Sabe-se que o conselho da ENBA aprovou a solicitação de Souza
Vianna19, mas, até o momento, não encontrei indícios que confirmem se ele realmente levou a
cabo a realização de tal cópia.
Declarações de Seelinger permitem desdobrar as reflexões sobre as relações que os
brasileiros estabeleceram com a “tradição lírica” de Munique, postulada por Makela. Em mais
de uma oportunidade, Seelinger afirmou ter sido aluno do pintor e ilustrador Franz von Stuck,
o carismático “príncipe das artes”, um dos membros fundadores da Secession de Munique e,
segundo Kandinsky, legítimo sucessor de Arnold Böcklin na busca de uma arte espiritualizada20.
Nesse sentido, Seelinger declarou: “De Stuck recebi a influência panteísta que é fácil descobrir
nos meus trabalhos. O misticismo, revelado nos meus estudos de ‘atelier’, desenvolveu-se
fortemente ao influxo do idealismo alemão”21.
Desde 1895, Stuck pontificava como professor de pintura da Akademie de Munique,
onde estudara, nos anos 1880, e onde, até o final da década de 1920, orientaria artistas
de diversas orientações estéticas, incluindo nomes seminais do Modernismo europeu,
como os citados Kandinsky e Klee ou Joseph Albers. Embora eu não tenha encontrado,
até o momento, nenhum documento que comprove que Seelinger ou qualquer outro dos
nossos pensionistas tenha de fato frequentado as prestigiosas e concorridas aulas de
Stuck, o certo é que a ascendência desse pintor pode ser percebida nos trabalhos dos
brasileiros que frequentaram Munique.
Fiúza Guimarães, que não chegou a permanecer em Munique durante o período
integral de seu estágio na Europa22, parece não ter escapado à influência de Stuck - ou, pelo
menos, foi isso o que alguns críticos brasileiros perceberam em suas obras. Em 1913, por
exemplo, ao resenhar um quadro de Fiúza intitulado Guerra, que figurava na Exposição
Geral, o articulista anônimo do Jornal do Commercio chamou atenção para suas semelhanças

177
com a famosa obra de Stuck, de título idêntico, pintado em 189423. Ao mesmo tempo que exalta
a simplicidade e largueza com as quais Stuck pinta os cadáveres em sua versão da Guerra,
o crítico ressente-se da ausência, na de Fiúza, de um “vigoroso tratamento técnico” - o que
parece indicar a sobrevivência da acima referida associação entre bravura pictórica e a arte
dos alemães. Dias depois, foi a vez do próprio Fiúza ir à imprensa e negar a comparação, que
ele interpretou como uma acusação de plágio. Sua réplica foi publicada no jornal A Noite24,
que, além disso, estampou em sua capa reproduções das duas “Guerras”. Mas, tanto quanto
se pode julgar o quadro do brasileiro a partir dessa única reprodução por mim encontrada, é
necessário dar razão ao crítico Jornal do Commercio, ao menos no que diz respeito à
adoção, por Fiúza, de um tipo compositivo semelhante ao da obra de Stuck.
A obra de Seelinger deixa entrever, ainda, a relação com um outro representante
efetivo da “tradição lírica” na arte de Munique, Richard Riemerschmid. Diversas de suas
composições com figuras fantásticas acusam a influência do alemão, mas Seelinger parece ter
se interessado igualmente por outra porção da obra de Riemerschmid. A partir de 1893, este
último passou a explorar, em suas paisagens, motivos e sugestões atmosféricas bastante
afastadas de qualquer naturalismo, o que é bem exemplificado pela tela E o Senhor Deus
plantou um jardim no Éden - obra da qual são conhecidas ao menos duas versões, uma
completada em 1896 e exposta na Secession desse ano, outra de 190025. Riemerschmid
criou ali uma espécie de “altar profano”, no qual a Natureza - e não Deus, Cristo ou qualquer
santo -, aparece como a entidade glorificada, concepção afirmada de maneira não-ambígua
pela auréola envolvendo a Árvore da Vida, no centro superior do quadro. O panteísmo dessa
e de outras obras de Riemerschmid, é claramente perceptível em diversas das paisagens
pintadas por Seelinger no Brasil, ao menos a partir dos anos 1910, como bem demonstram os
biombos e as telas que figuram em volta do artista, na foto que ilustra a citada entrevista,
concedida a Angyone Costa, publicada no livro A Inquietação das Abelhas, em 1927.
Com o despontar do século XX, uma mudança de atitude da ENBA com relação à
capital bávara pode ser verificada: depois de Souza Vianna, nenhum outro pensionista foi
enviado para estagiar em Munique. A partir de então, a cidade de Paris se afirmaria de
maneira cada vez mais exclusiva como o destino por excelência dos pensionistas oficiais da
ENBA26. Cumpre citar, por exemplo, que, ao ganhar o Prêmio de Viagem em 1903, Seelinger
teria sido aconselhado a estabelecer-se na França: “Bernardelli dissera-me, naquele momento,
que, para o Brasil, a arte alemã era de difícil compreensão e, por isso, julgava mais útil que eu
me transportasse a Paris”27.
Ainda assim, nas décadas seguintes, Munique voltaria a atrair novos artistas brasileiros,
que, diferente do que fora a regra antes, para lá se dirigiam independentemente do amparo de
instituições oficiais brasileiras. Existem registros de que pelo menos dois brasileiros estudaram
na Akademie der Bildenden Kunst de Munique nos anos 1910. Em abril de 1915, o paranaense
Frederico Lange, de Morretes, se matriculou na Akademie de Munique sob o no 5477, na

178
Zeichenschule de Angelo Jank. Personagem de talentos múltiplos, Lange desempenhou um
papel importante na extensão do chamado movimento Paranista ao campo das artes visuais,
despendendo esforços significativos no desenvolvimento das Artes Aplicadas paranaenses. O
outro brasileiro que estudou na Akademie de Munique foi Alberto da Veiga Guignard, celebrado
como um dos mais importantes introdutores do Modernismo no Brasil: Guignard matriculou-se
em maio de 1916 na Zeichenschule regida por Hermann Groeber.
Comentar a trajetória desses artistas foge às intenções do presente texto. Não obstante,
creio possível desde já afirmar que as suas temporadas de estudo em Munique contribuíram
com elementos insubstituíveis para a configuração do caráter peculiar de suas produções,
assim como, nos primeiros anos da República, ocorreu com relação às de Fiúza Guimarães,
Souza Vianna e Seelinger. Se essa hipótese estiver correta, ela reforça a intenção principal
do presente trabalho, que foi a de servir como um incentivo para que abandonemos as ainda
muito frequentes concepções reducionistas a respeito das relações que a arte brasileira teceu
com a europeia e que passemos a encarar estas últimas na sua fascinante diversidade e
complexidade.

Notas e referências
1
São eles: Eliseu Visconti, em 1892; Raphael Frederico, em 1893; Bento Barbosa, em 1894; José Fiúza
Guimarães, em 1895; Antonio de Souza Vianna, em 1896; Theodoro Braga, em 1899.
2
ATAS das sessões do Conselho Escolar da Escola Nacional de Belas Artes, 1891-1901. Acervo
Arquivístico do Museu Dom João VI, EBA/UFRJ, Notação 6154, p. 39. A grafia desta e de todas as outras
citações de época se encontra atualizada.
3
ATAS das sessões do Conselho Escolar da Escola Nacional de Belas Artes, 1891-1901. Acervo
Arquivístico do Museu Dom João VI, EBA/UFRJ, Notação 6154, p. 48 verso.
4
A declaração de Seelinger a esse respeito é imprecisa, não sendo possível afirmar, com base nela, se
o conselho teria partido de Rodolpho Bernardelli ou de seu irmão mais novo, Henrique, à época membros
da ENBA; cf. COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas (O que dizem nossos pintores, escultores,
arquitetos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil). Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia,
1927, p. 159-160.
5
WEISS, Peggy. Kandinsky in Munich. The Formative Jugendstil Years. Princeton, New Jersey: Princeton
University Press, 1979, p. 15.
6
MATRIKELBÜCHER der Akademie der Bildenden Künste München, 1884-1920, s/n. Os dados referentes
a Fiúza que constam no documento são: Zahl: 1552 / Name: Guimares Joseph Fiuger / Geburts-Ort und
Stand der Eltern: Rio de Janeiro (Brasilien) Vater: Kaufmann Katholisch / Alter 27 / Kunstfach: Naturklasse
Raupp / Tag der Aufnahme: Jahr 1896, Mon. Juni, Tag 17.
7
A partir de 1884, a “Naturklasse (aula de desenho do natural) se tornou a única aula de desenho [da
Akademie de Munique], sendo renomeada como Zeichenklasse [aula de desenho] em 1901”. BÖLLER,
Susanne. “American Artists at the Academy of Fine Arts in Munich, 1850-1920”. In: FUHRMEISTER, C.;
KOHLE, H.; THIELEMANS, V. (Eds.). American Artists in Munich. Artistic Migration and Cultural Exchange
Processes. Berlim/München: Deutscher Kunstverlag, 2009, p. 47.
8
Düsseldorf, hoje capital do estado da Renânia do Norte-Vestfália, desempenhou um papel artístico
dominante no panorama das cidades alemãs entre as décadas de 1840 e 1860.
9
TAYLOR, Joshua. Op. cit., p. 120 (grifo meu).
10
HELIOS SEELINGER (1878-1965): Boemia, 1903. Óleo sobre tela, 103 x 189,5 cm. Rio de Janeiro,
Museu Nacional de Belas Artes.
11
Transcrito em BARATA, Mário. “Textos antigos sobre H. Seelinger e H. Cavalleiro.” In: Arquivos da
ENBA. Rio de Janeiro: UFRJ / ENBA, Ano VIII, 1962, p. 123-125.

179
12
“Notas de Arte”. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 9 set. 1903, p. 3.
13
Agradeço ao Prof. Walter Grasskamp, da Akademie der Bildenden Kunst de Munique, e ao Sr. Dominik
von König por terem gentilmente me cedido uma reprodução das páginas do Fremdembuch de Polling
onde figuram as assinaturas dos brasileiros.
14
PETERS, Lisa N.. “Youthful Enthusiasm under a Hospitable Sky”: American Artists in Polling, Germany,
1870s-1880s. American Art Journal, Vol. 31, No. 1/2, 2000, p. 57-91.
15
FREIRE, Laudelino. Um século de pintura. Apontamentos para a História da Pintura no Brasil de 1816
a 1916. Typographia Röhe, Rio de Janeiro, 1916, , p. 608.
16
VALLE, Arthur. “Imagens do Camponês na Pintura Brasileira: O Sertanejo de Carlos Chambelland”.
Esboços (UFSC), Santa Catarina, 2008, v. 19, p. 77-94.
17
MAKELA, Maria. Op. cit., p. 125.
18
Acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Notação 5188.
19
ATAS das sessões do Conselho Escolar da Escola Nacional de Belas Artes, 1891-1901. Acervo
Arquivístico do Museu Dom João VI, EBA/UFRJ, Notação 6154, p. 93 recto.
20
MENDGEN, Eva. Franz Von Stuck (1863-1928). “A Prince of Art”. Köln: Benedikt Taschen Verlag,
1995, p. 89.
21
COSTA, Angyone, Op. cit., p. 160.
22
Após três anos de estudo em Munique, Fiúza Guimarães se transferiu, sem autorização prévia dos
dirigentes da ENBA, para Paris. Embora tal atitude tenha causado certa consternação entre os membros
do Conselho Escolar da instituição, ela acabou por ser aceita, em vista ao “aproveitamento e aos bons
trabalhos” que o pensionista havia enviado; cf. ATAS das sessões do Conselho Escolar da Escola
Nacional de Belas Artes, 1891-1901. Acervo Arquivístico do Museu Dom João VI, EBA/UFRJ, Notação
6154, p. 92-92 verso.
23
“O senhor Fiúza Guimarães tem dois trabalhos, um estudo de cabeça, já velho, e um quadro alegórico
de grandes pretensões, de que não gostamos nada. / Esse quadro é intitulado a Guerra, e foi inspirado,
diz o Catálogo, em uma bela poesia do falecido e saudoso Thomas Lopes./ Diante dele é impossível não
nos lembrarmos do famoso quadro de Franz Stuck, também intitulado a Guerra, e que se acha na Nova
Pinacoteca de Munique”. “Notas de Arte”. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 9 set. 1913, p. 6.
24
“Uma questão artística”. A Noite. Rio de Janeiro, 12 set. 1913, p. 1.
25
RICHARD RIEMERSCHMID (1868-1957): E o Senhor Deus plantou uma árvore no Éden (Und Gott der
Herr Pflantze einen Garten in Eden), 1900. Óleo sobre tela, 160 x 164 cm. (com moldura)þ. Londres, K.
Barlow Ltd.
26
Essa atitude pode soar como um retrocesso, se comparada àquela bem mais receptiva da ENBA com
relação à diversidade artística europeia que fora a norma nos anos 1890; cumpre lembrar, porém, que os
artistas laureados com o Prêmio de Viagem nas Exposições Gerais durante a Primeira República
continuaram a se estabelecer em outras capitais do Velho Mundo, em especial Roma.
27
COSTA, Angyone. Op. cit., p. 161

180
A influência positiva do exercício artístico acadêmico na formação dos
arquitetos modernistas

Helena Cunha de Uzeda


Museologia/UNIRIO

Dentre todas as conceituações conferidas ao termo “acadêmico” talvez a que o coloca


como algo do qual não se espera um resultado prático ou imediato seja a mais injusta.
Convivem nos dicionários ao lado do conceito original, que se vincula à harmonia dos modelos
clássicos, conotações que lhe foram agregadas por teóricos e artistas da vanguarda europeia,
críticos das rotinas pedagógicas acadêmicas. A afirmação do historiador da arte Albert
Boime1(1923-2008) de que o ensino acadêmico foi tão importante para os pintores do século
XIX quanto para os vanguardistas do século seguinte ajuda a recolocar o caráter fundamental
do ensino artístico dentro dessas instituições, ditas acadêmicas. O mesmo se poderia dizer em
relação ao ensino de arquitetura acadêmico, que fez parte de um dos cursos oferecidos pela
Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro durante mais de um século. O modelo pedagógico,
que harmonizava competências técnicas e criatividade artística, talvez tenha sido o maior
legado deixado pela Ècole des Beaux-Arts parisiense para o curso de arquitetura da Academia
– depois, Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro –, principalmente, considerando o contexto
da tradição luso-brasileira, que privilegiava a prática empírica dos mestres de obras.
Esse aspecto positivo do ensino acadêmico, entretanto, foi historicamente
desconsiderado, tendo sido apontado pelo pensamento modernista de se constituir em entrave
ao desenvolvimento da arquitetura moderna. Mesmo com toda essa oposição e com as
grandes alterações nas concepções estéticas da primeira metade do século XX, o curso de
arquitetura manteve-se sem alterações relevantes em sua epistemologia e conteúdo curricular,
sendo utilizado eficientemente no treinamento tanto de arquitetos ecléticos quanto racionalistas.
O ensino de arquitetura pode ser enquadrado, assim, dentro do sentido das “permanências”
históricas, que resistem às mudanças de conjunturas por sua essencialidade. O historiador
Krzysztof Pomian destaca que o desenvolvimento histórico deve ser observado pela perspectiva
de sua “longa duração”, que considera o mais fecundo dos conceitos da nouvelle histoire. O
que entendemos por “revolucionar”, dificilmente significa uma transformação que abra mão da
realidade precedente. O que se proclama como “rupturas” assinaladoras de um marco zero,
costumam ser nada mais que culminâncias mais perceptíveis de repetidas, e nem sempre bem
sucedidas, tentativas de inovação. O historiador Jacques Le Goff destaca o duplo papel das
permanências históricas, que atuariam, simultaneamente, como “esteio” e como “obstáculo” às
renovações. Esse pensamento ratifica o curso de arquitetura da ENBA em sua condição de
“obstáculo” a ser transposto pelos modernistas, e também em seu caráter de “apoio” a essa
mesma modernização.

181
Projeto para Biblioteca Nacional (1884)
planta e elevação. Arquiteto: João Ludovico Maria Berna.
Exposição Geral da ENBA de 1890.
Fonte: Museu D. João VI / EBA-UFRJ; registro 79.942.04
(mapoteca 2 / gaveta 5)

Quando em artigo de 1978, o arquiteto


Abelardo de Souza, formado pela ENBA em 1932,
afirmou não compreender como [...] com aquele ensino, com aqueles professores completamente
desatualizados da realidade, completamente ignorantes do que já se fazia no resto do mundo,
se formaram arquitetos [...] como Lúcio Costa, Afonso Eduardo Reidy [...]”2 nos chama atenção
para o que poderia ser considerado um paradoxo. Entretanto, quando acompanhamos a
busca pela atualização estética dos padrões arquitetônicos dentro da ENBA fica mais fácil
compreender a participação do ensino acadêmico no processo de desenvolvimento dos
arquitetos formados pela Escola. Não parece ter sido apenas uma feliz coincidência a formação
dentro do ensino “tradicionalista” acadêmico de toda uma geração de arquitetos modernistas,
que se mostraram eficientes na assimilação das tendências inovadoras. A existência de uma
relação direta entre a competência e a criatividade desses arquitetos e o processo de formação
recebido no ateliê de arquitetura da ENBA parece ser inquestionável.
A ideia do ensino de arquitetura acadêmico como formador de “artistas” – afinal, eram
profissionais formados em escolas de belas artes –, produtores de belos projetos em aquarela
e nanquim, foi muito difundida e valorizada durante o século XIX, o que acabou por traçar um
forte elo entre prática artística e arquitetura. Os projetos inscritos no Grand Prix de Rome da
antiga academia francesa – que exerciam grande influência sobre os projetos arquitetônicos
ao redor do mundo – passaram a incorporar, como destacou Donald Egbert, a habilidade
artística como fator inerente à qualidade profissional do arquiteto.
Quando Arthur Drexler, diretor do Departamento de Arquitetura do Museum of Modern
Art de Nova Iorque, organizou em 1975 uma grande exposição com cerca de 200 projetos
arquitetônicos da antiga École des Beaux-Arts de Paris, a primeira reação dos críticos da
época foi de perplexidade. Parecia insólito que o MOMA, criado na década de 1930 para
celebrar a arte moderna, estivesse valorizando os exercícios tradicionalistas acadêmicos, que
colocavam projetos arquitetônicos como obras feitas mais para serem admiradas do que,
realmente, construídas. Na abertura da exposição, alguns visitantes protestavam, ostentando
buttons com os dizeres “Bring Back the Bauhaus” e, na mídia impressa, artigos tentavam
interpretar o desafio que fora lançado por Drexler na abertura da mostra, quando afirmou que
a arquitetura moderna não estava em sua melhor forma e que havia chegado a hora de
reexaminar suas premissas filosóficas básicas. Um debate que só se tornara possível após o
relaxamento dos dogmas modernos, que levantou questões sobre alguns aspectos
contraditórios do modernismo. Entre eles, estava certa incoerência histórica, reflexo do desejo

182
de ruptura com o passado, sintonizado com o sentido “futurista”, que incluía uma reprovação
veemente ao sistema de ensino acadêmico de arquitetura, tido como ultrapassado pelos
pressupostos modernistas. Mas teria o ensino acadêmico se constituído em real obstáculo à
trajetória do projeto moderno? Acompanhando os registros e documentos guardados nos
arquivos do Museu D. João VI, da Escola Nacional de Belas Artes/UFRJ, dificilmente poderíamos
ser levados a essa conclusão.
O Curso de Arquitetura da ENBA conseguiu sobreviver aos abalos ocasionados
pelas reformulações realizadas pelo governo da República, que por pouco não transferiu a
responsabilidade pela formação de arquitetos para a Escola Politécnica do Largo de São
Francisco, celeiro de engenheiros e de republicanos. A visão cristalizada do arquiteto como
“artista” havia contribuído para desqualificá-lo como profissional capaz de suprir as demandas
das modernas tecnologias, que vinham sendo rapidamente incorporadas pela arquitetura do
século XIX. Essas competências começavam a ser assumidas pelos profissionais de engenharia,
treinados em tão variados campos científicos que passaram a ser conhecidos como
“enciclopédicos”. Na capital da República, a Escola Politécnica, que começou a ganhar prestígio
pela capacitação técnica de seus alunos, mantinha também aulas de arquitetura civil. Essa
concorrência começou a ser vista com preocupação pela Escola, que passou a incluir no
currículo do curso de arquitetura algumas disciplinas de cunho mais técnico, tendo grande
parte delas sido ministradas por engenheiros e professores da própria Escola Politécnica. O
currículo do curso de arquitetura pós-regulamentações de 1890 já incluía cátedras de Cálculo,
Mecânica, Materiais de Construção e sua Resistência, Tecnologia das Profissões Elementares,
Noções de Topografia, Plantas e Desenhos Topográficos, numa intenção assumida de
aprofundar os conhecimentos científicos dos arquitetos.
Com os novos estatutos republicanos e a nomeação para a direção da Escola de
Rodolfo Bernardelli, o currículo elaborado pela Reforma Benjamim Constant dava à ENBA um
caráter mais estruturado, dividindo o currículo em Curso Geral e Cursos Especiais de Pintura,
Escultura, Gravura de Medalhas e Pedras Preciosas e Arquitetura. Dessa forma, as disciplinas
básicas seriam trabalhadas durante três anos, nivelando os conhecimentos dos alunos – que
nem sempre possuíam instrução formal – antes que ascendessem aos cursos específicos.
Outra modificação estrutural implementada foi a substituição das aulas “avulsas” pelo sistema
seriado de ensino, organizando o currículo em séries sucessivas: “A matrícula em cada ano
exige a aprovação em todas as matérias do ano anterior do curso.”3 Mesmo não sendo
obrigatória, a aprovação do aluno em todas as disciplinas de uma mesma série no prazo de
um ano, estabelecendo uma ordenação progressiva do conteúdo e uma hierarquia de
conhecimentos, representou um avanço pedagógico.
Em pouco tempo, o curso de arquitetura conseguiria superar a pouca frequência de
alunos, apresentada ao final do Império, e o desejo do próprio diretor da Escola, Ernesto
Gomes Moreira Maia, cujo descrédito quanto à eficiência da formação acadêmica para a

183
arquitetura, o levou a aconselhar sua transferência para o curso de engenharia4. A escolha de
Rodolfo Bernardelli para direção da ENBA reverteria essa ideia, lembrando o professor
Alfredo Galvão, em discurso à Congregação em 1965, que o diretor deu “[...] grande ênfase
ao Curso de Arquitetura, conseguiu com sua influência pessoal junto a Paulo de Frontin a
construção deste palácio que nos abriga [...]”5. Galvão referia-se ao prédio da ENBA, hoje
Museu Nacional de Belas Artes, construído na Avenida Central – atual Avenida Rio Branco –
, que, além de garantir mais espaço para as Exposições Gerais, conferiu maior visibilidade às
atividades da Escola, que passava a fazer parte daquele novo cenário de modernidade.
Além de permanecer como um dos cursos de belas artes, outra conquista do ensino
de arquitetura foi o acréscimo ao currículo de mais um ano, inteiramente dedicado ao
exercício prático de elaboração de projetos. Composto, a partir de então, por três anos, que
se seguiam aos três anos básicos do Curso Geral, o Curso de Arquitetura passou a contar
com professores graduados em engenheira para ministrar disciplinas que garantissem uma
base tecnológica mais sólida. Já as cátedras práticas, como a de Desenho de Arquitetura,
Trabalhos Práticos, Plantas e Projetos eram entregues aos arquitetos vencedores dos
Prêmios de Viagens, promovidos pela Escola, que retornavam de seu período de estudos
na Europa. A visão do diretor Rodolfo Bernardelli era que a substituição desses mestres a
cada cinco ou dez anos seria a única maneira de manter o ensino de arquitetura sincronizado
aos grandes centros europeus.
Dez anos após a reestruturação de seu ensino, o Curso de Arquitetura da ENBA
começou a se consolidar como formador de profissionais qualificados, devendo parte disso à
participação destacada de ex-alunos e professores no concurso que escolheu os edifícios a
serem erguidos na Avenida Central, cujos projetos impressionavam pela grandiosidade e
acabamento, funcionando como um certificado de competência para o ensino acadêmico. Mais
de um quarto dos 81 projetos selecionados no concurso – levando em conta a relação de
projetos fotografados por Marc Ferrez, que inclui trabalhos de profissionais franceses, ingleses
e italianos – havia saído das pranchetas dos professores da ENBA, como Morales de los Rios,
Heitor de Cordoville, Ludovico Berna, Heitor de Mello, Gastão Bahiana e do mestre, então já
aposentado, Bittencourt da Silva.
Os docentes que ocuparam nas três primeiras décadas do século XIX as cadeiras
práticas de arquitetura da ENBA não pareciam corresponder à descrição feita pelo arquiteto
Abelardo de Souza de “[...] completamente desatualizados da realidade, completamente
ignorantes do que já se fazia no resto do mundo [...]6. De 1911 a 1930, o curso de arquitetura
contou com professores muito qualificados, como o italiano naturalizado brasileiro, formado
pelo curso de arquitetura da própria ENBA, João Maria Ludovico Berna, na disciplina prática
de Composição e Desenho de Arquitetura. A atuação de Berna como arquiteto mostrou-se
dinâmica e produtiva, como demonstram alguns trabalhos seus que participaram das Exposições
Gerais da Escola. Chamam atenção dois projetos apresentados em 1907: Habitação em

184
Cimento Armado em Copacabana e Reconstrução em Cimento Armado da Fachada da
Faculdade de Direito na Praça da República. A apresentação de projetos que previam a
utilização de cimento armado pelo catedrático da Escola, mostra a atualização do professor
que estava à frente do ateliê de arquitetura, numa época em que a técnica debutava de forma
ainda tímida no Brasil. Berna apresentou nas Exposições Gerais da ENBA de 1901, um
projeto para o prédio Jornal do Brasil com seis andares, que foi construído na Avenida
Central, em 1910, com surpreendentes onze andares, o que o destacava entre os demais
prédios da nova avenida.

PRÉDIO DA SOCIEDADE ANÔNIMA JORNAL DO BRASIL (11


andares)
Arquiteto: João Ludovico Maria Berna (1906 - Professor da ENBA).
Foto de Augusto Malta de 1915.

O arquiteto italiano Antonio Virzi7 assumiu a cátedra


prática de arquitetura por pouco tempo, entre 1911 e 1912.
Com currículo respeitável, os trabalhos de Virzi possuíam
uma grande liberdade criativa, que incluía
experimentações em art nouveau. Representando bem o
desejo do diretor Bernardelli de atualizar o aprendizado
dos estudantes com as novas tendências europeias, o
caráter inovador do professor Virzi se confirma no programa preparado por ele para uma de
suas provas práticas, que previa um edifício destinado ao serviço postal na Capital Federal. O
projeto pedia a construção “[...] conforme os melhores e mais modernos sistemas [...] carpintaria
de ferro e relativas aplicações de cimento armado [...] uma sala para telefone público [...] e a
escadaria com elevador”8.
Os recém-convertidos à arquitetura funcionalista não perceberam qualquer qualidade
na produção de Virzi, que foi definido por Lúcio Costa, em 1951, como “[...] artista filiado ao
‘modernismo’ espanhol e italiano, ambos igualmente desamparados de qualquer intenção
orgânico-estrutural e, portanto, destituídos de significação no sentido racional contemporâneo”9.
Duas décadas depois, no entanto, o próprio Lúcio Costa entraria com o pedido de preservação
de uma das construções de Virzi. A proposta de tombamento do Villino Silveira – construído em
1915 na Praia do Russel – encaminhada em 1970 por Lúcio Costa ao DPHAN, atual IPHAN,
soa como uma remissão para com a produção anterior ao movimento modernista, numa
atitude de sensibilidade para com a memória das produções ecléticas do início do século 20:
“Proponho o tombamento do prédio situado à praia do Russel nº 734, obra-prima da inventiva
do arquiteto Virzi [...] uma obra de arte sem igual no país ou alhures, cuja preservação importa
assegurar”10. O escritório de arquitetura criado por Virzi projetou diversas construções
apalacetadas para a burguesia carioca, desconsiderando os cânones de simetria e proporção
para gerar espaços inesperados e orgânicos, que utilizavam cimento armado e comodidades
modernas, como instalações para luz elétrica e elevadores.

185
Os novos regulamentos de 1911 reforçaram a objetividade prática do ensino de
arquitetura, ampliando o número de disciplinas de seu currículo de cinco para onze, incluindo
aulas de Composição de Arquitetura nas três séries do curso. A nova formatação do ensino
transformava exercícios práticos de arquitetura numa rotina diária de quatro horas de duração
nas três séries do curso. A idade mínima para ingresso na Escola foi mais ampliada para 16
anos – a Reforma Pedreira, de 1855, previa admissão aos 12 anos –, o que estava mais de
acordo com a classificação como curso superior e com a maior exigência dos requisitos
necessários aos aspirantes a arquitetos.
Em 1915, o novo diretor João Batista da Costa preservou, em linhas gerais, a estrutura
curricular, cuja alteração mais considerável foi a supressão da divisão em séries dos cursos
especiais de Pintura, Escultura e Gravura, ficando estabelecido que o aluno frequentaria as
aulas pelo tempo que fosse considerado necessário a seu pleno desenvolvimento. Os
regulamentos colocavam: “[...] os cursos especiais de pintura, de escultura e gravura não
comportam divisão em anos de estudos”11, mas o ensino de arquitetura não foi incluído nessa
inobservância de seriação, revelando a consciência da necessidade de uma estruturação
mais rígida para a formação dos arquitetos, que precisavam respeitar uma sequência cumulativa
de conhecimentos técnicos e científicos.
A partir de 1913, o professor Heitor de Melo assumiu a cátedra prática de arquitetura,
na qual permaneceria até falecer em 1920. Yves Bruand ressalta a criação pelo professor
Heitor de Melo do primeiro escritório de arquitetura em nível empresarial no país, que mantinha
em seus quadros arquitetos de expressão, incluindo alguns estrangeiros. A intensa atividade
de seu escritório e a diversidade de estilos com os quais trabalhava levou Heitor de Mello a
ser conhecido como “o arquiteto da Primeira República”. Entre seus projetos de estéticas
ecléticas, incluiu-se o que chamou de “colonial”. Precursor na execução de projetos nesse
estilo no Rio de Janeiro, entre seus projetos “coloniais” destacam-se três residências na zona
sul da cidade do Rio de Janeiro, já demolidas, e o Grupo Escolar D. Pedro II, de 1920, em
Petrópolis – o único ainda preservado, funcionando atualmente como Colégio Estadual.
Reconhecendo o pioneirismo do arquiteto, José Mariano Filho – diretor da ENBA entre 1926
e 1927 – instituiu o “Prêmio Heitor de Mello”, concurso cujo objetivo era estimular no Brasil o
desenvolvimento da estética “neocolonial”, uma reinterpretação do estilo colonial português. O
estilo surgiu no início da década de 1920, como solução para a busca de uma estética
renovadora e mais representativa de nossa identidade para substituir os modelos ecléticos
internacionais. A arquitetura neocolonial foi reconhecida, a princípio, como moderna por Mário
de Andrade, um dos precursores do movimento modernista “Quem primeiro manifestou a idéia
moderna e brasileira na arquitetura? São Paulo, com o estilo colonial”12. O “moderno” estilo
neocolonial recebeu grande impulso dentro do meio acadêmico, fazendo parte de exercícios
e provas de projetos da ENBA. Logo, seria posicionado como principal antagonista do
movimento moderno, como resultado de sua assimilação pela linguagem eclética, hibridizado
com referências coloniais hispânicas, e com a ascensão das ideias corbusierianas.

186
Projeto do Grupo Escolar Pedro II,
Petrópolis, RJ (1920-22) - Estilo
neocolonial.
Fonte: Mensagens apresentadas à
Assembléia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro: 1913-1922.

A nova regulamentação implantada pela reforma de 1915 teve grande importância


por ter vigorado em linhas gerais até 1930, quando o governo de Getúlio Vargas reorganizou
o ensino no país. Ainda assim, as alterações ocorridas nesse interregno de quinze anos foram
apenas pontuais, realizadas nos limites permitidos pelos estatutos. Na década de 1920, o
curso de arquitetura da ENBA já havia consolidado seu papel de referência no campo da
arquitetura, assumindo inclusive a responsabilidade do reconhecimento oficial dos certificados
de arquitetos estrangeiros, que desejavam regularizar sua situação profissional no país. A
criação do Instituto Brasileiro de Arquitetura, em 1919, seria mais um exemplo do papel da
ENBA como catalisadora do processo de modernização na arquitetura brasileira. Tendo por
objetivo a promoção de debates sobre aspectos essenciais da formação e do exercício
profissional da categoria, a fundação do IBA ocorreu nas dependências da ENBA, mais
especificamente na sala de História e Teoria da Arquitetura. A instituição assumia, assim, a
liderança no esforço por uma definição clara sobre as atribuições dos profissionais ligados à
arquitetura: “[...] o verdadeiro arquiteto, almejando para sua obra o máximo de beleza, junto
ao máximo de durabilidade, sem prejuízo da perfeita “conveniência” e das condições
econômicas, não poderá ser apenas artista a cuidar da forma, mas também engenheiro,
profundo conhecedor da técnica das construções [...]13. O mesmo empenho utilizado pelo IBA
ao defender os direitos e a valorização profissional dos arquitetos foi demonstrado em relação
à defesa da qualidade do ensino de arquitetura oferecido pela ENBA, cujos cursos, em 1923,
incompreensivelmente, continuavam a figurar em nível inferior ao dos institutos de ensino
secundário. O texto “A Reforma do Ensino e a Escola Nacional de Belas Artes”, encaminhado
ao Ministro da Justiça pela diretoria do IBA14, apela ao reconhecimento oficial do Curso de
Arquitetura como ensino superior, usando como argumento a similaridade curricular com o
curso de formação de engenheiros.

A Escola de Belas Artes, aliás, diferencia-se muito menos da Escola Politécnica


do que esta da Faculdade de Medicina ou de Direito. E se não há dificuldade em
reunir no mesmo Conselho Superior de Ensino, escolas tão heterogêneas como
as de Engenharia, de Medicina e de Direito, nenhuma razão pode opor-se à
entrada, no mesmo Conselho, da Escola de Belas Artes, que forma engenheiros-
arquitetos em curso perfeitamente análogo ao da escola Politécnica.15

187
A idéia de que um ambiente arquitetônico decadente e de arquitetos incapazes de
responder aos novos tempos, que foi construída em relação ao ensino acadêmico, destoa da
profícua atuação e do comprovado prestígio desfrutado por eles no período que antecedeu à
“ruptura” pretendida pelos modernistas. Diversos ex-alunos e mesmo alguns ainda na condição
de estudantes da ENBA estavam estabelecidos em firmas de arquitetura e construção, como
revela a seção “indicador profissional”, publicada pela revista Arquitetura: Mensário da Arte
em 1929. Nela estavam listados diversos escritórios do ramo instalados na capital da República.
Das 29 empresas relacionadas no periódico, quinze pertenciam a arquitetos formados pela
ENBA. Encabeçando a lista estava a firma “Memória & F. Cuchet”, do arquiteto Arquimedes
Memória, que substituiu o professor Heitor de Mello na cátedra de Composição de Arquitetura.
O professor Memória sairia vencedor do concurso público para a construção do edifício do
Ministério da Educação e Saúde em 1935, mas seu projeto não foi construído. Dos 34 trabalhos
inscritos no concurso, os três selecionados pertenciam a arquitetos formados pela ENBA:
Arquimedes Memória, Mario Fertin/Rafael Galvão e Gerson Pinheiro. A historiografia a partir
do triunfo modernista passou a se referir aos três projetos premiados como “acadêmicos”, mas
ao analisarmos os trabalhos vencedores e não construídos, o que vemos está longe de se
constituir em modelos “acadêmicos”.
Outros dois escritórios de arquitetura que faziam sua divulgação na revista eram
“A. Morales de los Rios Filho” e “A. Reidy & G. Pinheiro”, reunindo os arquitetos recém-
formados da ENBA, Afonso Eduardo Reidy16 e Gerson Pompeu Pinheiro17. Como parceiros,
Reidy e Gerson Pinheiro venceram o concurso aberto em 1931 para o Albergue da Boa
Vontade com um projeto racionalista pioneiro. A improvável união entre o arquiteto e
pintor tradicionalista Gerson Pinheiro e o arquiteto Reidy, um dos pioneiros na introdução
da arquitetura moderna no Brasil, é reveladora dos imbricados caminhos que levaram à
maturação do movimento moderno dentro do âmago das belas artes.

Albergue da Boa Vontade (1931)


“A. Reidy & G. Pinheiro”, escritório de
arquitetura de Afonso Eduardo Reidy e
Gerson P. Pinheiro.
Fonte: http://br.geocities.com/reidy_web/
albergue.html

A afirmação feita por Lúcio


Costa de que “[...] belas artes e
arquitetura serão sempre uma coisa
só [...]”18 revela o reconhecimento do
arquiteto sobre a essencialidade da
esfera do sensível na concepção de
projetos arquitetônicos. O treinamento
do desenho artístico, base da
pedagogia acadêmica clássica, e o

188
ambiente criativo dos cursos de belas artes, sem dúvida, proporcionaram um equilíbrio harmônico
entre capacitação técnica e aptidão artística, o que seria decisivo para que os arquitetos
formados pela ENBA incorporassem, rapidamente e com grande criatividade, as modernas
tendências racionalistas.
Os teóricos modernistas parecem não lembrar que foi Morales de los Rios Filho,
professor de História e Teoria da Arquitetura da Escola, que organizou, ao lado de Paulo
Prado, as históricas palestras “casa moderna” e “urbanismo”, ministradas por Le Corbusier
em 1929, numa das salas de aula da ENBA. Esse fato corrobora a visão de Goldstein,
defensor do valor da sistematização do ensino acadêmico, que a historiografia moderna
colocou à margem do desenvolvimento das estéticas de vanguarda, mas que, na realidade,
ocupou o centro do processo artístico e criativo do espírito moderno.

Notas e referências
1
BOIME, A. The Academy and French Painting in the Nineteenth Century, New York: Phaidon, 1971.
2
SOUZA, A. A ENBA, antes e depois de 1930. In: XAVIER, A. (org.) Depoimento de uma Geração. São
Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 65.
3
DECRETO do Governo Provisório, nº 983, 8 / 11/ 1890. Estatutos da Escola Nacional de Bellas-Artes,
Rio de Janeiro, p. 35-43.
4
Notação nº 711, 1890. (Arquivos do Museu D. João VI / EBA-UFRJ) Cópia de ofício do diretor da
Academia ao ministro da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, informando a posição da Congregação
frente ao projeto de reforma da Academia e enviando projeto substitutivo.
5
GALVÃO, A. Discurso do Professor Alfredo Galvão em nome da Congregação. In: ARQUIVOS DA
ENBA. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, 1965, p. 13. (posse do professor Gerson Pompeu Pinheiro
como diretor da ENBA).
6
SOUZA, A., op. cit, p. 65
7
Antonio Virzi (1882-1954) nasceu na Itália, instalando-se permanentemente no Brasil a partir de 1910,
onde se destacou pelo arrojo de seus projetos arquitetônicos de inspiração art nouveau, que somam em
torno de vinte obras entre 1910 e 1928. Na capital paulista, segundo a historiadora Elizabeth Formaggini,
foi autor da reforma do Palacete Matarazzo e do prédio dos Correios e Telégrafos.
8
ATAS do Conselho da ENBA:1901-1912 / 1901, p.97.
9
COSTA, L. Muita Construção, Alguma Arquitetura e um Milagre [1951]. In: XAVIER, A. Depoimento de
uma Geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 87.
10
COSTA, Lúcio. Proposta de tombamento da casa à Praia do Russel, 743. (o processo de tombamento
do imóvel, nº 825 – T – 70; DPHAN / DET: Seção de História. Rio de Janeiro, 15 de janeiro de 1970).
11
REGULAMENTOS DA ENBA, Decreto nº 11.749, de 13 de outubro de 1915, art. 14, p. 375.
12
Mario de Andrade Apud AMARAL, A. Artes plásticas na Semana de 22. São Paulo: Perspectiva, 1970, p. 140.
13
BAHIANA, G. O Arquiteto no Brasil. In: Revista Arquitetura no Brasil: ano I, nº 1, Rio de Janeiro,
out /1921, p. 3.
14
O Instituto Brasileiro de Arquitetos conviveria por algum tempo com a Sociedade Central de Arquitetos,
tendo os dois institutos fundido-se para formar o Instituto Central de Arquitetos, passando a adotar a
denominação de Instituto dos Arquitetos do Brasil, que mantém até os dias atuais.
15
A Reforma do Ensino e a Escola Nacional de Belas Artes. In: Revista Arquitetura no Brasil: ano II, vol.
IV, nº 21, Rio de Janeiro, jun /1923, p. 69.
16
Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) nasceu em Paris de pai inglês e mãe brasileira, filha de arquiteto
italiano, instalando-se no Rio de Janeiro e se naturalizando brasileiro. Conclui o Curso de Arquitetura da
ENBA em 1930, tornando-se assistente do pioneiro arquiteto ucraniano Gregori Warchavchik. Entre 1931
e 1933 regeu uma turma suplementar de Pequenas Composições de Arquitetura na ENBA.
17
Gerson Pompeu Pinheiro (1910-1978) formou-se em arquitetura pela ENBA em 1929, dedicando-se
também à Pintura e à Música. Em 1942, assumiu interinamente a cadeira de Perspectiva,Sombras e
Estereotomia na ENBA, em substituição a Gastão Bahiana, tornando-se em 1950 catedrático através de
concurso, já na Faculdade Nacional de Arquitetura, da qual se tornaria Diretor.
18
COSTA, Lúcio. Arquitetura Brasileira. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, s.d, p. 40.

189
O retrato no primórdio acadêmico

Monica Cauhi Wanderley


mestranda PPGAV /EBA/ UFRJ

Introdução
Com a chegada da Família Real em território brasileiro, mudanças significativas
ocorreram. Uma em especial para essa pesquisa foi o incentivo à criação de uma Escola de
Artes e Ofícios, emancipando novos horizontes ao ensino artístico, conforme Quirino
Campofiorito1.
Ao longo da história, essa instituição teve o seu nome alterado muitas vezes, segundo
Graça Proença2. Em 1816 recebe o nome de Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, mas
passa por dificuldades para exercer a sua função, devido a discussões políticas como a
insurreição pernambucana, por exemplo3, e a recepção hostil aos professores, artistas da
Missão Francesa, por parte do Cônsul Maler4.
Em 1820 surge uma nova proposta para essa instituição. A não mais escola, mas sim
Academia, se desvincula de uma atividade mecânica, recebe o nome de Real Academia de
Desenho, Pintura, Escultura e Architectura Civil e se destina impreterivelmente ao ensino
artístico. Segundo D. João VI na introdução do Decreto que aprova a criação da Academia:
“as Artes do Desenho, Pintura, Escultura, e Architectura Civil, são indispensáveis à civilização
dos povos, e instrucção publica dos Meus Vassallos5”.
Com o Decreto de 1820 foram aprovados também estatutos, onde se encontravam
pontuados o que deveria ser ensinado em cada uma das diferentes classes oferecidas pela
Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Architectura Civil 6.
Em 1822, com o fim do processo de independência no Brasil, a Academia passa a se chamar
Imperial Academia e Escola das Belas Artes, mas seu funcionamento ainda não se encontra
normalizado. Conforme Afonso de E. Taunay7, com o retorno de Dom João VI a Portugal,
insuportável se torna a vida dos docentes no Brasil, pois além de não terem onde ensinar, os
artistas franceses ficam sem amparo algum.
Em 1826 a Academia é instalada em um espaço próprio de ensino, em edifício projetado
por Grandjean de Montigny localizado à altura da Travessa do Sacramento (atual Avenida
Passos). Nessa, o ensino nas diferentes classes continua a ser permeado pelos estatutos
definidos em 1820. Esses estatutos atuam até 1831, ano em que novos estatutos são elaborados.
Nessa pesquisa pretendo analisar o estatuto que se destina ao curso da pintura de
retrato8, refletindo sobre o que deveria ser ensinado nas classes desse gênero de 1820 a
1831, período que considero como o primórdio acadêmico. No entanto, por se destinar ao I
Seminário do Museu Dom João VI, pretendo também expor algumas das obras que comportam
o acervo desse museu, relacionando-as à ideologia encontrada no estatuto da classe da
pintura de retrato.

190
A pintura de retrato
Segundo o estatuto da classe da pintura, no retrato o “pincel goza da vantagem de
recomendar à posteridade os homens ilustres de todas as classes9”. No acervo do Museu
Dom João VI, temos um bom exemplo que deixa transparecer essa idéia: o retrato de Dom
João VI.
A imagem de Dom João VI, homem ilustre do século XIX,
chega até nós em forma de pintura e o seu caráter eminente pode
ser percebido pela ênfase que o artista dá à sua vestimenta,
detalhada a fio de ouro e coberta de condecorações.

Domenico Pellegrini, Retrato do Príncipe Regente Dom João, 1803.


Rio de Janeiro, Museu Dom João VI.
Fotografia tirada pela autora.

A pose lateralizada com o olhar que nos fita quase que de


frente, segue um “modo de fazer”, que foi utilizado em muitos dos retratos elaborados no Brasil.
Nos retratos de Grandjean de Montigny pintado por Augusto Muller e do Mestre da Capela
pintado por Victor Meirelles, por exemplo, vemos a mesma pose utilizada por Domenico
Pellegrini ao retratar Dom João VI.

Augusto Muller, Retrato de Victor Meirelles, Mestre da


Grandjean de Montigny, s.d Capela, s.d.
Rio de Janeiro, Museu Dom Rio de Janeiro, Museu
João VI. Dom João VI.
Fotografia tirada pela autora. Fotografia tirada pela autora.

No Brasil esse “modo de fazer” que representava a pessoa em pose lateralizada não
foi cultivado por uma cultura artística portuguesa, já que, conforme Luiz Gustavo Gavião10, o
padrão lusitano costumava representar a figura de modo frontal, como, por exemplo, no
retrato da Rainha Hortência, que pertence à coleção Jerônimo Ferreira das Neves, do Museu
Dom João VI.

N. I., Retrato da Rainha Hortência, c. 1800.


Rio de Janeiro, Museu Dom João VI.
Fotografia tirada pela autora.

191
Se em parte não foi uma cultura portuguesa que norteou a produção dos alunos da
Academia das Belas Artes no Brasil, foi uma cultura neoclássica, introduzida principalmente
pelos artistas da Missão Francesa.
Essa cultura neoclássica pregava, segundo Graça Proença11, que apesar de ter
como parâmetro o natural, o artista não deveria imitar a realidade, mas sim tentar recriar a
beleza ideal em suas obras inspirando-se nas pinturas dos artistas do Renascimento italiano,
sobretudo em Rafael Sanzio.
Ao observarmos o autorretrato elaborado pelo pintor renascentista Rafael Sanzio,
vemos um “modo de fazer” muito próximo ao dos pintores Domenico Pellegrini ao retratar Dom
João VI, Augusto Muller ao retratar Grandjean de Montigny e Victor Meirelles ao retratar o
Mestre da Capela.

Rafael Sanzio, auto-retrato, c. 1506.


Florença, Galleria Degli Uffizi
http://pt.wikipedia.org/wiki/Rafael Sanzio

Por outro lado, diferente das tendências pictóricas europeias


que davam grande louvor à pintura de histórias12, no Brasil, no
início do século XIX, muito se valorizou a pintura de retratos,
direcionando boa parte dos artistas para esse gênero.
No romance de Gonzaga Duque13: Mocidade Morta, que conforme Letícia Squeff14
traça um retrato bastante amplo e minucioso da vida artística no Brasil em fins do século XIX,
temos um bom exemplo do porquê a pintura de retrato sobressaiu à pintura histórica em
nosso território; em certa parte desse romance um pintor desiludido com o lucro angariado
por sua obra, uma pintura histórica, comenta com um amigo: “um quadro histórico exige
despesas, muito gasto com modelos, com acessórios. No fim das contas o que se pode
apurar é uma ninharia15”.
Para os artistas brasileiros a pintura de retrato era mais provável de gratificações
e, portanto, mais praticada do que a dispendiosa pintura histórica. Além disso, segundo
Luiz Gustavo Gavião 16, a partir da segunda metade do século XVIII, com a presença
dos membros do vice-reinado e posteriormente da Família Real, certos modismos
foram impulsionados, como a utilização dos retratos como instrumento de propaganda
e vaidade.
Por ter sido a pintura de retrato valorizada em território brasileiro ao final do século
XVIII e ao longo do século XIX, tê-la como fonte de ensino e aprendizagem na Academia
das Belas Artes do Brasil deve ser visto como algo natural. Nesse próximo tópico pretendo
discutir as teorias que nortearam esse ensino, a partir do estudo do estatuto da classe da
pintura de retrato.

192
Teoria e prática pictórica de retrato: estatuto x obras
No estatuto da classe da pintura de 1820, na parte destinada ao ensino do retrato,
podemos destacar três pontos, os quais o professor dessa classe deveria incentivar na
aprendizagem dos seus alunos: representar uma imagem exata do retratado, enriquecer as
composições com os acessórios próprios das pessoas e se dedicar impreterivelmente à prática.
Sobre o primeiro ponto, conforme Alberto Cipiniuk17, a representação exata de uma
pessoa não foi um ato comumente aplicado nos modos culturais ao longo do século XVIII e
início do século XIX no Brasil: “a boa qualidade de um retrato não se definia pela sua
objetividade na representação”.
Isso nos demonstra a diversidade enfrentada pelos primeiros alunos da Academia,
que acostumados a não se dedicarem à verossimilhança, têm que então representar um
desenho exato da natureza do retratado. Talvez, por esse motivo de estar vivenciando um
período de transição, temos tantas discordâncias nas representações das imagens de um
mesmo retratado, como, por exemplo, nos retratos de Dom João VI.

N.I. - Pellegrini - Debret, Retrato de Dom João VI, 18_ _ - 1803 - 1816.
Rio de Janeiro, Museu Dom João VI - Idem – Museu Histórico Nacional.
Fotografia tirada pela autora – Idem - www.google.com.br/Jean-Baptiste_Debret.

A imagem de Dom João VI proposta pelo artista não identificado (a primeira das três
destacadas acima) é tão diferente das que estamos acostumados a ver, que podemos questionar
se a intenção do artista era realmente a de retratar o rei de Portugal18.
No entanto, conforme Henrich Wolfflin19, uma composição pictórica pode apresentar
discordâncias mesmo quando os artistas se propõem a pintar um mesmo modelo. No acervo
do Museu Dom João VI, por exemplo, temos duas cópias de Ticiano, uma elaborada por
Zeferino da Costa e outra por Victor Meirelles; ambas possuem o mesmo modelo como ponto
de partida, mas ao observarmos atentamente essas obras, podemos considerar que não
existe uma maneira objetiva de se ver as coisas, mas que elas são captadas em acordo com
as subjetividades de cada artista.

193
Zeferino da Costa - Victor
Meirelles, cópia de uma
Ticiano, 1870 - 1850.
Rio de Janeiro, Museu
Dom João VI.
Fotografia tirada pela
autora.

Podemos perceber que as pinturas acima destacadas partem de uma mesma fonte:
ambas apresentam uma mulher seminua, de pele branca e cabelos longos presos na altura da
nuca, ambas apresentam mesma pose e paisagem ao fundo. Entretanto, ao nos entretermos
somente nas feições dessas, notificamos como a maneira de pintar de um artista pode influenciar
no resultado da sua obra.

Zeferino da Costa - Victor


Meirelles, cópia de uma Ticiano
(detalhe), 1870 - 1850.
Rio de Janeiro, Museu Dom
João VI.
Fotografia tirada pela autora.

A face da mulher pintada por Zeferino apresenta um jogo de sombras mais intenso,
o desenho das linhas do rosto é mais marcado e mais visível aos olhos do espectador.
Esses detalhes dão uma aparência de pessoa mais velha quando comparada à mulher de
Vitcor Meirelles.
Sobre o segundo ponto apresentado pelo estatuto de 1820, que designa a importância
de serem acrescentados às pinturas, acessórios próprios das pessoas retratadas20, segundo
Alberto Cipiniuk21, mesmo antes da criação da Academia, era comum nas pinturas desse gênero,
que os artistas dessem muita ênfase aos pormenores e pouca ênfase às faces dos retratados.
No acervo do Museu Dom João VI, temos algumas obras onde a presença dos
pormenores pode ser verificada, como, por exemplo, no retrato de Manuel
de Araújo Porto Alegre pintado por Pedro Américo, para citar pelo menos
um.
Os braços apoiados ao livro, a presença do bico de pena e da tinta
para escrever, reforçam a imagem do homem culto que era Porto Alegre.

Pedro Américo, Retrato de Araújo Porto Alegre, 1869.


Rio de Janeiro, Museu Dom João VI.
Fotografia tirada pela autora.
194
Já o terceiro ponto apresentado pelo estatuto de 1820 salienta que a prática deveria
sobressair à teoria, ou seja, mesmo sendo da teoria e da prática que se formaria o bom artista,
o professor da classe da pintura de retrato estimularia preferencialmente a produção prática
do seu aluno; para que ele pudesse marchar com confiança, conseguir a exatidão e acima de
tudo ter firmeza no pincel, elaborando pinturas que outros, versados somente em lições
teóricas, julgariam impossíveis de serem elaboradas22.
No acervo do Museu Dom João VI, temos nas pinturas de Jean León Pallière Grandjean
Ferreira um bom exemplo de como a produção prática de retratos foi incentivada e valorizada
em território acadêmico, pois são muitas as composições retratísticas desse artista. Abaixo,
destacamos algumas.

Jean León P. G. Ferreira, Retratos de Rafael, Leonardo, Van Dyck e Velásquez c. 1850.
Rio de Janeiro, Museu Dom João VI.
Fotografia tirada pela autora.

No entanto, essa característica de prevalecer a produção prática em detrimento da


teórica não era algo tão distante da pintura do período colonial, na qual as reflexões e
discussões teóricas acerca de uma composição pictórica não eram atos comumente praticados.
Conforme Myriam Ribeiro23, no século XVIII, as produções artísticas eram elaboradas
principalmente por artistas leigos, originários da própria colônia, a partir de cópias de imagens
vindas da Europa.

Conclusão
Nesse trabalho, minha intenção foi a de expor e divulgar o estatuto de 1820 e as
obras do acervo do Museu Dom João VI.
O leitor mais atento poderá perceber certa discrepância entre datas, ou seja, enquanto
o estatuto de 1820 atuou no ensino acadêmico de 1820 a 1831, a grande maioria das obras
destacadas nessa pesquisa não se inserem nesse período.
Isso aconteceu, porque dessa fase artística são poucas as pinturas que compõem o
acervo do Museu Dom João VI.

195
No entanto, por trazer conceitos gerais, a teoria encontrada no estatuto da classe da
pintura de retrato bem se encaixou nas obras elaboradas em diferentes temporalidades
artísticas, como quando citamos a pintura de Domenico Pellegrini, ou as produções de Jean
León Pallière Grandjean Ferreira, ou ainda os pormenores de Pedro Américo.
Isso nos demonstra que a mudança de uma concepção artística não acontece de
forma rápida e instantânea, mas sim lentamente e, de alguma forma, insere o seu passado e
se insere em seu futuro; como, por exemplo, quando percebemos que algumas das questões
da arte colonial ainda se encontram presentes na prática artística do período em que o estatuto
de 1820 permeou o ensino acadêmico (1820 – 1831), assim como as questões da arte desse
período ainda se encontram presentes nas obras elaboradas em períodos posteriores a ele.
Podemos pensar a arte, então, como um organismo vivo. Ela possui uma história de
vida que se constrói conforme os diferentes contextos que vivencia e experimenta e que
poderão estar presentes quando algo novo comece a surgir.

Notas e referências
1
CAMPOFIORITO, Quirino. A pintura remanescente da colônia – 1800 – 1830. Rio de Janeiro: Edições
pinakotheke, 1983, p. 23, 24.
2
PROENÇA, Graça. História da Arte. São Paulo: Ática, 2000, p. 211.
3
LIMA, Manuel de Oliveira. D. João VI no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996, p. 169.
4
TAUNAY, Afonso. A Missão Artística francesa de 1816. Brasília: UnB, 1983, p. 21.
5
BRASIL. Decreto de 23 de novembro de 1820. Estatuto da Imperial Academia e Escola das Belas Artes.
Rio de Janeiro. (Documento localizado no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, Caixa 6283, maço 82),
p. 244.
6
Classe da Pintura, Classe do Desenho, Classe da Arquitetura Civil, Classe da Escultura, Classe da
Mecânica.
7
TAUNAY, Afonso de E. A missão artística de 1816. Patrimônio histórico e artístico nacional: Ministério da
Educação e Cultura, 1959, p. 220.
8
Parágrafo nove do Artigo III do Decreto de 1820.
9
BRASIL. Decreto de 23 de novembro de 1820. Opus Citatum, p. 249.
10
GAVIÃO, Luiz Gustavo. Raimundo da Costa e Silva: O rococó religioso na escola fluminense de
pintura. Rio de Janeiro: Dissertação de Mestrado em História e Teoria da Arte – UFRJ, 2003, p. 28.
11
PROENÇA, Graça. Opus Citatum, p. 218.
12
ALBERTI, Leon B. Apud: BLUNT, Anthony. Teoria artística na Itália 1450 - 1600. São Paulo: Cosac e
Naify, 2001, p. 22.
13
DUQUE, Gonzaga. Mocidade morta. São Paulo: Três, 1973.
14
SQUEFF, Letícia. Da Arte incompleta à morte de um insubmisso: mocidade morta (1899) de Gonzaga
Duque. In: CAVALCANTI, Ana M. T. et al. (org.). Oitocentos. Rio de Janeiro: EBA, 2008, p. 247.
15
DUQUE, Gonzaga. Opus Citatum, p. 180.
16
GAVIÃO, Luiz Gustavo. Opus Citatum, p. 35 e 60.
17
CIPINIUK, Alberto. A face pintada em pano de linho. São Paulo: Loyola, 2003, p. 61.
18
A referência dessa obra, no catálogo do Museu Dom João VI, apresenta um ponto de interrogação após
o título.
19
WOLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, p.1.
20
BRASIL. Decreto de 23 de novembro de 1820. Opus Citatum, p. 249.
21
CIPINIUK, Alberto. Opus Citatum, p. 53.
22
BRASIL. Decreto de 23 de novembro de 1820. Opus Citatum, p. 249.
23
OLIVEIRA, Myriam. Escultura colonial brasileira: um estudo preliminar. In: Barroco 13. Belo Horizonte:
UFMG, 1984/85, p. 8.

196
A construção da paisagem carioca do século XIX no olhar estrangeiro

Michelle Gran
Mestranda PPGAV/EBA/UFRJ

A Corte portuguesa se transfere para o Brasil, em 1808, e essa transferência somada


à abertura dos portos intensifica a pintura paisagística no Brasil, pois, anteriormente, os viajantes
enfrentaram uma considerável barreira para o estudo do território brasileiro, uma vez que
esses estudos eram considerados por Portugal empreendimentos militares e expansionistas1.
Com exceção dos pintores de Maurício de Nassau, a paisagem permaneceria, até o século
XIX, ausente nas representações pictóricas:

É preciso também lembrar, confirmando a indissolúvel relação da arte com a vida


social, que o sistema colonial, ao impedir qualquer desenvolvimento brasileiro que
não servisse diretamente aos interesses da Metrópole, acabou por limitar a produção
artística a certas necessidades mínimas locais, levando a própria pintura a restringir-
se à ornamentação das igrejas e aos retratos encomendados pelas irmandades
religiosas. Não fôra a obra dos artistas que vieram com o príncipe holandês Maurício
de Nassau, no século XVII, e nos faltaria uma visão pictórica do cenário colonial2.

Essa situação se altera quando o Brasil passa a ser percorrido por inúmeros viajantes,
sendo realizados inventários sobre a geografia, comunidades, flora e fauna brasileiras. Através
de mapeamentos, relatos e remessas de espécies, essas viagens promoveram avanços das
ciências europeias e auxiliaram o desenvolvimento econômico e o controle territorial brasileiro.
Muitos cientistas, então chamados de naturalistas, já haviam percebido que a descrição
meramente verbal apresentava indiscutíveis deficiências e, nesse sentido, “começaram, eles
mesmos, a desenhar ou passaram a levar consigo desenhistas durante as suas excursões”3.
Assim, como a escala no porto do Rio de Janeiro era praticamente obrigatória, os viajantes
europeus começaram a lançar sobre a paisagem carioca um olhar de natureza diferente do
colonizador que a via como perigosa4. Esse novo olhar “não é mais o do artista a serviço de
um príncipe, mas o de indivíduos que escolheram vir para cá à procura do pitoresco...”5.
Muitos desenhistas e pintores chegam à cidade acompanhando naturalistas, diplomatas,
militares e comerciantes. Esses artistas são encarregados de documentar a natureza e os tipos
humanos da nossa terra distante e, assim, seria construída uma imagem do Brasil, e
particularmente do Rio de Janeiro, no imaginário europeu que oscilava entre o enaltecimento
e a degradação:

Em tais relatos é constante o contraponto entre o embevecimento ante a exótica e


exuberante paisagem natural desta cidade dos trópicos, com sua ampla baía e
suas imponentes montanhas, e a aversão, a repugnância suscitada pela paisagem
material e humana6.

197
Ou:

Nas descrições dos viajantes europeus, encontra-se amiúde uma apreciação


ambígua da cidade: de um lado, o entusiasmo diante da paisagem natural, exótica
e deslumbrante; e de outro, uma indisfarçável aversão à paisagem urbana,
freqüentemente comparada a uma cidade árabe, com comércio ruidoso e fervilhante,
ruas estreitas, atravancadas e sujas7.

Mas para os artistas viajantes a paisagem natural do Rio de Janeiro sobrepujou os


problemas sociais da cidade. “Na verdade, foram as matas, o relevo e a fauna brasileiras os
únicos aspectos que levaram o Rio de Janeiro a ser a cidade mais visitada naquele então
pelosartistasviajantesdas primeirasdécadas doséculoXIX”8. Com sua natureza exuberante
e exótica, o Rio de Janeiro faz-se ponto referente para artistas naturalistas. Dentre esses
artistas podemos destacar Steinmann, Rugendas, Martinet, G. L. Hall, V. Frond, W. G. Ouseley,
J. Insley Pacheco, C. V. Browne, Willian Havell, Auguste Earle, Thomas Ender, Conrad
Martens, entre outros. Seus motivos paisagísticos são diversos, retratando diferentes cenários
do Rio de Janeiro como, por exemplo, a Mata Atlântica de Teresópolis, vários recantos de
Niterói, paisagens longínquas ou próximas do centro da cidade. Porém, a baía de Guanabara
é, sem sombra de dúvida, a paisagem mais relatada e retratada e ganhando fama pelos seus
encantos naturais: “segundo Darwin, sob o comando do capitão Fitzroy, o Brigue teve que
aguardar para entrar na baía de Guanabara em plena luz do dia para que a tripulação
pudesse ver a paisagem e ser vista”9. Daniel Kidder resume claramente esse encantamento
dos estrangeiros diante da baía de Guanabara:

A primeira vez que alguém entra na Baía do Rio de Janeiro marca uma época na
sua vida: “uma hora donde pode datar para o futuro, eternamente”. Até o mais
desanimado dos observadores, dessa data em diante, passa prezar melhor a
múltipla beleza e majestade do Creador. Vi marinheiros russos dos mais rudes e
ignorantes, um aventureiro australiano imoral, incapaz de qualquer reflexão,
juntamente com europeus refinados e cultos, ficarem mudos, estáticos, no
passadiço, acordes na admiração da colossal avenida de montanhas e ilhas
cobertas de palmeiras, que, como as pilastras de granito na frente do templo de
Luxor, formam a digna coluna para o pórtico da mais bela baía do mundo10.

A ideia de paisagem que se forma com esses e outros viajantes é de uma natureza
exuberante ainda pouco transformada pelo homem. Essa paisagem que, no início do século
XIX, é penetrada por um olhar de estrangeiro cientificista, tornar-se-ia, em meados do mesmo
século, afetada por um olhar repleto de emoções e sentimentos diante de uma natureza
sublime, mas, ao mesmo tempo, pitoresca em suas cores, uma vez que “certos modos de
apreciação do universo europeu do século XIX se casaram com estímulos da topografia, da
geografia, da vegetação e da vida humana no Brasil”11, porquanto, “tomado exclusivamente
no contexto da pintura, a paisagem se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada
a seduzir o olhar do expectador, por meio da ilusão de perspectiva”12. Ou, como afirma Burke,

198
Parece não ser mais do que senso comum sugerir que pintores de paisagens
desejam oferecer aos espectadores prazer mais do que comunicar uma mensagem.
[...] o que numa determinada cultura parece ser “senso comum” precisa ser
analisado pelos historiadores e antropólogos como parte de um sistema cultural.
No caso da paisagem, arvores e campos, rochas e rios, todos esses elementos
comportam associações conscientes ou inconscientes para os espectadores13.

O longo caminho que a pintura de paisagem percorreu, no decorrer do século XIX,


esteve intimamente associado à Academia Imperial de Belas Artes, fundada após a
Independência, precisamente em 1826. A gestação da Academia, contudo, remonta a dez
anos antes, quando chega ao Brasil a chamada “Missão Artística Francesa”, organizada por
Joachim Lebreton e composta, além do próprio Lebreton, pelo arquiteto Grandjean de Montigny,
o escultor August Taunay, o gravador Charles Pradier, os pintores Nicolas Taunay e Jean-
Baptiste Debret e, sendo posteriormente incorporados, os escultores Marc e Zépherin Ferrez.
O transcurso de dez anos entre a chegada da Missão à fundação da Academia explica-se
pelas inúmeras dificuldades práticas na hora de sua implementação.
Fundada a Academia, seus preceitos estariam apoiados no Neoclassicismo: a arte
deveria ser compreendida e representada através do belo ideal, valorizando os temas nobres
como a pintura histórica e a estrutura do desenho14. Vale destacar que nesse período a pintura
de retratos e os temas históricos eram amplamente valorizados, pois, chegara o momento do
Brasil constituir-se como nação e, nada mais nacional que cultivar os feitos históricos, como
bem observa Cybele Vidal Neto Fernandes:

Para a instituição, a pintura histórica era um gênero afeto aos artistas de grande
talento, aos quais estaria reservada a elevada missão de perpetuar os episódios
da história nacional: comprometida com o programa oficial, devendo voltar-se para
o culto à pátria através da narrativa do passado da nação; para a consagração da
moral e das virtudes, através dos símbolos e das alegorias; para a representação
da nobreza através dos retratos. Tais representações, de cunho oficial, iriam
contribuir para a construção do imaginário da nação, no discurso narrativo dos
temas representados15.

Assim, o ensino na Academia inicialmente valoriza a pintura histórica e retratista. Os


desenhos de anatomia, a figura humana, são o objeto nobre das artes. Porém, mesmo dentro
desse panorama acadêmico, alguns artistas fazem inserções pelas representações paisagísticas
durante todo o decorrer do século XIX, entre eles: Jean-Baptiste Debret, Nicolas-Antoine
Taunay, Félix-Emile Taunay, Manuel de Araújo Porto-alegre, Agostinho José da Mota, Vitor
Meirelles de Lima, Antônio Parreiras, Giovanni Battista Castagneto, entre outros. Vale destacar
que essa valorização acentuada da pintura histórica e retratista não implicava uma demanda
menor na pintura de paisagem, pois, mesmo inferior dentro de certa hierarquia, era também
bastante tradicional na Europa, passando a identificar-se, no início do século XIX, com discursos

199
de identidade nacional. O momento era de revelar “como a paisagem carrega o suposto da
diferença e, com ele, a própria noção de identidade”16.
É importante observar, que a pintura de paisagem no Rio de Janeiro não ficou restrita
aos pintores da Academia, e, como dito anteriormente, muitos artistas viajantes percorreram a
costa carioca no intuito de registrarem os aspectos da natureza tropical de nosso litoral. Nesse
sentido, se, por um lado, a malha urbana da cidade não oferecia uma impressão agradável, por
outro, a paisagem passa a ser, desde a chegada da Corte, o cartão de visita e ao mesmo tempo
uma espécie de elemento de propaganda para atrair novos viajantes, que a partir desse
momento poderiam estudar, pesquisar e conhecer a nossa natureza. Na verdade, muitos artistas
viajantes que aqui chegaram, associaram a nossa paisagem ao jardim do Éden, fazendo
referência à Arcádia, ao Paraíso, aos Campos Elíseos, à Atlanta... As representações pictóricas,
tanto de vistas costeiras quanto dos jardins cultivados do Rio de Janeiro, ajudaram a construir
uma imagem do nosso país como terra civilizada, onde o visitante poderia ter expectativa de uma
vida prazerosa e próspera17. Como bem observa Carlos Gonçalves Terra:

[...] a transferência de uma corte européia para cá fez com que nascesse uma
nova sensibilidade em relação à paisagem e uma nova maneira de pensar a
natureza no contexto urbano, já que a cidade possuía um grande jardim “natural”
ao seu redor18.

A paisagem do Rio de Janeiro se apresenta aos pintores viajantes como uma inigualável
oportunidade de exercerem suas habilidades artísticas, pois, na Europa, os artistas paisagistas
desconsideravam os aspectos urbanos, precisando se retirar para o meio rural. No Rio de
Janeiro “puderam perceber que a cidade era capaz de oferecer uma visão paisagística
propriamente pitoresca, tal qual uma pintura romântica”19. Variados são os exemplos, porém
nos limitaremos a um artista: Nicolau Antonio Facchinetti (1824-1900).
O pintor italiano chega ao Rio de Janeiro em 1849 e aqui permaneceria por 50 anos.
Pouco se sabe sobre sua vida antes de sua chegada em nossas terras. Alguns autores
classificam-no como pintor autodidata, porém, Maria Pace Chiavari, no catalogo da exposição
“Facchinetti”, realizada no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, no ano de 2004,
aponta dados que confirmam a tese de Donato de Mello Júnior segundo a qual o pintor teria
frequentado durante sua juventude no seu país de origem, a Itália, ambientes artísticos
“tradicionais”. De fato, Facchinetti aporta no Brasil já possuidor de uma acurada técnica
pictórica. Pintor extremamente detalhista produz uma vasta obra onde sobressaem suas
características estilísticas, dentre as quais pode-se destacar a riqueza pictórica empregada em
telas de pequenos formatos; a tendência à pintura de panoramas; o detalhismo no primeiro
plano da pintura e um colorido que imprime um destacado grau de sentimentalismo em suas
paisagens precisas e controladas.

200
Suas paisagens são de extrema sinceridade e acuidade detalhista, transportando
para suas telas a realidade vista e as cores que o enfeitiçavam. Mostrou-se amante e mestre
no domínio das perspectivas aéreas como lembra Valéria Piccoli,

Os pontos de vista que o artista escolhe são naturalmente cenográficos. Há em


suas pinturas um gosto claro pela amplidão das vistas e pela extensão dos
espaços, sendo esse sentido grandioso da paisagem uma das características
constitutivas de sua poética20.

Suas pinturas paisagísticas, apesar de muitos panoramas extensos, não sugerem


grandiosidade ou ameaça da natureza, mas sensações de aconchego, aproximando o homem
da natureza. Mesmo retratando a paisagem com excesso de detalhes, do primeiro ao último
plano, não perde a visão de conjunto da obra. Em relação à sua técnica de execução declara
o crítico Gonzaga Duque:

Antes de pintar, ele ia ao local, estudava o ponto, esquadrinhando todos os detalhes.


Depois tracejava o motivo em separado, numa página de álbum, numa folha de
papel, que lentamente completava. Preparado com esse exato desenho, decalcava-
o na tela, a carvão, cobria-o com grafite e terminava fixando-o com tinta comum,
por meio de aguda pena de aço.
Uma ocasião, estranhando-lhe eu todo esse lento, meticuloso processo, que
anulava a emoção, respondeu-me que o seu interesse era a verdade, quanto mais
exata, mais acabada fosse a cópia, tanto maior seria o mérito do seu trabalho...21.

Facchinetti, fiel à realidade, pintava suas telas in loco, montando seu ateliê no local,
onde permanecia até o momento exato da conclusão da obra. Extremamente meticuloso,
anotava no verso de seus quadros a data, o local, a hora, se era ao amanhecer ou entardecer
e, muitas vezes, a legenda: “pintado do natural”. Em suas pinturas paisagísticas é com extremo
sucesso que consegue fixar a atmosfera luminosa do Rio de Janeiro, como aponta Donato
Mello Júnior: “(...) a luz é uma constante nas suas paisagens, principalmente nos panoramas
em que explora os efeitos de tarde ou de madrugada do Rio, de Paquetá ou de Teresópolis”22.
Sua produção paisagística alcançou um alto grau de aprimoramento agradando grande
parte da sociedade emergente do Rio de Janeiro de então, passando a ser um dos mais
procurados pintores e a receber encomendas de paisagens. Seu público alvo era constituído
pela alta aristocracia – duque de Saxe, conde d’Eu, princesa Isabel, princesa Leopoldina e
vários barões do café – que queria ver suas propriedades ou as paisagens que desfrutava
retratadas com a fidelidade e detalhamento tão característico do artista.
As representações paisagísticas de Nicolau Facchinetti seguem um estilo próprio, em
sua grande maioria apresentam tonalidades avermelhadas, alaranjadas ou rosadas, podendo
ser um indicativo da escola veneziana. Em sua composição o pintor utiliza escalas tonais e faz
uso da perspectiva aérea para conseguir o efeito de profundidade, trabalhando o primeiro

201
plano sempre com tons mais escurecidos. Dá preferência por céus limpos e claros com poucas
formações de nuvens. Em suas pinturas a figura humana é sempre diminuta, sendo apenas
um pequeno detalhe inserido na paisagem que, quando presente, aparece solitária ou em
pequenos grupos. Na verdade, na maior parte de suas representações paisagísticas, a
presença da figura humana está totalmente ausente. Quando representa vistas onde aparece
o mar, este é retratado com águas sempre calmas, oferecendo sensação de tranquilidade.
Uma significativa parte de sua produção pictórica oscila entre a retratação marítima e serrana
e, muitas vezes, as escolhas do seu ângulo de visão colocam em evidência o aspecto geográfico
de nossa paisagem: a união entre o mar e a montanha.
Mesmo não fazendo parte da Academia Imperial de Belas Artes, Facchinetti participou
várias vezes da Exposição Geral de Belas Artes, inicialmente com a produção de retratos –
recebendo Menção Honrosa em 1864 e Medalha de Prata em 1865 – porém, a partir do ano
de 1870 passa a expor somente paisagens, chegando a apresentar um total de 15 pinturas
paisagísticas no ano de 1884. Seu vínculo com a Academia, porém, não se restringiu às
Exposições Gerais: no arquivo documental do Museu D. João VI, pertencente à Escola de
Belas Artes da UFRJ, encontram-se cartas, recibos e requerimentos que dizem respeito ao
nosso pintor. Os documentos com notações 370 e 371 (fig. 1) são constituídos de cartas, em
italiano, onde Facchinetti convida o amigo e escultor Rodolfo Bernardelli – nessa ocasião,
diretor da Academia – para a exposição de suas obras e de sua aluna Maria A. Forneiro.
Essas cartas-bilhete demonstram o que muitos críticos ressaltavam em relação à personalidade
do artista: cortesia e amabilidade.

Figura 1: Carta-bilhete de Nicolau Facchinetti para Rodolfo Bernardelli.

Já o documento com notação 5070 (fig. 2) é uma solicitação de Facchinetti ao diretor


da Academia solicitando licença para ensinar desenho e, no verso do próprio documento
encontra-se a resposta afirmativa da direção reconhecendo suas habilidades artísticas.

202
.

Figura 2: Requerimento de Nicolau Facchinetti e despacho no verso.

Em outro documento, com notação 1299 (fig. 3), pode-se observar o reconhecimento
lhe conferido pela Academia, pois trata-se de um recibo de compra da pintura A lagoa Rodrigo
de Freitas, que esteve presente na Exposição Geral de 1884.

Figura 3: Recibo de compra


efetuada pela Academia.

O que podemos
perceber é que mesmo sem
fazer parte da elite artística,
Facchinetti vivenciou e
influenciou o ambiente
cultural do Rio de Janeiro
de meados do século XIX.
O cenário natural carioca foi
inúmeras vezes tema para as suas pinturas, onde observou com seu “olhar” estrangeiro e,
com o passar do tempo, de pertencimento, as cores, luzes e formas da paisagem carioca.

Notas e referências
1
RAMINELI, Ronald. Viajantes. In: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Imperial. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2002. p. 711.
2
CAMPOFIORITO, Quirino. História da pintura brasileira no século XIX. Rio de Janeiro: Pinakothek,
1983. 2 v. p. 15.
3
KELLER, Susane B. A respeito da compreensão da geografia pelos artistas-viajantes nos séculos XVIII e
XIX. In: Revista porto arte. – v. 15, nº 25 – Porto Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, novembro/2008. p. 25.
4
MARTINS, Luciana de Lima. O Rio de Janeiro dos viajantes: o olhar britânico (1800-1850). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. p. 14.

203
5
BANDEIRA, Júlio (org.). A paisagem pitoresca no Brasil. Rio de Janeiro: Museu Castro Maya, 1998. p. 38.
6
BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passos: um Haussmann Tropical: a renovação urbana da cidade do
Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1992. p. 27.
7
PEREIRA, Sonia Gomes. A cidade do Rio de Janeiro no século XIX: a herança colonial e o início da
modernidade. In: Cadernos do patrimônio cultural, vol. 1 nº 1. Rio de Janeiro: SMC, 1991. p.31.
8
BANDEIRA,op. cit., p. 33.
9
MARTINS, op.cit., p. 21.
10
KIDDER, Daniel P.; FLETCHER, J. C. O Brasil e os brasileiros: esboço histórico e descritivo. São
Paulo / Rio de Janeiro / Recife / Porto Alegre: Companhia Editora Nacional, 1941. p. 4.
11
BELLUZZO, Ana Maria. O viajante e a paisagem brasileira. In: Revista porto arte. – v. 15, nº 25 – Porto
Alegre: Instituto de Artes/UFRGS, novembro/2008. p. 42.
12
CAUQUELIN, Anne. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins, 2007. p. 37.
13
BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 53.
14
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte no Brasil no século XIX. In: OLIVEIRA, Myrian Andrade Ribeiro (Org.).
História da arte no Brasil: textos de síntese. Rio de Janeiro: UFRJ, CLA, EBA, 200-. p. 45.
15
FERNANDES, Cybele Vidal Neto. O ensino de pintura e escultura na Academia Imperial de Belas Artes.
In: 185 Anos de Escola de Belas Artes. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001/2002. p. 13.
16
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as desventuras dos artistas
franceses na corte de d. João. São Paulo: Companhia da Letras, 2008. p. 119.
17
MANTHORNE, Katherine E. O imaginário brasileiro para o público norte-americano do século XIX. In:
Revista USP : dossiê Brasil dos viajantes. São Paulo: USP, CCS, 1996. p. 62 e passim.
18
TERRA, Carlos Gonçalves. Paisagens construídas: Jardins, praças e parques do Rio de Janeiro do
século XIX. Tese (doutorado em História e Crítica da Arte) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2004. p. 80.
19
ANDRADE, Tarcísio Bahia de. Paisagem e arquitetura no Rio de Janeiro: iconografia do olhar conciliador
de pintores e arquitetos. Tese de doutoramento apresentada ao Departamento de Expresión Gráfica
Arquitectónica I, da Escuela Técnica Superior de Arquitectura de Barcelona, Universidad Politécnica de
Cataluña, 2002. p. 46.
20
PICCOLI, Valéria. Visão natural e artifício na pintura de Facchinetti. In: Facchinetti, Nicolau (1824-1900).
Facchinetti. Rio de Janeiro: CCBB, 2004. (catálogo de exposição realizada no período de 30 de março
a 06 de junho de 2004). p. 25.
21
DUQUE, Gonzaga. A Arte Brasileira. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995. p. 50.
22
MELLO JÚNIOR, Donato. Facchinetti. São Paulo: ART Editora Ltda / Rio de Janeiro: Editora Record,
1982. p. 33.

204
2.3 Atores do ensino e aprendizado

205
Francisco Manoel Chaves Pinheiro: o artista e professora da Academia

Fátima Alfredo
Mestre PPGAV/EBA/UFRJ

Francisco Manuel Chaves Pinheiro foi um artista não-diletante que se fez presente em
vários momentos importantes na formação da sociedade carioca e brasileira.

Foto Chaves Pinheiro – Arquivos do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.

Nascido em 5 de setembro de 1822 na cidade do Rio de


Janeiro, ingressou na Academia no ano de 1836 tornando-se
aluno da primeira turma de Escultura cujo professor era Marc
Ferrez - na sua trajetória como aluno consta a premiação com
duas Medalhas de Prata, a primeira aos 14 e a segunda aos 15
anos de idade e, aos 23 anos, conquistou a Medalha de Ouro
oferecida aos melhores alunos em concursos pela Imperial
Academia com a obra Alegoria a Libertação do Brasil.
Chaves Pinheiro foi um aluno promissor e comprometido com o objetivo da Academia e,
apesar das críticas de Le Breton sobre a origem socioeconômica dos alunos, aos vinte e nove foi
nomeado professor de Escultura e Estatuária da instituição, tendo como alunos mais destacados
Cândido Caetano de Almeida Reis, Hortêncio Branco Cordoville e Rodolfo Bernardelli.
Ele foi um escultor que teve a maior parte da sua produção baseada no modelado
(obras moldadas em barro e finalizadas em gesso, bronze ou ferro). O material para execução
dessas peças era doado pela Academia, salvo os raros trabalhos particulares que executou,
mas inda assim tinha o Governo Imperial como o maior ‘comprador’ de suas obras. Além do
modelado, também realizou algumas obras em mármore e em madeira, mas foram os inúmeros
retratos em bronze, dedicados às figuras de grande destaque nacional, que conferiram mais
renome à sua coletânea artística.
Como nos países europeus, principalmente na França, a Academia do Rio de Janeiro,
subvencionada pelo Estado, foi impondo ao longo dos anos, através de uma disciplina rígida,
um determinado padrão estético. Suas classes de professores efetivos e honorários eram
presididas pelo Ministro e Secretário de Estado e Negócios do Império ou por seu Diretor.
Seus artistas, alunos e professores tinham forçosamente o compromisso de colaborar com o
governo para retribuir o ônus da sua formação artística e profissional.
Chaves Pinheiro foi professor desta Academia de 1851 a 1884, num período de trinta
e três anos, durante os quais produziu inúmeras obras de aspectos temáticos plurais, indo dos
motivos heróicos, as alegorias e aos temas nacionais.

206
Ele participou de Comissões que analisavam os
envios oriundos da Europa, tanto de alunos bolsistas, quanto
de correspondentes europeus da Academia e era ele
também quem restaurava algumas obras compradas pelo
Governo para servir de apoio didático às aulas. Apesar de
sua formação artística ter se dado somente na Academia,
esteve no exterior sim, algumas vezes, participando dessas
Comissões Brasileiras enviadas às Exposições
Internacionais. A primeira delas foi à Exposição Internacional
de Paris de 1867 onde representou o país e expôs a Estátua
Eqüestre de Pedro II na rendição da Uruguaiana e a outra
foi a Exposição de Filadélfia em 1880.

Foto da estátua equestre exposta na Praça de Paris na ocasião da Exposição Universal de 1867.
Arquivos do Museu D. João VI/EBA/UFRJ.

Ainda como professor estatuário da AIBA, apresentou 17 artigos planejados para


regulamentar as “Exposições Gerais” que estavam sendo feitas pela Academia1.
Chaves Pinheiro participou da vida acadêmica brasileira num período que pode ser
considerado favorável à produção cultural, graças ao patronato do Imperador e ao momento
que se mostrava propício a essa produção crescente devido ao movimento de conscientização,
no Brasil e na Europa, das questões relativas ao nacional, deixando uma diversidade de
obras entre monumentos ou grupos alegóricos, obras sacras, relevo arquitetônico e inúmeros
retratos.
Para algumas obras, Chaves Pinheiro fez uso de esboços dos quais o tamanho era,
geralmente, proporcional a um terço da peça final e, em outros, a modelagem se deu com
intenção definitiva, como nos retratos. Aqui no Museu D. João VI/EBA/
UFRJ podemos encontrar vários exemplos, a estatueta de Pedro Álvares
Cabral e os diversos retratos executados em bronze que fazem parte do
Acervo do Museu.
Mas chamo atenção aqui sobre a produção retratística de Chaves
e novamente pensando em uma “historia nacional de acordo com as
representações de segmentos muito específicos das elites brasileiras [...]
aqueles que constituíam e se representavam como a nobreza brasileira
[...]” (ABREU, 1996, p. 147, grifo nosso), entendemos que é importante
destacar determinados feitos de alguns personagens, para compreender

Estatueta pedestre em homenagem a Pedro Álvares Cabral (em madeira 53,5x21,


5x19, 5) Arquivo Museu D. João VI/EBA/UFRJ.

207
a construção de uma história maior, coletiva. Pensando assim, o retrato já mostrava a sua
funcionalidade, do mesmo modo como ocorre nos dias atuais. Ele era realizado com o fim
específico de distinguir alguns ou chamar a atenção para os dotes de outrem. Da mesma
maneira que passou a ser comum ao cidadão moderno, ornar sua residência com objetos de
valor vindos da Europa, também se tornou grande moda a encomenda de retratos para ornar
os interiores das residências. Para os burgueses da época, isso era algo politicamente correto.
Aqui, nos corredores do Museu D. João VI estão diferentes mostras desta produção.

1 - Tomás Gomes dos Santos; 2 - Antonio Nicolau Tolentino; 3 - F. J. Bithencourt; 4 - Maximiano Mafra;
5 - Modelo ponteado de Antonio Nicolau Tolentino. Arquivo do Museu D. João VI.

Havia alguns cânones artísticos pré-estabelecidos, dentro dos padrões oitocentistas


e para o bom empreendimento destes, os artistas retratistas da época não deveriam se
afastar demasiadamente, correndo sério risco de serem incompreendidos pelo ‘cliente’,
conquanto também não devessem usar de outro estilo senão o convencional. De certo que
na maioria das vezes partia deste ‘cliente’ a palavra final quanto a execução da obra,
influindo e dispondo-a da maneira que bem desejasse, salvo as limitações de valores já
organizados e definidos pelo grupo social no qual estava inserido. Essa contenção de
liberdade dificultou a aproximação dos bustos ao estilo mais moderno (romântico), fazendo
valer as normas acadêmicas como, por exemplo, as ditadas pelo Epítome de anatomia de
Charles Lebrun, que codificava a linguagem universal dos gestos e indicava ser a cabeça
a parte mais importante para expressar as emoções.
Eu acho que, procurar absorver o sentido da obra de Chaves Pinheiro na sua
mensagem estética mais geral e nas suas particularidades éticas, certamente será proveitoso
para montar um panorama do ensino e da produção artística desse período da Academia, pois
além da riqueza temática, da multiplicidade de sua produção e da particularidade de seus
traços, a influência do estilo romântico que começava a visitar as suas obras servirá para
acrescer ainda mais a história da arte brasileira oitocentista.

Notas e referências
1
Nota em Jornal “Gazeta da Tarde” (nº 108, Ano V, 1884)
2
ABREU, Regina. A Fabricação do Imortal: Memória, História e Estratégias de Consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Rocco. 1996. p.147.

208
Júlio César de Mello e Souza – um professor-autor na Congregação da
Escola Nacional de Belas Artes

Moysés Gonçalves Siqueira Filho


DECH/CEUNES/UFES

Júlio César de Mello e Souza nasceu em 06 de maio de 1895 na cidade do Rio de


Janeiro. Foi o quarto herdeiro de uma prole de nove filhos1 do casal João de Deus de Mello
e Souza (1862 – 1910) e Carolina Carlos de Mello e Souza ([?]– 1925). Ele, funcionário
público, com honras de tenente coronel, em virtude de ter combatido ao lado de Floriano
Peixoto, e ela, professora primária.
Passou boa parte de sua infância em Queluz, interior de São Paulo, local em que
realizou seus estudos primários e foi aluno de sua mãe. Também aí, iniciou uma estranha
paixão: criar sapos, cujos líderes eram conhecidos por “Monsenhor” e “Ilustríssimo Senhor”.
Era, também, considerado um inventor de mirabolantes histórias, que na maioria das vezes
apresentava um excesso de personagens, muitos dos quais não desempenhavam nenhum
tipo de papel no enredo, e em razão disso, os batizava com nomes bem estranhos:
Mardukbarian, Orônsio, Protocholóski2.
Por volta dos dez anos retornou à sua cidade natal para estudar no Colégio Militar3,
para surpresa de seu irmão João Batista, outrora, incumbido pelo pai de prepará-lo para os
exames. Em sua opinião o “Julinho [...] escrev[ia] mal, e [era] uma negação para a matemática”4.
Posteriormente, seu pai o transferiria5 para o internato do Colégio Pedro II6.
A importância dessa instituição para a família Mello e Souza não se restringiu apenas
à excelência de ensino para o que fora criado; ela concedeu a João Batista7, a Júlio César e
a José Carlos “um teto para [..] abrigo, na fase dos estudos, bons mestres para a [...] formação
intelectual, um prato para o [...] alimento, e uma cama para [...] os sonhos juvenis”8, bem como,
os recebeu, tempos depois, para exercerem atividades profissionais.
De fato, o Colégio Pedro II, criado em 1837, teve um papel determinante na trajetória
da educação brasileira. A congregação da Escola Nacional de Belas Artes, em sessão de
1928, discutiu a reestruturação do regulamento interno para o seu exame de admissão,
propondo a adoção dos programas do Pedro II para todas as matérias, como nos mostra o
trecho a seguir:

Acta da Sessão da Congregação da Escola Nacional de Bellas Artes realisada


em 12.04.19289. Presidência do Prof. José Octavio Corrêa Lima – Director.
[...] Pede em seguida a palavra o prof. Bahiana e faz as seguintes considerações:
“Sendo a Escola Nacional de Belas Artes uma instituição de ensino superior, as
matérias exigidas para admissão devem ter o mesmo desenvolvimento fixado nas
outras escolas superiores, isto é, devem corresponder ao ensino gymnasial. Por
isso, proponho que a commissão didactica10 proceda a revisão do actual regulamento

209
para o exame de admissão no sentido de adoptar, como programa de aricthmetica,
geometria, álgebra e trigonometria, as do colégio Pedro II. Para admissão ao 1º
anno, o exame teria feição prática, isso é, não seria exigida demonstrações de
Theoremas, nemdeduçãodefórmulas, masapenasaplicaçõespráticas desses
theoremas e fórmulas, permittida a consulta de livros pelos candidatos. Nos exames,
complementares, para matricula nos 2º e 3º annos, seriam exigidas, as
demonstrações de theoremas e a dedução de fórmulas e prohibida a consulta de
livros. O prof. Chabréo, pensa que os programmas do Colégio Pedro II devem ser
adoptados para todas as materias do exame de admissão, com o que concorda o
prof. Bahiana, com a restrição de ser dada feição prática aos exames de
Mathematicas para admissão ao 1º anno de accordo com o regulamento da
Escola. O prof. Chabréo propõe também que os exames complementares de
Mathematicas, se revistam de uma feição mais elevada, de modo a corresponder
ao exame vestibular da Escola Polytechnica. O prof. Bahiana acha acertada essa
suggestão e julga que ella poderá ser realisada pela Congregação, dentro do actual
regulamento [Atas Sessões da Congregação da Escola de Belas Artes – 1924 a
1931 - Livro nº 6158, p. 140 e verso] - Grifos da congregação.

Dias mais tarde Mello e Souza foi apresentado, por José Octavio Corrêa Lima, à
Congregação da Escola Nacional de Belas Artes, como professor interino da Cadeira de
Matemática Complementar, conforme transcrição da Ata abaixo:

Acta da Sessão da Congregação da Escola Nacional de Bellas Artes realisada em


25.04.1928. Presidência do Prof. José Octavio Corrêa Lima – Director.
[...] Antes de ser iniciada a leitura da acta, o snr director apresenta à congregação
o Dr Julio Cesar de Mello e Souza nomeado por acto do governo para exercer
interinamente o cargo de professor da cadeira de Mathematica complementar. [...]
Passando-se a “ordem do dia” cujo objeto era: Tomar conhecimento do programma
apresentado pelo prof. Mello e Souza, relativo a cadeira de Mathematica
complementar [...]. O prof. Bahiana declara que tendo consultado o programma da
autoria do prof. Mello e Souza, constatara com bastante satisfação que a orientação
adoptada, era a mesma pela qual sempre se batera, só podendo dessa forma lhe
emprestar todo o seu apoio. Pede a palavra o prof. Melo e Souza, que agradecendo
as ellugiosas referencias, mostra os factores, de que lançou mão na confecção de
seu programma, fazendo ver, ter sido sempre em vista a correlação que deve
existir entre a sua cadeira e aquellas para as quais as Mathematicas
complementares constituem elementos bazicos. Outrossim, dá as razões de ordem
pedagógica que o levaram a dividir o programma em um numero determinado de
aulas. É em seguida, submettido a votos e approvado unanimemente o programma
em apreciação11.

A partir de 193612, tornou-se responsável pela Cadeira de Matemática Superior,


na mesma instituição, mantendo-se preocupado com os desdobramentos dos conteúdos
que ministrava.

210
Figura 1 - Capa do Programa de Matemática Superior13, s.d.

Para ele, a “Matemática Superior, na 1ª série, não tem


outra finalidade senão fornecer ao jovem recursos para estudar,
com real aproveitamento, as cadeiras do curso, diretamente
relacionadas com a profissão de arquiteto. Em outras palavras:
a Matemática para o arquiteto, deveria ser apresentada como
um instrumento e não como um fim”14.
Oportunamente, o prefeito de Itaocara15, Carlos Moacyr
de Faria Souto, conhecedor da concepção didática de Mello e
Souza, o procurou para que colaborasse em seu projeto de
construção de uma praça com um monumento em homenagem à, segundo ele, “Rainha das
Ciências”. Além de aceitar o convite, o professor promoveu, entre os seus alunos, acadêmicos
de arquitetura, um concurso para a escolha do melhor desenho, colocando, dessa forma, em
prática, o que considerava ser a finalidade do ensino da Matemática a um arquiteto. O prêmio
oferecido pela Prefeitura de Itaocara, quinhentos mil réis, foi dado a Godofredo Formenti,
vencedor do concurso. A construção do monumento16, inaugurado em 1º de julho de 1943, foi
feita por Italarico Alves, morador daquela cidade17.
Durante os quarenta anos que prestou serviço à Universidade do Brasil, atuou como
um dos três delegados eleitores no Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura18; exerceu
as funções de membro do Conselho Técnico Administrativo da Escola Nacional de Belas
Artes19; e foi designado, pelo reitor, para chefe do Departamento de Matemática da Faculdade
Nacional de Arquitetura20.
Recebeu, também, duas outras indicações para participar como membro de comissão
julgadora de concursos realizados pela Escola Nacional de Química daquela Universidade,
para preenchimento da cadeira de Matemática Superior. A primeira indicação, feita em 1939 e
aceita, se referia a um concurso de docência livre21 e a segunda [1940], a um concurso de
cátedra, mas que sofreu recurso impetrado pelo candidato César Dacorso Neto, em cujo
requerimento solicitava a substituição do referido professor22. Mas qual a razão para tal
atitude, tomada pelo candidato Dacorso Neto? Duas eram, basicamente, as argumentações
apresentadas por ele:
1ª - o requerente julgava que, ele e Mello e Souza eram militantes de correntes
opostas, pois em 1933/34, ambos disputaram à cátedra de Matemática do Colégio Pedro II e,
na ocasião, o primeiro fora favorável ao resultado que o comprimiu em penúltimo lugar, entre
os concorrentes; enquanto, o segundo, se mostrara simpatizante à anulação do concurso;
2ª - o requerente alegava haver, no próximo concurso da Escola de Química, a
participação de Miguel Ramalho Novo23, segundo palavras do próprio Mello e Souza, seu
amigo e colaborador no livro História e Fantasias da Matemática, publicado pelas editoras
Getúlio Costa e Calvino Filho, em 1939.

211
Em correspondência com Porto Carreiro Neto, diretor da Escola de Química, Mello e
Souza pontuou, entre outras considerações, que as alegações do candidato não constituíam
motivo suficiente para uma suspeição, “quer no sentido restrito das disposições legais que
regem a matéria, quer ampliando esse sentido até onde o bom senso permite”24. Não obstante,
o requerimento de Dacorso Neto fora deferido pelo relator San Thiago Dantas e em 10 de
julho do corrente ano, sem maiores justificativas, o Conselho Universitário pôs fim a este
impasse.
Anos antes, regendo aulas para turmas suplementares do Externato do Colégio
Pedro II e trabalhando no terceiro armazém da Biblioteca Nacional, como carregador de
livros25, prestou concurso de admissão, em 1913, e foi aprovado para a 1ª série do Curso de
Engenharia Civil na Escola Politécnica da Universidade do Brasil26, atualmente, Universidade
Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. A conclusão do curso ocorreria apenas doze anos depois
e, após isso, seriam necessários mais oito anos para obter o seu diploma.
A experiência com a escrita e a edição de textos, com a intenção de manifestar suas
posições e conseguir um dinheiro extra, já eram percebidas nos tempos em que fora estudante
do Colégio Militar. Época em que lançou o primeiro número de um pequeno jornal, denominado
ERRE27, supostamente em concorrência a dois outros jornais semelhantes: o Mez e o ABC, de
seus irmãos Rubens e Nelson. A periodicidade, das primeiras “tiragens” do JORNAL ERRE,
acabou não sendo muito regular, mas, em 1908, provavelmente, o último ano de sua
“circulação”, passou a ser, rigorosamente, mensal. Até o número treze, o menino Julinho
assinava como “redator/editor”. A partir do número quatorze, o jornal passou a ter como
redator Salomão IV, o qual promoveu mudanças significativas na linha editorial: além da
periodicidade, o jornal passou, também, a ser crítico [e] illustrado28. Seria o início da opção de
Mello e Souza pelo uso de pseudônimos.
Suas potencialidades infantis, a curiosidade, a liberdade, em um tempo de preocupações
outras, entrecruzar-se-iam com a vontade e a persistência do adulto, inseridas em uma rede
de dominação e/ou resistência, a qual se prevalece de interesses imbuídos da modernidade
capitalista, fazendo com que suas imagens de infância se ofusquem, uma vez que figuras
diversas, espaços diversos e tempos diferentes se implicaram a ela29.
A trajetória acadêmico-profissional de Mello e Souza nos revela não ter havido
primeiro a constituição do professor e depois a do autor, ou vice-versa. Esses papéis se
constituíram na relação dialética entre eles, simultaneamente. Ora, era o professor apontando
direções para o autor, ora, exatamente o oposto, o que sinaliza não haver um período
exclusivo de dedicação à literatura e outro ao magistério.
A sua formação em humanidades e engenharia, obtidas, respectivamente na Escola
Normal e na Escola Politécnica, o legitimavam a ensinar Matemática e o colocavam em lugar
privilegiado para orientar as práticas pedagógicas de seus colegas de profissão. À medida
que não há relação de poder sem constituição de um campo de saber, como também,

212
reciprocamente, todo saber constitui novas relações de poder30, Mello e Souza, revestido
pelos ditames de seus saberes matemáticos, utilizados como instrumentos de dominação,
ditava regras de comportamentos e atitudes do bom professor, bem como, procurava demolir
seus concorrentes e, dessa forma, promovia a constituição do professor-autor de assuntos
relacionados à Matemática.
O extenso panorama de suas obras vislumbra prestígio, notoriedade e respeito.
Contudo, possuidor de um estilo irriquieto, irreverente e provocador, nem sempre agradou a
todos. Talvez, inventar Malba Tahan fosse a “válvula de escape” de um mundo sombrio; um
descanso na loucura (Guimarães Rosa) das exigências de um mundo moderno e capitalista.
Para se aguentar nas intempéries de um dia, o contista o faria viajar por lugares
nunca antes visitados, apenas imaginados. Ele representaria o esforço necessário de todas
as noites para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência, assim como fez Shehrazade,
que narrava, desesperadamente, até o amanhecer do dia para afastar a morte que a rondava.
Malba Tahan, um autor-personagem, uma mentira artística, inventado para
surpreender o Brasil, significaria uma das rupturas, um dos abalos do professor-autor Júlio
César de Mello e Souza na tentativa de se recriar, de se reinventar no cerne de suas
práticas cotidianas. Nas palavras de Guimarães Rosa A gente morre é para provar que
viveu, [mas] as pessoas não morrem, ficam encantadas. Malba Tahan encantou-se em 18
de junho de 1974.

Notas e referências
1
Maria Antonieta de Mello e Souza; 2. Laura de Mello e Souza; 3. João Batista de Mello e Souza; 4. Júlio
César de Mello e Souza; 5. Julieta Carmem de Mello e Souza; 6. Nelson de Mello e Souza; 7. Rubens
de Mello e Souza; 8. José Carlos de Mello e Souza; 9. Olga de Mello e Souza.
2
MELLO E SOUZA, João Batista. Meninos de Queluz: crônica de saudade. Rio de Janeiro : Editora
Aurora Ltda, 1948.
3
Melo e Souza foi colega de turma de Osvaldo Aranha, futuro Ministro do Exterior e Chanceller do Brasil
no governo de Getúlio Vargas.
4
MELLO E SOUZA, op.cit., p. 63 e p. 84).
5
MUSEU DA IMAGEM E DO SOM – MIS. Depoimento de Malba Tahan. Rio de Janeiro, 25.04.1973 -
Audição em 04.07.2007.1973.
6
O antigo seminário de São Joaquim foi convertido em colégio de instrução secundária em 1837, sob a
designação de Colégio Pedro II. Por força do Decreto nº 9, de 21.11.1889, passou a denominar-se Instituto
Nacional de Instrução Secundária. Em 08.11.1890, Decreto nº 981, o Instituto Nacional de Instrução
Secundária foi transformado em Ginásio Nacional. Em 24 de julho de 1909, Decreto 7472, o Externato do
Ginásio Nacional voltou a denominar-se Colégio Pedro II e o Internato, Colégio Bernardo de Vasconcelos.
A Reforma Rivadávia Correia, Decreto 8659 de 5 de abril de 1911, derrogou o Decreto 7472, de 24 de
julho de 1909, na parte em que deu ao internato o nome de Bernardo de Vasconcelos e, portanto, as duas
unidades – “Externato e Internato” voltaram a constituir-se um todo sob denominação de “Colégio Pedro
II”. COLÉGIO PEDRO II. Colégio Pedro II e sua tradição. Rio de Janeiro, 1965.
7
Em 1910 ocorreu a morte de seu pai e o irmão tornou-se seu “tutor” no Colégio Pedro II.
8
MELLO E SOUZA, op.cit., p. 44.
9
O nome de Mello e Souza não consta na abertura da ata, entretanto ele a assina. É a 1ª ata com a
assinatura de Mello e Souza.

213
10
A comissão didática era formada pelos professores Alvaro Rodrigues, Diogo Chabréo, Rodolpho
Chambelland, Augusto Bracet, Saldanha da Gama, conforme ata de 09.03.1928 – p. 138 e verso.
11
UFRJ/MUSEU DOM JOÂO VI. Atas Sessões da Congregação da Escola de Belas Artes – 1924 a 1931
- Livro nº 6158, p. 142 e verso; p. 143.
12
UFRJ - MUSEU DOM JOÂO VI Registro 115 – Professores/Disciplinas, da Escola Nacional de Belas
Artes – 1928 e 1936.
13
Na folha de rosto deste programa constam como professores das cadeiras de Perspectiva, Sombras,
Estereotomia e Higiene da habitação, saneamento das cidades, respectivamente, Gastão Bahiana e
Mario Leite leal Ferreira. Como conteúdo: Geometria Analítica; Cálculo Diferencial; Cálculo Integral;
Noções de Cálculo Gráfico e de Nomografia. ARQUIVO PESSOAL IMT. Programa da disciplina Matemática
Superior s.d.
14
ARQUIVO PESSOAL – IMT. Correspondência de Mello e Souza aos colegas da Faculdade de Nacional
de Arquitetura sobre a disciplina Matemática Superior. 10 de janeiro de 1950.
15
Cidade fluminense, situada no interior do estado do Rio de Janeiro, à margem direita do rio Paraíba e
ligada, por algumas léguas de estrada de rodagem, à cidade de Campos. TAHAN, Malba. Revista Al-
Karismi. n.1. Rio de Janeiro: Getúlio Costa, 1946, p.3.
16
O monumento é considerado o primeiro e único no mundo. Duas pirâmides quadrangulares entrelaçadas
que simbolizam a antiga civilização do vale do rio Nilo, dão a sua forma. TAHAN, Malba. Revista Al-
Karismi. n.1. Rio de Janeiro: Getúlio Costa, 1946, p.3. Em março de 1961 o monumento sofreu uma
remodelação conservados, porém, sua forma estrutural e suas legendas. TAHAN, Malba. O Problema
das Definições em Matemática. SP: Saraiva, prefácio, 1965.
17
Professor do Departamento de Educação Matemática da Universidade Federal Fluminense – Interiorização
Santo Antonio de Pádua – RJ. PIMENTEL, Augusto Cesar Aguiar. A História da Matemática registrada em
um monumento: 62 anos,1943 – 2005. Rio de Janeiro, Itaocara, 2005 (FOLDER).
18
Os outros dois delegados eleitores, indicados para o CREA, foram os professores Furtado Simas e Eugenio
Hime [...]. UFRJ/MUSEU DOM VI. Atas Congregação de Arquitetura – 1934 a 1945 - Livro nº 6171, p. 7.
19
De acordo com o artigo 29, do Decreto nº 19851, de 11 de abril de 1931, em 1945, pelo Ministro de
Estado da Educação e Saúde, Gustavo Capanema.
20
De acordo com a Portaria nº 615 de 01 de setembro de 1953 e ARQUIVO PESSOAL – IMT.
Correspondência da Universidade do Brasil, 1953.
21
Um professor que não era catedrático, mas dava aulas sob a orientação do catedrático responsável
pela disciplina, cf. TAVARES, Jane Cardote. A congregação do Colégio Pedro II e os debates sobre o
ensino de Matemática. PUC, São Paulo, 2002. (Dissertação de Mestrado), p.84. No ANEXO B, note-se
que Mello e Souza aparece como docente livre, em 1965, do Colégio Pedro II.
22
ARQUIVO PESSOAL - IMT. Correspondências da Escola Nacional de Química – 1939; 1940.
23
Autor do artigo Questões de Ensino – A Matemática no Pedro II, publicado no Jornal do Commercio, em
23 de junho de 1929, na cidade do Rio de Janeiro. Com este artigo posicionava-se contrário às idéias
inovadoras elaboradas por Euclides Roxo. DASSIE, Bruno Alves; CARVALHO, João Bosco Pitombeira;
ROCHA, José Lourenço da. Uma coleção revolucionária. In: História & Educação Matemática, v.2, n.2
jun/dez, 2001; jan/dez, 2002.
24
ARQUIVO PESSOAL – IMT. Correspondência ao Diretor da Escola Nacional de Química, 18 de junho de 1940.
25
ARQUIVO PESSOAL – IMT. Nomeação de Júlio César de Mello e Souza: auxiliar da Biblioteca
Nacional durante o impedimento do effectivo Alfredo de Araújo Lopes da Costa. Rio de Janeiro, 18 de
outubro de 1912 e TAHAN, Malba. Acordaram-me de madrugada: recordações de antigo aluno do Colégio
Pedro II. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas do Colégio Pedro II, 1973.
26
De acordo com o Decreto nº 8.659 de 05 de abril de 1911.
27
Ano I (1907) - n. 01; n. 02; n. 04; n. 06; n. 07; n.11; n. 12; n. 13; n. 14 - redator - Salomão IV. Ano II (1908)
- n. 15 - janeiro; n. 16 - fevereiro; n. 17 - março; n. 18 - abril; n. 19 - maio; n. 22 - agosto; n. 24 - outubro;
n. 25 – novembro. ARQUIVO PESSOAL – IMT. Jornal ERRE.
28
ARQUIVO PESSOAL - IMT. Jornal ERRE,1908.
29
GALZERANI, Maria Carolina Bovério. Imagens entrecruzadas de infância e produção de conhecimento
histórico em Walter Benjamim. In: FARIA, Ana Lúcia Goulart; FABRI, Zélia de Brito; PRADO, Patrícia Dias
(Org.). Por uma cultura da infância: metodologias de pesquisa com crianças. Campinas, SP: Autores
associados, 2002.
30
FOUCAULT, Michael. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. X.

214
Antonio Luis de Moura: o primeiro clarinetista virtuoso brasileiro e
fundador da cátedra de clarineta no Brasil

Fernando José Silveira


UNIRIO

Introdução
Sabe-se que a definitiva chegada da clarineta ao Brasil deu-se ou por ocasião da
fixação da corte de Portugal no Brasil ou por meio da vinda das bandas militares que
acompanharam D. João VI ao Brasil1. A mais antiga citação da presença de clarinetas no Brasil
é oriunda de Minas Gerais, no ano de 1783, onde se pôde constatar a presença de duas
clarinetas em conjunto formado por ocasião da posse do novo Governador Geral Luiz da
Cunha Menezes2.
Entre o final do século XVIII e começo do século XIX, muitos foram os clarinetistas
atuantes no Brasil. Dentre eles, destacam-se José Joaquim da Silva e João Bartholomeu Klier.
Ambos estrangeiros, estudaram na Europa e, posteriormente, radicaram-se no Rio de Janeiro,
tendo sido clarinetistas da prestigiosa orquestra da Capela Imperial do Rio de Janeiro. No
caso de José Joaquim da Silva – português – o que se sabe é que, apesar de ter sido um dos
responsáveis pela introdução do conceito do ‘especialista’ em clarineta no Brasil3, não se tem
notícia de que ministrava aulas de clarineta. Quanto a Klier - alemão - apesar de ter participado,
em 1841, do movimento para estabelecimento de um conservatório de música no Rio de
Janeiro, também sobre ele não se encontram dados, de nenhuma ordem, de que tenha
atuado, especificamente, como professor de clarineta.
Tais fatos, acima narrados, encontram sustentação na informação de que não havia
instituições de ensino musical mantidas pelo governo Imperial no Rio de Janeiro onde se
pudesse aprender regularmente esse ou aquele instrumento musical. Por tal ensino se dar de
forma ‘particular’, seja nas residências dos alunos, no Liceu Musical do Rio de Janeiro4 ou
assemelhados, não se tem um registro mais preciso sobre a atuação de professores de
clarineta no Rio de Janeiro nesta época. Até a criação do Conservatório de Música, em 1848,
não se encontra, por exemplo, o anúncio de professores de clarineta no Almanak Laemmert5.
O fato mais importante quanto ao nascimento do ensino regular de clarineta no
Brasil foi a criação do Conservatório de Música no Rio de Janeiro em 1848, que tinha como
missão, segundo Peachman6 “colocar o país no fluxo civilizatório europeu”. Em 1855,
Antonio Luis de Moura – então com aproximadamente 35 anos – é nomeado professor de
“clarinete e qualquer outro instrumento que esteja ao seu alcance” do Conservatório de
Música7. Mas, quais seriam os atributos de Moura para que Francisco Manuel da Silva –
então Diretor do Conservatório e ‘todo poderoso’ do meio musical carioca – nomeasse-o
em detrimento de outros?

215
Antonio Luis de Moura
Antonio Luis de Moura, brasileiro da cidade do Rio de Janeiro, nasceu por volta de
18208 e morreu, segundo Cernicchiaro9, em 18 de junho de 1889. Nada se sabe de sua
educação musical, mas se pode supor que seus estudos musicais tenham sido iniciados em
bandas de música, já que Nascimento10 informa que a maior parte dos clarinetistas profissionais
do Rio de Janeiro são oriundos de bandas de música. Acredita-se que com Moura não teria
sido diferente.

Figura 1 – Assinatura de
Antonio Luis de Moura
(Academia de Belas
Artes, 188311).

Mesmo que tenha tido ele uma iniciação musical em bandas de música, acredita-se
que seria indispensável, para sua posterior carreira, aulas regulares com um professor de
música e de clarineta. Teria sido este professor de clarineta João Bartholomeu Klier ou José
Joaquim da Silva? Silva ainda fazia parte da orquestra da Capela Imperial em 1842 – ano em
que Moura ainda seria um estudante de música – sendo, segundo Balbi, o melhor clarinetista
do Brasil. Klier, por sua vez, chegou ao Brasil em 1828 – apresentando-se, a partir de 1840,
como músico avulso na orquestra da Capela Imperial12; em 1843, a partir da presumida morte
de José Joaquim da Silva, Klier foi nomeado, por Francisco Manuel da Silva, como clarinetista
efetivo da orquestra da Capela Imperial13. Portanto, pela notoriedade destes dois clarinetistas
em sua época – serem clarinetistas da orquestra da Capela Imperial – é de se presumir que
Moura pudesse ter tido aulas com um deles ou com ambos. Há de se salientar que o Almanak
Laemmert, antes de 1851, não informa professores de clarineta na capital imperial. O primeiro
nome, encontrado no exemplar de 1851 e referente ao ano de 1850, é o de Jorge Henrique
Klier14. Porém, com será informado abaixo, Moura já atuava profissionalmente, no mínimo, a
partir de 1848.
A primeira apresentação pública documentada de Moura aconteceu em 1848, quando
ele “promoveu um concerto no Cassino da Floresta, tocando, como diz o jornal, três
instrumentos com sua habitual perícia”15. Tiram-se três conclusões desta citação: 1) Moura
tocava mais de um instrumento. Seriam várias clarinetas ou, realmente, instrumentos diferentes?
2) Moura era tido como um bom músico, já que o jornal citado fala em “habitual perícia” e 3) se
era conhecido por ‘habitual perícia’, este concerto de 1848 não poderia ter sido o primeiro de
sua carreira. Como se verá adiante, sabe-se que Moura tocava, também, flauta.
Em 1851, Moura se torna um dos diretores na Sociedade de Música16, como 1º
Secretário - permanecendo nesta função até 1856. O presidente desta instituição era Francisco

216
Manuel da Silva, o mais importante e poderoso músico de seu tempo. Tratava-se de uma
instituição altamente politizada que, por sua intrínseca importância, atuava ditando as regras e
nomeações para os cargos musicais. Não há dúvidas de que Moura, participante da cúpula
desta Sociedade, fez importantes contatos que seriam cruciais no desenvolvimento de sua
carreira profissional.
A partir de 1852, e a abertura em 1853 de sua temporada de óperas, Moura faz parte,
como 1º clarinetista, da orquestra do Teatro Provisório – que mais tarde viria a se chamar
Teatro Lírico Fluminense. Durante décadas se pensou que Ernesto Cavallini, eminente virtuoso
italiano, teria sido o clarinetista principal desta orquestra desde sua inauguração. Recentes
pesquisas17 dão conta de que não há informações que sustentem a afirmação de que E.
Cavallini tenha estado no Brasil em nenhuma época. Antonio Luis de Moura é o único clarinetista
de quem se pôde encontrar correlações com esta orquestra.

Figura 2 - Almanak Laemmert,


1856 – Professores de música
(LAEMERT, 1856, p. 447).

Em 1854, Antonio Luis de Moura, juntamente com Henrique Alves de Mesquita, “funda
o Liceu Musical e Copistaria, na Praça da Constituição, 79”18.

Antonio Luis de Moura e Henrique Alves de Mesquita têm fundado êste


estabelecimento, único em seu gênero, e se julgam habilitados para satisfazerem
dignamente a tudo que pertença à sua arte. Encarregam-se do ensino de música
vocal e instrumental, sendo as lições nos dias que se convencionar. Recebem-se
músicas para copiar, sejam elas de gôsto caprichoso. Encarregam-se da
composição de quadrilhas, valsas, modinhas, romances, novenas, Te-Deums,
missas, etc. Incumbem-se de orquestras para bailes, soirées e, sendo exigido, se
obrigam a apresentar novas composições especialmente feitas para tais funções;
também encontrar-se-ão pianistas para soirées. Recebem-se afinações de piano e
vendem-se cordas para rabeca, violão, papel de música, etc. Em todos êstes
trabalhos eles são coadjuvados pelos mais hábeis artistas; por isso esperam
merecer a proteção pública, sem a qual seus esforços serão baldados e seus
meios insuficientes19.

Moura provavelmente lecionava aulas de clarineta e solfejo musical e Mesquita, por


sua vez, ofereceria o que se chamava à época de ‘rudimentos’ musicais - aulas de teoria e
solfejo musical – além de ensinar, também, instrumentos de sopro de metal – instrumentos que
ele, posteriormente, lecionaria no Conservatório de Música20.
Em 1855, como já citado, Moura foi nomeado professor de “clarinete e qualquer outro
instrumento que esteja ao seu alcance” do Conservatório de Música21. Moura trabalhou no
Conservatório por 34 anos, presenciando os movimentos sociais para a transição política no
Brasil, do Império para a República e da abolição da escravatura, mantendo-se ativo mesmo

217
com os movimentos políticos internos do Conservatório - reflexos do cenário político mais
amplo. Suas aulas eram ministradas, segundo Laemmert22, “nas quartas e sabbados, das 10
horas ao meio dia”. Em 1862, foi nomeado Secretário do Conservatório na vaga deixada pelo
falecimento do professor Dionísio Vega. Mais tarde, em 1879, viria a ser indicado, por Francisco
Manuel da Silva, para a vaga de ‘Inspetor de Ensino’23. Porém, segundo declaração do
próprio Francisco Manuel24, faltavam-lhe “as habilitações e conhecimentos [...], com quanto
seja um excelente artista e pessoa de reconhecida probidade.” Moura teria, nestes 34 anos
de vida acadêmica, alguns alunos diletos. Formaram-se, na classe de clarineta de Antonio
Luis de Moura, Francisco Braga25, Anacleto de Medeiros26 e José Francisco de Lima Coutinho27
que o sucederia na cadeira de clarineta do Conservatório de Música28. Durante o ano de
1879, Moura contava com “mais de 24 alunnos effetivos [...]”29.
Curiosamente, em 1869, Antonio Luis de Moura aparece também como professor de
flauta – paralelamente à cátedra de clarineta30. Tal cargo estava vago desde 1859, cujo último
professor havia sido o flautista Francisco da Motta; esta cadeira seria assumida, em 1870, por
Joaquim Antonio Calado31. Segundo a minuta do pedido de aposentadoria de Moura,
confeccionada em 1887 pelo Diretor do Conservatório de Música e dirigida ao “Ministro e
Secretário D’Estado dos Negócios do Império”32, Antônio Luis de Moura, até então, contava
com “mais de 32 annos de effectivo serviço, dentre os quais [exerceu] o [cargo] de Secretário
e professor de flauta, cerca de 9 annos, gratuitamente[...]”.

Q u ad ro in d icativo do s d o cen tes d a cad e ira d e cla rin e ta e co n g êne res d a atu al
E sco la d e M ú sica d a U F R J 33
d e 185 5 a 200 9

A n to nio Luis d e M o ura 1855 a 1889

C e s ário V ile lla 189 0(?)

J o s é d e Lim a C o utin ho 1890 (o u 91) a 190 3

F ranc is c o N une s J r. 34
1903 a 1926

A ntão S o are s 35
1927 a 1948

J ay o le no d o s S anto s 1949 a 1981

F lo re n tino D ias 1962 a 1990

J o s é C arlo s d e C as tro 1966 a 1996

J o s é d a S ilv a F re itas 36
1981 a 1998

C ris tian o S iq ue ira A lv e s 37


1 998 ao s d ias atuais

218
Até o presente momento se achou muito pouca informação sobre o material didático
utilizado por Moura em suas aulas. Dois documentos nos dão uma idéia deste material.
O primeiro documento, datado de 187938, é um ofício escrito por Moura, endereçado
ao Diretor Interino do Conservatório de Música, onde, entres outras informações, há o pedido
das seguintes obras/métodos: “Colleção completa dos duettos de clarineta dos autores: [Vicenzo]
Gambaro39, [Engebert] Brepsant40 e [Friedrich] Beer41. Os nos 10, 11, e 12 ditas de E. Cavallini.
Methodo de Clarineta de Boem (sic) e Klosé.” Interessante a informação do pedido do método
Klosé para clarineta de sistema Böehm.
O sistema Böehm, patenteado na França em 1844, foi registrado por Louis August
Buffet Jr. e desenvolvido em conjunto com o clarinetista francês Hyacinthé Eleonoré Klosé, a
partir do sistema de anéis móveis desenvolvido, para a flauta, por Theobalm Böehm42. Seu
método para clarineta “de anéis móveis” foi publicado em 1843 pela editora Meissonnier43. O
novo sistema, desenvolvido por Buffet e Klosé, apresentava imensos avanços frente ao
sistema Müller (13 chaves) utilizado, na França, até então. Veja como Buffet44 se refere às
inovações do sistema de anéis móveis:

A clarineta de treze chaves [sistema Müller], até então qualificada como perfeita,
deixa muito a desejar. O posicionamento original dos buracos, baseados apenas
no espaço entre os dedos, produz notas surdas ou muito brilhantes; o mecanismo,
que faz obrigatório o deslizar dos dedos entre as chaves, cria enormes dificuldades
de dedilhado, o que não permite tocar de forma idiomática em todas as tonalidades;
e finalmente, as posições de forquilha soam pobres porque há a necessidade de
muita correção de afinação.
Voilá, as dificuldades que existiam antes, as inconveniências, os erros de afinação
que precisavam ser corrigidos, os objetivos que se tentava alcançar estão aqui, e
foram necessários cinco anos para se chegar a isso. Quantos sacrifícios eu não
tive que viver, quantos experimentos que resultaram em instrumentos defeituosos
eu não tive que fazer? Mas felizmente o sucesso me recompensa
pelos meus problemas, e no final eu pude aplicar o sistema de anéis às
clarinetas e oboés, e da forma que se pudesse produzir um instrumento
afinado e mais perfeito que os antigos; [...] A aplicação de anéis às
clarinetas e oboés podem ser vistos como a solução do problema, um
fator desconhecido aplicado para o desenvolvimento do instrumento
perfeito. [...]

O sistema Müller, também, foi usado durante anos no


Brasil e, até que o sistema ‘Böehm’ chegasse por aqui, era o
que de mais avançado existia.

Figura 3 – Anúncio de venda de instrumentos musicais do Almanak


Laemmert45, 1859. Em vermelho a indicação de venda de “clarinetas
e requintas do buxo [boxwood] e do ébano de 7 até 13 chaves
[sistema Müller]”.

219
Parece que, baseado em seu ofício endereçado ao Diretor Interino do Conservatório
de Música46, Moura foi o responsável pela introdução, no Conservatório de Música, de aulas
para o novíssimo sistema. É possível que ele mesmo continuasse a utilizar o sistema Müller;
mas, sensível aos imensos avanços do sistema Böehm ele, provavelmente, indicou que seus
alunos o utilizassem. Esta escolha, por assim dizer, representa a fase embrionária da adoção
de cadernos de estudo franceses que figurarão nas ementas dos cursos de bacharelado em
clarineta, na grande maioria das universidades brasileiras até os dias de hoje47.
No segundo documento48, Moura pede que sejam adquiridas, “para as aulas de
clarineta o seguinte: 1ª e 2ª coleções dos duettos de Cavallini; uma coleção de duettos de
Gambaro; uma coleção de duettos de Beer; uma coleção de duettos de Brepsant.” Ao que
parece, e também baseado no primeiro documento mencionado, Moura estava utilizando os
materiais didáticos mais modernos de sua época.
Em 1856 Moura se tornaria clarinetista da orquestra da Capela Imperial49. Combinado
com o fato de ser o professor de clarineta do Conservatório de Música, e já clarinetista do
Teatro Lírico Fluminense desde pelo menos 1852, Moura havia conquistado todos os melhores
e mais prestigiosos cargos que um clarinetista da sua época poderia lograr. Complementando
tais conquistas, nas áreas artístico e didática, Moura, entre 1865 e 1867, ocupou o cargo de
vice-presidente da Sociedade de Música, coroando, juntamente com a obtenção do título de
‘Cavaleiro da Ordem da Rosa’50 por volta de 1880, um dos pontos altos de sua carreira
profissional.
Complementando todas estas informações sobre Antonio Luis de Moura, podemos
encontrar, nos periódicos da época, inúmeras oportunidades quando Moura se apresentou
como solista nos intervalos das óperas encenadas, principalmente, no Teatro Lírico Fluminense
no ano de 1859. Tais ‘intervalos musicais’ era praxe na época: para a mudança de cenários,
durante os intervalos, os mais importantes solistas da orquestra tocavam, normalmente, fantasias
sobre temas de óperas em voga na cidade.

Figura 4 - Jornal do
Commércio de 02 de
maio de 1859

Figura 5 - Jornal do Commércio de 06 de julho de 1859 Biblioteca


Nacional/Setor de microfilmes (BARB OSA, 1859a)51
Biblioteca Nacional/Setor de microfilmes (BARBOSA, 1859b)52

220
Figura 6 - Jornal do Commércio de 20 de Figura 7 - Jornal do Commércio de 16 de
junho de 1859 junho de 1859
Biblioteca Nacional/Setor de microfilmes Biblioteca Nacional/Setor de microfilmes
(BARBOSA, 1859c)53 (BARBOSA, 1859 d)54

Figura 9 - Jornal do Commércio de 02


e 03 de novembro de 1859.
Biblioteca Nacional/Setor de microfilmes
(BARBOSA, 1859c).

Figura. 8 - Jornal do Commércio de 02 e


03 de novembro de 1859
Biblioteca Nacional/Setor de microfilmes
(BARB OSA, 1859e)55

Estes ‘recortes’ de jornal são apenas pequenos exemplos sobre a movimentada vida
artística de Antonio Luis de Moura. Cernicchiaro56 informa, ainda, dois concertos: 1) um
concerto em que Moura participou, em benefício da cantora Zecchini, em 12 de agosto de
1854, executando uma“difícil fantasiasobretemasdaóperaPirata” e, 2) um concerto em que
Moura, com Domingos Alves (ofcleide), foi muito aplaudido pela performance de uma fantasia
sobre temas da ópera Beatrice di Tenda, em 1859. Infelizmente não há a informação sobre
datas específicas e locais.

221
Machado de Assis afirma ter comparecido a um concerto de Moura em Niterói/RJ, em
17 de dezembro de 1862:

Sem pó e sem calor, e pelo contrário, debaixo de copiosa chuva, foram alguns
intrépidos amantes da boa música e dos bons talentos a S.[São] Domingos no dia
17, para onde os convidaram por carta os Srs. capitão de mar e guerra José
Secundino Gomensoro, brigadeiro M. E. de Castro Cruz e Antonio Ignácio de
Mesquita Neves, promotores de um concerto dado por Antonio Luiz de Moura.
Moura é um distinto professor de clarineta, devendo ao seu merecimento a sua
infelicidade, consórcio quase infalível no nosso país. Os intrépidos que puderam
atravessar a baía para ir assistir ao concerto não eram em grande número. Nem
por isso a reunião deixou de ser animada, ou talvez que por essa circunstância
tivesse mais animação. A pouca gente dá certo ar de família e põe mais a gosto
convidados e concertistas. Foi o que aconteceu. A escolha de um sítio camparesco
foi bem avisada, e, a não ser a chuva, o que a festa perdeu ganharia em dobro.
Pena é que por estes tempos se deva forçosamente contar com a chuva, o que
infelizmente não entra nos cálculos de ninguém. Tomaram parte no concerto vários
amadores de mérito, e para não estender-me em mais detalhada apreciação, que
não posso, à míngua de espaço, citarei entre todos o nome da Exma. Sra. D.
Maria Leopoldina de Mello Neves, esposa de um dos signatários das cartas de
convite57.

Sobre a performance de Moura como clarinetista, restaram alguns comentários. A


primeira vem da já citada performance acontecida em 1848, quando sua performance foi
qualificada como de “habitual perícia”. Cernicchiaro58 cita que Moura “surpreendia a plateia
do citado teatro [Provisório], com seus solos, realizados à perfeição, e era admirado pela
beleza do som que produzia em seu instrumento”. Francisco Manuel da Silva, como também
já citado, reconhecia nele a figura de um excelente artista. Santos59 informa que Moura era
“tão competente quanto modesto”; e continua:

A respeito da capacidade técnica deste musicista, conta-se o seguinte: estando no


Rio de Janeiro, de passagem, uma companhia lírica, adoecera o 1º clarineta que
fazia um papel de destaque num solo da ópera Traviata; pois bem, quase no
momento da representação, ele treinou um pouco a sua parte e, sem um ensaio, o
executou com tal perfeição, que provocou da assistência os mais veementes
aplausos60.

Nota-se, também, que para Moura foram compostas algumas obras para clarineta por
compositores brasileiros, tais como Henrique Alves de Mesquita. Tais obras eram fantasias
sobre temas operísticos - tanto em voga nesta época. Infelizmente nenhuma partitura musical
referente a estas obras foi encontrada.
Paralelamente à carreira de clarinetista, como já foi mencionado, Moura exercitava a
composição. Freire61 indica que Moura publicou muita música popular, incluindo uma ‘quadrilha’
intitulada O Incêndio no Teatro Pedro de Alcântara.

222
Conclusões
Na Sociedade de Música, Moura permeava todas as figuras mais importantes do
cenário musical do Rio de Janeiro, que, segundo a descrição de Augusto, eram os responsáveis
pelas nomeações dos cargos mais importantes da carreira musical; mas, também, os
responsáveis pelas tensões e articulações para a construção da estética musical da época e
da conduta de seus membros.

Assim, observamos que estar integrado ao Conservatório poderia ser a porta de


entrada para outros trabalhos nos diversos campos de atividades musicais, como
o teatro e a Capela Imperial, que representariam o ganho material necessário à
subsistência. É o caso, por exemplo, de Antonio Luiz de Moura, professor de
clarinete por várias décadas no Conservatório. A partir de 1851, ele passa a ser
citado como 1º secretário da Sociedade de Música; em 1855, é nomeado professor
do Conservatório e começa atuar no Teatro Lírico Fluminense [sic]; em 1856, já
está integrado como clarinetista da Capela Imperial62.

Porém, acredita-se que o simples fato de estar nos lugares de atuação profissional, e
ser bem relacionado, não bastaria para ser mantido nestas funções. Paralelo a isso, desde
pelo menos 1848, Moura atuava como compositor, solista e promotor de concertos na cidade
do Rio de Janeiro e Niterói, com excelente qualificação da crítica especializada, sucesso de
público e admiração de seus pares. Dentre seus admiradores, podemos citar Francisco
Manuel da Silva e Machado de Assis.
Moura foi empresário junto com Henrique Alves de Mesquita, atuando no ramo da
edição musical, venda de partituras, organização de concertos/cerimônias e educação musical.
No Conservatório de Música, Moura foi o responsável pela criação da primeira
cátedra de clarineta em um instituto oficial de educação musical no Brasil. Teve, entre seus
alunos, nomes ilustres da história da música do Brasil e, como citado, um de seus alunos foi seu
sucessor efetivo nesta cadeira. Ainda, denotando mais habilidades, atuou durante anos como
professor interino de flauta e como secretário do próprio Conservatório. Após anos de cátedra,
foi o responsável pela adoção, no Conservatório, do ensino do sistema Böehm para clarineta
em detrimento de outros, tais como o sistema Müller e os de menos chaves.
Portanto, parece que a escolha de seu nome para integrar o corpo docente do então
recém-criado Conservatório de Música – escolha esta conferida a Francisco Manuel da Silva
– recai sobre 1) sua carreira como solista iniciada, na pior das hipóteses, em 1848, 2) na sua
experiência prévia como professor do Liceu Musical e Copistaria e, provavelmente, como
professor particular e 3) na sua carreira como clarinetista-solista da orquestra do Teatro Lírico
Fluminense desde 1852. A história confirma ter sido esta, realmente, uma boa escolha, já que
documentos históricos revelam que Moura era, além de um concertista atuante, um professor
dedicado e responsável, já que 1) durante os 34 anos de trabalho ininterrupto no Conservatório,
formou toda uma geração de clarinetistas, dentre eles o seu sucessor, 2) dentre o material de

223
estudo aplicados nas aulas de clarineta figuram obras de importantes educadores de clarineta
da sua época, tais como Ernesto Cavallini, Friedrich Beer e Klosé e 3) foi o responsável pela
adoção da clarineta de sistema Böehm pelo Conservatório, sistema esse que estava na
vanguarda da sua época e que é utilizado no Brasil, e em todo o mundo, até os dias de hoje.

Notas e referências
1
BORBA, 1976 apud PIRES, Roberto C. A Clarineta no Brasil: Uma Breve Introdução. In: Revista da
Associação Brasileira de Clarinetistas. Salvador: Escola de Música da UFBA, 2000, p. 20-3.
2
REZENDE, Maria da Conceição. A música na história de Minas colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1989.
3
Segundo Freire, até a vinda de Joaquim José da Silva ao Brasil, a maioria dos músicos executantes
de clarineta eram, originalmente, oboísta ou flautistas. FREIRE, Ricardo José Dourado. The History and
Development of the Clarinet in Brazil. Michigan: Michigan State Univeristy, 2000. Tese de Doutorado
(DMA) em música. p.14.
4
Segundo a Marcondes, o Liceu Musical era um “estabelecimento privado de ensino musical, no Rio de
Janeiro RJ, [...]. Fundado em 1841 por um grupo de professores [dentre eles Antonio Luis de Moura],
funcionou a princípio na Rua de Sant`Ana, 7 [...].” MARCONDES, Marcos Antônio. Enciclopédia da
Música Brasileira: popular, erudita e folclórica. 2ª Edição. São Paulo: Art Editora: Publifolha, 1998. p.442.
5
Apesar de Andrade indicar que Klier “foi professor de seu instrumento até 1859”, o Almanak Laemmert,
de 1844 até 1855, indica Klier apenas como professor de música. A partir do exemplar de 1856 do mesmo
Almanak, o nome de Klier não aparece mais. O primeiro nome de um professor de clarineta a figurar no
Almanak Laemmert é o de Jorge Henrique Klier no exemplar de 1851. ANDRADE, Ayres de. Francisco
Manuel da Silva e seu tempo. Vol. II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.p.183.
6
Apud. AUGUSTO, Antonio José. A Questão Cavalier: música e sociedade no Império e na República
(1846-1914). Rio de Janeiro: PPGHIS/UFRJ, 2008. Tese de Doutorado em História Social. p.54.
7
ANDRADE, op. cit. p. 202.
8
VASCONCELOS apud FREIRE, op. cit.
9
CERNICCHIARO, Vicenzo. Storia della musica nel Brasile: daí tempi coloniall sino al nostrigiorni, 1549
- 1925. Milão: Fratelli Riccioni, 1926. p.517.
10
NASCIMENTO, Marco Antonio T. A importância da banda de música como formadora do músico
profissional, enfocando os clarinetistas profissionais do Rio de Janeiro. Monografia de final de curso de
Licenciatura em Música. Rio de Janeiro: UNIRIO, 2003.
11
ACADEMIA DE BELAS ARTES (1883). Conservatório de Música. Antonio Luis de Moura. Pedido de
Material didático da aula de clarineta do Conservatório de Música. Documento Manuscrito. Acervo
Museu D. João VI. Notação: 2688.
12
ANDRADE, op. cit., p. 183.
13
FREIRE, op. cit., p. 21.
14
LAEMMERT, Eduardo. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Côrte e Província do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1851. p.371.
15
ANDRADE, op.cit., p. 201.
16
A Sociedade de Música, segundo Augusto, tinha como objetivo a “promoção de benefícios sociais para
seus membros”, assumindo o controle sobre os ofícios religiosos e sobre o ensino de música na capital
do Império. AUGUSTO, op.cit., p.55.
5
O cargo de Inspetor de Ensino era o mais importante, hierarquicamente, abaixo do Diretor.
17
SILVEIRA, Fernando José. Cavallini years in Brazil: which one? In: GILLESPIE, James (Ed.). The
Clarinet. Norman (EUA): International Clarinet Association, no prelo.
18
ANDRADE, op.cit., p. 202.
19
Ibid., p. 198.
20
ROMERO, Avelino. Música, Sociedade e Política: Alberto Nepomuceno e a República Musical. Rio de
Janeiro: UFRJ, 2007.
21
ANDRADE, op. cit., p. 202.
22
LAEMMERT , Edurado. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Côrte e Província do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert, 1856. p. 318.

224
23
José Francisco de Lima Coutinho, segundo Santos, “nasceu na cidade de Campos de São Salvador,
Estado do Rio de Janeiro, a 12 de agosto de 1862; é [foi] professor catedrático aposentado da Escola
Nacional de Música da Universidade do Brasil. Educado no Asilo de Meninos Desvalidos, foi posteriormente
professor deste estabelecimento, bem como de outras instituições de ensino musical. Regeu várias
orquestras, inclusive a do Clube Sinfônico. No Instituto Nacional de Música regeu as cadeiras de clarineta
e instrumentos congêneres; teoria e solfejo e, por último, a de análise harmônica e construção musical.
SANTOS, Maria Luiza Queiroz dos. Origem e Evolução da Música em Portugal e Sua Influência No
Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1942.p.238.
24
Apud AUGUSTO, op.cit.,p. 155.
25
HEITOR, Luiz. 150 anos de música no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956. p.278.
26
SIQUEIRA, Baptista. Três vultos históricos da música brasileira: Mesquita – Callado - Anacleto. Rio de
Janeiro: Edição do autor, 1969. p.161.
27
FREIRE, op. cit., p. 26.
28
Existe um conflito de informações sobre o imediato sucessor de Antonio Luis de Moura no Conservatório.
Santos (op.cit.) afirma que no ano de 1890 ocupou, acredita-se que interinamente, esta cadeira Cesário
Vilella e que José de Lima Coutinho apenas a assumiu em 1891. Romero (op.cit., p. 452) afirma que
José de Lima Coutinho fora nomeado para tal cadeira em 18 de janeiro de 1890.
29
ACADEMIA DE BELAS ARTES (1879b). Conservatório de Música. Antonio Luis de Moura. Minuta de
ofício do vice-diretor da ABA ao ministro do Império, apresentando os nomes dos professores efetivos do
Conservatório de Música, Arcângelo Fiorito, Antonio Luis de Moura e Demétrio Rivero, para inspector de
ensino. Documento Manuscrito datado de 28 de junho de 1879. Acervo Museu D. João VI. Notação: 2219.
30
SANTOS, op.cit.
31
AUGUSTO, op.cit.
32
ACADEMIA DE BELAS ARTES (1887). Conservatório de Música. Antonio Luis de Moura. Minuta do
ofício do Diretor da ABA ao Ministro do Império apresentando o requerimento de Antonio Luís de Moura
pedindo jubilação do lugar de professor de clarineta, e opinando sobre a não aplicação aos professores
do Conservatório de Música das disposições dos artigos 105 a 108 dos Estatutos da Academia.
Documento Manuscrito. 1887. Acervo Museu D. João VI. Notação: 2159.
33
Serviram como fonte para esta informação: CASTRO, José Carlos de. Entrevista de Fernando José
Silveira em 24 de abril de 2009. Rio de Janeiro. Contato verbal por telefone; FREITAS, José da Silva.
Comunicação pessoal. 11 de maio de 2009; AZEVEDO, Luiz Heitor de Corrêa (Editor). Revista Brasileira
de Música. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Música da Universidade do Rio de Janeiro, 1935;
ROMERO, op.cit.; SANTOS, op.cit., e AUGUSTO, op.cit.
34
Segundo Romero, Francisco Nunes Jr. assumiu a cadeira, interinamente, em 05 de maio de 1903,
sendo nomeado, definitivamente, em 22 de setembro de 1904. ROMERO, op.cit., P.456.
35
Antão Soares foi efetivado na cadeira de clarineta e congêneres da Escola de Música da UFRJ em
concurso realizado em 03 de julho de 1935 após “exercer interinamente o cargo há [por] mais de dez
annos”. Participaram da Comissão Julgadora deste concurso Agostinho Luiz de Gouveia (Presidente/
professor de oboé e fagote), Pedro de Assis (professor de flauta), Leão Malamut (clarinetista), Leopoldo
Salgado e Rosa Ribeiro (clarinetista). AZEVEDO, op.cit., p. 75.
36
José da Silva Freitas começou a ministrar aulas em 1981, como professor ‘colaborador’. Em 1983, por
concurso de títulos e provas, foi efetivado no cargo, se aposentando em 1998. FREITAS, op.cit.
37
Cristiano Siqueira Alves, por concurso simplificado, foi contratado como professor substituto de
clarineta da Escola de Música da UFRJ em 1998. Em dezembro de 2002, por concurso de títulos e
provas, foi nomeado efetivamente para o cargo.
38
ACADEMIA DE BELAS ARTES (1879a). Conservatório de Música. Antonio Luis de Moura. Oficio do
professor Antonio Luis de Moura ao Diretor Interino do Conservatório de Música, informando sobre a
impossibilidade de obter partituras de clarineta em decorrência do arquivo onde se acham guardadas
estar sob um grande armário pertencente ao Montepio Geral de Economia dos Servidores do Estado,
que ali funciona. Documento Manuscrito datado de 12 de setembro de 1879. Acervo Museu D. João VI.
Notação: 2219.
39
Segundo Amore, Vicenzo Gambaro (Genova, 1785 – Paris, 1828) foi 1º clarinetista do Teatro Royal Italienne
e se tornou famoso, no meio clarinetistico, por sua atuação como editor (1º editor do método de Iwan Müller),
por sua obra para clarineta - em diversas formações, e por seus estudos para clarineta. AMORE, Adriano. La
Scuola Clarinettistica Italiana: Virtuosi e Didati. Benevento (Itália): Nuova Impronta, 2006.

225
40
Engebert Brepsant foi músico militar, compositor e clarinetista. Foi professor de clarineta da Academie
Royale de Musique em Paris durante o século XIX.
(http://test.woodwind.org/clarinet/BBoard/read.html?f=1&i=273422&t=273422)
41
Friedrich Beer (Mannheim, 17 de abril de1794 - Paris, 24 de setembro de 1838), clarinetista alemão,
estudou, além de clarineta, composição com Fétis, Douai e Reicha. Viveu e trabalhou na França, de 1823
até sua morte, em 1838. Foi professor do Conservatório de Paris de 1831 a 1836, tendo sido mestre de
H. Klosé. Atuou intensamente na introdução dos conceitos alemães de qualidade de som e advogou pela
causa de se usar a palheta apoiada no lábio inferior. Em 1833 recebeu o título de ‘Cavaleiro da Legião de
Honra’. WESTON, Pamela. Berr [Beer], Friedrich. In: MACY, L. (Ed.). The New Grove Dictionary of
Music Online. Disponível em <http://www.grovemusic.com>. Acessado em 07/05/2009.
42
HOEPRICH, Eric. The Clarinet. London: Yale University, 2008.
43
WESTON, Pamela. More Clarinet Virtuosi of the Past. Londres: Panda Press, 1977.
44
Apud HOEPRICH, op.cit., p. 172.
45
LAEMMERT , Edurado. Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial da Côrte e Província do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Eduardo e Henrique Laemmert,1859. P.26.
46
ACADEMIA DE BELAS ARTES, 1879a, op.cit.
47
SILVEIRA, Fernando José. Cursos de bacharelado em clarineta no Canadá e no Brasil: um estudo
comparativo. In: XVI ENCONTRO ANUAL DA ABEM E ISME. Anais do XVI Encontro Anual da ABEM e
ISME. Campo Grande MS: Editora UFMS, 2007.
48
ACADEMIA DE BELAS ARTES (1883). Conservatório de Música. Antonio Luis de Moura. Pedido de
Material didático da aula de clarineta do Conservatório de Música. Documento Manuscrito. Acervo
Museu D. João VI. Notação: 2688.
49
Segundo Souza, Antonio Luis de Moura teria atuado na Capela Imperial de 1848 a 1866. Infelizmente
Souza não indica as fontes de sua informação. SOUZA, Carlos Eduardo Azevedo e. Dimensões da vida
musical no Rio de Janeiro: de José Maurício a Gottschalk e além, 1808-1889. Tese de doutorado em
História. PPGH-UFF, 2003. p.389 e passim.
50
ANDRADE, op.cit., p. 202.
51
BARBOSA, José Rodrigues (Editor). Jornal do Commércio. Seção ‘Theatros’. Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio, 02 de maio de 1859a, p. 4.
52
BARBOSA, José Rodrigues (Editor). Jornal do Commércio. Seção ‘Theatros’. Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio, 06 de julho de 1859b, p. 4.
53
BARBOSA, José Rodrigues (Editor). Jornal do Commércio. Seção ‘Theatros’. Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio, 20 de junho de 1859c, p. 4.
54
BARBOSA, José Rodrigues (Editor). Jornal do Commércio. Seção ‘Theatros’. Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio, 16 de junho de 1859d, p. 4.
55
BARBOSA, José Rodrigues (Editor). Jornal do Commércio. Seção ‘Theatros’. Rio de Janeiro: Jornal do
Comércio, 02 e 03 de novembro de 1859e, p. 4.
56
CERNICCHIARO, op.cit.
57
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. Obra Completa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1938.
Disponível em http://portal.mec.gov.br/machado/arquivos/pdf/ cronica/macr03.pdf. Acessado em 04 de
maio de 2009.
58
CERNICCHIARO, op.cit., p. 517.
59
SANTOS, 1942, op.cit., p. 202.
60
Ibid.
61
FREIRE, op.cit.
62
AUGUSTO, op.cit., p. 66.

226
Antonio Virzi, entre o arquiteto e o professor

Maria Helena Hermes


Doutoranda PPGAV/EBA/UFRJ

Antonino Virzi, arquiteto (1882-1954)


Originário de Palermo, nascido em 13 de maio de 1882, Antonino Virzi era filho de
Henrique Virzi e Maria Bruno Virzi1. A informação de que se teria formado nos estudos
superiores em Turim2 não consta da formação profissional apresentada em um manuscrito
arquivado no Museu D João VI3.
Segundo este documento, a formação de Virzi era bastante completa, tendo
cursado arquitetura no Instituto de Belas Artes em Nápoles e no Instituto de Belas Artes de
Milão. Há referência de sua participação no curso especial de arquitetura clássica no
Real Politécnico de Milão, onde teria feito o exame final e obtido láurea, mas não foi
possível comprovar esse registro4.
Segundo o documento manuscrito, Virzi teria participado de concursos na Itália, obtendo
o segundo lugar para o projeto do Palácio do Banco Comercial de Parma, com prêmio de
2500 liras e o terceiro lugar no concurso para o projeto do Palácio dos Correios e Telégrafos
em Milão. Teria participado do concurso para uma “grande ponte” em cimento armado na
Província de Bergamo, obtendo o terceiro lugar com prêmio de 500 liras. Obteve o primeiro
lugar, com prêmio de 3000 liras, para o projeto de um pequeno pavilhão para a casa Fontana
e Cia. de Milão, construída na Exposição Nacional de Milão em 1906.
Sabe-se, sem maiores detalhes, que Antonino Virzi se casou na Itália, onde deixou um
filho5 e contam que quando chegou ao Brasil, por volta de 1910, apaixonou-se por Lívia da
Rocha Miranda com quem teve um filho e se casou no mesmo ano, num namoro relâmpago6.
A família Rocha Miranda pertencia à elite carioca e provavelmente essa união lhe abriu as
portas da sociedade e deve lhe ter trazido contatos sociais para os projetos e obras na cidade.
Segundo outra fonte7, Virzi trabalhou em Palermo antes de sua vinda para o Brasil e
teria sido aluno de Ernesto Basile, o que se confirma na afirmação de Virzi sobre ter sido
colaborador de Basile8. As informações constantes no curriculum de Virzi se descolam ou se
complementam nas informações obtidas por outros pesquisadores sendo, no entanto, suficientes
para realçar sua experiência profissional, interesses específicos e contextualizar sua atuação
e sua maneira de projetar. Os projetos congregam as observações sobre sua época, um rico
período de manifestações arquitetônicas vivenciadas nas cidades mais influentes e
desenvolvidas da Itália sem, entretanto, perder o vínculo com a tradição edilícia multifacetada
de Palermo, sua cidade natal. Suas andanças pela Itália demonstram um espírito ativo, livre,
disposto a enfrentar desafios, como por exemplo, sua vinda para o Brasil. Sua formação,
deslocamentos e condicionantes profissionais estabelecem para Antonino Virzi uma diferenciação

227
em relação às trajetórias percorridas por outros arquitetos, engenheiros ou capomastri
italianos imigrados para o Brasil desde o final do século XIX em busca de trabalho e de outra
vida profissional.
Embora seus projetos apresentem uma ornamentação singular, não poderíamos
insinuar que Antonino Virzi pensava sua arquitetura como Pantaleone Laudisa9, arquiteto
siciliano da região de Lecce, emigrado para os Estados Unidos. Laudisa projetava sob uma
ornamentação profusa, onde a sucessão de motivos era regida pelas relações de simetria em
rigorosos intervalos e modulações enquanto Virzi propunha, com muita técnica, matéria
suspensa em volumes e proporções decididamente inesperados. A inquietação projetual de
Antonino Virzi nos surpreende nas mais fantasiosas associações de técnica, forma, proporção
e cor, deixando entrever que seria pouco para esse siciliano se ater apenas a uma dosada e
alternada mistura de teoria e prática. Seus projetos são ousados e fascinantes, tanto ou mais
que alguns outros arquitetos italianos de muito renome. Estendemos nosso olhar em direção
às obras de arquitetos com os quais Virzi alega ter colaborado, verdadeiros expoentes do
Liberty na Itália, como Ernesto Basile, Gaetanno Moretti e Dario Carbone, para compreender
melhor seu trabalho, forma de projetar, palheta e escolhas inovadoras, reveladores do caráter
tanto do arquiteto quanto de sua clientela. Assim, observamos as características de uma das
primeiras construções Liberty da cidade de Palermo, datada de 1899, quando Virzi teria 17
anos e provavelmente já possuía ao menos a formação profissional do Curso Ornamental na
Escola Superior de Arte Industrial em Palermo10. Verificamos que o Villino Florio D’all Olivuzzo
de Basile parece indicar o caminho para observarmos a Villa Schmit de Vasconcellos, construída
por A. Virzi no Rio de Janeiro em 1915. Embora o Villino Favaloro, de 1891, seja citado como
a primeiro exemplo do modernismo em Palermo, foi o Villino Florio dell’ Olivuzzo , datado de
1899, que se transformou na construção simbólica do Liberty na cidade. Preservado, apesar
de um incêndio, a residência foi restaurada em 2009.
Ao observarmos suas imagens notamos a linguagem de elaboração do projeto brotada
do esquema fortificado do medievo, como também fazia Coppedè. Distinguimos grandes volumes
dispostos de forma a fragmentar a construção em elementos compositivos ou em soluções
arquitetônicas de formas e volumes encaixados segundo uma lógica que sugere uma opção
formal menos rígida, se compararmos estas às arquiteturas cinquecentescas da Toscana. A
planta baixa do primeiro piso da edificação revela a distribuição das áreas da residência por
meio das escadas de acesso às áreas social e de serviço e a distribuição das circulações.
Entretanto, a solução da fachada do Villino já nos esclarece a distribuição interna dessa planta,
na escolha de escadas duplas que se conjugam e se descolam a partir de um ângulo do
prédio, formando graciosas curvas. As imagens internas de alguns cômodos dessa residência
nos auxiliam a compreender o trabalho dos dois arquitetos, se pretendermos usar a obra de
Basile como uma referência à obra de Virzi, um mestre no uso dos ângulos, da ornamentação
e das soluções formais diferenciadas. O recurso de duplicar acessos a partir de um ângulo da

228
edificação foi escolha também de Virzi para a Villa Schmidt de Vasconcellos na Av Atlântica,
determinando o acesso por duas escadas sociais ladeando o “pórtico” e outro conjunto
formado por duas escadas dispostas em ângulo, para o hall e a biblioteca. A solução de
escadas duplas de acesso é novamente escolhida por Virzi no ano seguinte para o projeto da
fábrica do Elixir de Nogueira na Glória, desta vez ladeada com curiosos elementos escultóricos
antropomorfos nas laterais.
Os dois conjuntos de imagens nos permitem descobrir similaridades entre os trabalhos
em Palermo e de Copacabana, inclusive em relação à ornamentação dos panos de vedação
das fachadas, volumes, massas e aberturas. Outra aproximação entre os projetos é a ênfase
no coroamento das edificações e contornos das aberturas, dispostas segundo uma organização
lógica, porém não simétrica, ostentando formas pouco usuais em ambas as imagens.
Otorreão doVillino Florio, de Basile, como o torreão da Villa Smith de Vasconcellos,
de Virzi, evidenciam, ambos, conhecimento técnico estrutural porém conferem leveza e
verticalidade aos prédios, enfatizados pela adoção de pontas de agulhas. Os projetos
apresentam diferentes planos e soluções de volumes, que se destacam nas diversas horas do
dia por meio dos planos sujeitos a expressivos jogos de luz e sombras. Ambos os projetos
destacam ambientes que conjugam ou favorecem as trocas (ao menos, visuais) entre o interior
e o exterior, como balcões, pórticos, varandas e torreões, em aberturas não simétricas nas
fachadas. Mas observar as obras de Moretti, Carbone e, muito destacadamente, de Basile,
pode não ser suficiente para dar conta do trabalho intenso e rico de Virzi. Pareceu então um
caminho natural examinar também obras dos irmãos Coppeddè e de Sommaruga que não
será possível relacionar neste artigo. Além disso, foi necessário observar a riqueza, variedade
e tipologias das edificações de Palermo, para dar conta dos “fogos de artifício”. E foi observando
as construções históricas que comprovamos a existência de tal profusão de ornamentos em
ambientes internos, como na Capela Palatina, e externos, como nos pátios e fachadas do
Duomo de Monreale e na cúpula da Igreja do Carmo. Observamos a veemência com que se
impõem as esculturas e elementos escultóricos associados à arquitetura formando uma paisagem
construída singular composta por frisas, figuras antropomorfas, colunatas, cárgulas ou das
imagens religiosas, dentre outras.
Sabedores que Virzi, como Laudisi, era sensível e interessado pelos detalhes e pela
ornamentação da arquitetura existente ao seu redor, a ponto de ter iniciado seus estudos
profissionais num curso ornamental em Palermo e de, em Roma, ter frequentado um “curso de
cerâmica e suas várias procedências”11, não surpreende que os volumes e as esculturas
mostrem-se com extrema espontaneidade em sua arquitetura. Neste sentido, observamos os
grupos escultóricos que ladeiam as escadas da Fábrica do Elixir de Nogueira, cuja
expressividade simulava uma interação do prédio na paisagem, pois sem dúvida não passava
despercebido aos transeuntes. Construído em 1916 na Rua da Glória, 214, o edifício do Elixir
de Nogueira não permitia a indiferença dos passantes persuadidos pela forte presença do

229
elemento antropomorfo com feições conturbadas e corpos em posições contorcidas associadas
a ornamentos diversos, destacando uma proposta de ilustrar estórias sobre os males e as
fraquezas daqueles que não recorreram ao remédio. Centralizada, uma forte e atlética figura
alegórica feminina disposta entre as duas escadas de acesso, parece trazer sob sua proteção
ao menos três pessoas enquanto seu pé esmaga a cabeça de um animal fantástico que não
parece mais resistir nem assustar ninguém. Na mão direita feminina erguida ao alto, uma placa
com os dizeres: o trabalho de todos vence. Pagã, a composição de Virzi se reveste de um
clima supranatural, dotado de volume e saliências, como observamos em algumas obras
sacras, como na Igreja de N Sra. do Carmo em Palermo, ou profanas, como as gárgulas e
modilhões no Palacio Beneventano.
Sobre Basile e Virzi, convém anotarmos uma coincidência profissional: ambos
construíram pequenos edifícios na Exposição Internacional de Milão em 1906. Basile construiu
um pavilhão para a família Florio e Virzi um pavilhão para Fontana e Cia, a única obra de sua
autoria na Itália que temos conhecimento até esse momento. A produção de Virzi observada
sobre o viés da arquitetura dos prédios na Itália sugere uma ampliação das pesquisas e na
documentação, para enriquecer seu trabalho e minimizar as ausências destes, demolidos, na
cidade carioca.
Mas vamos seguir adiante tratando da curta passagem pela academia carioca do
Professor Antonino Virzi, já que, em teoria, teria sido esse o motivo alegado para sua imigração
para o Brasil12 .

Antonio Virzi, professor da ENBA (1911-1912)


Segundo as pesquisas, Virzi teria vindo para o Brasil a convite de Rodolfo Bernardelli
para ensinar na Escola Nacional de Belas Artes, onde ocupou o cargo extraordinário de
professor da disciplina “Composição de Arquitetura seu desenho e orçamento” entre 1911 e
1912, quando pediu exoneração13.
Sua experiência anterior na área acadêmica teria acontecido nos concursos para
cátedras em escolas italianas de formação profissional. Dentre os que soubemos ter participado
obteve o primeiro lugar entre 80 concorrentes para o cargo de professor de “Arquitetura e
Ornamentação Aplicada” na escola noturna dos operários ferreiros, escultores e pintores
numa localidade da província de Milão, mas não foi possível confirmar ainda se Virzi efetivamente
teria ministrado o curso. Sua participação noutro concurso, obtendo o 3º lugar para professor
da cátedra de Desenho Ornamental e Plástica na Escola de Arte Industrial de Milão, também
não foi possível ser confirmada. Talvez o convite direto de Bernardelli, dispensando concurso,
tenha chegado no momento certo e aberto uma nova possibilidade em sua carreira, e razão
de sua saída da Itália para o Brasil. Não foi possível saber se havia algum contato ou
conhecimento prévio entre Bernardelli e Virzi mas, como Bernardelli passou na Itália nove
anos como pensionista, isto deve lhe ter criado afinidades com o italiano. Bernardelli inclusive,

230
quando encaminhou a carta de demissão de Virzi ao Ministro de Estado de Justiça e de
Negócios Interiores em dezembro de 1912, ressalta a dificuldade que a Escola terá em
preencher a vaga com outro professor que seja “convenientemente preparado, principalmente,
em prática, no ensino da Composição de Architectura14.” Mas o curto período de Antonio Virzi
como professor na ENBA lhe rendeu, na instituição, ao menos duas questões que iremos tratar
aqui, sendo a primeira o registro de uma discordância no julgamento de trabalhos finais de
dois alunos pelos membros da Comissão julgadora. A Comissão, formada pelos Professores
Araujo Vianna, Antonio Virzi e Ludovico Berna, discordou quanto à aprovação dos alunos
Lothar Kastrup e Armando de Faria no trabalho final elaborado em sessões sucessivas, a
portas lacradas. Enquanto Antonio Virzi e Ludovico Berna não aprovaram os trabalhos, o
Prof. Araujo Vianna considerou os mesmos dignos de aprovação e lamenta a decisão dos
colegas italianos, em uma carta dirigida aos demais professores da Escola expondo o que
julgava serem as responsabilidades que convinham a uma Comissão no julgamento de um
trabalho final na Escola:

Tratava-se de julgar concurso de matéria que representa vasta applicação dos


conhecimentos scientíficos e artísticos adquiridos em todos os annos anteriores da
Escola, portanto muito assumpto a examinar; não me conformei com a opinião dos
dois outros julgadores; retirei-me incommodado com o facto, resolvido a jamais
dar-lhe assentimento ou assignatura15.

Transparecem, nas palavras de Araujo Vianna, as sensações de insatisfação com os


dois professores estrangeiros na análise do trabalho dos alunos, sugerindo nas entrelinhas
não terem os italianos a consciência, competência ou informação suficiente para julgar o
conjunto do aprendizado de arquitetura ensinado na Escola. Araujo Vianna expõe sua
insatisfação de maneira literal ao sublinhar, no tratamento dispensado aos dois membros da
comissão, a diferença de nomenclaturas entre “o professor Berna e o Sr Virzi”, deixando clara
sua posição sobre o “colega”.
Provavelmente a discordância quanto à aprovação dos alunos pelos italianos
insinuasse, de alguma forma, que o processo de ensino da Escola estivesse, também, em
julgamento. Situação delicada, a desaprovação dos professores italianos sugere, na opinião
de Araujo Vianna, uma depreciação do trabalho de todos os professores envolvidos na
formação daqueles alunos, inclusive dele próprio. Isto fica evidenciado no final do primeiro
parágrafo da carta quando menciona os “dois distinctos alumnos da Escola que, espero, a
honrarão como technicos e bons brazileiros, attendendo-se a um passado acadêmico [...] e
quando recomenda ao corpo docente verificar a qualidade dos trabalhos acadêmicos desses
alunos “nos arquivos desse estabelecimento, e delle o sabeis alguns de vós, como eu, que
foram seos mestres e os conheceram de perto16.” A carta do Prof. Araujo Vianna está datada
posteriormente à carta de Virzi e Berna solicitando dispensa da Comissão, já que, segundo
estes últimos, A. Vianna teria solicitado dispensa da tarefa alegando doença.

231
Assim, após seis meses de trabalho como professor, Virzi parecia não estar bem
entrosado no ambiente acadêmico da ENBA. Talvez houvesse mais discordâncias entre o
arquiteto e o restante do corpo docente ou com o Conselho Docente da Escola, mesmo sendo
Bernardelli o diretor. Mas, em sua trajetória na Escola, houve outros fatos, pois naquele
mesmo período ele ainda teria outros tipos de problemas a contornar, dessa feita com seus
alunos. Para entendermos este outro caso, reproduzimos trecho da carta endereçada ao
Conselho Docente da Escola assinada por oito alunos da turma de “Composição de Arquitetura
seu Desenho e Orçamento”:

Os abaixo assignados, alumnos matriculados no Curso Especial de Architectura


, vêem collectivamente representar aos M. D. Membros do Conselho Docente
d’esta Escola contra o Professor da Cadeira de composição de Architectura, seus
desenhos e Orçamentos, Sr Antonino Virzi pelo facto dos mesmos se julgarem
prejudicados pela deficiência da matéria ensinada visto não satisfazer ao fim para
que foi creada a mesma Cadeira.
Para provar o que allegam, os abaixo assignados declaram que até a presente
data nenhum trabalho tem elles feito que corresponda aos intuitos da aula e seus
exames finaes, limitando-se tão somente a fazer desenhos de ornatos a mão
livre e copia de estampas como poderá ser ver ficado na sala de aula.[...]
26 de junho de 191217.

Em resposta, Antonio Virzi enviou em 30/06/1912 uma carta a Rodolfo Bernardelli


alegando “ter lido em diversos jornais desta capital” o conteúdo da carta dos alunos ao
Conselho Docente, sinal da rápida repercussão do assunto fora do ambiente acadêmico da
Escola, lembrando que, dentre os alunos signatários figuravam Adolpho Morales de Los Rios
Filho e Fernando Nereo de Sampaio. Virzi justifica na sua carta a Bernardelli sua didática,
alegando que os alunos são principiantes e que ele seguia o programa de aulas apresentado
e aprovado “por este illustre Corpo Docente”. A seguir finaliza sua carta alegando que a
reclamação dos alunos não teria sido feita de boa fé enquanto sugere que Bernardelli convide
os professores do Conselho Docente a examinarem os trabalhos do grupo de alunos signatário
de tal carta.
Pelo tom dos alunos e pelo teor da resposta de Virzi, podemos afirmar que não havia
exatamente um clima de cordialidade e harmonia entre o docente e os discentes no final do
primeiro semestre ou, ao menos, que os alunos não entendiam o que o professor lhes estava
propondo. Esses fatos são quase simultâneos à reprovação, por Virzi, de Lothar Kastrup e
Armando de Faria.
Assim, supomos que a experiência de Antonio Virzi na ENBA como professor
extraordinário fez com que usasse metodologia muito diferenciada do quê e do como se vinha
ensinando aquela disciplina na ENBA e, por mais bem informado tecnicamente fosse nosso
professor, talvez não tivesse se dado conta do tipo de exigências, formato e demandas dos

232
projetos exigidos aos alunos no exame final, preocupação externada pelo grupo. Talvez Virzi
pensasse que o convite de Bernardelli lhe daria liberdade total para ensinar dentro de suas
próprias escolhas, garantidas por sua trajetória na Itália, sem se importar, na verdade, em se
harmonizar com a didática das outras disciplinas ou pode ser que não demonstrasse suficiente
preparo para a árdua tarefa da docência. Mas, sem dúvida, parece quase possível afirmar
que ele não teria tido uma dinâmica muito próxima dos seus outros colegas e professores da
ENBA, embora valorizasse e tenha passado a utilizar o titulo de professor na assinatura das
plantas de seus projetos nos anos subsequentes. A informação18 de que em 1920 teria prestado
concurso para professor catedrático na cadeira de escultura e ornamentos e perdido a vaga
na prova oral, disputada com Petrus Verdiê, abandonando de vez o magistério, não se
confirmou nas pesquisas recentes no Museu D João VI, onde documentos comprobatórios
sobre este assunto não foram encontrados.
Supomos que em 1912 seu endereço comercial era na Av. Rio Branco, 137, prédio
onde anos mais tarde projetou a reforma da sala de espera do Cine Odeon, edifício construído
por outro italiano, Antonio Jannuzzi, acerca de 1910. Ao menos, é o endereço manuscrito sob
a carta solicitando sua exoneração em 8 de dezembro de 1912, após dar por concluído o
programa da primeira parte das três series que constituíam o material didático da disciplina
Desenho de Arquitetura e seus Orçamentos. No final dos anos 1920 Virzi possuía escritório na
Rua do Rosário, 86 no centro do Rio de Janeiro e, nos anos 30, mudou-se para São Paulo,
onde abriu escritório na Av. Rio Branco, 1086 e depois na Rua 7 de Abril. Casou-se com
Maria Esther Bolini Virzi com quem teve dois filhos, Carlo e Rômulo. Sua última esposa foi
Virginia Renata Vaccondio Virzi, com quem viveu até sua morte em 20 de julho de 1954 em
São Paulo19.

Considerações finais
Observando as imagens dos trabalhos de Virzi no Brasil, já que não foi possível, até
o momento, obter imagem do pavilhão da Exposição de Milão, nos vem, de imediato, a
reafirmação da relevância do ornato como o diferencial personalizado de sua arquitetura
decomposta em volumes. Em sua curta trajetória acadêmica na ENBA, constatamos, na carta
de reclamação dos alunos ao Conselho Docente da instituição datada de 26 de junho de
1912, a importância acadêmica da elaboração do ornato para o professor. Talvez a turma
pretendessequea disciplinaministradapor Virzi utilizasse ométododas plantas beaux arts,
como fazia o italiano Ludovico Berna até 1923”20. Mas certamente, apesar de Virzi projetar
residências e edifícios comerciais, podemos afirmar que a escultura, o ornato, a cerâmica e a
cor eram presentes em seu trabalho como arquiteto e professor, mesclando-se à singular
composição de volumes, parte do jogo de luz e sombras, observado em vários trabalhos do
artista. Como professor parece ter sido tentativamente inovador e, como arquiteto, as influências
da ambiência e da arquitetura dos prédios históricos de Palermo parecem lhe indicar certas

233
“liberdades formais”. Mas, sem dúvida, sua obra foi muito singular no Brasil além de destinada
a poucos que podiam se dar ao luxo de possuir edificações diferenciadas, ricas e em sintonia
com o que era feito de mais atual então para as novas sociedades européias. Apesar de
signos da ascensão social de alguns endinheirados ou apenas expressões mais livres de
novas propostas de morar e viver, foram por aqui pouco compreendidas e acabaram quase
todas sendo demolidas. É certo que o caráter especialmente projetado desses edifícios se
destacava da massa edilícia urbana carioca, e urge reconhecer valor nos trabalhos de Virzi
como formas de enriquecer as arquiteturas cariocas pelas propostas, inventividade,
adaptabilidade de materiais e técnicas construtivas nas referências Liberty italianas. Seus
“fogos de artifício” auxiliam a iluminar o caminho traçado por um expoente da arquitetura nas
suas escolhas, etapas construtivas, estruturais e ornamentais, decorativas e de interiores.

Notas e referências
1
ARESTIZÁBAL, Irma e GRINBERG, Piedade Epstein. Antônio Virzi. Nota 3. Arquitetura Revista. n.7.
Rio de Janeiro: FAU/UFRJ, 1989. p. 27
2
Antonio Virzi. Biografia. Documento datilografado. Conselho Municipal de Tombamento. IPP. p.1.
3
VERZI, Antonio. Documentos avulsos. n. 2988. Museu D João VI. EBA, UFRJ. Rio de Janeiro.
4
Resposta de Stefania Fornoni à consulta da autora em 05/04/2010 as 17:56h por email à Associazione
Laureati del Politécnico di Milano. Milano, 06/04/2010 as 12;56h.
5
Antonio Virzi. Biografia. op.cit.p.1
6
Antonio Virzi. Biografia. op.cit.p.1
7
ARESTIZÁBAL, Irma e GRINBERG, Piedade Epstein. Antônio Virzi. Nota 3. Arquitetura Revista. n.7.
Rio de Janeiro: FAU/UFRJ, 1989.
8
VERZI, Antonio. Documentos avulsos. n. 2988. Museu D João VI EBA UFRJ Rio de Janeiro.
9
PENACH, Enrico. L’architetto Pantaleone Laudisa. IN L’Artista Moderno. Rivista Illustrata D’Arte Applicata.
Torino: 1912. n. 5. p.79
10
VERZI, Antonio. Documentos avulsos. n. 2988. Museu D João VI EBA UFRJ Rio de Janeiro.
11
VERZI, Antonio. Documentos avulsos. n. 2988. Museu D João VI. EBA, UFRJ, Rio de Janeiro.
12
Antonio Virzi. Biografia. op.cit.p.1
13
Carta do Professor Antonio Virzi ao MD Diretor da Escola Nacional de Belas Artes. 03 de dezembro de
1912. Documento avulso. n.2989. Museu D João VI, EBA, UFRJ.
14
Carta do Diretor da Escola Nacional de Belas Artes ao Exmo Sr Rivadavia da Cunha Correia MD
Ministro de Estado de Justiça e Negócios Interiores. 9 de dezembro de 1912. Documento avulso. n.2988.
Museu D João VI, EBA, UFRJ
15
Carta do Professor Araujo Vianna aos Professores da Escola Nacional de Belas Artes. 27 de junho de
1912. Documento avulso. n. 3109. Museu D João VI, EBA, UFRJ.
16
Carta do Professor Araujo Vianna aos Professores da Escola Nacional de Belas Artes. 27 de junho de
1912. Documento avulso. n. 3109. Museu D João VI, EBA, UFRJ.
17
Carta dos alunos aos Membros do Conselho Docente da ENBA. Rio de Janeiro, 26 de julho de 1912.
Documento avulso no 3115. Museu D João VI, EBA, UFRJ.
18 Antonio Virzi. Biografia. Documento datilografado Biblioteca do DGPC/ IPP.
19
Antonio Virzi. Biografia. Documento datilografado Biblioteca do DGPC/ IPP.
20
BERNA, João Ludovico Maria. Palácio do circulo de engenheiros e arquitetos, 1923. Desenhos de
arquitetura. Nanquim/papel 50,5 x 50,3. Museu D João VI, EBA,UFRJ. reg. 933.

234
A formação de Firmino Saldanha na ENBA1

Denise Vianna Nunes


Doutoranda PROURB/UFRJ

Introdução
O presente artigo apresenta o arquiteto Firmino Fernandes Saldanha (1905-1985)
em seu período da graduação em Arquitetura, entre os anos 1925 e 1931, na Escola Nacional
de Belas Artes (ENBA).
Para investigar a vida acadêmica do arquiteto buscamos seu histórico acadêmico
nos arquivos do Museu D. João VI. Foram pesquisados os livros de matrícula dos
alunos da ENBA de 1921 a 1936, para se determinar o período de sua permanência
como aluno na ENBA.
Nossa ênfase se deu na investigação da estrutura da formação em Arquitetura oferecida
pela ENBA entre os anos 1925 e 1931em duas etapas: a primeira denominada Curso Geral
e a segunda, Curso Especial de Arquitetura.
Este texto contempla também o desempenho do estudante e do jovem arquiteto Firmino
Saldanha confrontado com o de alguns de seus contemporâneos, mostrando alguns rebatimentos
de sua formação nos seus primeiros projetos. Mais tarde Firmino Saldanha veio a projetar
diversos edifícios residenciais em altura na zona sul no Rio de Janeiro, contribuindo para a
construção da idéia de morar moderno na cidade. Esses edifícios foram o objeto de estudo de
nossa dissertação de mestrado defendida em 20092.

Contexto do jovem Firmino Saldanha


Firmino Fernandes Saldanha nasceu em 6 de setembro de 1905 em Santana do
Livramento-RS. Passou a infância no Rio Grande do Sul e no início da década de 1920
transferiu-se para o Rio de Janeiro para estudar no Colégio Pedro II e depois na Escola
Nacional de Belas Artes (ENBA).

Figura1 – Cabeçalho do histório acadêmico de Firmino Fernandes Saldanha


Fonte: Livro de matrículas, vol. 6.202, p.116, prateleira n.º 15, Museu D.João VI.

235
A ENBA e a Academia Brasileira de Letras (ABL) eram as instituições que dominavam
culturalmente a cena carioca na década de 1920-30. A cidade apresentava elaboradas
edificações ecléticas herdadas da abertura da antiga Av. Central (atual av.Rio Branco), os
pavilhões da exposição comemorativa do Centenário da Independência (1922) nas imediações
da Praça XV e os palacetes elegantes dos bairros litorâneos e de Laranjeiras. Copacabana
nos anos 1920 era ainda um bairro distante, onde havia casas de veraneio. Em 1923 foi
construído ali o hotel Copacabana Palace, que impulsionou a ocupação vertical do bairro.
Através de consulta ao histórico acadêmico de Saldanha3 obtivemos a informação de que, ao
iniciar o curso na ENBA em 1925, ele já era morador deste bairro (Fig.1), futuro sítio de
grande número de seus projetos.
O seu período de graduação em Arquitetura (1925-1931) na ENBA coincidiu com
aquele em que, na praça Marechal Floriano, hoje mais conhecida como Cinelândia,
começaram a surgir os primeiros edifícios em altura. Esta praça localiza-se bem próxima do
prédio da ENBA, portanto era o caminho natural do estudante, que assim pôde, nas suas
idas e vindas à Escola, acompanhar de perto todo o processo de verticalização pelo qual
passava a cidade. Acreditamos que esta experiência tenha se somado à sua formação e
que veio a ter um rebatimento na sua produção arquitetônica em grande parte composta de
edifícios em altura.

O curso de Arquitetura na ENBA (1925-1930)


Para matricular-se no Curso de Arquitetura na ENBA os candidatos necessitavam
apresentar certificados prévios de aprovação em diversas disciplinas. Conforme seu histórico
acadêmico, Saldanha comprovou os seguintes resultados nos exames secundários do Colégio
Pedro II: Aritmética – 4,5 (17.12.1920), História Universal – 9,0 (19.12.1922), Geometria – 6,5
(15.12.1923), Português – 4,0 (03.01.1923), História do Brasil – 10,0 (12.12.1922), Geografia,
Corografia e Cosmografia – 6,0 (20.12.1920). Do Liceu de Humanidades de Campos (Estado
do Rio) trouxe o grau de Inglês – 5,2 (06.12.1924)4. Podemos verificar que suas melhores
notas foram nas disciplinas Histórias Universal e do Brasil, sugerindo que tinha bons
conhecimentos gerais.
Segundo Helena Uzeda5, entre os anos de 1916 e 1930 não foram registradas
grandes mudanças nos estatutos da Escola, apenas algumas modificações pontuais nos
currículos de seus cursos. Esta autora pesquisou os livros dos exames escolares, que
especificavam as disciplinas, as séries e o curso a que elas pertenciam. Os históricos acadêmicos
dos alunos matriculados nos anos 1924 a 1927 que consultamos confirmam esta informação6.
Este fato nos permitiu observar o desempenho de Saldanha e de alguns alunos matriculados
em diferentes anos de forma comparativa (Tab.1).

236
Tabela 1 – Quadro comparativo de notas de alguns alunos da ENBA entre 1924 e 1927.

De modo geral Saldanha mostrou-se um aluno regular, tendo sido seu grande destaque,
no Curso Especial de Arquitetura, a disciplina Composição, que era onde se desenvolvia
projeto, a espinha dorsal do Curso.
A lista de matriculados no ano de 1925 (Fig.2) indica que eram 57 os alunos ingressantes
naquele ano, no curso inicial de três anos, denominado Curso Geral. Em seguida o curso se
dividia nos cursos especiais de Arquitetura, Pintura, Escultura e Gravura de Medalhas e
Pedras Preciosas por mais três anos.

Figura 2 - Lista dos alunos matriculados na ENBA em 1925


Fonte: Livro de matrículas, vol. 6.202, prateleira n.º 15, Museu
D.João VI.

237
Segundo as listas de alunos7 que ingressaram no Curso Geral da ENBA, Saldanha foi
contemporâneo na Escola de diversos arquitetos e artistas que se destacaram na década
seguinte, tais como Wladimir e Stelio Alves de Souza, Enéas Silva, Affonso Eduardo Reidy,
Gerson Pompeu Pinheiro, Paulo de Camargo e Almeida (turma de 1924), Tupy Brack e Marcello
Roberto Dória Baptista (turma de 1925), Aberlardo Reidy de Souza, Carlos Leão e Alvaro Vital
Brazil (turma de 1926), Jorge Machado Moreira e Alcides Rocha Miranda (turma de 1927),
Ernani Vasconcellos (turma de 1929) e Oscar Niemeyer (turma de 1930), entre outros.
Neste período os avanços técnicos eram muitos: difundia-se o uso do concreto armado
e do elevador. Na grade disciplinar que o Curso Especial de Arquitetura oferecia havia uma
grande ênfase na construção. Diversos professores eram engenheiros: Graça Couto –
professor de Material de Construção, era dono de uma construtora, e Felipe dos Santos Reis
– engenheiro e geógrafo, professor de Resistência dos Materiais, entre outros. Os formando
recebiam o título de engenheiro-arquiteto: “A associação do título engenheiro ao de arquiteto,
que se atribuía ao formando na época, desejava refletir a melhoria da capacitação científica do
Curso de Arquitetura, cujo currículo foi assimilando no decorrer do século XX disciplinas
técnicas análogas às ministradas no cursos de engenharia civil da Escola Politécnica”8.
Este contato com os engenheiros pode ter sido uma referência para a vida profissional
de Saldanha. Apenas cinco anos após o término do Curso ele já estava projetando e construindo
arranha-céus em Copacabana; Saldanha abriu duas construtoras (1939 e 1943)9 e inovou
construindo por incorporação.

Curso Geral
Entre os anos 1925 e 1927 Saldanha frequentou o Curso Geral da ENBA. Segundo
informações de seu histórico acadêmico (Fig.3), neste Curso Saldanha destacou-se em
Desenho Figurado na 1ª série (6º lugar) e em Escultura de Ornatos na 2ª série (5º lugar).

Figura 3 - Parte do histórico acadêmico de Firmino Saldanha


Fonte: Livro de matrículas, vol. 6.202, p.116, prateleira n.º 15, Museu D.João VI.

238
As disciplinas ministradas na 1ª série eram Desenho Figurado, Desenho Geométrico
e História das Belas Artes; na 2ª série, Desenho de Ornatos, Desenho Figurado, Escultura de
Ornatos, História Natural (Física e Química) e Geometria Descritiva; na 3ª série eram ensinados
Desenho Figurado, Escultura de Ornatos, Composição de Elementos, Geometria, Perspectiva
e Matemática Complementar.

Curso Especial de Arquitetura


Esta etapa foi cursada por Saldanha entre os anos de 1928 e 1931 (Fig.4).

Figura 4 - Parte do histórico acadêmico de Firmino Saldanha


Fonte: Livro de matrículas, vol. 6.202, p.116, prateleira n.º 15, Museu D.João VI.

Segundo Helena Uzeda10, a afluência às aulas do Curso de Arquitetura da ENBA


cresceu significativamente entre 1925 e 1929. As muitas obras realizadas na cidade desde o
início do século e as exposições comemorativas de 1908 e 1922 teriam dado, segundo a
autora, visibilidade à Arquitetura e valorizado a profissão do arquiteto. Segundo suas pesquisas,
em 1928 havia 78 estudantes matriculados no Curso Especial de Arquitetura, sendo 23 deles
ingressantes da turma matriculada em 1925 (a de Saldanha) no Curso Geral. Em 1929 havia
66 estudantes matriculados, sendo 22 alunos da turma de 1925.
Conforme depoimento do arquiteto, “O curso era assim: o primeiro ano era embaixo,
plantas, etc. depois a gente passava para o segundo andar, que as salas tinham dez, doze
estudantes de arquitetura e finalmente o último, a gente passava lá pra cima, eram as turmas
já mais...especificadas”11.
O Curso Especial de Arquitetura se dividia em três séries: a 1ª Série12, a de Grau
Médio e a de Grau Máximo.
Da 1ª Série faziam parte as disciplinas: Composição, Resistência dos Materiais, Materiais
de Construção e Geometria Descritiva aplicada e Topografia13. Saldanha se destacou nesta
Série (1928) em Composição, cátedra ministrada nas três séries do Curso Especial de

239
Arquitetura pelo Prof. Arquimedes Memória. Segundo Helena Uzeda14, o programa apresentado
pelo professor limitava-se a apontar o tipo de construções a serem desenvolvidas, não
apresentando detalhes sobre orientação técnica ou estilística. Para esta série os temas previstos
eram motivos interiores e exteriores de edifícios públicos e particulares.
Encontramos publicado pela revista Architectura - Mensário da Arte de 1929 o trabalho
do estudante Firmino Saldanha intitulado Um pórtico inspirado no estylo Luis XVI. Tanto pela
temática como pela data acreditamos que tenha sido o seu trabalho final para a disciplina
Composição da 1ª Série do Curso de Arquitetura. Trata-se de um projeto nos moldes acadêmicos
com referência nos chamados estilos arquitetônicos do passado.
No Grau Médio eram ministradas as disciplinas Composição, pelo Prof. Arquimedes
Memória, História e Teoria, pelo Prof. Adolfo Morales de los Rios Filho e Legislação, pelo
bacharel Diogo Chalréo.
O trabalho do estudante Firmino Saldanha Uma Moradia de Campo em estylo
normando, publicado em 1930 pela revista Architectura-Mensário da Arte, provavelmente
terá sido aquele final da disciplina Composição no Grau Médio, cursada em 1929, cujo
programa arquitetônico eram habitações econômicas, habitações coletivas, pequenos hotéis e
residências particulares em geral. Este projeto, embora também se referisse a um estilo, já
anunciava uma ortogonalidade de planta, deixando transparecer uma nova maneira de
enfrentar o projeto. Neste período eram encontrados na mesma publicação projetos com
diversas tendências: desde inspirados em Luis XVI, a neocoloniais, a projetos no chamado
estilo “moderno”.
Sabe-se que já nos anos anteriores à direção de Lucio Costa circulavam entre alunos
e professores informações sobre as questões discutidas na Europa nos Congressos
Internacionais de Arquitetura (CIAM) desde 1928 e na Bauhaus.
As publicações brasileiras de época mencionam a atuação dos professores da ENBA
na organização de palestras (Adolfo Morales de los Rios foi responsável em 1929 pela de Le
Corbusier) e Congressos (como o IV Congresso Pan-Americano de Arquitetos, cujo comitê
executivo era composto de professores e alunos da ENBA). Pode-se afirmar, portanto, que
na ENBA havia espaço para discussão de novas tendências. Helena Uzeda também
comprovou o fato nas Atas da Congregação do período.
O Grau Máximo, cursado por Saldanha em 1930, era o último ano do Curso
Especial de Arquitetura e era composto por uma única disciplina – Composição. Segundo
Helena Uzeda15 nesta cátedra era aplicada uma prova final que, além de uma classificação
por mérito, permitia que o aluno obtivesse premiações: menção honrosa e medalhas de
bronze, prata ou ouro.
Conforme Helena Uzeda, o programa da disciplina nesta série, no período cursado
por Saldanha constava de edifícios públicos e de caráter monumental. Segundo depoimento
do arquiteto16, na disciplina Grandes Composições, os temas eram hospitais, escolas, aeroporto

240
e o seu projeto final teria sido uma penitenciária. De acordo com seu histórico acadêmico
(Fig.4), Saldanha foi habilitado nesta disciplina nos termos do decreto 19404 de 14.11.1930,
que aprovou naquele ano todos os alunos que tinham frequencia comprovada. No entanto,
Saldanha só obteve seu diploma em 8 de junho de 1931.

Curso especial de Arquitetura no período 1930-1931


A Revolução de 1930 trouxe ao governo o também gaúcho Getúlio Vargas, amigo da
família Saldanha que implementou uma nova política social e cultural no Brasil. Foi criado o
Ministério da Educação e Saúde, além de outros órgãos capazes de atrair intelectuais das
mais diversas formações a ocuparem cargos-chave na burocracia do Estado. Sua participação
na vida nacional respaldava-se na crença de que eles [os intelectuais] seriam uma elite capaz
de salvar o País, pois estavam sintonizados com as novas tendências do mundo e atentos às
diversas manifestações da cultura popular. Os artistas e intelectuais tratavam em suas obras
das questões sociais que estavam na ordem do dia e participavam do debate político-ideológico
entre a direita e a esquerda.
Para a direção da ENBA, foi indicado, em dezembro de 1930, o arquiteto Lucio Costa,
que contratou novos professores e procurou dar uma orientação mais voltada para as
vanguardas europeias.
Saldanha escreveu na Revista de Arquitetura e Decoração:

(...) Em 1928 Warchavchik construía em São Paulo as casas que, em nosso


País, constituem os primeiros exemplos de uma arquitetura bem orientada. Em
1929, (...), fazia Le Corbusier as primeiras conferências realizadas por ele no
Brasil. (...) Coube a Lucio Costa dar a esses dois acontecimentos o dinamismo
necessário. Arquiteto de talento, gozando de imenso e justo prestígio, reuniu todas
as condições para coordenar e orientar o movimento iniciado. Nomeado diretor da
Escola Nacional de Belas Artes convida Warchavchik para lecionar arquitetura.
Os princípios defendidos por Le Corbusier são explicados através de
exemplificações feitas sobre os trabalhos escolares. Denuncia o formalismo oco e
o construtivismo abstrato em que se consumiam, em estéril desgaste, belas
vocações da nossa arquitetura. Falso moderno, mistificações modernistas foram
as expressões que estigmatizaram esses devaneios plásticos de duvidosa
originalidade. Com seus erros, indecisões e excessos, essa primeira fase, contudo,
constituiu o preparo ideológico indispensável ao ulterior desenvolvimento da
arquitetura moderna em nosso País.17

Saldanha afirmou em depoimento18 ter sido aluno de Gregori Warchavchik em 1931,


portanto, por alguma razão, estendeu seu Curso e continuou aluno no período da gestão
Lucio Costa.
Segundo Paulo Santos19 teria sido o professor Alexander Buddeus, também
contratado por Lucio Costa, que teria apresentado as revistas alemãs Moderne Bauformen
e Form aos estudantes.

241
As experiências vivenciadas pelos estudantes no período da direção de Lucio Costa
contribuíram, certamente, para afirmar e sedimentar convicções, que já vinham sendo gestadas
nos anos anteriores. Saldanha e vários estudantes de seu tempo, entre eles Affonso Eduardo
Reidy, Marcello Roberto, Alvaro Vital Brazil e Jorge Machado Moreira, se identificaram com os
conceitos da vanguarda europeia e com a expressão arquitetônica deles decorrente: o uso
de estruturas de concreto e aço, uma estética que privilegiava as formas geométricas simples
e a ausência de ornamentos; suas primeiras referências diretas parecem ter sido a Casa dos
Mestres projetada por Walter Gropius para a Bauhaus de Dessau em 1926 e as casas
modernistas de Warchavchik do final do anos 1920.

Considerações Finais
A investigação a respeito da formação do arquiteto é atividade fundamental para se
poder melhor estudar a sua obra. Alí são sedimentados conceitos que vão se rebater no seu
projetar e permitem a sua contextualização.
Como disse o próprio Firmino Saldanha, “(...) a época da minha turma era efervescência
em termos da nova arquitetura... era uma visão que pairava sobre todas as outras coisas (...)”20.
O período em que Saldanha esteve na ENBA, foi, no tempo e no espaço, um momento
especial na história do ensino da arquitetura do Brasil, ao menos quanto ao esforço de
atualização e à intensidade do debate teórico21. Foi um momento de mudanças de paradigmas.
Portanto, o material encontrado no acervo do Museu D.João VI foi fonte primária muito rica
para esse e muitos outros estudos.
Através deste trabalho pudemos iniciar a construção das redes de relações dos
jovens estudantes deste período e de seus professores e nos aproximar mais de nosso objeto
de estudo do Doutorado.

Notas e referências
1
A presente comunicação é produto de pesquisas realizadas no Museu D.João VI nos anos 2007 e 2008
para composição de nossa Dissertação de Mestrado intitulada “Edifícios Residenciais de Firmino Saldanha.
Morar Moderno na Zona Sul do Rio de Janeiro”, apresentada ao PROARQ/UFRJ em fevereiro de 2009.
2
NUNES, Denise Vianna. Edifícios Residenciais de Firmino Saldanha. Morar Moderno na Zona Sul do Rio
de Janeiro. Dissertação de Mestrado em Arquitetura apresentada ao PROARQ/UFRJ, Rio de Janeiro, 2009.
3
O histórico de Firmino Saldanha encontra-se na p.116 do livro de matrícula, vol. 6.202, situado na
prateleira n.º 15 do Museu D.João VI.
4
Segundo Helena Uzeda , os candidatos à admissão no curso de Arquitetura ainda prestavam vestibular
de matemática elementar, noções de História das Artes, Desenho Geométrico e Figurado. O texto da
autora não deixa claro se estas provas aconteciam antes do Curso Geral ou antes do Curso especial de
Arquitetura. No histórico de Saldanha não há anotações destes exames. UZEDA, Helena Cunha de.
Ensino Academico e Modernidade. O Curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes 1890-1930.
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pos-Graduacao em Artes Visuais da Escola de Belas
Artes em 2006. p.340.
5
UZEDA, op.cit., p. 338.
6
Segundo Helena Uzeda, a Congregação vinha desde 1923 tentando implementar uma reforma curricular
e de equiparação de seu estatuto ao de Instituição de Curso Superior. UZEDA, op.cit., p.338.

242
7
As listas de alunos encontram-se no início de cada volume dos livros de matrícula, situados na
prateleira 15 do Museu D.João VI.
8
UZEDA, op.cit., p.227.
9
Saldanha abriu em 1939 a Empresa Nacional de Construções Ltda (sem sócios) e em 1943 a Empresa
nacional de Obras e Imóveis Ltda., tendo como sócios Anibal de Mello Pinto e José de Aquino Braga.
10
UZEDA, op.cit., p.345.
11
SALDANHA, Firmino Fernandes. Entrevista concedida a Milton Teixeira, 1985.
12
Esta foi uma denominação nossa apenas para poder se referir à série, que não tinha denominação.
13
Segundo Helena Uzeda esta disciplina seria ministrada no Grau Médio. No entanto, no histórico
acadêmico de Saldanha aparece na primeira série. Esta cátedra incluía as disciplinas perspectiva,
sombras e estereotomia e topografia, ministradas ao longo de um ano, com cada uma delas ocupando um
período de três meses e meio. UZEDA, op. cit., p.356.
14
UZEDA, op.cit., p.357.
15
Ibid. p.340.
16
SALDANHA, 1985, op.cit.
17
SALDANHA, Firmino Fernandes. Algumas considerações sobre a Arquitetura Moderna no Brasil.
Revista de Arquitetura e decoração, n.º5. Rio de Janeiro: 1954.p.7-8.
18
SALDANHA, 1985, op.cit.
19
SANTOS, Paulo. Quatro séculos de Arquitetura. Valença: Valença S.A., 1977.
20
SALDANHA, 1985, op.cit.
21
CONDURU, Roberto. Espaços da arte brasileira/Alvaro Vital Brazil. São Paulo: Cosac&Naify, 2000.

243
Algumas contribuições de Manoel de Araujo Porto-alegre no debate
urbanístico de seu tempo [1848-1855]1

Priscilla Alves Peixoto


arquiteta e urbanista FAU /UFRJ
membro LEU-PROURB-FAU-UFRJ

Algumas contribuições para a historiografia do pensamento urbanístico no Brasil


Apesar de existir uma extensa literatura sobre a obra Manuel de Araújo Porto-alegre
é ainda possível observar lacunas nos estudos sobre suas contribuições no campo arquitetônico
e, sobretudo, urbanístico. Neste caso, suas reflexões sobre a própria cidade do Rio de
Janeiro e sobre a ação que alunos e professores da Academia Imperial de Belas Artes
poderiam ter nela.
A presente comunicação busca lançar luzes sobre algumas questões urbanas no
pensamento de Manoel de Araújo Porto-alegre presentes nas atas da Academia Imperial de
Belas Artes no período em que foi diretor.
Assim, esperamos contribuir para um maior conhecimento destes aspectos de sua
obra salientando a relevância de suas contribuições para a própria história urbana e do
urbanismo no país como no caso de inúmeros outros pré-urbanistas brasileiros de grande
envergadura que ao lado dele permanecem no anonimato ou cujas reflexões urbanísticas
permanecem pouco exploradas.

Manoel de Araujo Porto-alegre e suas reflexões sobre a cidade do Rio de Janeiro


(revisão historiográfica)
Nos textos de análises e problematização existentes sobre a obra de MAPa2 sobressaem
as abordagens acerca de sua atuação como professor e diretor da AIBA e como representante
do Romantismo na poesia e teatro3.
Os trabalhos que investigam o pensamento de MAPa junto às questões citadinas
ganhariam atenção a partir do trabalho de Margareth da Silva Pereira, em 1989, em sua tese
de doutoramento4. Nesse trabalho, a autora busca reconstruir as redes intelectuais que criavam
e debatiam as teorias urbanas na cidade do Rio de Janeiro durante o século XIX.
Em poucas páginas, MAPa vem à baila das discussões de Pereira ainda como
representante da instituição oficial das artes no Império, mas sua análise busca se aproximar
da forma como os artistas de meados do século XIX estavam pensando a cidade e nos mostra
como, após a saída de Porto-alegre da direção da AIBA, são silenciadas as discussões
urbanas entre esse grupo.
Neste último decênio [2000-2010] vimos a obra do antigo diretor da AIBA recuperar
interesse de diversos pesquisadores5 e, com relação as reflexões de MAPa acerca da cidade,
encontramos referências nos trabalhos de duas historiadoras: Heliana Angotti e Letícia Squeff.

244
Heliana Angotti, em “Le Comédie Urbaine: de Daumier à Porto-alegre” (2003), analisa
a produção de MAPa na revista “A Lanterna Mágica: revista plástica e filosófica” (1845) e
busca remontar a construção de seu discurso crítico acerca das questões urbanas a partir da
leitura que MAPa fez da obra de Honoré-Victorin Daumier [1808-1879].
Já a historiadora Letícia Squeff dedica em uma secção intitulada “A cidade como teatro”
em seu livro “Brasil nas letras de um pintor - Manuel de Araujo Porto Alegre (1806-1879)”.
Nessa secção, Squeff apresenta artigos do periódico “Guanabara” atribuídos a Porto-
alegre que abordam sua reflexão acerca da cidade e, também, nos mostra como sua crítica da
urbe está próxima a sua produção teatral.
Assim, dado o avanço desses estudos, se fez necessário revisitar a documentação
existente no Museu D. João VI – sempre indispensável ao estudo da obra de MAPa – para
desvelar suas reflexões citadinas enquanto foi diretor da AIBA.
Nessa investigação nos aprofundamos na análise da ata de 27 de setembro de 1855
em que MAPa apresenta uma série de “pontos artísticos” para realização de uma revista da
AIBA denominada “O Artista”.

Os anos de 1848 e 1849


Antes da referida investigação é importante sinalizar que a atenção de MAPa sobre
questões urbanas já é notada em empreendimentos datados, sobretudo, a partir do biênio
1848-1849, em que se destacam a “Revista Guanabara – Revista Artística, Scientífica e
Litteraria” [1849-1855]6 e o início de sua atuação na Câmara Municipal7.
Não é finalidade desse artigo aprofundar nas peculiaridades do funcionamento da
Câmara Legislativa do Rio de Janeiro nesse período ou sequer nos relatos dessa casa que
MAPa trazia a público na “Guanabara”.
No entanto, para iniciarmos nossa análise, é preciso ter em mente que os discursos
realizados em 1855 apresentam reflexões amadurecidas de um homem público que se ocupa
das questões urbanas já há alguns anos.

Parece-me que o pensamento desta nova edificação deve ser animado pelo
Governo Imperial, porque dela colhe a tríplice utilidade de beleza urbana, economia
para os cofres públicos e animação aos vários trabalhos das artes. (...) Quanto ao
local, penso que o Campo é melhor, porque ele será em breves anos o Centro da
cidade. Na quadra entre a Rua do Hospício e Senhor dos Passos há suficiente
espaço, e todas as avenidas já feitas para o transito público. (...)8.

Considerações como essa – que MAPa fez ao ser consultado sobre a idéia de
construção de um novo teatro no Rio de Janeiro em 1853 – nos dão a dimensão da
complexidade de seu olhar sobre a cidade do Rio de Janeiro nos anos que precedem seu
retorno a AIBA.

245
A Ata da 2ª Sessão Pública em 27 de setembro de 18559
No relato da referida sessão, MAPa apresenta para os membros da Academia um
conjunto de questões tanto com objetivos pedagógicos quanto a fim de oferecer alguns “pontos
artísticos” para elaboração de um jornal da AIBA – “O Artista”.
Percebemos que uma boa parte desses pontos evidenciava aspectos urbanos em
diferentes contextos. Assim, buscando nos aproximar dessas questões e a partir da própria
forma como o discurso se estruturava, isolamos tais pontos e tentamos organizá-los em dois
diferentes grupos: “embates conceituais” e “questões de ordem prática”.
Entretanto, esse primeiro exercício apenas nos levou a reforçar uma relação de
complementaridade desses dois campos de discussão, afinal, o discurso de MAPa, nesse
momento, se constrói entorno do conceito de “estética urbana”.
Esse conceito trilha junto a experiências de arquitetos como Gottfried Semper [1803-
1879] que entende a arquitetura como arte urbana e que darão origem a críticas como as de
Camillo Sitte [1843-1903] sobre a Ringstrasse em Viena (1889) onde se percebe a cidade
como instrumento pedagógico da educação estética dos indivíduos.
Logo, apesar de ter falhado esse primeiro impulso classificatório, foi possível perceber
que MAPa buscava articular um sistema estético da urbe. Não obstante, esse se refletia na
recorrência das palavras GOSTO e SISTEMA na referida ata:

2º - D’onde procede o mau GÔSTO, e mesmo a indiferença, que temos tido até
hoje para com a arquitetura?
(...)
3º - A introdução do azulejo nas fachadas das nossas casas sera o começo de uma
decadência prematura; convirá destruir esta introdução ou aproveitá-la com melhor
direção na decoração externa? Será melhor combate-la rigorosamente para substituir
este GÔSTO dos habitantes pela pintura afresco, pelo desenho chamado
“serigrafado”, pelo estuque, ou promover no país fabricas dessa nova industria?
(...)
6º - O novo SISTEMA de educação artística, ordenado pela reforma, preencherá
os seus fins, ou será necessário um novo método? Qual será mais proveitoso;
começar pelos processos puramente técnicos para depois passar-se à teoria, ou
começar-se pela teoria para depois passar-se à pratica, ou o sistema de estudar a
teoria de envolta com a prática?
(...)
10º - Se o SISTEMA das recompensas públicas dos Atenienses fosse adotado no
Brasil, frutificaria ele como na antiguidade apesar da nossa diferente organização
social, e do nosso caráter individual, ou daria um resultado moral e artístico
superior ao dos títulos e condecorações? Não pelejaria esta adoção com os
resultados do passado, e não seria ela a base de uma revolução pacífica porém
completa no futuro?
(...)
13º - Que meios pode empregar já o Governo para enraizar o GÔSTO das belas
artes no Rio de Janeiro, e torná-lo em UTILIDADE PÚBLICA?
(...)

246
20º - O que tem mais concorrido para o atraso da arquitetura, as leis do nosso país,
e educação dos nossos homens de Estado, ou a falta do GÔSTO nos particulares?
(...)
22º - Quais serão as vantagens do emprego da arquitetura chamada doméstica
pelo sr. Canina, quais os edifícios que melhor comportarão este SISTEMA e quais
os que perderiam com ele?
(...)
26º - O estudo da arquitetura clássica, conforme o SISTEMA de muitas escolas,
será bastante para criar arquitetos úteis a todas as necessidades sociais, ou deve
ele entrar na educação artística como entra o estudo dos clássicos na literatura?10

A dimensão estética das questões urbanas no pensamento de Manoel de Araújo


Porto-alegre
Colocando lado a lado a aquarela “O primeiro impulso da virtude guerreira” (1827) de
Jean Baptiste Debret e uma das páginas de “A Lanterna Mágica: Periódico Plástico e Filosófico”
(1845), revista editada e escrita por MAPa, uma questão nos assalta: o quanto a crítica –
igualmente jocosa em ambas as obras – desestabiliza e reconstrói a poética desses artistas?
No caso do mestre de MAPa, seguindo a análise de Rodrigo Naves em “A Forma
Difícil”, podemos entender “esse contraste irônico”11 como a forma encontrada pelo artista
para lidar com essa “realidade totalmente estranha”12 e distante do ideário neoclássico de sua
formação francesa nos anos da “Revolução”.
E quando esse olhar não se permite irônico, como no caso de “vendedor de flores à
porta de uma loja” (1834-39), a composição ganha traços idealizados e construídos a partir de
estruturas classicizantes13. Em certo sentido, essa crítica intenta uma correção.
MAPa parece partir da mesma matriz crítica. Apesar de nascido no Brasil, seu olhar
para com o mundo que o cerca está desconfortável e, assim como Debret, sua resposta
também evidencia “esse contraste irônico”14.
No entanto, seu segundo impulso crítico compreende o papel preponderante da
educação (estética) como agente reorganizador desse sistema. E já na “Lanterna Mágica”, a
cidade se apresenta como cenário necessário à educação dos indivíduos.
Não obstante, na ata de 27 de setembro de 1855, podemos observar que a recorrência
da palavra “gosto” está imbricada tanto a primazia da crítica enquanto ferramenta de formação
do olhar quanto às reflexões sobre questões urbanas. Dando assim, a dimensão educativa da
cidade na formação estética dos indivíduos.

A dimensão sistêmica das questões urbanas no pensamento de Manoel de Araújo


Porto-alegre

Systema, s.m. União de muitos princípios verdadeiros, ou falsos, de muitas


proposições entrelaçadas entre si, e de conseqüências dahi deduzidas, sobre as
quaes se funda huma opnião, doutrina, dogma15.

247
Tratando ainda das recorrências das palavras na ata de 27 de setembro de 1855,
nos lembramos que, não sem propósito, MAPa está pensando através de “sistemas”.
Como outros críticos sociais de sua época16, MAPa procura traçar relações entre os
indivíduos e o mundo que o cerca. Busca produzir sentido para estar apto a projetar o por vir.
Assim, a dimensão estética, ou estética urbana se preferirmos, de seu pensamento não
poderia estar contida em outro lugar, se não nessa sua operação de ressignificação do mundo.

O que seria d’esse homem ethereo, que gyra no grande circulo da creação, que
mede com o pensamento distancias milenarias, marca o itinerario dos astros, si
entranha pelas nebulosas e devassa o espaço, e como que abrange o infinito?
Poderia elle, como um geographo sem cartas, ensinar ao nauta as vias do oceano,
e as relações do seu oculo por todo esse campo, onde a humanidade procura
Deos, onde deposita todas a as suas esperanças e toda sua felicidade?! (...)17.

As questões contidas nesse discurso para inauguração dos cursos de estética, desenho
e matemáticas trazem, novamente, essa prerrogativa da sensibilização / educação do indivíduo
para que esse estivesse apto a julgar.
Ora, é através dessa mesma argumentação que compreendemos a necessidade de
MAPa de tornar o “(bom) gosto”18 uma “utilidade pública”19 como ele nos coloca em um dos
seus “pontos artísticos”.

A dimensão estética e/ou sistêmica: parte de uma visão de mundo

Como todos meus amigos, mais de uma vez tentei me fechar num sistema para
nele discorrer à vontade. Mas um sistema é uma espécie de danação que nos
conduz a uma renuncia perpétua; (...) Para me ver livre do horror dessas apostasias
filosóficas, resignei-me orgulhosamente à modéstia: contentei-me em sentir, voltei
a buscar um refúgio na impecável ingenuidade20.

Sincronismos ou contradições? Longe das respostas objetivas e apressadas, a


cronologia dos escritos da crítica da arte nos fazem confrontar as reflexões de MAPa aos
de Charles Baudelaire realizadas no mesmo ano de 1855. Escrevendo sobre a exposição
universal, o crítico e poeta francês também estava atento às noções de sensibilidade
estética e sistema.
No Brasil, MAPa também já não se fechava em apenas um sistema, procurava articular
vários, e buscava “ser no mundo” a partir dessa sensibilização dos sentidos.
Entretanto, um “dever ser” se impunha, dar respostas a tarefas profundas como
estruturar o ensino artístico no Brasil, produzir sentido através da história, desvelar a cidade
de seu papel educativo, dentre apenas algumas dessas tarefas sem número, não lhe permitiam
“buscar um refúgio na impecável ingenuidade”21.

248
Notas e referências
1
A presente comunicação é produto de pesquisas realizadas durante os anos 2006 a 2010 em atividades
de iniciação científica e, posteriormente, apoio técnico junto Laboratório de Estudos Urbanos – leU (LEU-
PROURB-FAU-UFRJ) para o desenvolvimento do primeiro tomo I de uma Antologia do Pensamento
Urbanístico no Brasil.
2
Trataremos doravante Manoel de Araújo Porto-alegre pela abreviatura MAPa.
3
Dentre os autores que já se ocuparam da análise da obra de Manoel de Araújo Porto-alegre podemos
destacar Alfredo Galvão, Morales de Los Rios, Donato Mello Junior e Mário Barata e mais recentemente
podemos citar Gustavo Rocha Peixoto e Cybele Fernandes, Heliana Angotti Salgueiro e Letícia Squeff..
4
Rio de Janeiro: L’ephemere et la perennite – histoire de la ville au XIXeme siècle. Paris, 1988. Tese
(Doutoramento Ciências Sociais) - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales.
5
Cybele Fernandes (2001), Gustavo Rocha-Peixoto (2004), Heliana Angotti Salgueiro (2003) e Letícia
Squeff (2004), Paula Ferrari (2008).
6
Nas páginas da revista “Guanabara – Revista Artística, Scientífica e Litteraria” [1849-1855] – editada por
Porto-alegre – estão os registrados uma dezena de notas sobre as discussões da Câmara Municipal.
Além de seus relatos em “Notícias Diversas” a revista também publicava escritos como os Dr. Francisco
de Paula Cândido sobre salubridade ou de Vanhargen sobre a mudança da capital.
7
Sua passagem pela Câmara de vereadores é pouco estudada, Letícia Squeff registra que Porto-alegre
consta na “apuração de votos para vereador e juiz de paz da cidade do Rio de Janeiro” em 1848 e
também que, através de referências encontradas na “Guanabara”, Porto-alegre “ainda era vereador
quando foi chamado para reformar a AIBA, o que permite aventarmos que ficou nesse posto até pelo
menos 1854” SQUEFF, Leticia. O Brasil nas letras de um pintor – Manuel de Araujo Porto Alegre (1806-
1879). São Paulo: Unicamp, 2003, p 125.
8
GALVÃO, Alfredo. Manuel de Araújo Porto-Alegre: sua influencia na Academia Imperial de Belas Artes e
no meio artístico do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: [s. n.], 1959, p. 75.
9
Ata disponível no acervo do Museu D. João VI. In: Atas da Academia Imperial de Belas Artes (Sessões
da Presidência do diretor), notação: 6163.
10
Ibid.
11
NAVES, Rodrigo. Debret, o neoclassicismo e a escravidão. In: A Forma Difícil – Ensaios sobre Arte
Brasileira. São Paulo: Ática, 1997. p. 44.
12
Ibid., p. 44.
13
iIbid, p. 120-122.
14
Ibid, p. 44.
15
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lingua portugueza - recopilado dos vocabularios impressos
ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado, por Antonio de Moraes
Silva. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813, p. 747.
16
Autores como Jean-Jacques Rousseau e Conde de Saint-Simon também farão uso recorrente das
palavras sistemas sobretudo para abordar questões relativas ao papel do legislador / organizador.
17
Discurso de Porto-alegre registrado na ata de 02 de junho de 1855. Ata disponível no acervo do Museu
D. João VI arquivadas sob a seguinte notação: 6152.
18
Ata de 27 de setembro de 1855. Ibid.
19
Ibid.
20
Cf. BAUDELAIRE, Charles. Exposição Universal de 1855. In: A modernidade de Baudelaire. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. 1988 [escritos de datas diversas], p. 33.
21
Ibid.

249
Influências estéticas das lições da E.N.B.A. nas obras de Calmon Barreto

Gisele Lourençato Faleiros da Rocha


Mestre PPGAV/EBA/UFRJ

O estudo da obra de Calmon Barreto de Sá Carvalho (1909-1994) solicita um


resgate de suas experiências e formação artística na E.N.B.A, uma vez que seu contato
com esta instituição e seus métodos de ensino foram constantes em sua vida: primeiramente
como aluno de Modelo Vivo, na seção de gravura; depois como professor de Modelo
Vivo, Anatomia e Fisiologia Artística e posteriormente como diretor (1961-1964). Propomos
demonstrar neste artigo influências estéticas das lições da E.N.B.A. e ao mesmo tempo
revelar a atuação do artista nesta instituição. Em seu acervo de desenhos, pertencentes
ao Museu D. João VI, encontramos no emprego da linha, na construção da forma e na
composição de suas obras fundamentos do desenho de Modelo Vivo, do conhecimento
anatômico e fisiológico, entre outras características como: poses, retratos, fisionomias e
proporções que traduzem sua maneira própria de ensinar e criar. Assim, através de um
conjunto de documentos, obtidos a partir de arquivos distintos revelamos informações
valiosas sobre a biografia e estética de Calmon Barreto, resgatamos a história da E.N.B.A
e imagens do acervo do Museu D. João VI.

A chegada do menino na capital carioca


Esta é a história de um menino, que em março de 1922, com apenas 12 anos
ingressou na Casa da Moeda1 como aprendiz. Os conhecimentos que
Calmon Barreto conquistou nesta instituição fizeram com que a considerasse
como um lar, onde recebeu tanto a base de suas praticas artísticas, quanto
pessoais, como menciona: “para bem dizer, a formação de meu caráter”2.
Morando no Rio de Janeiro, outro grande passo em sua vida ocorreu em
18 de março de 1924 quando foi aprovado para no curso de Modelo Vivo,
na seção de gravura na Escola Nacional de Belas Artes 3.
O grande mestre que o ensinara foi o professor Augusto Fiorgio
Girardet4 e por causa dele Calmon Barreto relata que teria escolhido cursar
gravura e não pintura como pretendia inicialmente. Em suas declarações
Fonte: Família Barreto.
guardava boas lembranças do convívio com Girardet: “Entrei para as
aulas do mestre e dele aprendi tudo o que sei, e se mais não aprendera porque talento me
faltara...”5. No ano de 1929 quando Calmon Barreto conquistou o prêmio de viagem para a
Europa, o apoio que recebeu do mestre Girardet teve um significado afetivo: “Em março de
1930, embarquei para a Itália. O prof. Girardet tal como um bom pai, lá se encontrava para
guiar-me... Logo me fizera visitar museus e ateliês de artistas”6.

250
Quando retornou desta viagem, Calmon Barreto foi nomeado gravador mestre da
Casa da Moeda e nos anos seguintes sua produção artística transitou por diferentes linguagens:
gravura, escultura, desenho, pintura, ilustração, entre outras. Ao discursar sobre
Calmon Barreto, Jordão de Oliveira reconhece esta dinâmica criativa em sua
produção artística:

Na Casa da Moeda, onde estivera como aprendiz e, em seguida, como um dos


seus melhores técnicos, executou considerável série de trabalhos, em moedas
que ainda circulam por esse Brasil afora. Mas resolve abandoná-la, um dia para
dedicar-se à ilustração, gênero em que se impôs, por muito tempo. Ilustra para
casas editoras, faz escultura, baixos-relevos, como aqueles de grandes proporções
que realizou para o Banco de Crédito Real de Belo Horizonte. Pinta, lê, escreve,
desdobra-se 7.

Desta atuação como ilustrador deriva-se a maior parte das obras de sua autoria
deixadas para o patrimônio artístico brasileiro. Centenas de ilustrações estão em diversas
revistas cariocas8 e em livros da literatura brasileira que constituem importantes imagens para
a compreensão de imaginários, elementos históricos, culturais e estéticos. Foi com esta produção
que Calmon Barreto se estabeleceu no campo artístico na cidade do Rio de Janeiro, pois a
partir de 1920, jornais e revistas necessitavam das mais variadas colaborações prestadas
pelos artistas plásticos e gráficos9. A partir da década de 40, mantendo-se nas atividades
ilustrativas Calmon Barreto dedicou-se à carreira de docente na Escola Nacional de Belas
Artes, o que muito nos interessa descrever aqui.

Os traços de Calmon Barreto na Escola Nacional de Belas Artes


Na E.N.B.A e na Casa da Moeda Calmon Barreto aprimorou seu talento artístico
com mestres que lecionavam em ambas instituições Entre os anos de 1942-1947 ele atuou
como Assistente, na disciplina de Modelo Vivo, cadeira que no momento pertencia ao prof.
Rodolfo Chambelland. Por suas palavras entendemos que tanto os anos dedicados à
ilustração quanto às
atividades de professor
assistente de Modelo Vivo
ofereceram-lhe
“experiência”, ampliando sua
prática dedicada à atividade
docente, atividade que
desenvolveu até seu retorno
para Araxá.

Fonte: Arquivos ENBA.

251
No acervo de desenhos pertencentes ao Museu D.João VI e nos arquivos da EBA
estão preservados os trabalhos realizados por Calmon Barreto para as provas para docente
de Modelo Vivo, Anatomia e Fisiologia Artística, bem como imagens de diferentes momentos
vividos pelo artista nesta renomada instituição de arte. Na visualidade de seus desenhos
produzidos para a prova do Concurso de Modelo Vivo, em 195010, resgatamos a tradição da
formação acadêmica exigida para as provas de docência. Também em suas palestras, teses
para as provas de concursos ou em explanações publicadas nos arquivos da Escola Nacional
de Belas Artes, compreendemos o sentido dado ao ensino que era oferecido aos alunos,
como comenta sobre a disciplina de Modelo Vivo:

Sendo esta disciplina de ensino eminentemente prático não podendo ser ensinada
teoricamente, convém que o professor, além de artista, conheça a profissão do
desenhista [...] Na aula de Modelo Vivo o mestre deve corrigir desenhando para
o aluno. Não digo que faça todo o desenho, mas que resolva as partes não
conseguidas por este. Vendo o mestre desenhar o discípulo aprende mais
rapidamente. Este método foi usado por Zeferino da Costa. Além de estimular,
facilita a compreensão do que se refere a técnica ou processos de execução. Mas
para isso é necessário que o desenho do professor seja, vamos dizer do gênero
realístico, aproximado ao máximo da verdade objetiva, pois, em caso contrário,
se for interpretativo, poderá desviar a tendência pessoal do aluno, levando-o à
imitação técnica 11.

Para Calmon Barreto o desenho deveria ser ensinado com maior aproximação do
natural, com o propósito de disciplinar o aluno. O mestre é quem deveria direcionar a prática
para o aluno e oferecer-lhe meios para o emprego de técnicas e elaboração plástica. Em sua
tese para a Cadeira de Modelo Vivo, um conjunto de desenhos acompanha suas explicações
indicando o minucioso emprego de suas técnicas.

Fonte: BARRETO, Calmon. O desenho e sua atualização. Rio de Janeiro, 1950.

Diferenciando-se do desenho figurativo, como reflete em suas análises, o desenho de


Modelo Vivo requer um entendimento sobre os valores que deveriam ser iniciados após
marcar a figura sobre o papel e inserindo “todos os seus detalhes e com claros e escuros bem
definidos, depois as meias tintas correspondentes aos tons da pele”. Assim, as meias tintas

252
deveriam ser aplicadas de acordo com as tonalidades do modelo e obedecendo à perspectiva,
de tal maneira que as partes mais iluminadas da figura humana escurecessem à medida em
que se distanciavam da luz. Sobre este aspecto, Calmon Barreto rememora: “o prof.
Amoedo aconselhava o uso de um vidro escuro para através dele se ver o modelo.
Anulando as cores, o citado vidro sintetiza o
claro e o escuro”12. Por estes ensinamentos,
publicados em sua tese intitulada: O desenho
e sua atualização13 identificamos diferentes
interpretações artísticas e comentários sob
ponto de vista técnico e histórico do ensino do
desenho. Em suas obras podemos identificar
a aplicação destes recursos.
Dentro desta perspectiva uma indicação Fonte: Acervo do Museu D. João VI.
fundamental em seus conceitos é que o aluno Foto: Gisele F.L. da Rocha, 2008.
tenha um “conhecimento pormenorizado das formas da natureza, porque, somente desse
conhecimento realístico poderia partir a interpretação e a estilização” 14. O conhecimento
técnico e disciplinado permitiria ao aluno objetivar suas criações, como explicita:

O que não pode ser contestado é que com o conhecimento da figura humana nos
seus elementos estruturais e funcionais, o artista plástico poderá usufruir de liberdade
de expressões e de estilos, permitindo-se na emancipação da realidade objetiva
aparente e poder tratar a forma com a máxima independência, dominando o
modelo, ao invés de copiá-lo15.

Salientamos que esta “liberdade de expressões e de estilos” é apresentada referindo-


se às diferentes interpretações da figura humana no decorrer da história da arte16. Para
Calmon Barreto “estilizar é interpretar” de forma aperfeiçoada e por meio destas palavras
toda finalidade de sua palestra, na aula inaugural de 1959, vem sedimentar o que indica ser
as “Bases Realísticas para a Interpretação da Figura Humana nas Artes Plásticas”17.
Atuando como docente, em 1951, Calmon Barreto apresenta sua tese: Contribuição
para breve estudo das bases históricas da anatomia artística, para provimento da Cadeira de
docente na disciplina de Anatomia e Fisiologia Artística 18.
Imagens de seus desenhos para a prova prática deste
concurso indicam as denominações e representações que
aperfeiçoam a representação do corpo humano e conhecimentos
de fundamentação anatômica e fisiológica. O sentido destas
representações é revelado por Calmon Barreto ao reconhecer

Fonte: Palestra do Professor Calmon Barreto.


Fonte: Arquivos ENBA.

253
a forma humana ou animal como os temas de maior
importância nas artes plásticas e ao valorizar o
conhecimento “real e pormenorizado dos seres e coisas
danatureza”, de onde se originam as interpretações19.
Dentro desta visão, através do conhecimento
anatômico e fisiológico pode o artista compreender
Fonte: Acervo do Museu D. João VI.
melhor a forma humana estática e dinâmica, com mais
Foto: Gisele F.L. da Rocha, 2008. segurança para a objetivação plástica prescindida do
modelo, uma vez que este nem sempre sugere a forma
a expressão desejada pelo artista. Nas análises de Calmon Barreto: “a simples observação
das formas exteriores é insuficiente para os anseios de perfeição do artista”20. Portanto,
representar a figura humana sem conhecer o esqueleto ou músculos seria como deixar o
artista restrito as ‘poses’, sendo estas geralmente sugeridas pelo modelo.
Assim, através da compreensão sobre a constituição óssea, articulações, inserções
musculares e dos diferentes movimentos o artista poderia desprender-se da cópia direta do
modelo. Entretanto, empregar a Anatomia não se trata apenas de estabelecer limitações
enfatizadas na objetivação miológica ou osteológica, como menciona Calmon Barreto sobre
grandes mestres da arte, em palestra sobre anatomia:

Os grandes gênios das Artes Plásticas, muitos especialmente Miguel Ângelo não
se limitaram a rigidez e realismo formal, pelo contrário, Buonarotti, Rodin e muitos
outros alteraram as formas musculares, as vezes formando contrações nos
músculos que na realidade anatômica deveriam estar em extensão – licenças e
derrogações as quais tem direitos os verdadeiros artistas. Portinari o mais célebre
dos nossos tempos, em sua fase anatômica, interpelado por alguém que tinha
noções dessa ciência, respondeu muito inteligentemente e com espírito: ‘que
músculos ele os criava e os colocava onde muito bem entendia 21.

Na análise das obras destes artistas, Calmon Barreto representa em sua tese estudos
anatômicos feitos a partir de detalhes das obras La Pietá, David, Il Giorno e Schiavo, de Miguel
Ângelo22 e descrições sobre os recursos
técnicos que o artista aplicava em suas
esculturas: “os primeiros desenhos feitos
para Davi bem o provam segurança no
traço, magnífica definição das massas
musculares, as articulações dos braços que
se salientam bem visíveis nas partes
subcutâneas [...]” 23 , sobre La Pieta,

Fonte: BARRETO, Calmon, 1951.

254
reproduz um detalhe do braço e descreve “no braço do redentor, embora tratado com
reverente suavidade, distinguem-se embaixo da pele, as contrações das porções do tricepes
branquial [...] Além das minúcias, preocupou-se o mestre em reproduzir com máxima realidade,
as veias superficiais” 24.
Nas obras, recriadas a partir das obras de Miguel Ângelo, Calmon Barreto elaborou
interpretações anatômicas amplamente analisadas. Seus estudos finalizam com breves
conclusões sobre as validades da anatomia para a arte: na capacidade de auxiliar a memória
visual e interpretativa da forma, para possibilitar uma correta representação das massas
humanas em estado dinâmico e com expressões fisionômicas, na aplicação da nomeação
correta, entre outros.
Ao comentar sobre método didático da disciplina de Anatomia Artística, Calmon Barreto
propõe o desenvolvimento de três eixos: lições teórico-práticas com demonstrações de ossos,
moldagens, esqueletos, modelos vivos, pranchas anatômicas, esquemas cânones de
proporções; estudo das alterações da forma decorrente dos movimentos, variações do
modelado, expressões; e exercícios gráficos executados pelos professores e alunos.
Enfim, vale mencionar que muito de seus ensinamentos e práticas formaram artistas na
E.N.B.A e suas obras e dizeres traduzem princípios metodológicos, didáticos e estéticos. Não
bastando sua atuação como docente, seguiremos nossa narrativa biográfica revelando uma
nova função em suas atividades profissionais: o cargo de diretor de uma das maiores instituições
brasileiras de arte dos anos 60.

Um capítulo na história da Escola Nacional de Belas Artes


A sequência de imagens representa momentos da posse de Calmon Barreto para
diretor da Escola Nacional de Belas Artes.

O ordenamento visual que estabelecemos, da esquerda para a direita, acompanha os


discursos publicados nos arquivos da E.N.B.A, onde mais um capítulo da história desta instituição
de arte é preservado25.
No ano de 1961, a E.N.B.A. era dirigida pelo professor Gerson Pompeu Pinheiro,
empossado no ano de 1958, quando recebeu a direção de Alfredo Galvão. A ele coube a
indicação do nome de Calmon Barreto para diretor, como declara: “uma lista de quatro nomes

255
me inspiravam confiança para o exercício desta função... Dentro dos quatro nomes
que apontei incluía-se CALMON BARRETO e foi ele o que logrou merecer a preferência
da maioria”26.
No discurso de posse, feito por Jordão de Oliveira, palavras resgatam
a dedicação de Calmon Barreto como docente da E.N.B.A.27 e o recebem
como diretor: “é com especial agrado [...] que nós lhe damos boas vindas,
augurando-lhe, na administração, êxitos positivos, totais, convincentes como
os de sua vida de artista e professor”28. Estariam entre estes “êxitos positivos”,
dos quais fala Jordão de Oliveira, o resultado da atuação de Calmon Barreto
na diretoria: com a recuperação das três cúpulas e da sala de Rodolfo
Amoêdo que se encontravam abandonadas há muitos anos; os reparos na
sala de Sebastião Vieira Fernandes com novas instalações transformando-
se em um atelier de restauração de quadros e papéis. Além destas
modificações, em espaços que já existiam na instituição, duas novas salas de
aula foram construídas: uma de pintura e outra de mosaico29.
Em 1964, Calmon Barreto finalizou suas atividades como diretor,
momento em que o prof. Gerson Pompeu Pinheiro assumiria o seu segundo mandato.
No discurso de posse de transferência da direção, Alfredo Galvão pontua em suas
explanações elementos biográficos de Calmon Barreto e descreve rapidamente sobre
sua gestão na direção:

Calmon Barreto, gravador emérito, ilustrador de renome anatomista e literato foi um


diretor ponderado, num período melancólico da vida brasileira. Continuou com
inteligência, as obras iniciadas na gestão anterior. Soube ladear as grandes
dificuldades do momento mantendo a Escola afastada do tumulto generalizado pelo
país [...]. Sua benevolência, sua suavidade e sua desconfiança de legítimo mineiro
de Araxá levaram-no a agir com prudência, paciência e habilidade, conseguindo
exceder de 3 meses o prazo fatal do mandato30.

Após deixar a direção, Calmon Barreto continuou lecionando até se aposentar. Sobre esta
decisão Alfredo Galvão apresenta sua insatisfação: ‘só uma queixa teria de formular a seu respeito
e esta seria a de ter se aposentado por tempo de serviço, (pelo que vejo, começou a trabalhar nos
braços da babá) e nos deixa em pleno vigor intelectual e na flor dos anos”31.
Com estas declarações podemos compreender, em certa medida, como ocorreu a
atuação de Calmon Barreto na E.N.B.A e influências estéticas presentes em suas obras. Em
nossas descrições preservamos um ordenamento cronológico, mesmo sendo inevitável a
ocorrência de descontinuidades, nas diferentes temporalidades e acontecimentos no decorrer
de sua vida. Entretanto acreditamos que obtivemos muito mais evidências e aproximações do
que distanciamentos. Um fato que muito contribuiu foi o uso de imagens, ou seja, o
desenvolvimento de narrativas visuais conjuntamente com narrativas textuais derivadas de
diferentes fontes e textos que encontramos em arquivos da família Barreto, do Museu D. João
VI e arquivos da E.B.A.

256
Um cruzamento de documentos e imagens de diferentes fontes trouxe informações
valiosas sobre uma história biográfica que relaciona arte, vida e cultura. Sendo assim,
características plásticas, atuações profissionais e processos de criação foram revelados em
uma esfera individual, particulares a Calmon Barreto. Por outro lado, uma história da arte com
referências artísticas e retratos da cultura brasileira compõe uma vertente coletiva para a qual
Calmon Barreto contribuiu ativamente.

Notas e referências
1
Documentos emitidos pela Casa da Moeda registram a entrada de Calmon Barreto na instituição em 20
de março de 1922, conforme certidão presente no arquivo da família Barreto.
2
Informações extraídas da autobiografia de Calmon Barreto, composta por: uma narrativa contendo o
resumo de atividades desenvolvidas durante o ano de 1944, um caderno de notas e sonetos de sua
autoria. Foi transcrita pelo escritor araxaense Ângelo D’ Ávila no ano de 1999 e os documentos originais
encontram-se preservados pela família Barreto. ANOTAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS DE CALMON
BARRETO – 1909/1994 – Transcrição Ângelo D’Ávila. Brasília, 1999, p.6.
3
Livro de Termos e Julgamentos dos Exames Especiais para Alunos Livres. Rio de Janeiro: Arquivos
da ENBA, 10 mar. 1923.
4
Augusto Giorgio Girardet (Roma, Itália, 1855 - Rio de Janeiro, RJ, 1955) iniciou suas atividades
artísticas com seu pai e estudou no Instituto Real de Belas Artes em San Lucca (Roma), entre os anos de
1875-1882. No ano de 1891 veio para o Brasil contratado pela ENBA lecionando Gravura de Medalhas e
Pedras Preciosas. Entre 1899 e 1900 regeu a cadeira de Escultura e foi professor de gravura de medalhas
e moedas, entre 1912 e 1922 na Casa da Moeda do Rio de Janeiro. Atuou amplamente no campo da arte:
executou a medalha destinada à premiação nos salões da ENBA, gravou as primeiras medalhas,
comemorativas da inauguração dos monumentos ao General Osório e Duque de Caxias (desenvolvidos
por Rodolfo Bernardelli), criou o modelo para a medalha de comemoração do IV Centenário do Descobrimento
do Brasil, gravou medalhas para a Série Presidencial. Para a Casa da Moeda executou inúmeras peças:
medalhas comemorativas, sinetes, camafeus e gravuras sobre preciosas (anéis em ágata e ametista) e
foi membro do Conselho Superior de Belas Artes e da Academia Brasileira de Belas Artes. Fonte: <http:/
/www.dezenovevinte.net/bios/bio_agirardet.htm>. Acesso em 24 set. 2009
5
ANOTAÇÕES AUTOBIOGRÁFICAS DE CALMON BARRETO op. cit., p.9-10. Calmon Barreto ainda
menciona: “Nele tive um segundo pai, não só aqui no Brasil como na Itália quando estivemos lá, pois
encontrei tudo preparado por ele como se preparasse o futuro para um filho”.
6
Ibidem.
7
Posse do Prof. Calmon Barreto. ARQUIVOS DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. Rio de
Janeiro: Universidade do Brasil, ano MCMLXI, n.VII 12 ago. 1961, p.91-92.
8
Entre estas revistas destacamos: Fon Fon – Semanário alegre, político, crítico e esfuziante foi fundada
no ano de 1907 e publicada pela Officina Typographica de J. Schimdt. Seu nome é uma onomatopéia que
imita o barulho produzido pela buzina dos automóveis e entre seus colaboradores destacamos o crítico
de arte e escritor Gonzaga Duque e ilustradores como o pintor Di Cavalcanti, Nair de Tefé, J. Carlos, Raul
Pederneiras, Benedito Kalixto e Calmon Barreto e A Scena Muda (1921-1955) editada semanalmente na
primeira metade do século XX, sendo de indiscutível valor histórico para a recuperação do imaginário,
exibição e da critica cinematográfica brasileira (entre outras como O Malho, O Cruzeiro, A Carioca e
Revista da Semana).
9
Segundo Miceli “desenhos, caricaturas, ilustrações, capas, capitulares, vinhetas, cercaduras, perfis e
retratos em diferentes técnicas e suportes eram utilizados por quase todos os veículos de impacto
cultural ou até mesmo políticos”. As revistas literárias, tantos as mais tradicionais como as mais
arrojadas estavam sempre em busca de ilustradores para suas matérias encomendando retratos e
desenhos aos artistas mais cotados do mercado. MICELI, Sérgio. Imagens negociadas: retratos da elite
brasileira -1920-1940. São Paulo: Cia das Letras, 1996, p.19.
10
Conforme registrado no livro de Provas do Concurso de Magistério da ENBA, aberto em 22 de
setembro de 1947, p. 25-29.

257
11
BARRETO, op. cit., p.19.
12
BARRETO, op. cit., p.22.
13
Destacando-se o desenho na Pré-História, na América Pré-Colombiana, a Carvão, de Croquis, de
Memória, de Planejamento e ilustração. BARRETO, op. cit., p1-37.
14
BARRETO, Calmon. Bases Realísticas para a interpretação da figura humana nas artes plásticas. In:
ARQUIVOS DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, ano
MCMLIX, n.V 12 ago. 1959, p.151.
15
Ibidem, p.154.
16
Segundo as respectivas épocas e o gosto vigente do meio artístico, não esquecendo ainda da presença
do toque de personalidade de cada artista Ibidem, p.158.
17
Ibidem, p.151-163.
18
Foi aprovado como Cátedra da Cadeira de Anatomia e Fisiologia Artística, concurso em 06/04/1951
publicado no D.O 10/04/1951, processo 18256 (cargo vago em função da exoneração de Alfredo
Galvão), conforme consta em documentos da ENBA pertencentes ao acervo da família. Segundo a
palestra de Calmon Barreto, constitui-se a Anatomia uma ciência fundamentada inicialmente na Anatomia
Médica evoluindo para outras ciências. Seus ensinamentos esclarecem sobre a forma humana:
movimentos, aparências, proporções. Entre os fatores que contribuíram para sua difusão destacam-se:
a invenção da imprensa e o aperfeiçoamento da gravura possibilitando a produção de livros com
ilustrações anatômicas. BARRETO, Calmon. Palestra do Prof. Calmon Barreto. In: ARQUIVOS DA
ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, ano MCMLX, n.VI 12
ago. 1960, p.102-111.
19
Entre os tópicos abordados na palestra encontramos: o que é Anatomia Artística, porque é ensinado nas
Escolas de Belas Artes Anatomia Artística e como é ensinada na E.N.B.A a Anatomia e Fisiologia
Artísticas. BARRETO, Calmon. Palestra do Prof. Calmon Barreto. Op. cit., p.107.
20
BARRETO, Calmon. Contribuição para breve estudo das bases históricas da anatomia artística. Rio
de Janeiro, 1951, p.11.
21
BARRETO, Calmon. Palestra do Prof. Calmon Barreto. Op. cit., p.109.
22
Ibidem.
23
BARRETO, Calmon, op. cit., p.48.
24
Ibidem, p.51-52.
25
Calmon Barreto declara: “Meu lema será servir a nobre causa do ensino nesta querida Escola,
coordenando as atividades, os esforços de todos nesse sentido comum. Não pouparei energias para
continuar merecendo de todos a confiança que em mim depositaram: nossos objetivos são idênticos, de
modo que uma colaboração recíproca e amigável impõe como meio mais adequado de trabalho”. Posse
do Prof. Calmon Barreto. ARQUIVOS DA ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. Rio de Janeiro:
Universidade do Brasil, ano MCMLX, n.VII 12 ago. 1961, p.91-98.
26
Discurso do Prof. Gerson Pompeu Pinheiro na posse do Prof. Calmon Barreto. In: ARQUIVOS DA
ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, ano MCMLXI, n.VII 12
ago. 1961, p.87.
27
Explanações feitas por Jordão de Oliveira em nome da ilustre Congregação: “Havendo o prof. Alfredo
Galvão conquistado a segunda cadeira de pintura, é chamado Calmon Barreto para substituí-lo na
Cadeira de Anatomia e Fisiologia Artística. Nomeado interinamente, faz concurso, empós, efetiva-se e
continua a ser professor à altura. Suas aulas são verdadeiros espetáculos de virtuosidade. É o mesmo
desenho, em que a mão, já autônoma transcreve, com a mais absoluta clareza, as lições que ele vai
ditando. A Cadeira de Modelo Vivo, à qual ainda assiste, é, por tudo isto, uma das mais bem servidas
na escola”. Posse do Prof. Calmon Barreto, op. cit., p.92-93.
28
Ibidem.
29
A direção da ENBA foi administrada por Calmon Barreto entre os anos de 1961-1964. Os resultados de
sua fase administrativa foram declarados por Alfredo Galvão, em 1964, no discurso para a posse do Prof.
Gerson Pompeu. Discurso do Professor Alfredo Galvão em nome da Congregação. ARQUIVOS DA
ESCOLA NACIONAL DE BELAS ARTES. Rio de Janeiro: Universidade do Brasil, ano MCMLXV, n.XI 12
ago. 1965, p.15.
30
Ibidem.
31
Discurso do Professor Alfredo Galvão em nome da Congregação, op. cit., p.15.

258
Aspectos históricos da produção iconográfica do pintor José dos
Reis Carvalho e sua participação na Comissão Científica de
Exploração (1859-1861)

Cláudio José Alves


Doutorando em História da Arte - UNICAMP

As primeiras informações que temos sobre José dos Reis Carvalho nomeiam-no
como pintor de cenários de teatro, cópias de marinas, flores e frutas e encontram-se no
Voyage Pittoresque de J. B. Debret. De acordo com Cybele Fernandes o artista frequentava
o ateliê do mestre francês desde 1816 no Catumbi e ainda teria assinado um abaixo-assinado
no qual Debret solicitava o uso da Academia1. O artista recebeu diversos prêmios dentre eles
o Cavaleiro da Ordem da Rosa2 por ocasião da 9ª. exposição em 18483.
Sobre ele Manoel de Araújo Porto-Alegre publicou no periódico Minerva Brasiliense
as seguintes palavras: “Uma produção de um gênero diferente, e que pertence inteiramente
à escola brasileira, porque ela representa uma cena particular do país é o quadro de José
dos Reis Carvalho, discípulo de Debret. [...]4
Luiz Gonzaga Duque refere-se a Reis Carvalho em Arte Brasileira:

Reis Carvalho que acompanhou de muito perto todo o período do “Movimento”,


faleceu ignorado, segundo se diz, no interior desta província. Dedicou-se à pintura
de natureza morta (flores e frutos), gênero em que tornou-se notável pela fidelidade
com que procurou sempre copiar a natureza. Além desse gênero pintou não
pequeno número de retratos, que ligeira importância mereceu 5.

Reis Carvalho parecia dedicar-se à fotopintura em estúdio na Rua do Ourives, No. 02,
conforme registra o verso de uma foto no acervo do atual Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro6. Dedicava-se também a lecionar pois um documento manuscrito do Arquivo do
Museu D. João VI informa que ele lecionava pintura em meados 18797. Em outro documento
é citado quando a Diretoria do Ministério solicitava nomeação de uma comissão para classificar
o valor do quadro de Victor Meirelles, a Batalha de Guararapes. A comissão seria composta
ainda por João Zeferino da Costa e João Maximiniano Mafra8.
Não poderíamos deixar de mencionar as composições de flores presentes no acervo
do Museu D. João VI e duas naturezas mortas com flores referidas na Mostra do
Redescobrimento por Luciano Migliaccio9 que dão a dimensão da capacidade que o artista
possuía para conferir um precioso efeito de realidade nas composições ao realçar a
singularidade, a particularidade e a objetividade de cada um dos elementos da composição.
Material de grande relevância para a História do Brasil são as aquarelas relacionadas
à sua estada na província do Ceará quando participou da Comissão Científica de Exploração
entre os anos de 1859 e 1861, onde realizou a aquarela Acampamento de Missão Científica,

259
além das composições de mesma série depositadas no Museu D. João VI (MDJ) e no Museu
Histórico Nacional (MHN). Sua feição por registrar costumes aparece, ainda antes de partir
com a expedição, em A Iluminação de azeite de Peixe, 1851 na Biblioteca Nacional e Cerimônia
Religiosa, 1853 no Museu D. João VI.
É possível que Manoel de Araújo Porto-Alegre tenha influenciado na escolha de Reis
Carvalho como “desenhador” da Comissão Científica, pois era secretário do IHGB quando na
8ª. Sessão de 25 de julho de 1856, os chefes das Seções foram incumbidos da indicação de
um artista para expedição10.
Foi nesta viagem que Reis Carvalho registrou elementos centrais da cultura cearense
como o vaqueiro, o pescador, as jangadas, os vendedores de peixes, cajus, garapas e
sapatos com seus artefatos, além dos trabalhadores para o correio cearense. As humildes e
rústicas habitações das vilas do sertão e um conjunto de igrejas foram registradas como
documentos históricos das cidades que iam crescendo. A beleza dessas aquarelas transporta-
nos para a simplicidade da vida do interior do Brasil Imperial.
No âmbito da História da Arte somos tentados a localizar sua obra num dos grandes
gêneros da pintura seja a pintura de paisagem, a pintura histórica, a natureza morta ou
mesmo a ilustração científica. Em suas raízes como aluno de Debret encontramos importante
referencial comparativo que nos leva a situá-lo com os artistas viajantes do século XIX no
Brasil. Debret viajou ao sul do país pelas províncias de São Paulo, Santa Catarina, Rio
Grande e empenhou-se a documentar a realidade dos diferentes grupos humanos sejam os
escravos na corte ou os índios embrenhados nas matas. Já Reis Carvalho viajou para o
nordeste do Brasil e retratou a vida daquela parte do país que parecia ser desconhecida
para o restante do Império.
A Comissão em suas Instruções11 tinha por missão buscar compreender os aspectos
etnográficos, geográficos, econômicos das províncias do Norte e isso incluía a questão da
seca. Uma das questões que bastante preocupou os participantes da comissão foi o estado de
desenvolvimento atrasado em que se encontrava o cultivo da terra. Tanto Freire Alemão12 da
Seção Botânica e presidente da Comissão quanto Guilherme Schüch de Capanema13 da
Seção de Mineralogia e Geologia trataram de informar sobre as questões que permeavam as
causas da seca no Ceará. A questão da seca já preocupava naturalistas radicados no Ceará
comoThomaz PompeodeSouzaBrasil queescreveuseuMEMÓRIA - Sobre a Conservação
das Matas, e Arboricultura como meio de melhorar o Clima da Província do Ceará, de 1859,
onde diz que todo paiz se torna árido pela desarborização; e todo paiz se torna abundante
de água pela arborização14. De acordo com Thomaz Brasil, as lavouras nos montes
comprometiam matas e mananciais, a situação agravava-se com as queimadas e os
consequentes prejuízos ao solo, às condições climáticas e aos animais.
Este ponto é importante para compreendermos duas paisagens de Reis Carvalho
que chamam a atenção no acervo do Museu do D. João VI: Casal em Viagem e Cassimbas

260
do Rio Acaracu, por elas podemos visualizar o contexto histórico e geográfico que o inspirou
às tais composições.
A paisagem desenhada e colorida pelas mãos de Reis Carvalho dão tipicamente a cor
do Brasil nordeste, suas paisagens também retratam um Brasil que se desenvolvia a custo alto
para a natureza. As plantações de produtos agrícolas nas serras iam reduzindo suas matas
por queimadas e desmatamentos. Reduziam-se as nascentes de água e acentuavam-se os
efeitos da seca. A água brotava apenas de pequenos buracos cavados nos leitos dos rios
secos em tempos de estiagens. Eram as cacimbas descritas pela Comissão16 e registradas na
aquarela de Reis Carvalho com o título Cassimbas do Rio Acaracu. Mesmo as figuras humanas
são modelos em conformidade com as formas da vegetação e as cores da terra, a expressão
de tristeza e desolação de Casal em Viagem refletem a hostilidade da paisagem seca
impossibilitada de fornecer os misteres da sobrevivência, logo assim, são forçados a migrarem.
Por outro lado, em Cassimbas do Rio Acaracu, as mulheres do sertão descobrem nas
cacimbas meio para subsistência de suas famílias. Não teria nosso pintor escolhido melhor
vista. A paisagem desolada, a luta para tirar da terra o pouco de riqueza que ainda restava
trazida nos potes de barro queimados nos fornos que o pintor fez questão de documentar
nas duas composições Forno de Tijolo e Forno de louça e Forno de Cal de Pedra ambas
do Museu D. João VI.
Outro aspecto da paisagem Reis Carvalho retratou em Corte de Carnaúba do Museu
D. João VI. Francisco Freire Alemão afirmava que as margens do Jaguaribe eram cobertas
de verdadeiras florestas de carnaúbas e sempre verdes alegravam aquelas paragens17. A
utilização desta prestimosa planta aparece em Moinho de vento nos arrabaldes do Aracati.
Todo fabricado de carnaúba do Museu Histórico Nacional.
Segundo Luís Câmara Cascudo, a primeira descrição da carnaúba (Corypha cerifera
Arr) fora feita por Jorge Marcgrav (1610-1644) na História Naturalis Brasiliae onde escreveu:
Suas folhas servem para cobrir choupanas e para o fabrico de cêstos; com a madeira fazem-
se cercados [...] os quais foram representados por Reis Carvalho em duas aquarelas no
Museu Histórico Nacional18. Von Martius também viu a carnaúba nas proximidades de Juazeiro,
margens do Rio São Francisco em 30 de março de 1819. Em sua Viagem pelo Brasil, a
carnaubeira foi descrita como a palmeira cerífera do Brasil, uma das mais belas palmeiras de
leque que ornamentavam as várzeas, o tronco era utilizado como vigas e ripas nas construções
de casas e jangadas. Nas suas palavras: “As folhas novas são revestidas de escamazinhas
brancas que, sendo ligeiramente aquecidas, derretem dando uma espécie de cera, com que
se fazem velas”19.
Von Martius era conhecido pela Academia pois segundo Elaine Dias a obra Flora
Brasiliensis chegara à Academia por volta de 183723. No seu Viagem pelo Brasil expressa
desilusão logo que a visão de sua chegada ao Rio de Janeiro em 14 de julho de 1817
contrasta entre o belo da natureza carioca e horror da destruição das matas:

261
[...] ilhas olorosas verdejavam, limitadas no fundo por uma serra coberta de
matas, como jardim paradisíaco de exuberância e magnificência. [...], e maravilhado,
passa o navegante estrangeiro por entre muitas ilhas cobertas de majestosas
palmeiras. [...]”24
Da mesma maneira que a vista de uma floresta inteira, que chamam virgem
(mato virgem), tem algo que chamarias divino e casto, assim também,
demoniacamente as primitivas florestas cortadas se apresentam [...] a cobiça do
gênero humano de possuir, que, a tudo desprezando, nada que possa estar a
serviço da utilidade deixa intacto25.

Thomas Brasil, o importante naturalista do nordeste do Brasil no século XIX, lamentou


o mal uso da planta e seu corte desordenado. No seu Ensaio Estatístico da Província do
Ceará afirmou: “Um dia, [...] os poderes sociaes [...] se lembrarão tarde de pôr cobro á
destruição de uma arvore, que é uma verdadeira riqueza”20.
Ademais das instruções de Domingos Vandelli sobre a preservação da natureza que
chegara ao Brasil no século XVIII pelos viajantes da coroa como Alexandre Rodrigues Ferreira
e do próprio José Bonifácio, como informa Pádua21, com o desenvolvimento a natureza ia
sendo degradada. O próprio Rugendas traz-nos um dos primeiros relatos iconográficos da
destruição das matas em Defrichement D’Une Forêt22.
E será na grande pintura de Félix-Émile Taunay, Vista de Hum Mato Virgem que se
Está Reduzindo a Carvão, 1843, do Museu Nacional de Belas Artes que poderemos contemplar
tanto uma proposição quanto outra, digo, a representação de nossa exuberante natureza e a
crítica à devastação inconsequente. Como uma narrativa histórica que transcorre da esquerda
para a direita do quadro, a queimada parece avançar no tempo e no espaço sobre a mata
exuberante da jovem nação como um acontecimento conscientemente deflagrado pela ação
humana. Na esperança por educação para vencer a deplorável condição de insipiência
daqueles brasileiros, sujeitos a altos índices de analfabetismo, emergiam as pequenas salas
de leituras registradas por Reis Carvalho em As primeiras letras no Certão. Permeado por
estas idéias de preservação e igualdades sociais advindas tanto do pensamento esclarecido
da literatura dos viajantes quanto das representações de devastação das matas em Félix
Taunay, Reis Carvalho inspira-nos a pensar a paisagem do sertão do Ceará como uma inter-
relação homem/natureza hostilizada pela própria idéia de destruição ocasionada pelas mãos
incautas dos homens, cujo fogo ateado nas queimadas representou um grande mal para o
desaparecimento das nascentes refutado nas palavras de Freire Alemão:

Nunca tive ocasião de observar este fato por mim, mas não podia deixar de
acreditar [...] mal podia responder, quando queria persuadir de que farias grandes
males no país com destruição total de matas, [...] hum delles o desaparecimento
das fontes, e diminuição dos rios [...]26

Outras paisagens do Ceará são ilustradas por Reis Carvalho onde pequenos oásis
verdes persistem na secura da vegetação retratada na Serra do Arerê (MHN) e na Cerra de

262
Tauá de 1860 (MDJ). O sertão longínquo aparece em Vista da cidade de Iço em 29 de
outubro de 1859 (MDJ) e em Estação de carros no sertão (MHN). Não deixou de registrar
a exuberância da vegetação tropical decorrente da região serrana relatada pelos membros
da comissão e representada em Viajantes com burro de carga (MDJ). A vida nos manguezais
aparece em Paisagem Vegetação do Ceará (MDJ).
Freire Alemão registrou em seu Diário inúmeras passagens nas quais o pintor esteve
a tomar vistas das localidades visitadas como em Pedras Russas (MDJ) na companhia de
Manuel Ferreira Lagos, o chefe da Seção de Zoologia, diz:

O Lagos e Reis saíram primeiro, tendo de ir por diverso caminho para examinar e
desenhar certas pedras que estão perto de Russas, notáveis pela sua posição e
pelas figuras que têm pintadas, de tinta encarnada e que são provavelmente do
tempo dos índios. [...] Chegou depois o nosso comboio e Lagos e Reis, tendo feito
os desenhos das pedras27.

Nos moldes do neoclassicismo francês, as composições de paisagens das pinturas


históricas brasileiras seguiam na tentativa de criar uma iconografia nacional28. Difícil seria
associar as pinturas de Reis Carvalho como Casal em Viagem (fig. 1) ao fim de afirmar a
paisagem exuberante brasileira, idealizada como beleza bucólica e riqueza do novo império
brasileiro, num tom ideológico propagandístico perante as nações do velho mundo. Rodrigo
Naves também encontra esta dificuldade em adaptar as formas neoclássicas às figuras de
Debret que se voltou às formas da realidade brasileira29. As miniaturas em aquarelas de Reis
Carvalho são documentos de uma realidade a serviço de uma expedição científica, cujo intuito
era conhecer de forma objetiva as causas físicas da natureza e suas consequências sobre as
atividades dos homens.
Reis Carvalho seguiu desenhando também as fachadas das Igrejas. Entre as
localidades do Aracati e o Iço, Freire Alemão relata que ao chegar à Povoação de Jiqui “Reis
estava desenhando a Igreja”30. Dos templos desenhados encontramos quase todos em sua
maioria preservados no Ceará dos tempos atuais, como a Igreja da N. Sra. da Conceição do
Outeiro da Praia em Fortaleza, 1859 e Igreja Matriz na Cidade de Aracati, aquarelas
pertencentes ao acervo do Museu Histórico Nacional;. Do Museu D. João VI, encontramos as
obras: a Igreja Matriz na Vila de Aquiras - 1859 e a Igreja N. Sra. da Conceição do Monte.
Demolidas foram as Igrejas N.S. Ó em Cascavel (MHN) e a representada na Vista da
Matriz e do Santo Cruzeiro na Capital – Ceará (M.D. João VI) (fig. 2), esta última em 1938
com a realização da última missa relatada pelo jornal O povo (19 de Outubro de 1977), de cujo
evento encontramos uma fotografia no Museu e Imagem do Som do Ceará. A Imagem indica
estar a aquarela do Museu relacionada à Antiga Sé (fig. 3). A construção da atual Catedral de
Fortaleza deu-se em meio a polêmicas relacionadas à demolição da Antiga Sé. O Santo
Cruzeiro também foi removido e à frente da Catedral permanece apenas a estátua em
homenagem a D. Pedro II, criação do escultor francês Agusto Maillard.

263
Outra construção que merece nossa atenção refere-se à aquarela de Reis Carvalho
N. Sra. da Conceição do Outeiro da Praia na Capital do Ceará, do Museu Histórico Nacional,
a “Igreja da Prainha”, descrita pelo historiador Antonio Bezerra de Menezes. 31 A igreja do
arquiteto e engenheiro austríaco José Antonio Seiffer sofreu sucessivas construções com
desapropriações do terreno e das choupanas adjacentes as quais deram lugar ao atual
Seminário da Prainha onde estudou o Padre Cícero Romão Batista.
Por isso posto, reafirmam-se as vocações de Reis Carvalho para a ilustração científica,
para natureza morta e para paisagens locais de modo semelhante aos demais artistas-viajantes
que participaram das expedições científicas no Brasil. Suas ilustrações de caráter científico
assumem papéis claramente específicos e distintos daquelas paisagens realizadas no início da
segunda metade do XIX para os quadros históricos.

Anexos

Fig. 1 - José dos Reis Carvalho, Casal em Viagem, 1859, Aquarela/Lápis de Cor/ Papel, 20,9 x 35,8,
Museu D. João VI/UFRJ.

264
Fig. 2 - José dos Reis
Carvalho, Vista da Matriz e
do Santo Cruzeiro na Capital
– Ceará, Aquarela/Pastel/
Papel /1859, 24,9 x 41,2.

Fig. 3 - Antiga Sé, 1914 –


Acervo Thomaz Pompeu.
Museu da Imagem e do Som,
Fortaleza, CE.

Notas e referências
1
C. V. N. Fernandes, Os caminhos da Arte. O Ensino Artístico na Academia Imperial das Belas Artes –
1.850/1890. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2001, p. 177.
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, Rio de Janeiro, “José dos Reis Carvalho assina um abaixo-
assinado para que se atenda ao pedido de Debret para uso da Academia”. Rio de Janeiro, 14/08/1823.
Mss./750.781/m; I-46,4,99.
2
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, Diploma a José dos Reis Carvalho, nomeado Cavalheiro da
Ordem de Roza por Decreto, Rio de Janeiro, Mss.: C-1019,73.
3
C.R.M. Levy. Exposições Gerais da Academia Imperial e da Escola Nacional de Belas Artes: período
monárquico: catálogo de artistas entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1990, p. 280.
4
M. A. Porto Alegre, “Exposição de 1843”. Minerva Brasiliense, 1º. de Janeiro de 1844, vol. 1, No. 5, p. 151.
5
L. G. Duque Estrada, A arte Brasileira, Introdução e notas Tadeu Chiarelli, SP: Mercado das Letras,
1995. p. 109.
6
INSTITUTO HISTÓRICO GEOGRÁFICO BRASILEIRO, Retrato de um casal não identificado. No
verso: Offerecido a minha Madrinha Sem@ D. Emilião. Photographia e Pintura de Reis Carvalho. R. do
Ourives, 2. Rio de Janeiro. Instituto Histórico Geográfico Brasileiro – Iconografia.
7
MUSEU D. JOÃO VI, “Oficio Academia Imperial de Belas Artes informando que José dos Reis Carvalho
é professor de Pintura a ser apresentado para aula de Paisagem, flores e Animais”. Rio de Janeiro, 18 de
dezembro de 1879, Mss.: 4708.
8
MUSEU D. JOÃO VI, “Oficio Academia Imperial de Belas Artes solicitando nomeação de comissão,
composta por José dos Reis Carvalho, para classificar valor de quadro de Victor Meireles”, 09 de maio
de 1879, Mss.: 5580.

265
9
L. Migliaccio. “O século XIX”. In: guilar, Nelson (org.) Mostra do Redescobrimento. São Paulo:
Fundação Bienal de São Paulo, Associação Brasil 500 anos Artes Visuais, 2000.
10
V. Sapucahy. “8ª. Sessão de 25 de julho de 1856”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Brasil, Tomo XIX, Suplemento, 1856, p. 22.
11
COMISSÃO CIENTÍFICA DE EXPLORAÇÃO, “Instruções para a Comissão Científica de Exploração
encarregada de explorar o interior de algumas províncias do Brasil” in: R. Braga, op. cit., p. 192-208.
12
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, Francisco Freire Alemão, Será verdade, será possível, que,
durante uma sêca, um dos sinais de chuva próxima seja o aumento das águas das fontes? Rio de
Janeiro, Junho 1852(?),Mss.: I-28,6,23, 548 (3), Título 08. Diz: “Nunca tive ocasião de observar este fato
por mim, mas não podia deixar de acreditar [...] mal podia responder, quando queria persuadir de que
farias grandes males no país com destruição total de matas, [...] hum delles o desaparecimento das
fontes, e diminuição dos rios [...]”.
13
G. S. Capanema. “As secas do Ceará”; in: A. A. A. Câmara, Algumas Considerações Sobre a Causa
da Formação e Origem do Gulf-Stream, Museu Nacional, Rio de Janeiro, 1954.
14
T. P. S. Brasil, MEMÓRIA - Sobre a Conservação das Matas, e Arboricultura como meio de melhorar
o Clima da Província do Ceará, Typograhia Brasileira, Fortaleza, 1859, reimpressão fac-similar, Fortaleza,
Fundação Waldemar Câmara, s/d. p. 31.
15
T. P. S. Brasil, MEMÓRIA – op. Cit. p.5-9.
16
COMISSÃO CIENTÍFICA DE EXPLORAÇÃO, op.cit., p. 273.
17
F.F. Alemão. “Relatórios dos Membros da Comissão Lidos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”,
RIHGB, 24, Suplemento (1861): 752,759,764 e 765. in: R. Braga, História da Comissão Científica de
Exploração, Ceará, Imprensa Universitária do Ceará, 1962. p. 260.
18
L. C. Cascudo. “A carnaúba”. In: Revista Brasileira de Geografia, Ano XXVI, No. 02, abril/junho de 1964.
19
J. B. Von Spix, & C.F.P. Von Martius. Viagem pelo Brasil (1817-1820) - Tomo II. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1938. (pgs. 199 a 201).
20
T. P. S., Brasil. Ensaio Estatístico da Província do Ceara, Tomo I, 1ª. ed. 1863; Fortaleza: Fundação
Waldemar Alcântara, 1997. (p. 170).
21
J. A Pádua. Um sopro de destruição - Pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista,
1786-1888. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar Editor, 2004, p. 152.
22
Gravura em litografia sobre papel presente no álbum Rugendas, Viagem Pitoresca através do Brasil, 1830.
23
E. Dias. Paisagem e Academia – Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2009. Pg. 320. (Nota 34: Félix Taunay teve contato com as pranchas de Flora brasiliensis
ainda em 1837, conforme destaca a ata de 14 de abril de 1837: “O Senhor director deu parte que pela
direcção da Biblioteca Pública lhe tinhão sido remetidas as folhas existentes do texto da Flora Brasileira”.
AMDJ-EBA. UFRJ.)
24
J. B. Von Spix, & C.F.P. Von Martius. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. p. 37-41.
25
C. F. P. Von Martius. A viagem de Von Martius. Flora Brasiliensis. Rio de Janeiro: Editora Index, 1996
apud DIAS, E. C. Paisagem e Academia – Félix-Émile Taunay e o Brasil (1824-1851). Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2009. p. 320.
26
FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL, Francisco Freire Alemão, Será verdade, será possível, que,
durante uma sêca, um dos sinais de chuva próxima seja o aumento das águas das fontes? Rio de
Janeiro, Junho 1852(?), Mss.: I-28,6,23, 548 (3), Título 08.
27
F. F. Alemão. Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza-Crato, 1859, p. 110-111.
28
L. M. Schwarcz, “O Brasil Imperial: D. Pedro II e o Século XIX”, in: P. R. Pereira (org.) Brasiliana da
Biblioteca Nacional: guia das fontes sobre o Brasil. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira. pp. 256-257.
29
R. Naves. “Debret, e o Neoclassicismo e a Escravidão”. In: A forma difícil. Ensaios sobre a arte
brasileira. São Paulo, Ática, 1997. p. 44.
30
F. Freire Alemão. Diário de Viagem de Francisco Freire Alemão: Fortaleza-Crato, 1859, pp. 107.
31
B. Menezes, “Descrição da Cidade de Fortaleza”, Revista do Instituto do Ceará, tomo IX, ano de 1895
citado por Fontes, E. “Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Prainha (I), O Povo, Fortaleza, Sábado,
12 de dezembro de 1981.

266
Eliseu Visconti: aluno, bolsista e expositor

Mirian N. Seraphim
Doutoranda em História/Unicamp

A carreira de Eliseu Visconti está total e intimamente ligada à instituição de ensino,


cujos documentos e obras de alunos constituem o acervo do Museu Dom João VI (MDJVI).
Desde o início da sua formação, na Academia Imperial das Bellas Artes (AIBA), a partir de
1885, e até a sua última participação no Salão Nacional de Belas Artes, já como homenagem
póstuma, em 1945, são sessenta anos de relação quase ininterrupta.
Um documento da AIBA, datado de 26 de novembro de 1885, é talvez o mais antigo
sobre Visconti, do acervo do MDJVI (Notação 6043). Endereçado ao Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios do Império, e não assinado por se tratar de rascunho, tem o seguinte teor:

Sobre o requerimento de Elisêo D’Angelo Visconti que pede para ser matriculado
nas aulas que cursou como amador no corrente anno, afim de prestar os respectivos
exames, tenho a honra de informar a V. Excia. que o peticionario frequentou desde
o principio do mes de julho as aulas 1ª e 2ª de mathematicas e Desenho Figurado,
e como o Governo tem muitas veses outorgado igual graça a outros nas mesmas
circunstancias creio que pode ser-lhe ella concedida. A matricula lhe dará o direito
de prestar os exames das aulas de Mathematicas, mas não lhe valerá para o
concurso aos premios da aula de Desenho Figurado; no corrente anno letivo, por
estar elle já terminado.

Outro desses documentos (Notação 3884) relata ao Ministro um fato sui generis ocorrido
no prédio da Academia. Datado de 12 de maio de 1888, certamente uma cópia, pois também não
está assinado, o relato tinha o objetivo de evitar que o fato chegasse adulterado ao Ministro:

Ao sahirem das aulas de Desenho figurado e de Pintura historica alguns alumnos


destas, e outros que esperavam a hora da de modelo vivo, [...] travaram-se de
razões no vestibulo da Academia, a proposito da escolha de uma commissão dos
mesmos alumnos que os devia representar no Congresso Academico por occasião
das manifestações de regosijo que se projecta para commemorar a sancção da Lei
da abolição da escravidão no Brasil; dessas altercações, que foram rápidas,
passaram a vias de facto, atracando-se o alumno [...] Jose Luis Ribeiro e o
amador [...] Bento Barbosa.

Parte dos alumnos que ali se achavam conservou-se mera espectadora do pugilato;
outros, porém, metteram-se a apartar os dous, resultando disso augmentar o
numero dos lutadores.

Ouvindo a algazarra que subia do vestibulo e o brado d’armas da sentinella do


portão de entrada, o Secretario e o guarda da bibliotheca desceram rapidamente e
encontraram lutando diversos alumnos, matriculados ou amadores, entre os quaes

267
distinguiram, além dos dous já citados, os de nome – Elyzeu d’Angelo Visconti,
José Fiuza Guimarães, Roberto Rowley Mendes e Carlos da Silva Torelly; mas
já o porteiro e outros empregados procuravam separal-os; a luta, que poucos
minutos durara, foi cessando com a presença do Secretario [...]

Esse pequeno incidente, do qual Visconti participara ativamente, deve ter ficado gravado
em sua memória. Porém, já no final da vida, com mais de setenta anos, confundiu-se com a
greve ocorrida dois anos depois. Assim relatada a Frederico Barata, essa confusão gerou o
equívoco de datas no registro das questões que provocaram a reforma da Academia, na
biografiaEliseu Visconti e seu tempo1. Barata relata que começaram em 1888 as discussões
sobre a reforma do ensino artístico e que foram elas o motivo daquela luta corporal. Como os
fatos que ocorreram fora da Academia, quando alunos e professores abandonaram as aulas,
não estão registrados nos documentos do MDJVI, por muito tempo a única versão dos
acontecimentos anteriores à instituição da Escola Nacional de Bellas Artes (ENBA) foi essa de
Frederico Barata, repetida inúmeras vezes.
Somente uma extensa pesquisa nos jornais cariocas pôde corrigir datas e ocorrências.
Em meio à turbulência dos primeiros doze meses da República Brasileira, a reforma geral do
ensino no Brasil era reclamada com urgência e também os artistas se mobilizaram durante
todo o ano de 1890, clamando por suas reivindicações. Visconti, então com 23/24 anos de
idade, estudante no início da carreira artística, participou ativamente junto aos seus pares2.
Em 26 de março de 1890, inaugurou-se no Rio de Janeiro, com grande solenidade,
uma Exposição Geral de Bellas Artes3, o que não acontecia havia seis anos. O catálogo dessa
mostra registra seis pinturas a óleo de Visconti, e na seção seguinte, um retrato a crayon. Nele,
o pintor é apresentado como italiano naturalizado brasileiro, porque acabara de o ser, devido
à grande naturalização, ocorrida no ano anterior, pelo advento da República, como mostra a
certidão apresentada à ENBA4, quando de sua inscrição para o prêmio de viagem à Europa.
Em sua primeira participação numa exposição pública oficial, Visconti foi premiado com o
quarto lugar, ao lado de João Batista da Costa, França Júnior, Raphael Frederico e Braz de
Vasconcelos – todos receberam Menção Honrosa5. Na Ata da sessão de 5 de junho é transcrito
o parecer de uma comissão, composta por Victor Meirelles, Maximiano Mafra e Domingos de
Araujo e Silva, que aponta alguns dos quadros expostos, cuja aquisição seria solicitada ao
Governo. Dentre eles, de Eliseu Visconti: Uma pedreira, por 100$000 (cem mil réis), e Novilho,
por 150$000 (cento e cinqüenta mil réis)6. Como estas obras não se encontram hoje, nem no
acervo do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA) nem do MDJVI, os dois herdeiros da
Pinacoteca da ENBA, pode-se concluir que o Governo Brasileiro não atendeu à solicitação.
Após o encerramento desta primeira exposição da era republicana, e última sob a
vigência da Academia, os ânimos se acirraram e começou um intenso debate pelos jornais,
sobre as reformas urgentes que eram esperadas para o ensino artístico brasileiro. Os professores
e alunos insatisfeitos deixaram a Academia das Bellas Artes, em protesto pela situação em que

268
ela se encontrava. Dois grupos se formaram com idéias diferentes sobre os novos rumos que
o ensino das artes deveria tomar no país, e ambos debatiam constantemente entre si e com os
mais conservadores que ficaram na Academia.
No dia 24 de junho os artistas entregaram uma petição, em forma de abaixo-assinado,
ao Ministro da Instrução Pública, Benjamim Constant, pelo único ponto sobre o qual concordavam
os dois grupos: a extinção da Academia, no formato em que ela se apresentava. Como
obtiveram a resposta de que a reforma do ensino artístico seria a última a ser realizada, não
esperaram inativos. Para manter o protesto e esvaziar a Academia, o grupo que vinha
encabeçando o movimento se reuniu no atelier Bernardelli e propôs aos alunos “cursos
livres de belas-artes”. No dia 6 de julho, os jornais informavam a abertura dos cursos para
o dia 15; o local provisório, que seria o barracão montado no largo de São Francisco de
Paula; e a abertura do livro de matrícula para os interessados nos cursos de pintura,
escultura e arquitetura. Nos dias que se seguem, são publicadas três listas de inscritos,
somando cinco para o curso de escultura e 25 para o de pintura, sendo que Eliseu Visconti
se apresentava já na primeira delas7.
O barracão serviu por pouco tempo para as aulas desses cursos. No dia 27 de
agosto, era anunciada a mudança dos cursos livres de belas-artes (que contavam 40 dias),
para o prédio do antigo Atelier Moderno, à Rua do Ouvidor, 45, por haver expirado o prazo
da licença concedida pela municipalidade, para a permanência do barracão no largo São
Francisco. No dia 8 de novembro, o ministro Benjamim Constant aprovava os estatutos para
a ENBA, pelo decreto n. 983, do Governo Provisório da República. Vitoriosos, os
“insubordinados” alunos e “insidiosos” professores, como foram chamados pela ala
conservadora, podiam voltar agora para a “nova escola”. Antes de abandonar o prédio do
antigo Atelier Moderno, organizaram ali uma exposição dos trabalhos realizados durante os
quatro meses de duração dos cursos “livres” ou “públicos” de belas-artes, como eram chamados
pelos jornais.
A exposição foi inaugurada no dia 26 de novembro8, e não recebeu muita atenção da
imprensa. Depois de ser destacado entre os jovens alunos na exposição oficial daquele ano,
Visconti também foi considerado brilhante na exposição marginal, organizada pelos dissidentes
da Academia. O orgulho do jovem Eliseu em participar daquela experiência contestadora ficou
registrado no seu Retrato de Macedo, datado de 24 de setembro de 1890, no qual se pode
ler: Atelier Livre, e a dedicatória a Julio de Magalhães Macedo, colega que com ele fez parte
da primeira lista de inscritos para o curso livre de pintura.
Uma das principais reivindicações dos dissidentes da Academia era a volta dos
concursos para o Prêmio de Viagem ao exterior. O primeiro deles na vigência da ENBA
aconteceu no final de 1892, e o MDJVI guarda o pedido de inscrição, assinado por Visconti,
em 3 de novembro:

269
Elisêo d’Angelo Visconti, alumno matriculado no curso de pintura desta Escola,
com o curso completo da antiga Academia, cidadão brasileiro, de 24 annos de
idade, julgando-se habilitado a concorrer ao premio de viagem; vem pedir-vos que
o mandeis inscrever.
O supplicante não junta a esta petição documento comprobativo de idade por estar
elle annexo ao requerimento de 1ª matricula da antiga Academia em 18869.

Parece que Visconti não guardava consigo uma cópia da sua certidão de batismo,
pois informou sua idade com dois anos a menos. Na lateral deste requerimento está anotado
a lápis, assinado por Rodolpho Bernardelli e datado de 10 de novembro: “Admitta-se a
inscripção juntando-se os necessarios documentos.”
Cada candidato, que durante as provas ocuparia uma cela individual, assinava seus
trabalhos, na primeira delas, com um anagrama. Eliseu adotou a representação gráfica do
triângulo, enquanto um de seus concorrentes usou o ponto de interrogação. Nas 2ª e 3ª
provas, todos adotaram um pseudônimo, sendo um deles “Talvez”, outro, “Tempo ao tempo”,
indicando dúvida e disposição para a espera de uma nova chance. O jovem Visconti, ao
contrário, expressou a segurança em seu trabalho e a certeza da vitória, com um significativo
“Adeus”10. O termo de julgamento da 1ª prova, datado de 17 de novembro11, dá como
resultado apenas uma classificação, a partir dos anagramas:
1º lugar – o trabalho marcado –  –
2º lugar – o trabalho marcado – Arte e Liberdade –
3º lugar – o trabalho marcado – Cupio discere –
4º lugar – o trabalho marcado – ? –
O documento diz ainda que os envelopes revelando seus nomes seriam abertos na
entrada dos candidatos para a segunda prova. Note-se que nesta classificação, o anagrama
de Visconti foi marcado como um triângulo com a ponta para cima, que “simboliza o fogo e o
sexo masculino”; mas dentro do envelope que revelava a identidade de cada candidato,
Visconti marcou um triângulo com a ponta para baixo, que “simboliza a água e o sexo
feminino”12. Revelava assim, desde cedo, sua admiração pelo mundo feminino, que aparecerá
sempre em suas obras num registro luminoso e benéfico, em oposição ao arquétipo da mulher
fatal, tão comum naquela época.
No dia 26 de dezembro de 1892, a ENBA promulgava o “Termo de julgamento das 2ª
e 3ª provas de concurso para o lugar de pensionista do estado na Europa”13, com o seguinte
parecer da comissão:

2ª Prova modello vivo pintado


O Jury adoptou para esta como para a 3ª Prova o systema de classificação por
ordem numerica que prevaleceu na 1ª Prova.
No 1 (adeus) É o que melhor satisfaz quanto á comprehenção do caracter do
modello e que melhores qualidades apresenta de pintor e de dezenhador.

270
No 2 (Deotilio) Deve ser mencionado pelo espirito de simplicidade que prezidio á
execucção embora a construcção do dezenho deixe a dezejar.
No 3 (Tempo ao tempo) A differença que resulta da comparação com o modello é tal;
que não tem o Jury a menor duvida em considera-lo muito inferior aos dous primeiros.
No 4 (Talvez) Não contem qualidade alguma que justifique qualquer classificação.

Os trabalhos foram analisados pelo júri diante do modelo na mesma posição escolhida
para a prova. O MDJVI guarda a pintura de Visconti (Fig. 1]) que foi considerada muito
superior às dos outros concorrentes, seus colegas. O modelo, muito magro e desengonçado
em seu gesto artificial, foi retratado com realismo cruel por Visconti, que não poupou, sequer,
o sorriso amarelo e olhar constrangido de total incômodo. O termo de julgamento de 26 de
dezembro continua ainda com o parecer da comissão:

3ª Prova (um esboceto de um assumpto tirado à sorte dentre dez organizados


pelos professores technicos)
Aparição dos três anjos a Abrahão –
O No 1 (adeus) É considerado como composição superior em effeito, phantasia e arranjo.
O No 2 (Deotilio) Tem uma certa sobriedade de côr e de effeito, que convem bastante
aos assumptos d’esta ordem; mas a composição quanto ao arranjo é infeliz.
Aos Nos 3 e 4 (Tempo ao tempo e Talvez) faltam qualidades de arranjo e de effeito.
Em conclusão o Jury considera digno do premio em ambas as provas com
vantagem grande sobre os outros; o No 1 e dezigna Paris como a cidade em que
deverá permanecer o pensionista, pagando-se-lhe penção igual aquella que
percebiam os pensionistas da academia bem como a respectiva ajuda de custas.

Infelizmente, não se encontra no acervo do MDJVI ou do MNBA, a pintura de Visconti


produzida durante a 3ª prova desse concurso, e nem se tem notícia dela.
Visconti segue para a Europa em 1º de março de 189314, e apenas três meses após
sua chegada a Paris, classificava-se em sétimo lugar entre os 220 concorrentes iniciais, e os
84 admitidos na seção de pintura da Ecole de Beaux-Arts de Paris, como comprova o seu
certificado de aprovação15. Porém, apesar desse sucesso rápido, Visconti logo se retirava da
Ecole, no início de 1894. Provavelmente inspirado pelos intensos debates ocorridos durante
o processo de reforma da Academia brasileira, optou por ambientes mais arejados e novos
caminhos. Ingressou, então, na École Guérin, no curso de composição decorativa de Eugène
Grasset, e continuou frequentando a Académie Julian, o mais importante atelier não oficial da
época, tendo como professores Bouguerreau e Ferrier, cujos nomes já aparecem no certificado
de aprovação da École, além de Benjamim Constant e Jean-Paul Laurens.
Os ateliers da Academie Julian lhe proporcionavam ambiente perfeito para a realização
de suas obrigações de bolsista. De acordo com o “Regulamento para o processo dos concursos
na ENBA para os lugares de pensionistas do Estado na Europa”, aprovado pelo Ministério da
Instrução Pública em 26 de outubro de 189216, em seu Capítulo 6º – Dos deveres dos

271
pensionistas, Visconti deveria enviar para a ENBA, no seu primeiro ano de estágio, oito
estudos pintados ou desenhados, e no segundo, mais oito estudos pintados.
No Acervo Museológico do MDJVI – Coleção Didática – encontram-se vários desses
envios de pensionista de Visconti, porém, outros passaram a integrar o acervo do MNBA,
junto com a maior parte da coleção da Academia/ Escola, desmembrada em 1937.
Se tentarmos reunir entre esses dois acervos os 16 estudos que Visconti deveria
enviar, podemos considerar inicialmente, para o primeiro ano, as quatro academias desenhadas
do acervo do MNBA17. Tendo sido classificado em 7º lugar nas provas de admissão da École,
Visconti gozava de uma situação privilegiada na hierarquia dos alunos. Devido a problemas
de espaço e classes numerosas (220 alunos na turma de Visconti), aconteciam concursos de
vagas semestralmente. Mas o aluno classificado entre os quinze primeiros era considerado
“definitivo” e sua vaga estava garantida para o próximo semestre18. Os desenhos de Visconti
do acervo do MNBA, pela perspectiva acentuada, a partir de um ponto de vista na altura dos
pés dos modelos, indicam que essa condição privilegiada lhe garantia também ocupar os
primeiros lugares nas aulas de modelo vivo.
Como Visconti frequentou a École por apenas um semestre, é muito provável que
parte dos envios do primeiro ano tenha sido feita na Académie Julian. O MDJVI também tem
duas academias desenhadas de Visconti (Figs. 2 e 3), que embora não estejam registradas
como envio de pensionista, podemos considerar que esta é uma hipótese bastante plausível.
Uma delas tem inscrito junto à assinatura: “Rio, 1898”, o que é um contrassenso, pois Visconti
retornou ao Brasil em 1900, e não consta nenhum indício de que tenha estado no Rio de
Janeiro antes disso. Duas das academias pintadas de Visconti, do MDJVI – dois nus masculinos
de pé, sem data (Figs. 4 e 5) – podemos supor que completam os oito estudos enviados no
primeiro ano.
De outros três estudos pintados de Visconti, do mesmo acervo19, e de uma pintura
do MNBA – o Dorso de mulher20 – foram encontrados pequenos esboços desenhados em
um bloco de notas, pertencente ainda à família Visconti. Como estes quatro esboços registram
exatamente as posições das figuras representadas nas pinturas, certamente não se constituem
em estudos preliminares, como aqueles das composições mais elaboradas, também do
mesmo bloco de notas, onde o pintor ensaiou diversas posições para as figuras, até
selecionar a definitiva.
Portanto, é bem provável que Visconti tenha, com aqueles esboços dos estudos feitos
em aula de modelo vivo, registrado as pinturas que enviaria para o Rio de Janeiro, em
cumprimento das obrigações dos bolsistas. Uma das academias do MDJVI está datada de
1894 e a do MNBA, de 1895, o que nos leva a crer que Visconti registrava os envios do seu
2º ano de estágio. Faltam então, mais quatro pinturas para completar sua tarefa: seguramente,
os outros três estudos do MDJVI21, dois deles datados de 1894 [Fig. 6 e 7]. E qual seria a
última pintura?

272
Naquele mesmo bloco de notas, existe outro esboço registrado exatamente como na
pintura: um Nu feminino22, de coleção particular. Nesse esboço está anotado: “Este foi trocado
pelas duas meninas na cama”. O que nos sugere que Visconti planejava mandá-lo também
para a ENBA, e por algum motivo, decidiu-se por enviar em seu lugar As duas irmãs ou No
verão, do MNBA23, pintura que talvez não tenha conseguido terminar, a tempo de inscrever
nos salões de Paris. Por ser uma composição bastante elaborada e sentida pelo pintor, como
se pode intuir de seus pequenos esboços preliminares, de outro bloco de notas, ela certamente
foi planejada para concorrer aos salões.
Confirma que esta pintura foi enviada ao Brasil como obrigação de pensionista, o
seu registro como As duas irmãs, no catálogo da exposição individual que Visconti organizou
na ENBA, quando de sua volta, em maio de 1901. O registro de outra tela na mesma
exposição, intitulada No verão, com participação no Salon de Paris, nos leva ao certificado
da medalha de segunda classe24, obtida por Visconti na 1ª Exposição Geral de Belas
Artes, organizada pela nova Escola, em 1894. Por muito tempo, pensou-se que este
certificado se referia à pintura das duas meninas na cama, registrada no MNBA com o
título No verão. Mas uma descrição da pintura premiada – “É uma menina nua, abanando-
se com uma ventarola” – nos jornais da época25, relaciona-o a outra pintura do MNBA:
Menina com ventarola: estudo de nu, de 189326. Justamente o fato da pintura das duas
meninas na cama ter sido registrada no primeiro catálogo das galerias da ENBA27, de
1923, apenas como Estudo de nu, e não com seu título original As duas irmãs, certamente
foi o que gerou a troca de títulos28.
Segundo o regulamento dos pensionistas, Visconti deveria enviar no seu terceiro ano
de estágio uma “cópia designada pelo Conselho Escolar e um esboceto para execução de um
quadro de três ou mais figuras, acompanhando o respectivo orçamento para as despesas
com o material para o mesmo quadro”. Uma carta de Visconti ao Ministro dos Negócios do
Interior, datada de 29 de maio de 189629, anuncia:

Tenho a honra de remetter ao Ministerio a vosso cargo, por intermedio da Legação


do Brasil em Pariz, como pensionista da Escola N. B. A. do Rio de Jan., um
esboceto para a execução de um grande quadro, que pretendo fazer com uma tela
de 24 metros quadrados de superficie, representando “a sahida da vida pecaminosa”
extrahida da Divina Commedia de Dante (Inferno).
De accordo com o cap. VI do regulamento que rege os pensionistas do Estado na
Europa, tenho a honra de submetter-vos o orçamento de doze mil francos para
[acorrer] as despezas materiaes do referido quadro.

O esboço30 foi aprovado e a verba também. Mas... o parecer da Comissão da Seção


de Pintura, encarregada de examinar os trabalhos dos pensionistas na Europa31, de 24 de
janeiro de 1898, assinala:

273
Terminando, a Commissão está convencida que, se o Sñr. Visconti tivesse podido
levar a effeito, como ultima prova de sua aprendizagem na Europa, a obra que elle
ambicionava executar, cujo esboceto foi apresentado á Escola, desenvolvendo
quanto tem aprendido, melhor attestaria o gráo de seu adiantamento.

Um ofício da Escola ao pensionista Raphael Frederico32, de 27 de junho de 1898,


deixa ainda mais claro: “... para esse mister falta a verba respectiva – não consegui obter para
os pensionistas Pereira da Silva e Visconti, a quantia necessaria para a execução dos quadros.”
Dois meses depois, Visconti cumpria com o outro item exigido para o 3º ano, segundo
uma carta sua ao diretor da ENBA, datada de 30 de julho de 189633:

O pensionista do Estado, Eliseo d’Angelo Visconti, remette por intermedio do


Ministerio do Interior para essa Escola, uma copia (tamanho do original) do célebre
quadro de “Velasquez” intitulado a “Rendicção de Bréda” ou as “Lanzas”.
A referida copia sahirá de Lisbôa no dia 5 do proximo mez, no vapor “Orcana” da
malla Real Inglesa.

O pintor estava relativamente atrasado com este envio, pois seu terceiro ano como
bolsista do Estado havia findado em março daquele ano. Neste caso, seu perfeccionismo foi
maior que o seu senso de responsabilidade. Além desta cópia que lhe foi designada pelo
Conselho Escolar, Visconti havia feito pelo menos outras três cópias de detalhes de obras de
Velásquez, certamente como preparação para cumprir com sua tarefa. O resultado34 foi excelente
e a cópia de Las Lanzas, sempre muito elogiada, foi reproduzida na Révue du Brésil, nº 1, de
novembro de 1896. Porém, no acervo do MDJVI, há outra cópia em tamanho natural, de um
quadro de Veronese, registrada como envio de pensionista, em nome de Visconti. Apenas
como hipótese: Visconti a teria enviado como compensação pelo atraso da cópia estipulada
pelo Conselho Escolar? Ou no lugar da grande composição que não pôde concretizar? Ou
não seria obra realizada por Visconti, uma vez que não se encontra assinada e não tem a
inscrição característica de suas cópias?
Visconti seguiu participando regularmente das Exposições Gerais de Belas Artes,
mesmo quando se encontrava novamente na Europa, para a execução das primeiras
decorações do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, atingindo um total de 38 participações. No
Acervo Museológico do MDJVI pode-se encontrar ainda o certificado da Medalha de Honra35,
conquistada por Visconti na EGBA de 1922, o prêmio máximo por ela outorgado.
Assim também, vários documentos relativos à eleição de Visconti como professor de
pintura da ENBA, em 1906, sua posse em 1908, e seu pedido de demissão em 1914,
encontram-se no Acervo Arquivológico do MDJVI, seção de Avulsos. Visconti foi também
membro dos Conselhos Superior e Nacional de Belas Artes, e ainda atuou como membro de
comissão organizadora ou membro dos júris de pintura e arte decorativa, em várias
exposições anuais. Todos os detalhes dessa relação intensa e duradoura podem ser
desvendados pelas atas da seção de Encadernados do mesmo acervo. Mas isso será
assunto para o II Seminário do MDJVI.

274
Fig. 1. Eliseu Visconti. Nu masculino – Prêmio de viagem (1892) óleo s/ tela; 110 x 77 cm; MDJVI –
Acervo Museológico, Coleção didática, registro 3253
Fig. 2. Eliseu Visconti. Nu masculino de pé (s.d.) carvão s/ papel; 61,5 x 47,5 cm; MDJVI – Acervo
Museológico, Coleção didática, reg. 188.
Fig. 3. Eliseu Visconti. Nu masculino (1898) carvão s/ papel; 62,5 x 47,5 cm; MDJVI – Acervo
Museológico, Coleção didática, reg. 187.

Fig. 4. Eliseu Visconti. Nu masculino de frente (s.d.) óleo s/ tela; 80 x 60 cm; MDJVI – Acervo
Museológico, Coleção didática, reg. 11.
Fig. 5. Eliseu Visconti. Nu masculino (s.d.) óleo s/ tela; 80 x 50 cm; MDJVI – Acervo Museológico,
Coleção didática, reg. 18.
Fig. 6. Eliseu Visconti. Nu feminino (1894) óleo s/ tela; 81 x 45 cm; MDJVI – Acervo Museológico,
Coleção didática, reg. 13.
Fig. 7. Eliseu Visconti. Velho sentado (1894) óleo s/ tela; 99 x 72 cm; MDJVI – Acervo Museológico,
Coleção didática, reg. 48.

Notas e referências
1
BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1944, p. 29.
2
SERAPHIM, Mirian. 1890: o primeiro ano da República agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira
de Eliseu Visconti. In: Oitocentos: Arte Brasileira do Império à Primeira República. 2008, p. 257-272.
3
Exposição de bellas artes. O Paiz (Artes e Artistas) Rio de Janeiro, 27 mar 1890, p. 2.
4
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6046, do MDJVI.
5
Ata da Sessão de 30 de abril de 1890, do Conselho da Academia das Bellas Artes, folha 76. Acervo
Arquivológico, Encadernados – Notação 6153, do MDJVI.
6
Ata da Sessão de 5 de junho de 1890, do Conselho da Academia das Bellas Artes, folha 80. Arquivo
Documental, Encadernados – Notação 6153, do MDJVI.
7
O Paiz. (Artes e Artistas) Rio de Janeiro, 9 jul 1890, p.1.

275
8
O Paiz. (Artes e Artistas) Rio de Janeiro, 27 nov 1890, p. 2.
9
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6042, do MDJVI.
10
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6045, do MDJVI.
11
Idem.
12
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números. 14. ed. rev. e aum. Coord. Carlos Sussekind; Trad. Vera da Costa e
Silva... [et all] Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p. 904.
13
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6045, do MDJVI.
14
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6048, do MDJVI.
15
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6054, do MDJVI.
16
Livro de Correspondencias recebidas da ENBA entre 1890 e 1894, folhas 45 verso a 48. Acervo
Arquivológico, Encadernados – MDJVI.
17
Coleção MNBA, Desenho brasileiro – registros 6130 a 6133.
18
NUNES, José Luiz da Silva. Eliseu d’Angelo Visconti: sua formação artística no Brasil e na França.
(dissertação de mestrado) Rio de Janeiro: UFRJ, Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (orientação
da profª. Dra. Sonia Gomes Pereira) 2003, p. 55.
19
Acervo Museológico, Coleção didática – reg. 9, 12 e 49, do MDJVI.
20
Coleção MNBA, Pintura brasileira – registro 962.
21
Acervo Museológico, Coleção didática – reg. 13, 48 e 3080, do MDJVI.
22
Eliseu Visconti. Nu feminino (1894) o.s.t.; 59.5 x 81 cm, coleção particular.
23
Coleção MNBA, Pintura brasileira – registro 966.
24
Acervo Museológico – registro 2523, do MDJVI.
25
Exposição de Bellas-Artes. Gazeta de Noticias. Rio de Janeiro, 1º nov 1894, p. 1.
26
Coleção MNBA, Pintura brasileira – registro 958.
27
ENBA. Catalogo Geral das Galerias de Pintura e de Esculptura. Rio de Janeiro: O Norte, 1923, p. 182.
28
Este assunto foi detalhadamente explanado no II Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do
século XIX, cujo texto pode ser lido em: Mirian N. SERAPHIM. Novas descobertas sobre duas pinturas
de Visconti. In 19&20, v.5, nº 2; disponível em: <http://www.dezenovevinte.net/obras/ev_mirian2.htm
>.
29
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6052, do MDJVI.
30
Coleção MNBA, Pintura brasileira – registro 964.
31
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 5180, do MDJVI.
32
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 5181, do MDJVI.
33
Acervo Arquivológico, Avulsos – Notação 6053, do MDJVI.
34
Eliseu Visconti. Rendição de Breda – cópia de Velasquez (1896) o.s.t. 308 x 370 cm; Coleção MNBA,
Pintura brasileira – registro 978.
35
Acervo Museológico – registro 2675, do MDJVI.

276
De longe e de perto: o paradigma acadêmico na pintura de
Raymundo Cela

Delano Pessoa Carneiro Barbosa


Mestrando em História/ UFC, bolsa FUNCAP

Após a proclamação da República no Brasil, em novembro de 1889, foram


restabelecidas as premiações concedidas aos artistas e a realização de Exposições Gerais na
Escola Nacional de Belas Artes (ENBA) do Rio de Janeiro1. Assim, convém pôr em evidência
duas características relacionadas ao método de avaliação das pinturas na Academia Imperial
de Belas Artes (AIBA) e aquele adotado na ENBA. A primeira trata do Prêmio de Viagem. Este,
que era outorgado única e exclusivamente aos alunos regulares da Academia e da Escola,
mediante concurso, passou a ser conferido também ao artista de maior destaque na Exposição
Geral. Dessa maneira, de acordo com Arthur Gomes Valle a premiação passou a contemplar
os alunos de livre frequência 2.
A segunda característica está relacionada à maneira como eram apreciadas as obras,
sobretudo as pinturas3. Tanto para os pensionistas da ENBA – alunos regularmente inscritos
na instituição –, quanto para aqueles premiados nas exposições – alunos livres ou não –, o
modo de observação e avaliação dos trabalhos era o mesmo. O julgamento realizado no
concurso de pintura da Escola trazia semelhanças com o modelo vigente na Academia
Francesa. No modus operandi francês sobressaia-se a importância atribuída ao desenho. No
caso brasileiro, é possível aferir que à valorização do desenho, somava-se a observação de
um objeto: o modelo vivo. Outro ponto que precisa ser levado em conta, diz respeito à
elaboração de um esboço. Nele o aluno deveria criar uma composição a partir de um tema
específico: mitológico, bíblico ou histórico4. Isso coloca em destaque o lugar do quadro de
composição no certame organizado pela ENBA. Tal critério era utilizado na AIBA e foi retomado
na Primeira República na reforma do Regimento da Escola Fluminense em 1901 e em 19115.
Para além do valor atribuído ao desenho e, consequentemente, ao quadro de
composição, interessa-nos trazer à tona os temas valorizados pela comissão julgadora. Logo,
pode-se afirmar que o tipo de julgamento praticado no concurso da ENBA foi incorporado
pelas comissões julgadoras da Exposição Geral. No entanto, é conveniente salientar que no
Brasil não houve no meio artístico a transposição dos valores europeus tal qual eram
operacionalizados no “Velho Continente”, sobretudo no ambiente francês6 .
Assim sendo, no dia 12 de agosto de 1917, por volta das 14 horas, no Palácio da
Escola Nacional de Bellas-Artes, foi inaugurada a XXIV Exposição Geral de Bellas-Artes.
Depois da execução do Hino Nacional, o professor e diretor da ENBA naquele ano, João
Batista da Costa, acompanhou o Sr. Exo. Presidente da República Wenceslau Brás Pereira
Gomes e demais autoridades pelos salões do Palácio, nos quais diversas obras estavam

277
expostas: pinturas, esculturas, gravuras – em medalhas e em pedras preciosas –, litografias,
trabalhos decorativos e projetos de arquitetura. Nos salões também circulavam convidados,
jornalistas, artistas e alunos da ENBA7.
No caso específico da pintura, setenta artistas foram aceitos na exposição. Dentre os
nomes mais conhecidos na época fizeram-se presentes: Almeida Júnior, Anita Malfatti, Antonio
Parreiras, Edgard Parreiras, Guttman Bicho, Modesto Brocos, Pedro Bruno e Rodolpho
Amoêdo. Os gêneros pictóricos apresentados variavam entre: Retratos, Natureza Morta,
Pintura de Paisagem, além de temáticas Bíblicas e Mitológicas8. Com efeito, as pinturas
selecionadas para o certame trazem à tona os temas pictóricos que se tornaram recorrentes
nas primeiras décadas da República. Cumpre salientar que além das 225 pinturas expostas,
no Salon, constavam: 19 esculturas, 13 peças de arquitetura, 3 gravuras, 22 medalhas, além
de gravuras em pedras, gesso e cera.
É necessário destacar que o Prêmio de Viagem a Europa, concedido no decurso
da Exposição Geral, era único e deveria ser conferido ao artista – pintor, escultor, gravador ou
arquiteto – de maior destaque no certame. No entanto, dois indivíduos foram indicados ao
prêmio do Salon de 1917: o escultor Francisco Andrade e o pintor Raymundo Brandão Cela
(1890-1954)9. O primeiro apresentou o trabalho intitulado Narciso10. O segundo expôs a tela
Último diálogo de Sócrates e alguns dos estudos constitutivos da composição.
Resolvido este impasse, no dia 29 de agosto de 1917, foi divulgado o resultado final
da XXIV Exposição Geral. Ao pintor Raymundo Cela conferiu-se o Prêmio de Viagem a
Europa. É oportuno salientar que o artista conquistou, em 1911, o 1º lugar no concurso de
composição de quadros e, em 1916, o 1º lugar em desenho de modelo vivo e medalha de
prata na XXIII Exposição Geral11. Isso lhe qualificou diante das exigências do evento12.

Figura 1. Raymundo Cela, Último diálogo de Sócrates,


1917
(óleo sobre tela, 171 x 241 cm) – MNBA.

A pintura a óleo, Último diálogo de


Sócrates, foi concebida conforme os padrões
neoclássicos frequentes na pintura histórica e
empreendida por artistas acadêmicos na
passagem do século XIX para o século XX, os
quais prescreviam que a razão, não a emoção,
deveria qualificar a arte. Ademais, evidencia-se
a valorização de um tema clássico da história
antiga. De acordo com Isis Pimentel de Castro, “A pintura histórica era considerada o gênero
artístico mais nobre e completo, não só por incluir em sua constituição todos os demais gêneros
da pintura, mas também por abordar em suas telas as cenas mais virtuosas da ação humana”13.

278
Trazendo consigo tal premissa, Raymundo Cela abordou o momento em que o filósofo
Sócrates na prisão, em vias de tomar a cicuta, profere suas últimas palavras aos
companheiros encarcerados que atentos e consternados participam de um momento solene,
respeitoso e virtuoso.
Por um lado, a tela premiada trouxe à baila a valorização da ordem, do equilíbrio, da
harmonia, da serenidade presentes no Academicismo; por outro, tal premiação colocou em
relevo a estreita e tensa relação entre artistas considerados acadêmicos e modernistas.
Modernistas não no sentido explicitado a partir da semana de 1922, em São Paulo, mas na
valorização de temas que colocassem em evidência representações da cultura brasileira, sem
perder de vista o cuidado com a forma e o conteúdo da composição pictórica.
Por meio da imprensa local foi divulgado o resultado final do certame de 191714,
como também, tornaram-se visíveis a fortuna crítica acerca da pintura premiada. No jornal, O
Paiz, a admiração pelo artista e pelo quadro exibido por ele foi explicitada trazendo como
características valorativas três dos princípios pictóricos constitutivos da formação dos artistas
da ENBA: desenho, quadro de composição e constituição de tipologias15. Louvores ao artista
também não faltaram no artigo publicado no jornal Gazeta de Notícias que circulou no dia 30
de agosto16. Contudo, longe de tal admiração parecer um consenso, passados dois meses da
premiação, o escritor e aspirante a crítico de arte Monteiro Lobato, num artigo intitulado “O
“Salão” de 1917", explicitou suas impressões sobre aquele evento e sobre os seus participantes17.
Após fazer considerações sobre o que acreditava ser o caráter elitista, tanto da Escola, quanto
da Exposição Geral, Lobato, sumariamente, tece elogios a alguns dos artistas e suas obras e
desaprova o trabalho de outros. O discurso de exaltação pode ser observado quando trata
das obras de Georgiana d’Albuquerque, Lucílio de Albuquerque, Edgard Parreiras, Rodolpho
Chambelland e Rodolpho Amoêdo. No caso específico de Raymundo Cela, o autor não
poupou palavras:

Raymundo Cela é outro nome que aparece. Traz uma tela de vulto: Último diálogo
de Sócrates. A mania de sair do presente compreensível, e mergulhar em mundos
mortos, como o grego, é uma balda velha da Escola, que não perceberá nunca o
absurdo contido nisso, diante da moderna concepção de arte. Como pode um
menino do Ceará, transplantado para o Rio, e que não é um helenólogo com 50
anos de estudo, como pode essa moderníssima e brasileiríssima criatura interpretar
com sua alma virgem de filosofias, uma cena do século de Péricles? Fará
artificialismo puro, está claro, a custa de reminiscências visuais. E dos professores
que lhe escolheram ou aconselharam tal tema haverá um conhecedor do grego,
afeito a confabular com a legião dos sofistas, e, em consequência desse convívio
mental, capaz de ouvir e entender Sócrates? E de o por decentemente em tela a
dialogar? Não obstante Cela denuncia-se com boas qualidades de arranjador, e
boa técnica, sobretudo nas figuras secundárias, já que a principal deu cara de
Elixir de Nogueira ao filósofo e panejou-o pesadamente.

279
Sem entrar na queixa do escritor, por hora, convém afirmar que a crítica de arte no
período aqui estudado não estava concentrada exclusivamente nos jornais fluminenses ou na
figura de Monteiro Lobato. Aureo Guilherme de Mendonça (1998) disserta que a crítica de arte
no Brasil no final do século XIX e no início do século XX tinha dois nomes considerados como
referência: Luiz Gonzaga Duque Estrada (1863-1911) e Angyone Costa (1878-1954)18.
Grosso modo, os críticos de arte na Primeira República não negavam a relevância da formação
dos artistas na ENBA, no entanto era preciso voltar-se para construção de um tipo de imaginário
que trouxesse à tona a realidade do Brasil. Tal atitude, como aborda Mendonça, configuraria
o que se convencionou chamar de Arte Moderna.
É preciso não perder de vista que a tela Último diálogo de Sócrates foi produzida
para um fim específico: participar da XXIV Exposição Geral. Guardadas as devidas
particularidades, a realização dessa exposição traz em si semelhanças e diferenças com a
prática do mecenato vivenciado desde o Renascimento19. Ora, tanto a prática da encomenda,
quanto a aceitação de um quadro num concurso ou numa exposição têm, até certo ponto, uma
forma e um conteúdo previamente estabelecidos. Portanto, pode-se afirmar que Raymundo Cela
conhecia as regras para a obtenção do Prêmio de Viagem vigentes no período, dentre elas a
elaboração de um quadro de composição em tamanho grande, além da valorização dos desenhos
que configuram a pintura, ou seja, a constituição de tipologias. Não por acaso, juntamente com a
tela, o artista expôs, no Salon de 1917, sete estudos (desenhos) das figuras que compõem a
cena. Assim, Raymundo Cela contemplou de maneira harmônica as quatro características que,
de acordo com Sonia Gomes Pereira, são constitutivas de uma composição: o desenho – tomado
como projeto inicial da obra –, o método compositivo, a constituição de tipologias – a partir de
desenho de modelo vivo – por fim, a proximidade com a tradição clássica20.
Sua vinculação à tradição clássica é visível na tela premiada e em outros trabalhos
desse período, não apenas a partir do desenho, da cor, da perspectiva e de um tipo de
composição da figura humana, mas também com relação ao tema tratado plasticamente. Embora
Raymundo Cela fosse aluno livre, isso não impediu o artista de informar-se acerca dos
conteúdos das matérias – mythologia e história das artes – retiradas do regimento da Escola
em 1911. Além de tais disciplinas, Raymundo Cela, sem ter cursado formalmente a cadeira de
Anatomia e Physiologia Artísticas, tinha conhecimento do programa da mesma21. Isso lhe
possibilitou construir um tipo de figura e de expressão das emoções que denotam o “sistema
de códigos compartilhados”22, vivenciado entre alunos e professores na época, e com o qual
Raymundo Cela compôs Último diálogo de Sócrates.
Todavia, os princípios estabelecidos tanto para a forma, quanto para o conteúdo
das pinturas, não encerram um consenso na ENBA, tampouco nos julgamentos realizados
nos concursos e no decorrer da Exposição Geral. Afora os quadros, cujo foco estava
centrado nas temáticas históricas e religiosas, sobressaia-se desde a vinda da “Missão
Francesa” a Pintura de Paisagem.

280
No caso específico do ensino na Escola fluminense, as disciplinas de Desenho figurado,
Desenho de modelo vivo e Pintura, presentes desde a AIBA, permaneceram no curriculum de
pintura da ENBA durante a Primeira República. Valle aponta para dois dos principais parâmetros
“externos” do sistema pedagógico da Escola: “[...] por um lado, a tradição clássica, representada
pelo amplo conjunto de obras do passado tidas então como referenciais, e, por outro, a
natureza”23.
Com relação à tradição clássica, cumpre distinguir o exercício da cópia de moldagens
e gesso, como também, a cópia a óleo de “quadro de mestres”. Quanto ao segundo parâmetro,
passou a existir na Primeira República um equilíbrio entre tradição e natureza, sobretudo a
partir dos trabalhos realizados tomando-se como referência o modelo vivo. Nesse sentido,
natureza não é sinônimo de paisagem. No entanto, desde a AIBA a Pintura de Paisagem, de
acordo com Valle, nunca foi negligenciada. Durante o Império, juntamente com a disciplina de
Pintura Histórica era ministrada a cadeira de Pintura de Paisagem, Flores e Animais. Esta foi
retirada do regimento da ENBA na Reforma de 1890. Porém, isso não significou a ausência de
pinturas paisagísticas nos certames organizados pela Escola.
Além das características supracitadas acerca do modelo de ensino da ENBA, convém
explorar com mais vagar a observação das obras do acervo da Pinacoteca da Instituição.
Algumas compradas por Lebreton e outras copiadas a partir do original pelos pensionistas da
AIBA e da ENBA24. Aos pensionistas da Escola Fluminense permaneceu uma prática adotada
na AIBA, qual seja: a cópia das obras dos mestres europeus pré-determinada pela Escola.
Tais cópias passaram a constituir e ampliar o acervo da Escola fluminense, como também, e,
principalmente, tornaram-se importante suporte para a aprendizagem dos alunos da Escola.
RaymundoCela não foi o primeiro, tampouco o único a explorar imageticamente a
figura de Sócrates. Destaca-se a tela produzida por Jacques-Louis David (1748-1825), intitulada
A morte de Sócrates (1787)25, e a pintura de Pedro Américo (1843-1905), Socrates affastando
Alcibiades do vício (1865)26. Ao optar pela representação de um ato memorável de um
pensador ocidental, Raymundo Cela reiterou não apenas a intenção atribuída à pintura
histórica que pretendia valorizar nobres sentimentos de amor à pátria, mas, mais especificamente
a atitude do filósofo ao manter-se fiel às suas ideias como cidadão ateniense.
Michael Baxandall, ao problematizar e explicitar as diversas variáveis que constroem
a maneira pela qual um indivíduo do Quattrocento observa uma pintura, faz a seguinte
assertiva: “O pintor é sensível a tudo isso e deve se apoiar na capacidade visual de seu
público. Quaisquer que sejam seus talentos profissionais de especialista, ele mesmo faz parte
dessa sociedade para a qual trabalha, e compartilha sua experiência e hábitos visuais”27.
Como já foi mencionado, ao inscrever-se na Exposição Geral de 1917, Raymundo Cela optou
pela perspectiva da pintura histórica e elegeu um tema relacionado à história greco-romana.
Assim, comunicou aos examinadores, professores, alunos da Escola e críticos de arte, com
quais princípios dialogou. Isso permite pensar o quanto Raymundo Cela manteve-se vinculado

281
ao academicismo ao construir uma representação acerca de um episódio da história ocidental,
a Apologia de Sócrates, como também, sua adesão “[...] à mentalidade eurocêntrica que
definia como padrão de beleza o tipo idealizado grego”28.
O Prêmio de Viagem conferido na Exposição Geral permitia o artista estudar na
Europa por dois anos. Na França, Raymundo Cela começou a dedicar uma atenção especial
à Pintura de Paisagem. Temática que não havia explorado enquanto aluno da ENBA entre
1910 e 1917. Na Escola fluminense, juntamente com a produção de Retratos e de Pintura
Histórica, a Pintura de Paisagem era tema recorrente nas obras de professores e alunos.
Alguns trabalhos de Georg Grimm, João Batista da Costa, João Zeferino da Costa e Antonio
Parreiras eram tomados como referência. Convém lembrar que João Batista da Costa e João
Zeferino da Costa foram professores de Raymundo Cela.
Ademais, durante sua travessia na França, simultaneamente à intensa dedicação ao
estudo do corpo humano, Raymundo Cela começou a interessar-se por temas ligados a
momentos corriqueiros, nos quais “pessoas comuns” foram representadas desempenhando
seus ofícios, em desenhos, pinturas e gravuras.
O artista retornou ao Brasil em 1923 ao recuperar-se de um AVC, que o acometeu
em 1922. Instalou-se em Camocim, cidade localizada no litoral cearense, e aproximadamente
em 1930, iniciou a construção de uma imagética figurativa, de um espaço geográfico e de um
tipo humano: o litoral e os seus trabalhadores (pescadores, jangadeiros, rendeiras, salineiros,
estivadores e vendedores de peixe, cerâmica e redes). Época, na qual, a “literatura
regionalista” ocupou lugar de destaque na edificação de um imaginário discursivo e imagético
sobre o Nordeste e outras regiões do país.
Tal imaginário, problematizado por Durval Muniz de Albuquerque Júnior, no livro A
invenção do Nordeste e outras artes, tem suas referências alicerçadas a partir dos anos vinte.
Nesse período emerge a formação discursiva nacional-popular que constrói “[...] uma
consciência regional generalizada, difusa no espaço, que consegue ir se ligando às várias
existências individuais, mas principalmente a própria vida coletiva”29. Com efeito, segundo o
historiador, o Nordeste tornou-se uma produção imagético-discursiva construída historicamente.
Observa-se que tanto na pintura quanto na literatura o litoral encontrava-se à
margem da produção imagética e discursiva que inventava um lugar e um “tipo humano
comum”. Embora existissem algumas narrativas colocando o litoral como espaço geográfico e
social construtor de um imaginário nordestino – Manoel de Oliveira Paiva, A Afilhada (1889);
Álvaro Martins, Os Pescadores da Taíba (1895); Gustavo Barroso, Terra do Sol (1912) e
Praias e Várzeas; Alma Sertaneja (1915); Jorge Amado, Mar Morto (1936) e Estrada do Mar
(1938) – a ênfase era dada a um cenário e um “tipo” específico, o sertão e o sertanejo.
Cumpre lembrar que dar visibilidade ao litoral não era uma atitude exclusiva de alguns
pintores ou literatos nordestinos. Entre 1920 e 1922 inicia-se a construção de uma tipologia
hoteleira balneária no Rio de Janeiro30. Assim, por meio de tais empreendimentos, de uma
imagética local e de uma escrita, a cidade fluminense começa a voltar-se para o mar.

282
Embora Raymundo Cela tenha se dedicado ao desenho, à pintura e à gravura de
outras dimensões da experiência humana, é o litoral e, principalmente, os trabalhadores
litorâneos que aparecem com maior recorrência em sua obra. Dentre as cento e cinquenta
telas pintadas pelo artista, noventa e duas trazem o litoral e os trabalhadores litorâneos como
temática. Com efeito, o litoral imaginado por Raymundo Cela é fruto de um “horizonte de
expectativa” 31 conformado na ENBA, na Polytechnica, no trabalho como desenhista do
Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais, como também, a
partir das mudanças de percepção acerca do Nordeste e das cidades litorâneas onde morou.
Desse modo, diante da vasta obra produzida pelo artista, sobretudo aquela dedicada a
Paisagem Litorânea, interessa-nos pôr em contato a tela Último diálogo de Sócrates com a
pintura Jangadeiros em Palestra de 1943.
Raymundo Cela, não apenas neste trabalho, explorou os três princípios pictóricos
citados anteriormente: desenho, composição e constituição de tipologias. No caso específico
de Jangadeiros em Palestra, em um único cenário o artista reuniu uma série de temas
exercitados plasticamente em outros momentos. Além dos desenhos feitos anteriormente para
cada personagem ou objeto que compõe a cena, foi elaborado o estudo para a tese “Perspectiva
das Sombras Solares”, publicada em 1951 e com a qual o artista foi aprovado no concurso
para regência da disciplina de Geometria Descritiva. Ao integrar o corpo docente da ENBA,
Raymundo Cela tornou-se regente da primeira cadeira de Gravura em talho-doce, água-forte e
xilogravura, introduzindo o ensino de gravura na Escola fluminense, onde lecionou até 1954.

Figura 2: Raimundo Cela,


Jangadeiros em Palestra, 1943
(óleo sobre madeira, 110 x 157 cm)
– Banco do Nordeste do Brasil / BNB.

No que diz respeito às


pinturas, à primeira vista,
sobressaem os títulos conferidos
aos trabalhos e o tipo de suporte
utilizado por Raymundo Cela.
Sobre o primeiro aspecto, o
artista retomou em 1943 a
dimensão da conversação
representada em Último Diálogo
de Sócrates. Quanto ao suporte, na pintura a óleo de 1917 o artista utilizou a tela. Em
Jangadeiros em Palestra, a madeira. Tal distinção nos encaminha para construção do contraste
entre luz e sombra nos dois trabalhos. Em Último diálogo de Sócrates a luz que incide no meio
do quadro é perceptível a partir da penumbra dispersa ao redor do filósofo. Não há sombras

283
projetadas pelos objetos que integram o cenário, tão pouco pelos personagens. No caso
específico de Jangadeiros em Palestra, de acordo com Cláudio Valério Teixeira, a utilização
ao fundo de uma coloração cinza claro sobre a madeira compensada, permitiu ao artista obter
maior vibração da cor. Assim, num cenário, no qual a luz destaca-se em toda a composição, a
sombra foi obtida a partir do posicionamento dos personagens em relação à posição do sol.
Ademais, o contraste entre claro e escuro se dá no contato das cores em diapasão alto com a
cor terrosa da indumentária e da pele dos indivíduos que compõem a cena, diferentemente de
Último diálogo de Sócrates, onde as cores frias prevalecem. A paleta utilizada em 1943 é
aberta, simples, múltipla com cores luminosas32 . Por fim, deve-se levar em conta o uso da linha
e da cor. Isso se torna evidente no desenho do corpo humano. Na pintura de 1943 há, em certa
medida, uma transformação das poses clássicas observadas na tela de 1917. Contudo, a
anatomia não deixou de ser exacerbada, embora a paleta utilizada pelo artista em 1943 tenha
tornado o desenho verossímil. Desse modo, segundo Teixeira: “Em suas composições, a cor,
tratada como mancha, constrói um verdadeiro equilíbrio entre essas duas tendências [linha e
cor]”33 . Logo, pode-se aferir que tal abordagem colocou Raymundo Cela e sua obra entre os
artistas modernistas de sua época, sobretudo ao explorar plasticamente um tipo étnico brasileiro.
Assim, o uso dos termos de longe e de perto, numa análise mais apressada sobre o
que foi demonstrado até agora, possibilitaria uma caracterização dicotômica das pinturas
apresentadas. Todavia, tomando-se tais categorias de maneira simultânea, na análise da tela
Último diálogo de Sócrates, destaca-se a proximidade que Raymundo Cela teve com os
estilos do “Velho Continente”, a partir da observação e da cópia daquelas obras consideradas
de referência, como também, das disciplinas que cursou na ENBA34. Por sua vez, a pintura
Jangadeiros em Palestra coloca em evidência a permanência do paradigma acadêmico em
sua obra, sobretudo ao utilizar os princípios pictóricos compartilhados no interior da Escola
fluminense. Embora sua construção tenha partido da observação in loco do litoral cearense,
portanto de perto, sua composição foi realizada de longe, no atelier. Além disso, observa-se
nos dois trabalhos a valorização dos personagens representados em primeiro plano,
destacando-se o estudo do corpo humano a partir do modelo vivo. Assim, de longe e de perto,
permite pôr em relevo a inter-relação entre as pinturas supracitadas. Por fim, é necessário
destacar que Último diálogo de Sócrates não é uma mera narração, tão pouco Jangadeiros
em Palestra uma descrição. Ambas são exercícios de construções tipológicas pictóricas,
circunscritas à época em que foram criadas.

Notas e referências
1
No Segundo Império a última Exposição Geral foi realizada em 1884 e o último concurso para o Prêmio
de Viagem ocorreu em 1887. Cf. VALLE, Arthur Gomes. A pintura da Escola Nacional de Belas Artes na
1 a República (1890-1930): da formação do artista aos seus Modos estilísticos. 2007. 364p. Tese
(Doutorado em História e crítica de Arte) – UFRJ / Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, PPGAV,
Rio de Janeiro, 2007.

284
2
A Reforma de 1890 alterou não apenas o nome da instituição, mas também criou os cursos livres,
buscando-se efetivar uma orientação mais liberal ao ensino artístico em oposição a uma noção de
academicismo enclausurada numa estética determinada que não valorizasse o talento individual do
artista. Desse modo, os cursos livres formalmente oficializados nos Estatutos de 1890, “quebravam” o
monopólio dos professores oficiais. Ademais a política de incentivo a livre freqüência equilibrou o caráter
elitista dos cursos regulares da ENBA. VALLE, op.cit.
3
A predominância de pensionistas pintores, tanto na AIBA, quanto na ENBA, foi uma tendência que se
manteve durante a Primeira República, cf. VALLE, op.cit.
4
Convém distinguir que o tema histórico sorteado para prova não guarda, necessariamente, semelhanças
com a pintura de história tão valorizada na AIBA.
5
“Instruções para os Premios de Viagem aos alumnos... de 1905, Capítulo IV, Art. 10.” (VALLE, op.cit.,
p.136-137). Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/documentos/ipv_1905.htm. Acesso em: 27
mar. 2010.
6
VALLE, op.cit.
7
O “salon” de 1917: a sua solemne inauguração. A Noite. Rio de Janeiro, 12 ago., 1917, p.3; Notas de
Arte. Jornal do Commercio. Rio de Janeiro, 12 ago., 1917, p.9; Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 12
ago., 1917, p.3.; O “Salon” de 1917. O Paiz. Rio de Janeiro, 13 ago., 1917, p.5.
8
Cf. Acervo Arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Catálogo da XXIV Exposição Geral de
Bellas-Artes, inaugurada em 12 de agosto de 1917.
9
O premio de bellas artes. O Paiz. Rio de Janeiro, 28 ago., 1917, p.2.
10
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil/1917_salao_04.jpg.
Acesso em: 3 abr., 2010.
11
O Júri de Pintura da Exposição Geral de 1916 era formado pelos professores: João Batista da Costa,
Rodolpho Chambelland, Modesto Brocos, Carlos Oswaldo e Helios Seelinger. Cf. Acervo Arquivístico do
Museu Dom João VI EBA/UFRJ. Catálogo da XXIII Exposição Geral de Bellas-Artes, inaugurada em 12
de agosto de 1916.
12
“[...] presente no Regulamento de 1901, segundo a qual, para ser admitido ao concurso do Prêmio de
Viagem, o candidato a pensionista deveria obrigatoriamente ter já obtido anteriormente a medalha de ouro
em concurso da Escola, exigência inexistente nos certames anteriores e que, daí por diante, manter-se-
ia nos regulamentos seguintes.” (VALLE, op.cit.,p.137). Conferir regulamentos da ENBA disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/documentos/docs_primeira_republica.htm. Acesso em: 27 mar. 2010.
13
CASTRO, Isis Pimentel de. Pintura, memória e história: a pintura histórica e a construção de uma
memória nacional. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis: EDUFSC, n.38, p. 335-352, out. 2005.
p.340.
14
A política das artes. O Paiz. Rio de Janeiro, 30 ago., 1917, p.2.
15
Palestra feminina: a exposição de bellas artes. O Paiz. Rio de Janeiro, 20 ago., 1917, p.2.
16
A Última Exposição de Bellas Artes: “O último diálogo de Sócrates” foi o quadro premiado. Gazeta de
Notícias. Rio de Janeiro, 30 ago., 1917, p.3.
17
LOBATO, Monteiro. O “Salão” de 1917. Revista do Brasil, São Paulo, ano II, out. 1917, n.22, p.171-190.
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/revista_brasil/1917_salao.htm. Acesso
em: 31 ago., 2010.
18
MENDONÇA, Aureo Guilherme. A Crítica de Arte no Brasil em fins do século XIX e início do XX:
Gonzaga Duque e Angyone Costa. 1998. 80p. Dissertação (Mestrado em História e Crítica de Arte) –
UFRJ / Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, PPGAV, Rio de Janeiro, 1998.
19
BAXANDALL, Michael. O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da Renascença.. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
20
PEREIRA, Sonia Gomes. Arte Brasileira no século XIX. Belo Horizonte: C / Arte, 2008. 128p. : Il.
(Coleção: Didática). ISBN: 978-85-7654-063-2.
21
Cf. VALLE, op.cit.
22
BAXANDALL, op.cit.
23
VALLE, op.cit., p.67.
24
Cf. VALLE, op.cit. e LEITE, Reginaldo da Rocha. “À Imagem e Semelhança”: a prática da cópia de
pinturas européias na Academia Imperial das Belas Artes no Rio de Janeiro (1855-1890). 2008. 243p.,
88ils. Tese (Doutorado em Artes Visuais) – UFRJ / Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais,
PPGAV, Rio de Janeiro, 2008.

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25
A MORTE DE SÓCRATES, JPEG. Altura: 1280 pixels. Largura: 832 pixels. 747 KB. Formato JPEG.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:David_-_The_Death_of_Socrates.jpg. Acesso em:
12 jun. 2009.
26
Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/bios/bio_pa_arquivos/pa_1865_socrates.jpg. Acesso
em: 28 mar. 2010.
27
BAXANDALL,op.cit., p.48.
28
SÁ, Ivan Coelho de. O Processo de “Desacademização” através dos Estudos de Modelo Vivo na
Academia/Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v.IV, n.3 jul. 2099. Disponível
em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/ea_ivan.htm. Acesso em: 05 dez. 2009. p.7.
29
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras imagens. 3.ed. Recife:
FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2006. p.48.
30
HERMES, Maria Helena da Fonseca. Reflexões sobre as Origens da Tipologia Hoteleira Balneária
Carioca na Década de 1920. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA: HISTÓRIA E ÉTICA, 24., 2009,
Fortaleza. Anais... Fortaleza: Editora, 2009. p. 158-159.
31
KOSSELECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias
históricas. In.: ______. Futuro e passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. RJ: Contraponto/
PUC – Rio, 2006. p.305-327.
32
TEIXEIRA, Cláudio Valério. Métodos e processos na pintura de Raimundo Cela. In: Raimundo Cela
(1890-1954) / Estrigas (Nilo de Brito Firmeza) et. al. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2004, p. 94-117.
33
TEIXEIRA, op.cit., p.97.
34
Raymundo Cela frenquentou a cadeira de desenho de modelo vivo ministrada pelos professores João
Zeferino da Costa (1840-1915) e em seguida com Rodolfo Chambelland (1879-1967), e de pintura com os
professores Eliseu Visconti (1866-1944), e depois com João Batista da Costa (1865-1926) 35 . Tais
informações foram colhidas nas seguintes obras: ACQUARONE, Francisco, VIEIRA, A. de Queiroz.
Primores da Pintura no Brasil. Fasc. XIX. Rio de Janeiro, 1941 e ESTRIGAS et al. Raimundo Cela (1890-
1954) / Estrigas (Nilo de Brito Firmeza): apresentação Yolanda Queiroz; prefácio Fábio Magalhães;
ensaios de Adir Botelho, Cláudio Valério Teixeira. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2004. 400p. il.. Não há
nas notações catalogadas do acervo arquivístico do Museu Dom João VI EBA/UFRJ nenhuma informação
acerca das disciplinas cursadas por Raymundo Cela. Tal fato também foi observado no Museu Nacional
de Belas Artes no Rio de Janeiro em pesquisa realizada em agosto de 2009.

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