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Artes de Exu
Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras
no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos
Rio de Janeiro
2010
Artes de Exu
UERJ
2010
Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras
no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos
Mônica Maria Linhares Castrioto
Artes de Exu
Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras
no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos
Rio de Janeiro
2010
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/Instituto de Artes
CDU 999.99
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial dessa
dissertação.
_______________________________________ ___________________
Assinatura Data
Mônica Maria Linhares Castrioto
Artes de Exu
Intervenções artísticas e representações afro-brasileiras
no Rio de Janeiro: Tridente de NI e Exu dos Ventos
Aprovado em ____________________
Banca examinadora ____________________
________________________________________________________
Professor Doutor Roberto Luís Torres Conduru (Orientador)
Instituto de Artes – UERJ
________________________________________________________
Professor Doutor Ricardo Gomes Lima
Instituto de Artes – UERJ
________________________________________________________
Professor Doutor Paulo Knauss de Mendonça
História – UFF
Rio de Janeiro
2010
DEDICATÓRIA
9
RESUMO
Artes de Exu trata os objetos de arte não só pelos aspectos artísticos e sociológicos,
mas também pelos aspectos que ligam as obras a Exu, além do enunciado. Como coisa
contida na concepção, na execução e imbricada na própria história da obra. As obras
escolhidas são: Tridente de NI (2006) de Alexandre Vogler e Exu dos Ventos (1992), de
Mario Cravo Júnior. As obras contêm conflitos que envolvem a mídia, religiosos e políticos.
A partir de pesquisas etnográficas é feita uma análise dos olhares que se cruzam na construção
dos sentidos na disputa pelo espaço simbólico, considerando ainda o trânsito percorrido pelas
obras entre a oficina, o espaço de exposição e a rua. Pertence ainda ao corpo das análises as
referências na mídia impressa, forma de veiculação das imagens, apropriações e discursos. As
artes de Exu se evidenciam no desenrolar dessas tramas, conforme os objetos artísticos
oferecem um lugar para pensar na conciliação entre diferentes: entre a cruz e o tridente, entre
Cristo e Exu e entre cristãos e religiões de matriz africana.
Artes de Exu deals with art objects not only by its artistic and sociological aspects, but also by
the aspects that connect these works to the divinity Exu. As if something is contained in the
conception, execution and within the history of these works. The chosen objects are:
Alexandre Vogler‘s Tridente de NI (2006) and Mario Cravo Junior‘s Exu dos Ventos (1992).
These works brought conflicts involving press, religion and politics. From ethnographic
researches it‘s built an analysis of the different meanings that have been crossed in the
construction of senses that struggle for the symbolic space, also considering the movement
between street and gallery, performed by these works. It‘s also present in Artes de Exu the
references collected from the printed press, the image circulation, appropriations and
discourses. Some ―works of Exu‖ appear themselves in the upbringing of these conflicts, as
the referred art objects offer the condition to think about the conciliation between different
aspects such as: the cross and the trident, Christ and Exu and Christians and African related
religions.
Keywords: Artistic intervention and urban; Art and politics; Afro-brazilian art.
Lista de ilustrações
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 15
CONCLUSÃO .................................................................................................................98
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................101
ANEXO A – Itá .............................................................................................................108
ANEXO B – Reportagens ............................................................................................. 111
Ao final
É como se tivesse ouvido
Ìyá, Ìyá Ng o je Iya Nike
E então tivesse sido devorada, digerida e vomitada.
Eis-me aqui consubstancializada por Exu.
INTRODUÇÃO
1
Revista Concinnitas, ano 8, vol. 1, nº 10, julho de 2007.
16
Já em Exu dos Ventos, a aliança ganha ares periclitantes quando o grupo empresarial
baiano – dono da empresa responsável pelo pedágio da Linha Amarela – juntamente com o
prefeito, Luiz Paulo Conde, resolvem oferecer ao Rio de Janeiro, escultura de renomado
artista baiano Mario Cravo Junior. A escultura representa Exu. As análises sobre Exu dos
Ventos serão tratadas no ―Capítulo II – O gigante da encruzilhada‖.
Além do mais, o cenário político carioca vinha numa grande disputa por votos nas
comunidades confessionais, conforme nos aponta Maria das Dores Campos Machado. (2006,
p. 28.)
17
No Monumento a Zumbi, Mariza de Carvalho Soares (1999) busca a história desde o
planejamento, passando por alianças políticas entre o movimento negro e governo do Estado.
Em seguida analisa como a homenagem se converte em monumento na medida em que
lentamente o grupo social homenageado se apropria espaço simbólico da cidade. Em relação
ao mesmo monumento, Roberto Conduru (2007) observa que apesar de ter se tornado local de
celebrações e protestos relativos aos afro-brasileiros, isso não o protege contra atos de
vandalismo durante o ano, chegando a ser inclusive cercado, no período do carnaval. Analisa
também os processos de apropriação artística operados por Darcy Ribeiro e João Filgueiras
Lima ao propor a cópia de uma escultura em bronze do Benin como representação de Zumbi
dos Palmares.
Em artigo, Fábio Macedo Velame (2009) propõe uma crítica à apropriação e
agenciamento do patrimônio afro-brasileiro, contrapondo o ―olhar cosmológico‖ do povo-de-
santo sobre a natureza ao modo como é agenciado, mutilado, deturpado e substituído pelo
conceito de paisagem presente nos espaços públicos com temáticas afro-brasileiras na cidade
de Salvador. Se a obra de arte não passa pelos ritos de apropriação e consubstacialização do
sagrado, não vira objeto de culto. O que coloca certa distância entre as esculturas públicas dos
orixás e os objetos de culto do povo-de-santo. Segundo o autor, no caso de Salvador, o
patrocínio das esculturas afro-brasileiras em local público se deve mais pelo setor turístico do
que pelo religioso.
Vale a pena citar os ataques ao grupo escultórico, também de Tatti Moreno em
Brasília, semelhantes aos do Dique do Tororó, instaladas às margens do Lago Paranoá – ou
Prainha dos Orixás como ficou conhecido. Acontecia no entorno a tradicional festa da virada
do ano com homenagens à Iemanjá organizada pelos terreiros, desde 1963. A praça ganhou,
em 1992, as imagens. Em 2002, os ataques tiveram início com o desaparecimento do orixá
Nanã. Dias depois, foi localizada em um lixão. A escultura de Oxóssi desapareceu
completamente. Depois disso, ocorreram sucessivos apedrejamentos das imagens até que, em
2005, uma Iemanjá apareceu incendiada. O local virou palco de manifestações contra a
intolerância religiosa e, em 2009, as esculturas foram restauradas e a praça reinaugurada.
Situação semelhante ocorreu em Belo Horizonte. Em 1982, a pedido dos umbandistas,
a prefeitura inaugurou uma estátua de Iemanjá, numa praça na orla da Lagoa da Pampulha. No
local acontecia, desde 1957, a Festa de Iemanjá organizada pela Federação Espírita de
Umbandistas do Estado de Minas Gerais. Durante as comemorações eram feitos rituais de
purificação da estátua, que segundo Nelson Mateus Nogueira, presidente da mesma federação,
―nos fazia lembrar a Lavagem do Bonfim, na Bahia‖ (NETO, 2006, p. 3) Apesar de a festa ter
18
se incorporado ao cotidiano da cidade isso não impediu que a escultura sofresse atos de
vandalismo. Como resultado a escultura recebeu um projeto de reforma que a deslocou 20
metros para dentro d‘água, em local inacessível, além da instalação, em 2006, do Portal de
Iemanjá,2 feito pelo artista mineiro Jorge dos Anjos. Talvez as motivações desse portal
passem por uma maneira inteligente de salvaguardar a distância com a escultura, mantendo a
referência no local, permitindo a continuidade dos ritos de purificação.
São pesquisas e situações de arte que lidam com a recepção da imaginária afro-
brasileira por diferentes setores da sociedade com motivações distintas. Nesse sentido,
desenvolveram-se as análises nos capítulos numa clave antropológica. Isso, a princípio, me
incomodou um pouco. Fiquei com uma cobrança interior de ter que dar conta de uma análise
crítica dos aspectos artísticos e formais, não só sociológicos. O que atrapalhou um pouco o
adensamento das questões e a escolha dos pressupostos teóricos, principalmente do segundo
capítulo (que trata de Exu dos Ventos), dadas as especificidades complexas coletadas no
trabalho de etnografia.
Essa opção pela etnografia aconteceu não só pelos caminhos percorridos durante o
mestrado, por uma orientação bem sucedida, mas também pela demanda dos objetos
escolhidos. Acho que foi uma escolha absolutamente feliz por toda afinidade sentida com o
aspecto didático como os textos em antropologia se desenvolvem. Isso me ajudou bastante na
estruturação do capítulo dedicado ao Tridente de NI.
Quando comecei a escrever o segundo capítulo, do Exu dos Ventos, contava com a
experiência do primeiro capítulo e com os conselhos da qualificação. Ainda assim tentei
seguir um caminho diferente, mesmo porque apesar das aproximações entre as duas obras,
existem aspectos muito peculiares a cada uma delas e também a cada artista. Senti
necessidade de atender a essas questões, além buscar uma análise formal sobre a construção
temática contida na obra de Mário Cravo Junior. Escolhi também colocar um pouco de minha
experiência com a Literatura de Ifá. Nesse sentido, o segundo capítulo conta com um mito de
gênese, sobre a criação de Exu, que a meu ver explica muito bem a natureza desse orixá. É
dessa natureza que me aproprio como fio condutor na leitura do processo artístico.
O título do trabalho ―Artes de Exu‖ lida com essa tensão de uma arte que representa
efetivamente Exu e, ao mesmo tempo, reconhece as artes que vêm carregadas de aspectos
circunstanciais, que descrevem as artimanhas desse personagem. A ambigüidade e o conflito
2
O Portal de Iemanjá é uma escultura composta de recortes em chapa de aço, com os símbolos religiosos geometrizados, nas
dimensões 600x500x20cm, instalado na beira da Lagoa da Pampulha, em frente à escultura de Iemanjá, conforme
CONDURU, 2007, p. 76-77.
19
são apenas o começo. Existe muito mais de Exu nessas obras de arte do que a mera atitude
contemplativa pode revelar. Apesar desse tremendo ímpeto de querer dar conta no panorama
intelectual dos problemas fundamentais que vão se descortinando, alguns pontos ainda
permanecem obscuros.
Como ―etnógrafa de primeira viagem‖ não poderia deixar de me ver em alguns
momentos entre a cruz e o tridente, diante de algumas armadilhas e até por cair nelas. Nesse
sentido lidei de maneira demasiadamente crédula com os dados coletados dos meus
informantes. No decorrer da pesquisa algumas informações não se confirmaram. Tudo bem,
lugar comum advertido pelo orientador o tempo todo. Como conseqüência foi preciso rever a
metodologia do trabalho. Afinal essa pesquisa não representa um ―tribunal da verdade‖ e
precisei ter isso bem claro ao procurar um caminho para compor as análises sobre os dados
coletados, sendo eles verídicos ou não.
Voltei-me então ao texto de Clifford Geertz: ―A interpretação das culturas‖. Ao
debater a prática da antropologia, por uma teoria interpretativa da cultura, cita Max Weber em
que ―o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a
cultura como sendo essas teias e a sua análise‖ (p. 15). Geertz toma emprestado ainda o
exemplo de Gilbert Ryle sobre piscadelas no olho direito e laboriosamente diferencia a
piscadela involuntária proveniente de tique nervoso de uma piscadela conspiratória. Embora
aparentemente as duas sejam idênticas, o piscador-conspirador está se comunicando de uma
forma precisa e especial enquanto o primeiro apenas contrai um músculo involuntariamente.
Os desdobramentos dessas piscadelas e as outras possibilidades de piscadelas é que compõem
a descrição densa das complexidades possíveis. E conclui:
O que chamamos de nossos dados são realmente nossa própria construção das construções de
outras pessoas, do que elas e seus compatriotas se propõem – está obscurecido, pois a maior
parte do que precisamos para compreender um acontecimento particular, um ritual, um
costume, uma idéia, ou o que quer que seja está insinuado como informação de fundo antes da
coisa em si mesma ser examinada diretamente. [...] Nada há de errado nisso e, de certa forma,
é inevitável. Todavia, isso leva à visão da pesquisa antropológica como uma atividade mais
observadora e menos interpretativa do que ela realmente é. Bem no fundo da base fatual, a
rocha dura, se é que existe uma, de todo empreendimento, nós já estamos explicando e, o que
é pior, explicando explicações. Piscadelas de piscadelas de piscadelas... (GEERTZ, 1978,
p. 19)
E como foi bem observado na orientação da pesquisa, nos dois casos tanto no Tridente
de NI quanto no Exu dos Ventos não houve uma relação direta minha com nenhuma das duas
obras. No Tridente, lembro-me que na época olhei alguma coisa nos jornais corriqueiramente
mais por conhecer o Alexandre do que por ser estudante de arte ou por afinidade religiosa. E,
como a intervenção se apagou, lidei apenas com a memória do evento através de relatos e
fotos, sem nem mesmo ter a oportunidade ver esses registros na galeria.
20
Com o Exu dos Ventos a mesma coisa, embora o tenha visto algumas vezes, já que
estudava no Fundão na época e a escultura ficava no trajeto. Eu a observava da janela do
ônibus, o que não significou muita coisa, pois a escultura em pouco tempo se quebrou e só
restou a metade dela no local. Logo, as análises que faço das obras partem da memória das
pessoas que de alguma forma se relacionaram mais efetivamente com elas. É desta maneira
que enfrento as estruturas conceituais para apreender, estruturar a pesquisa de campo,
entrevistar os informantes, fazer deduções, para poder construir uma leitura não só das obras
enquanto objetos de arte, mas também os comportamentos que estão em jogo.
O que torna o Tridente de NI e o Exu dos Ventos tão singulares são os sincretismos de
Exu e os discursos contrários que se dão abertamente nas páginas dos jornais, não ataques
velados e anônimos. Os opositores chamam Exu de demônio e nesse ponto embasam seus
argumentos. Fico pensando em que termos se dariam as manchetes caso as esculturas
representassem Oxalá – que é sincretizado com Jesus Cristo? Ou mesmo Iemanjá, cuja festa
na praia recentemente ganhou dia específico no calendário da cidade do Rio de Janeiro.
Importante salientar que existe processo movido pelo Ministério Público Federal
(POMPEU, 2005) contra publicação neopentecostal3 que resultou na proibição da venda do livro
no Brasil, em novembro de 2005. A obra é ―impregnada de afirmativas preconceituosas e
discriminatórias desferidas contra outras formas de manifestações religiosas e credos, em
especial aos cultos afro-brasileiros‖, afirmam os procuradores da República, autores da ação.
Ainda assim é possível acessar o conteúdo do livro em diversos sites ou adquiri-lo em sebos;
todos anunciando na Internet.
Entretanto, não nos propusemos a fazer levantamento historiográfico ou coletar as
várias formas de significação religiosa ou sincréticas de Exu. Porém, algumas considerações
se fazem necessárias para melhor compor as análises.
Pierre Verger inicia seu capítulo ―Esu Elegbara, Legba‖ (VERGER, 2000) relatando a
dificuldade de apreensão e definição coerente deste orixá, enumerando rapidamente suas
principais características: mensageiro dos outros orixás, tanto que nada pode ser feito sem ele;
guardião dos templos, casas e cidades; portador da cólera dos orixás e das pessoas; de caráter
suscetível, violento, irascível, astucioso, grosseiro, vaidoso e indecente.
Descreve Exu como o mais humano dos orixás, pois apesar de gostar de provocar
acidentes e calamidades públicas e privadas, desencadeando brigas, dissensões e mal-
3
MACEDO, Edir. Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios? Rio de Janeiro: Universal Produções, 2004. Versão não
oficial, disponível apenas em http://livrosgratis.net/download/929/orixas-caboclos-e-guias-deuses-ou-demonios-edir-
macedo.html. Acessado em 25/2/2010.
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entendidos, sendo o companheiro oculto das pessoas, levando-as a fazer coisas insensatas,
atiçando maus instintos, tem igualmente seu lado bom. Não é completamente bom nem
completamente mau. Tem suas qualidades e seus defeitos. É também fiel mensageiro dos que
lhe fazem oferendas e responsável pela revelação da arte da adivinhação aos homens.
Pierre Verger nos fala, ainda, que os primeiros missionários ao chegarem à África e
encontrarem esse conjunto ambíguo de signos e representações em Exu, logo o associaram ao
Diabo, fazendo deste orixá símbolo de tudo que é maldade, perversidade, abjeção e ódio, em
oposição à bondade, pureza, elevação e amor a Deus. Vale ressaltar nessa atitude um
mecanismo sincrético utilizado como medida de cooptação. Ao associar Exu ao Diabo, dentro
de uma lógica maniqueísta, o objetivo é minar a identificação das pessoas com aquela
divindade, tornando mais fácil a conversão e o apagamento de referências anteriores. Basta
lembrar que a conversão dos negros africanos figurava entre os motivos evocados no século
XVI para legitimar e justificar a escravidão.
Para Kabenguele Munanga (2000, p. 104) ―Exu reúne em si todos os elementos de
uma metáfora expressiva que simboliza a cultura negra em situação hostil‖. Justifica a
utilização de símbolos antagônicos na representação de Exu ainda na época da escravidão
como contestação de uma estrutura da desigualdade. Encontram os negros nessa divindade, o
mais importante aliado na luta contra seus algozes. Daí a necessidade de traduzir um caráter
sinistro e cruel – um justiceiro – posto à frente das iniquidades.
Reginaldo Prandi (2005), ao falar de Exu, destaca a adaptação dos negros aos valores
católicos, estranhos à lógica africana, durante o século XIX. De como o sincretismo e as
noções de bem e mal tornaram similar Oxalá e Jesus Cristo, empurrando Exu para o diabo,
sob um código de ética que transformou os tabus iorubá, fon e banto em pecado e vestiu os
orixás com as virtudes cristãs, cobrindo e substituindo o falo de Exu pelo tridente. Prandi
analisa ainda de que forma o Exu orixá foi apropriado para umbanda e quimbanda,
disseminando a imagem de Exu-diabo no mercado de soluções mágicas.
No ―Capítulo I – Entre a cruz e o tridente‖, dedicado ao Tridente de NI, serão revistas
as estratégias midiáticas utilizadas por Alexandre Vogler em outros trabalhos de sua autoria e
em que medida a sua obra se relaciona com questões afro-brasileiras. Além de outras
possibilidades de sentido que circunscrevem o tridente enquanto símbolo – Jean Chevalier,
1996, Juan Eduardo Cirlot, 1984, Pierre Grimal, 2000, Hendrik Willem Van Loon, 1981.
Através de uma etnografia, analisar os olhares que se cruzam e motivam as ações entre os
indivíduos de Nova Iguaçu em relação ao Mirante do Cruzeiro – Gilberto Velho, 2007 e 2008,
Myriam Lins de Barros, 2003, Georg Simmel, 1903, e Roger Sansi, 2007. Outro ponto
22
importante será a análise do fenômeno da pseudomorfose através do confronto das
interpretações do conteúdo da imagem do tridente em diferentes contextos – Yve-Alain Bois,
2006. Ao final, esperamos entender de que maneira o impacto desse fenômeno aciona redes
sociais distintas e modifica a relação da comunidade com o território urbano – Paulo Knauss,
1999 e Mariza Soares, 1999.
No ―Capítulo II – O gigante da encruzilhada‖, dedicado a Exu dos Ventos, como apoio
à compreensão das características de Exu que pretendo elencar, foi utilizado um mito de
gênese, na tradução de Juana Elbein dos Santos (2002, p. 133), pertencente à literatura e aos
versos de Ifá.4 Em todo o processo de apresentação da temática entre Cristo e Exu de Mário
Cravo Junior foram utilizados os escritos publicados do artista – Cravo Jr., 1998, 2001, 2002 e
2006 –, a entrevista concedida em 22/9/2009, além entender a relação da obra de Mário Cravo
com o universo afro-brasileiro e no modernismo – Roberto Conduru, 2007, Marta Heloísa
Leuba Salum, 2000, e Stella Teixeira de Barros e Ivo Mesquita, 1985.
Para perceber como o deslocamento da escultura da galeria ao espaço público
modifica a forma de contemplação da presença cênica de Exu dos Ventos – Rosalind E.
Krauss, 2007 e Benjamin H. D. Buchloh, 2000. Analisar essa inserção em novo lugar (na
Linha Amarela, no Rio de Janeiro) adquirindo forma e função social, na disputa do espaço
simbólico além de avaliar a dinâmica do olhar na narrativa do poder de centro – Paulo
Knauss, 1999 e 2006, Gilberto Velho, 2007 e 2008. Foram analisadas ainda as reportagens da
época, publicadas em meio impresso e arquivadas em sites na internet.
Para compreender a dinâmica do olhar que está em jogo no Exu dos Ventos –
especificamente na estrutura narrativa da Linha Amarela – é preciso considerar a interação do
observador com a obra e com sua orientação espacial. Paulo Knauss afirma, em ―Olhares
sobre a cidade: as formas da imaginária urbana‖,(KNAUSS, 2001, p. 10) que os aspectos
formais escultóricos podem ser abordados a partir de sua relação com a forma urbana,
organizando a construção dos olhares sobre a cidade, dando sentido à imagem escultórica que
se define como imagem urbana.
Knauss parte da prerrogativa de centralismo, em que o poder de centro (ARNHEIM,
1990) pode se desenvolver na escultura tanto em relação de posição na malha urbana como
em relação da posição observadora. Nesse sentido, Exu dos Ventos, na Linha Amarela, vai
4
Ifá (Orúnmìlà) é a divindade da sabedoria e do desenvolvimento intelectual. Kólá Abímbólá se refere a ele em ―Sacred Text
Yorùbá Religion‖; conta que Ifá viveu por longos anos e visitou muitas partes do mundo coletando histórias de problemas
vividos pela humanidade e soluções encontradas, de onde criou o sistema divinatório composto por 256 odus, também
conhecido como literatura de Ifá. Cada odu contém aproximadamente 800 histórias conhecidas como Itan ou ese Ifá. (KÓLÁ,
2006, p. 119)
23
recusar o poder do centro conferido pela localização central não só em relação às avenidas da
Linha Amarela e Linha Vermelha, mas também em relação à planta do entorno onde está
instalado. Outra característica passa pela sua posição viária, percebida do ponto de vista do
veículo em velocidade, somando ao olhar mais um dinamismo sensível, potencializando suas
características cinéticas.
Em anexo está o mito da gênese de Exu; composto por cinco personagens: Olodumare,
Oxalá, Orunmilá, Yebìírú e Exu. Kóla Abimbola (2006) descreve esses personagens –
Olodumare, Oxalá, Orunmilá e Exu – como sendo os quatro pilares da criação. De alguma
forma, esses quatro participam dos 256 odus da literatura de Ifá. Olodumare seria a fonte de
força que compõe o todo. Orunmilá, a inteligência de estruturação. Oxalá o artesão, o ímpeto
criador, fazedor dos seres humanos. Exu, o princípio dinâmico, o elemento de ligação que faz
com que a potência possa se transformar em movimento; o movimento em saber; e o saber em
obra.
Embora Olodumare seja a mais alta divindade, ele não transgride as regras do mundo.
Muitas vezes, na literatura de Ifá, Olodumare ou Olofim aparece consultando Orunmilá ou
orientando os orixás nos assuntos do mundo, dentro da estrutura de que foi mentor. Exu,
entretanto, como princípio dinâmico, é aquele que vai a todos os lugares, e tem a necessidade
de não se prender a regras, de não ter interditos no seu caminhar. No mito que transcrevo
neste trabalho, em determinado momento, diz que Exu ficou mais forte e mais difícil que seus
criadores. Bruno Reinhardt em sua dissertação dá um parecer interessante sobre a mesma
história:
24
Capítulo I
ENTRE A CRUZ E O TRIDENTE
“Nenhum signo transmite sentido, muito menos representa algo por si mesmo, mas
torna-se significante apenas por meio de uma estrutura complexa de relações.”
(Kudielka, 2002)
1
Foto da reportagem de Helvio Lessa
“Entre a cruz e o tridente”
Jornal O Dia
15 de agosto de 2006
I
5
O jornal Meia Hora de Notícias é o irreverente diário popular do grupo O Dia que prima por suas manchetes espirituosas –
e, às vezes, apelativas. É o sexto jornal em circulação do país, conta com 2,8 milhões de acessos mensais ao site e uma rádio
FM de sucesso. Alegou Alexandre Freeland, editor-chefe, em entrevista a Lívia de Almeida, Revista Veja, em outubro de
2009.
26
Ensaio de artista da revista Concinnitas, constando na capa e contracapa suas serigrafias em
lambe-lambe intituladas Fé em Deus / Fé em Diabo, potencializando a leitura do conteúdo do
material entre a crítica social e a ironia.
Tomo a obra Tridente de NI para pensar em como se desenvolvem as estratégias de
apropriações nos circuitos midiáticos ao longo da produção artística de Alexandre Vogler e
em que medida a sua obra se relaciona com questões ligadas a religião. O caminho percorrido
na pesquisa tinha o objetivo de compreender as várias produções de sentido que
circunscrevem o tridente (Jean Chevalier, 1996, Juan Eduardo Cirlot, 1984, Pierre Grimal,
2000, Hendrik Willem Van Loon, 1981) tensionado pelos olhares que se cruzam e que dão
sentido às ações entre os indivíduos de Nova Iguaçu em relação ao Mirante do Cruzeiro
(Gilberto Velho, 2007 e 2008, Myriam Lins de Barros, 2003, Georg Simmel, 1903, e Roger
Sansi, 2007). Este estudo faz a análise do fenômeno da pseudomorfose através do confronto
das interpretações do conteúdo da imagem do tridente em diferentes contextos (Yve-Alain
Bois, 2006). No sentido de entender de que maneira o impacto desse fenômeno aciona redes
sociais distintas e modifica a relação da comunidade com o território urbano (Paulo Knauss,
1999 e Mariza Soares, 1999).
27
II
O Artista
2
Dirigível Olho Grande, 2002
Alexandre Vogler
Foto do site do artista.
6
Cf. VOGLER, Alexandre, 2003. (Obras de arte visuais/Vídeo)
Olho Grande é um dirigível criado para monitoramento urbano.
Na verdade trata-se de um balão plástico de 5 metros de comprimento com um grande olho prateado gravado em sua
superfície. Essa nova arma contra o crime foi lançada pela primeira vez no dia 7 de setembro de 2002, mesmo dia do
lançamento do dirigível ―Olho no céu‖ (Zepelim controlado pela Secretaria de Segurança Pública, sob o governo de Benedita
da Silva, para monitorar áreas de risco).
Desde então venho lançando meu dirigível no ar, a perder de vista, confrontando sua função com as do dirigível da Polícia
Militar do Rio de Janeiro. (Vogler, 2003)
7
Folha Online, de 2/9/2002. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u58241.shtml.
28
Pública. Ao final, Alexandre Vogler edita as imagens apropriando-se do RJ TV8 com toda a
austeridade do noticiário.
Levando a idéia do ―olho vigilante‖ adiante, editou Guarda Municipal Olho Grande9,
em que novamente apropria-se das imagens do RJ TV, simulando a notícia da criação de um
―novo efetivo‖ da guarda municipal. Narra o objetivo de controlar a desordem causada pelos
camelôs no Centro do Rio. Este efetivo – composto de bonecos do tipo ―João-bobo‖ em preto,
com um metro de altura aproximado, contendo um ―olho grande‖ estampado – foi espalhado
em grande número pelos principais pontos de confronto entre a Guarda Municipal e os
camelôs nas ruas do Centro. Além da ação do novo efetivo entre os passantes, ambulantes e
comerciantes, o vídeo mostra alguns depoimentos de vendedores ambulantes e outras imagens
das frequentes vistorias feitas pela Guarda munida de seus acessórios de contenção.
Em outro trabalho, de 2009, não menos polêmico, o artista apropria-se dos muros e
dos outdoors, potencializando uma leitura publicitária ao seu trabalho, imprime a imagem das
mãos de uma mulher casada, de unhas pintadas em vermelho, cobrindo parcialmente o órgão
sexual feminino, sustentando um vidro de esmalte sem rótulo, contendo ao lado, a sugestiva
legenda ―Base para unhas fracas‖. (VELASCO, 2008) A proposta era estimular a discussão
sobre as artimanhas publicitárias acerca da fetichização da mulher e denunciar o olhar sedado
do espectador.
Entretanto, a fase que marca o início da produção artística de Vogler culmina com o
que classificou de ―fenômeno‖ dos coletivos de artes. A partir do uso comum do Atelier 491,
em Santa Teresa, surgiu a coletividade de quem divide o mesmo espaço. Nos trajetos até o
Fundão, o artista ficava atento à disseminação de cartazes na rua e, assim, surgiu a idéia de
Atrocidades Maravilhosas.10 As ações do grupo que, de certa forma, buscava alternativas de
inserção acabam acolhidas pelas instituições ao participarem de duas grandes mostras, Rumos
2001-2002 e Panorama da Arte Brasileira 2001. Nessa mesma época surgiram vários coletivos
de artistas em todo o Brasil.
8
Jornal diário da Rede Globo de Televisão.
9
VOGLER, Alexandre. Guarda Municipal Olho Grande, 2004. (Obra de artes visuais/Vídeo)
10
Vogler conta ter imaginado uma potência maior no trabalho se os cartazes viessem de um movimento maior, de diversos
artistas, trabalhando na mesma mídia em vários pontos sobre a cidade. Convidou 20 artistas e cada um produziu sua imagem
e mapeou onde e de que forma colá-los. Houve autonomia na autoria dos cartazes, sendo o processo de produção, coletivo.
Do Atrocidades vieram os filmes Atrocidades Maravilhosas (RJ) e Atrocidades Grandes (SP).
29
Houve ainda o RRadial11 e o espaço coletivo Zona Franca,12 que funcionava na
Fundição Progresso, ambos com efetiva participação de Alexandre Vogler. Nesse último, o
espaço é definido no filme A (Re)Volta do Zona Franca como território de liberdade e espaço
coletivo experimental onde todos tivessem a oportunidade de experimentar coisas, em que a
prioridade da produção eram as artes visuais e era necessário criar um espaço que fizesse fluir
essa produção.
O caráter flutuante da forma e do conteúdo da dimensão pública das obras de Vogler
deságua no site da internet, como registro permanente das imagens do trabalho. Apropria-se
da linguagem visual da rede digital, utilizando formato similar ao site líder no setor de vídeos
online – o YouTube. O artista declarou ainda ―Minhas referências estão na comunicação de
massa, na televisão, na forma como a imagem circula, na redundância da imagem da cidade, o
lambe-lambe, o outdoor...‖.13
3
Fé em Deus / Fé em Diabo
Cartaz lambe-lambe (serigrafia).
Alexandre Vogler
Produzido em Atrocidades
Maravilhosas. Panorama das
Artes, São Paulo, 2001.
11
O RRadial produziu Fumacê do Descarrego (2002), que já conta com várias edições no Rio. Trata-se de caminhão aberto
em que integrantes do grupo e artistas voluntários queimam, em cima da caçamba do caminhão em movimento, 100 kg de
defumador (mesmo usado nas Umbandas) em uma grande chaminé de metal construída sob a forma de um tablete de
defumador. Desde 2003 defuma a cidade nos sábados de carnaval.
12
Zona Franca, Fundição Progresso, Lapa, Rio de Janeiro, 2001. O espaço funcionava às segundas-feiras.
13
VOGLER, informação contida no site do artista.
30
O artista transforma o território urbano da cidade em suporte onde transitam suas
intervenções utilizando os mesmos mecanismos de publicidade em larga escala, procurando
um diálogo com um público mais amplo, para além das esferas e circuitos da arte. O produto
final da polêmica, seja através de intervenções do público nas suas obras ou das notícias de
jornal impresso ou televisionado, vai funcionar como dinamizador do trabalho, como matéria-
prima disponível à conveniência do artista. Essa mesma lógica foi observada no Tridente de
NI, embora sua idéia inicial tenha sido outra.
Ao expor o Tridente de NI em seu site, o artista faz um recorte das reportagens em
quatro links: Cruz vs Tridente; Oração vs Tridente; Religiosos vs Tridente e Tridente na Capa.
Interessante observar como a escolha das imagens, assim como os títulos dos links
relacionados, potencializam o conflito entre a cruz, o tridente e os religiosos. A imagem
Religiosos vs Tridente faz um recorte minucioso do prefeito ao fundo do ato fervoroso das
orações. Na última imagem da seqüência, não por acaso, consta o Tridente triunfante na capa
do jornal.
Entre as investidas midiáticas e coletivas, entre o circunstancial e site specific, outra
possibilidade de abordagem seria a temática religiosa afro-brasileira presente em alguns
trabalhos. O artista lembra Macumba non site, de 2001, na mesma época do Zona Franca. A
idéia para Macumba non site era compor um trabalho elegendo esse caráter estético dos
despachos como um processo de escultura, como um processo de instalação. A intenção era
fazer uma intervenção urbana e, ao mesmo tempo, não fazer uma coisa totalmente estética.
Então pensou em fazer uma solicitação à entidade e colocar a obra sob outros aspectos. Os
materiais utilizados não foram determinados pelo artista, sugerindo que a subjetividade da
obra inicia-se na própria espiritualidade, em que a Pomba-gira Maria Padilha foi parceira no
processo artístico. As imagens da instalação compõem, ainda, o filme A (Re)Volta do Zona
Franca – parte 1 no site do artista.
31
4
É de pemba, rosa – pétalas – o pessoal faz muito tapete de rosas vermelhas – foram 400 rosas
que comprei, tirei o caule, fiz o desenho com a pemba e coloquei uma garrafa de anis. Esses
materiais não foram de determinação do artista. Eu falei com a entidade mesmo. Uma pomba-
gira, Maria Padilha, que queria fazer um trabalho de escala de intervenção pública oferecido a
ela, e que me disse os materiais que deveria usar para ofertá-la e tal. E ela me falou do tapete.
Naturalmente a localização, um pouco essa coisa do círculo foi gerência minha ali na hora, de
intuição pra ver o que tinha mais a ver com escultura e land art. Então acho que esse trabalho
dá pra perceber o atravessamento com o trabalho do Smithson.14
14
VOGLER, Alexandre. Entrevistado por Mônica Linhares em 29/1/2010. Rio de Janeiro (RJ).
32
5
Macumbanonsite - Trabalho pra Maria
Padilha, Rainha da Encruzilhada.
Alexandre Vogler
Instalação apresentada na galeria Itaú
Cultural, Belo Horizonte (2002) e
Grande Orlandia (2003). Impressão,
fios, motor, anis, batom e som
amplificado.
33
III
A Obra
Alexandre Vogler nos revelou que ao ser convidado pela Funarte e pela Secretaria de
Cultura da Prefeitura de Nova Iguaçu para o projeto anual de oficinas e arte pública pensou
em escrever ―I love Nova Iguaçu‖ na forma parodiada de New York ―I ♥ NY‖; substituindo,
porém, o y pelo i – ―I ♥ NI‖. O objetivo era propor uma reflexão sobre cooptação e consumo
– os próprios moradores denominam a cidade de New Iguaçu. A instalação teria
aproximadamente 150 metros de gambiarras e lâmpadas na encosta do Morro do Cruzeiro. O
projeto foi aceito, mas a Prefeitura não pediu um orçamento, como é de praxe e, além disso,
contratou uma produtora do Rio de Janeiro, que não conhecia a cidade. Mais adiante, faltando
apenas três dias para a montagem do evento informaram que não haveria verba suficiente para
a montagem e que seria necessário mudar o projeto.
O ―plano B‖ seria utilizar o desenho do ―Olho grande‖ feito com cal, na encosta do
morro. Foi calculada a quantidade de cal para dar visibilidade ao desenho na paisagem urbana
da Baixada. Ele lembra ainda que, no dia marcado para o evento, a Prefeitura não tinha feito
qualquer divulgação: havia vários pacotes fechados com os folhetos publicitários das oficinas.
Como resultado, além da oficina ter sido um fracasso, a população não tomou conhecimento
do evento. Apareceram apenas três pessoas, que acabaram se envolvendo na produção da
obra. Quando chegou a cal, mandaram muito menos quantidade do que foi solicitado. O
artista sentiu certo descaso da Prefeitura e da Secretaria de Cultura com o que estava
acontecendo, afirmando que, no dia do evento, o secretário de Cultura estava ausente da
cidade por motivos pessoais.
Alexandre Vogler conta ainda que, ao chegar à ladeira do mirante e olhar a subida da
encosta, juntamente com os três participantes da oficina, percebeu que não tinham como subir
a ladeira a pé com aquela quantidade de cal. Solicitaram um burro à produção do evento,
porém mandaram apenas uma égua prenhe, como lembra o próprio artista em entrevista.
O cara [dono do animal] quando olhou a quantidade de cal e a pirambeira, se mandou e nem
falou conosco. Já estava quase invalidando o projeto quando encontramos um cara esquisito
que disse que subiria tudo por dez reais. Acabei pagando oitenta para um grupo de pessoas da
comunidade que se dispuseram. Porém, ainda faltava pensar o desenho e acabei seguindo o
caminho da articulação formal. Eu tinha a encosta e queria articular com a questão da tela e o
pincel, sendo a encosta o meu suporte e iria pintar com o cal. Queria dialogar com a cruz –
que é enorme. Nas fotos você vê pequeno, mas de perto é uma enormidade. Então o desenho
precisava ter um tamanho equivalente.
34
No segundo dia, ao chegarem ao local, viram que faltava subir ainda algumas sacas.
Ao procurar o pessoal que havia subido no dia anterior, perceberam que faziam um churrasco,
provavelmente por conta dos oitenta reais, mas mesmo assim ajudaram a levar o que faltava.
Depois de toda essa dificuldade, no dia seguinte conseguiram acabar o desenho no cair da
noite. Alexandre Vogler e a cidade só contemplaram trabalho pronto com o nascer do dia. E
descreve que se não tivesse sido dessa maneira, talvez nem pudesse ter terminado o desenho.
Quando retornou a Nova Iguaçu para fotografar a obra foi que recebeu os telefonemas
dizendo que alguma coisa não havia sido bem entendida pela população, e que jornalistas
estariam no local fotografando.
Ao ser questionado sobre a concepção do trabalho o artista nos relata:
6
Foto de Alexandre Vogler
estudando o “plano C”.
Nova Iguaçu-RJ
Cortesia do artista.
15
VOGLER, Alexandre. Entrevistado por Mônica Linhares em 15/6/2008. Rio de Janeiro (RJ).
35
preparou para se cercar de argumentos. Tanto que a idéia do tridente de netuno veio de um
amigo, momentos antes de ser contatado pelo jornal O Dia. Lembra que estava mais
interessado nessa questão de dialogar com dois polos, opostos, como em Fé em Deus / Fé em
Diabo. E quando mencionou o teor irônico do trabalho nos revela,
Tem humor... um pouco escrachado também. Tem um viés político nessas coisas. É como se
apropriar dessas coisas políticas, que não são sérias [...] É uma forma de você encarar a
situação diante da história, porque a poucos interessa um ativismo carrancudo. Muito mais
escrachado porque é uma forma de desmerecer o trabalho deles... porque são uns palhaços.
Ainda assim, o horror das pessoas, o preconceito das pessoas... A foto da evangélica com
raiva porque o diabo invadiu a terra dela... Certamente a gente tá lendo aquilo com humor,
mas lendo aquela matéria... não tem graça nenhuma. Acha graça porque é tão bizarro, né?
Essa posição dos evangélicos... radical e fundamentalista, a gente acha graça. Mas se em
algum momento eles adquirirem um pouco mais de poder a gente não vai achar tanta graça.
No dia que o Crivela for governador não vai ser tão engraçado.
36
IV
A Cidade
16
Referência a texto de Juarez Barroso, sobre os primeiros terreiros de candomblé no Rio de Janeiro.
37
O cruzeiro, no mirante, tem uma base, uma espécie de patamar onde está apoiado, de
uns dois metros de altura aproximadamente, com acesso pela terra. Não há escadas. A cruz
em si chega a ter uns três metros de altura e dois metros de largura, também aproximados. O
asfalto termina numa curva depois do cruzeiro. O local é bem alto e dá para ter uma visão
privilegiada de parte da Baixada: o Centro de Nova Iguaçu, atravessado pela linha do trem; e
a fachada da Catedral de Santo Antônio de Jacutinga (1862). O cemitério fica logo atrás.
Alexandre Vogler conta que ao propor I NI pediu à produção a indicação de uma
encosta e lhe ofereceram o Morro do Cruzeiro, apontado do local das oficinas: ―Está ali o
morro que você pediu‖. O que conferiu esse choque simbólico foi o Cruzeiro, o artista conta
ignorar que era usado como local de culto. Embora comente que não teria feito o tridente se
não houvesse a cruz. A idéia do tridente surgiu exatamente por conta da cruz.
Em nova conversa17 ao ser questionado sobre o tridente como símbolo de Exu, Vogler
diz na hora ter pensado mais na oposição entre a cruz e o tridente do que propriamente em
Exu. Tomou como referência seu trabalho anterior Fé em Deus / Fé em diabo. Cartazes
lambe-lambe, de um projeto em São Paulo, espalhados lado a lado, ficavam vários Fé em
Deus, intercalados com apenas um cartaz Fé em Diabo. A ideia era aproveitar, na passagem
do observador, a alternância subliminar entre Deus e Diabo. Na época, estava lendo sobre
mensagem subliminar e trabalhou essa mesma alternância em uma animação – resultante da
filmagem de uma instalação – em que coloca um frame com a imagem do Diabo em meio a
uma gravação de velas vermelhas queimando em fundo verde, até a cera reunida cobrir o chão
e virar preto.
17
VOGLER, Alexandre. Entrevista concedida a Mônica Linhares. Ateliê do artista em Santa Teresa, Rio de Janeiro (RJ),
29/1/2010.
38
V
Etnografia
Dadas as peculiaridades dessa obra, foi realizada uma pesquisa de campo de cunho
etnográfico com objetivo de entender as relações de ânimo entre a população local, o mirante
e, posteriormente, com o Tridente. Que tipo de implicações simbólicas foram postas em jogo
com o evento. A princípio, planejar um trabalho etnográfico sobre um evento que ocorreu já
há dois anos me trouxe algumas questões, pois teria que lidar com a memória das pessoas do
local sobre um fato passado. Apoiei-me no artigo de Myriam Moraes Lins de Barros
intitulado ―A cidade dos velhos‖, onde trabalha a construção social da memória da cidade.
Resolvido esse primeiro impasse metodológico, tinha que pensar num mapa a ser percorrido.
Os diferentes grupos socioculturais que iria abordar eram outra preocupação, pois o
medo do contato dos neopentecostais – fruto de ataques sofridos há alguns anos – foi outra
questão a ser resolvida antes de ir a campo. A impossibilidade de dialogar era algo a ser
pensado. Então priorizei abordar os moradores do alto, passantes do cruzeiro, alguns
moradores das duas principais ruas de acesso à ladeira, comerciantes de utensílios religiosos
afro-brasileiros, comunidades católicas, comunidades de candomblé de conhecidos da
baixada. A princípio, ficaria com as reportagens veiculadas em jornais como referência do
grupo evangélico e algumas observações locais feitas durante minhas idas e vindas (as três
reportagens estão anexadas ao corpo do trabalho).
39
50 anos. Conhecia todo mundo. Eram todos calmos e gente boa. Que era um morro muito
calmo.
Podia caminhar tranqüilamente. Mataram um sujeito na semana passada, mas não
eram gente de lá. E que há dois anos nem era asfaltado. Caminhão de lixo ia só até o asfalto.
A pavimentação que eu via não tinha sido fruto da prefeitura, mas da união da comunidade.
Perguntei se havia alguma organização de moradores. Disse que não. As pessoas apenas
combinavam de fazer as coisas. Perguntei se ela também achava que o tridente era do diabo.
Respondeu que quem tinha dito isso eram os crentes. Também respondeu negativamente a
indagação quanto ao mirante ser um lugar simbólico para a cidade ou ser um local de culto.
Disse que há muito tempo atrás poderia ser, porém agora estava esquecido. Observava um
crente ou outro, mas não é assim para tanto.
Sobre a relação com os cultos afro-brasileiros expressou sua ignorância no assunto,
que apesar de não ter religião, respeitava todas. Relatou o caso de um despacho colocado na
esquina em frente ao seu portão, que tratou com respeito, alegando que cada um tem sua fé.
Identificou-se como Aparecida, as pessoas a chamavam de dona Cida.
A subida se intensificava a partir da casa de Dona Cida tornando-se ainda mais
íngreme. Havia uma casa imediatamente ao lado do cruzeiro com um rapaz consertando um
carro. Um casal de namorados passava de moto. Várias crianças sem camisa nem chinelo
faziam de um papelão um escorrega, deslizando num gramadinho que descia do patamar do
cruzeiro. Algumas delas estavam soltando pipa. Nove, no total, entre o que pareceu terem de
oito a doze anos.
A vista alcançava grande parte da cidade. As duas igrejas se destacavam, o cemitério
recortava uns dois lotes adiante da catedral de Santo Antônio de Jacutinga. A linha do trem
atuava como divisora também na paisagem do bairro, a via Dutra ao longe. A vista encontrava
seu limite com outro morro mais a frente, de bastante vegetação. A impressão que tive foi de
um vale mais aberto com certo ar bucólico, sem arranha-céus. Muito verde ao redor com
aquela massa urbana cinza no meio. Apesar da vegetação ao redor do mirante ser rasteira,
com algumas poucas árvores e arbustos esparsos. O conjunto formava uma vista bem
agradável.
Conversei com um senhor que se lembrava bem do tridente. Disse que foi muito bom,
pois o evento trouxe a consciência para a comunidade de que eles precisavam de união.
Alguns rapazes da igreja estavam organizando as coisas agora. Pouca gente sabia, mas ali era
o bairro de São João. Em sua opinião o evento tinha sim, trazido visibilidade ao local, que
estava esquecido. Lembrou que tinha um cruzeiro, da necessidade de reflorestamento da
40
encosta etc. Porém, na época, não era morador, mas sua mãe da casa 130 residia ali havia
mais de 30 anos.
Conversei também com outro senhor idoso, disse que sofria do ―mal de Parkinson‖,
seu Antônio. Tinha uma casa com um muro muito bonito com uma textura trabalhada pintada
de verde claro. Lembrava bem do tridente. Disse que a obra não vingou. Em dois dias foi feita
e em dois dias tiraram tudo. Mencionou a bandidagem. O medo que os moradores tinham que
aumentasse por ali. Mencionou a vinda de cem homens da Prefeitura para o reflorestamento.
Tinham plantado muitas árvores. Apontou mostrando. Realmente havia algumas poucas
árvores que eu poderia descrever como agrupamentos esparsos. Mas agora, dizia ele, queria
ver, pois estava chegando à época das queimadas, e não era só plantar. O mato seco, com
muito calor, queima. De religião ele não sabia não, mas tinha o jornal Meia Hora, evangélico;
disse que eles teriam tudo lá se me dispusesse a procurar. Encerrou dizendo ainda que a obra
de arte não vingou porque nada havia mudado. Disse que estava aposentado e montava um
barco na garagem.
41
atacam através de inscrições do tipo ―só Jesus expulsa Exu das pessoas‖. Pensava-se uma
forma responder a isso. Que era um símbolo sim de Exu, e ainda, era óbvio que os crentes
sabiam disso e atacavam dizendo que era o diabo, mas sabiam muito bem que era Exu.
Perguntei que tipo de medidas tomaram em defesa da obra, se houve algum
movimento nesse sentido. Disse que não. Pois apesar do tridente ser um símbolo de Exu,
simbolizava também outras coisas. Não era uma coisa clara como um Ogó, 18 por exemplo. Se
fosse, estariam todos lá. Porém, num tridente cabem várias interpretações. Os crentes
chamavam de diabo e
nós não iríamos defender ―o diabo‖ que não era o nosso. Agora, o que é muito engraçado é a
Prefeitura ter uma cidade com o maior número de terreiros, promover uma coisa desse tipo e
não se articular com essas comunidades. Poderiam ter nos contatado, teríamos ido lá, feito um
evento, colocado o Treme-terra, que é uma orquestra de atabaques, provavelmente levaríamos
Mãe Beata e faríamos um evento envolvendo os fundamentos necessários para uma obra
dessa natureza, como deveria ter sido. A Secretaria de Cultura banca uma coisa assim
ignorando grande parte da cultura do lugar, sem o menor cuidado com ninguém. Outra coisa
são os crentes se utilizando mais uma vez da máquina pública para manipular a vizinhança de
acordo com suas vontades. Na Baixada, não conseguiríamos apoio para promover os eventos
que promovemos aqui no Centro do Rio. É isso que está errado. Tem que ter lugar para todos.
Quer dizer, o prefeito e a secretaria que estavam bancando o evento, quando viram o jornal
dos crentes, ficaram com medo de perder eleitorado e tiraram o corpo fora. Tinham que ter
sustentado sua posição.19
Sobre a etnografia
Apesar de certo tom de pessimismo presente no discurso de alguns moradores e
comerciantes, de alguma forma a obra de arte Tridente (I love NI) despertou um campo de
possibilidades nas interpretações de identidades e pertencimento do bairro. Se a comunidade
não se identificou com o tridente, a relação desta com o mirante e com o cruzeiro passou por
uma reconstrução. Isso se torna claro com o fato de a ladeira estar asfaltada, não por iniciativa
externa, da Prefeitura, mas pela união dos próprios habitantes. A tomada da consciência de
compor uma associação de moradores que os representasse e defendesse junto à Prefeitura se
fortaleceu depois do evento.
A relação dos moradores e dos comerciantes com o Tridente não pode ser definida em
termos de experiência estética, nem de mercantilização, nem de imagem diabólica. São tipos
de relações pessoais, formadas a partir de experiências e opiniões particulares. ―Ninguém, de
fato, pode controlar as formas nas quais a gente se apropria dos monumentos nas suas
18
Ogó: cetro, ferramenta ritual do orixá Exú. É o falo representado. Copia o órgão sexual masculino ou, então, visualmente
faz variações sobre um bastão de madeira antropomorfo, em que se destaca a cabeça de cabeleira alongada lembrança do
caracol akotó. Símbolo da mobilidade e da dinâmica do orixá Exu. (Lody, 2003).
19
Cia Omo Aro, membros entrevistados por Mônica Linhares, em 29/6/2008.
42
trajetórias quotidianas, às vezes em clara contradição com os seus objetivos iniciais. E com o
tempo, essa abertura é cada vez maior.‖ (Sansi, 2007).
Ficou bastante clara a forte disputa e apropriação do território público como
instrumento de representação do imaginário coletivo por diferentes setores sociais. Todas
essas apropriações são formas particulares de construir a experiência cotidiana. Não são
simplesmente formas de resistência a uma visão hegemônica, mas uma tentativa de
democratização na interseção e coexistência de diferentes visões de mundo no processo de
negociação da realidade.
Ao levantar um estudo sobre os monumentos da cidade do Rio de Janeiro, Paulo
Knauss (1999) discute os sentidos da cidade a partir do seu acervo de imagens de caráter
histórico como monumentos, fontes, estátuas, chafarizes etc. Conclui que não há uma
unanimidade que defina o campo dos monumentos, podendo abranger todos os objetos que se
inscrevem no espaço da cidade, a partir do reconhecimento de seu valor artístico. O conceito
de monumento se torna elástico ao caráter efêmero do Tridente de NI, pela impermanência
física, além do enunciado de arte. A atribuição de sentidos dada tanto ao Tridente quanto ao
Mirante não passa somente pelo sentido de monumentalidade presente na obra, mas na
mudança de tratamento que recebe decorrente dessa operação artística, potencializando uma
reconfiguração do imaginário, das identidades e experiências cotidianas.
Quais são as questões presentes na relação de um artista que vem de fora de uma
esfera urbana complexa, com uma rede de relações igualmente externas e propõe uma
reinscrição das representações dadas nesse local? O olhar do artista sobre o outro, externo,
seria o que Hal Foster (2005), em seu ensaio ―O artista como etnógrafo‖ trabalha, como troca
entre sujeitos em termos econômicos e culturais. Esse olhar seria sempre em relação ao
―outro‖ cultural, oprimido, pós-colonial, subalterno ou subcultural, colocado como um ente
passivo. A imagem do artista comprometido em nome do outro cultural ou étnico se realiza no
discurso de Vogler ao propor ―I ♥ NI‖ com intuito de lançar luzes sobre a cooptação
ideológica realizada através da mídia e do consumo.
Num terceiro momento, Vogler adapta seu projeto às condições impostas, trazendo à
tona um símbolo de caráter ambíguo, que além de dialogar com os já existentes e
incorporados no cotidiano citadino, potencializa-os a alcançar novos status nas redes de
relações envolvidas. Roberto Conduru observa essa obra através das seguintes questões:
Quer agradar ao público? É para seu próprio proveito o trabalho? Aumentando o tom e o
risco, sem abandonar a ironia crítica, ele parece propor Exu como patrono das mídias táticas.
Explora a ambigüidade do signo, que remete ao cetro de Netuno, mas também ao tridente dos
43
Exus afro-brasileiros, para desafiar a intolerância religiosa e o populismo político.
(Conduru, 2007)
Vale lembrar que há certas inscrições religiosas que utilizam os muros da cidade,
encostas e pedras, funcionando como meio de comunicação e de intervenção em larga escala,
atingindo a todos, com seu teor político e ideológico. Ao transitar pela metrópole do Rio de
Janeiro vamos perceber que esse é um espaço de tensão, e, ao mesmo tempo, de troca, já que
acaba sendo um espaço democrático de comunicação com a sociedade. Em algumas situações,
esses escritos recebem até patrocínio das esferas públicas.
No entanto em que difere essa inscrição do tridente das demais inscrições espalhadas
pela cidade? Há, nesse caso em particular, imposição de limites que atravessam um campo de
valores morais. Segundo Gilberto Velho (2000, p. 2), ―O desenvolvimento dos valores
individualistas está associado à possibilidade do indivíduo poder transitar entre diferentes
grupos, não sendo englobados, apenas por um deles‖. Essa tensão, esse embate simbólico
causado pelo diálogo entre a cruz e o tridente nos abre um campo de possibilidades de
interpretações e de identidades.
Outro fato interessante é que durante a etnografia, informantes de Nova Iguaçu e o
próprio artista, acreditavam que o jornal Meia Hora de Notícias era evangélico. Não é fato
verdadeiro. Porém, acredito que devido ao direcionamento dado às matérias sobre o tridente,
privilegiando a visão evangélica, o jornal tenha criando esse estigma.
Por ser um tablóide sensacionalista, de que o público alvo são as classes sociais mais
baixas, e para tal se apropria de uma linguagem popular. Independentemente do conteúdo, as
manchetes pendem para a pilhéria.
Numa reportagem (KAZ, 2009) sobre o tablóide o editor do jornal, Humberto Tziolas,
decalra que desde o início, apesar do sensacionalismo, não explorara imagens de violência
para não criar um estigma negativo, encontrando suas influências no Pasquim, do Planeta
Diário e na Casseta Popular.
44
VI
O Cruzeiro
20
Ana Torrejais, ―Olhar o Património. Crónica nº 6: Cruzeiros e Alminhas", in Jornal Despertar do Zêzere, edição de 26 de
março de 2008, p. 2. Disponível em http://tactiboqueando.blogspot.com/2009/04/cruzeiros-e-alminhas.html. Acessado em
19/10/2009.
21
Calvário (em aramaico Gólgota) é o nome dado à colina que na época de Cristo ficava fora da cidade de Jerusalém onde
Jesus foi crucificado. Calvaria em latim, Κρανιοσ Τοπος (Kraniou Topos) em grego Gûlgaltâ em transliteração do aramaico.
O termo significa ―caveira‖, referindo-se a uma colina que contém uma pilha de crânios ou a um acidente geográfico que se
assemelha a um crânio. In Freguesia da Parada do Coá, http://paradadocoa.blogs.sapo.pt, blog disponível em 20 de fevereiro
de 2010.
45
perde pelo tamanho do desenho. Seria necessária certa distorção na imagem para que
funcionasse efetivamente como sombra alterada da cruz. Ao invés disso o que nós vemos é
um tridente formalmente simples, estendido sobre a encosta do morro, localizado acima do
cruzeiro.
Há certa tensão entre a imagem tridimensional do cruzeiro e a imagem pintada do
tridente. Embora o tridente sobressaia à cruz pela extensão que ocupa, o cruzeiro permanece.
Entre permanências e transitoriedades, em termos de memória, o cruzeiro tem o seu lugar na
cidade como escolha do que se quer preservado. Já o tridente é circunstancial. Encontra seu
lugar em outros contextos enquanto o artista ou as gerações futuras fizerem uso do material
que foi apropriado para o campo das artes.
7
Mirante do Cruzeiro e o Tridente
Nova Iguaçu-RJ
Cortesia do artista.
46
VII
Tridente
Segundo Jean Chevalier (1996, p. 310) a cruz é um dos símbolos cuja presença é
atestada desde a mais alta Antiguidade, havendo registro de uma peça em mármore, datando
século XV a. C. Esse artista vai descrevê-la como o mais totalizante dos símbolos, contendo
uma função de síntese e medida, sendo a grande via de comunicação com o sagrado (terra-
céu), símbolo ascensional, recortando, ordenando e medindo os templos, desenhando praças,
atravessando cemitérios. A interseção dos seus braços marca a encruzilhada, de onde emana
sua força centrípeta e ao mesmo tempo centrífuga. A despeito de seus significados comuns,
universais, ele acrescenta ainda que ―a iconografia cristã se apoderou dela [da cruz] para
exprimir o suplício do Messias, mas também sua presença. Onde está a cruz, aí está o
crucificado‖. Ressalva que dos diversos sentidos que a simbologia atribui à cruz, não há um
que seja absoluto. Os significados não se excluem uns aos outros, concluindo que ―Exprimem
cada qual, uma percepção vivida e interpretada em símbolo‖. Cita a lista cruces dissimulatae
feita por Justino, na Apologia I, 55, em que a cruz está representada no arado, na âncora, no
tridente, no mastro do navio com sua verga, na cruz gamada etc.
Por outro lado, o tridente, a lança de três pontas, é das mais antigas armas de pesca e
de uma categoria de gladiadores. Emblema de Posídon, deus grego dos oceanos sincretizado
pelos romanos com Netuno. Chevalier (1996, p. 905) nos indica também que quando aparece
com uma rede representa Cristo – o pescador de homens, podendo representar a trindade caso
seus dentes tenham o mesmo tamanho. Cita a possibilidade de ter servido como representação
oculta da Cruz.
Netuno é o deus romano do elemento úmido identificado com Posídon. Pierre
Grimmal (2000, p. 327) destaca a inexistência de lendas que lhe sejam próprias antes da
associação com o deus grego que reina nos mares. Este último, juntamente com Zeus,
pertence à segunda geração divina da gênese grega.
47
8
Fonte de Netuno na Plaza de Canovas, no
Castelo de Madrid (Espanha). Projetada
por Ventura Rodríguez e esculpida por
Juan Pascual de Mena, mármore branco,
de 1780 a 1784.
Foto Marcelo Teson, 2006.
O Titã Cronos após ter sido advertido pelo oráculo de que um de seus filhos o
destronaria, passou a devorá-los. Sua esposa Réia grávida do sexto filho, cansada de ter seus
bebês devorados, recorreu à astúcia e decidiu salvá-lo. Pariu na calada da noite e escondeu o
bebê. Ao nascer do dia, ofereceu uma pedra enrolada em mantos ao esposo para ser devorada.
Tendo confiado Zeus às Ninfas, este cresceu e atingiu a idade adulta. No entanto quis
conquistar o poder de Cronos. Ao aconselhar-se com Métis (a Prudência) recebeu uma droga
que deveria ser ingerida por Cronos para fazê-lo vomitar os outros filhos. Ao conseguir drogar
Cronos e reviver os irmãos Hades, Posídon, Hera, Deméter e Héstia, apoiando-se nos irmãos e
nas irmãs que haviam voltado à vida, Zeus atacou Cronos e os outros Titãs. A luta durou dez
anos. No final, Zeus e os Olímpicos foram os vencedores e os Titãs foram expulsos do céu.
Para poder prender Cronos, Zeus libertou os Ciclopes. Em gratidão, estes lhe forneceram
ferramentas poderosas que haviam forjado: o trovão e o raio foram legados a Zeus; um
capacete mágico da invisibilidade ficou para Hades; e a Posídon coube o tridente, cujo embate
agita a terra e o mar. Ao partilharem o poder, tirando na sorte, Zeus obteve o domínio do céu,
Posídon, o do mar e Hades, o do mundo subterrâneo. Entretanto, as relações entre Zeus e
Posídon nem sempre são amistosas, havendo disputa entre as cidades dos mortais. Enquanto
os descendentes de Zeus eram heróis favoráveis à humanidade, os filhos de Posídon, tal como
os de Hades, eram geralmente gigantes violentos e perigosos (Polifemo – o ciclope, o gigante
Crisaor e o cavalo alado Pégaso).
Grimmal revela-nos ainda o tridente como arma por excelência dos pescadores de
atum e que Posídon geralmente é representado deslocando-se num carro puxado por animais
48
monstruosos, híbridos de cavalo e de serpente, tendo ao redor, um cortejo de gênios, peixes,
golfinhos e seres do mar.
O tridente é a vigésima terceira letra do alfabeto grego Ψ (minúscula: ψ),
correspondente a ―psi‖ do alfabeto romano, de onde deriva ―psique‖ que significa estudo da
alma. Das representações mais antigas do tridente teremos o trisula da Índia, emblema de
Xiva, descrito por Chevalier (1996, p. 905) como o transformador do mundo e o destruidor
das aparências. As três pontas representam o trikala ou tempo tríplice (passado, presente e
futuro).
Chevalier ressalta, ainda, que de acordo com a tradição cristã, o tridente na mão de
Satanás é um instrumento de castigo. Sendo também um símbolo da culpa, pois seus três
dentes representam as três pulsões (sexualidade, nutrição, espiritualidade) e, ainda, o perigo
de perversão, a fraqueza essencial que abandona o homem.
Embora não seja objetivo deste trabalho, mas relevante para entendimento da lógica de
apropriações de uma cultura por outra, Hendrik Willem Van Loon (1981, p. 122) analisa a
estada dos judeus na Pérsia, em 330 a. C. Até então, os judeus reconheciam Jeová como único
senhor e quando as coisas não iam bem atribuíam os problemas à falta de devoção do povo.
Entretanto, sob a influência das doutrinas de Zoroastro, cuja crença consistia na eterna luta do
bem e do mal,22 passaram a crer numa força contrária à obra de Jeová. A palavra satanás vem
do hebraico shaitan, significa adversário.
O tridente no Brasil, para algumas das religiões de matriz africana, representa Exu.
Exu é um orixá de importância primordial, pois é dinamismo, transformação e comunicação.
W. Abimbola (2006, p. 2) nos ensina que para se viver em paz é preciso apaziguar, manter o
equilíbrio com a natureza e com o cosmos. Este é composto pelas entidades benevolentes e
malevolentes. Exu não se encaixaria em nenhum dos dois lados, pela sua habilidade de
transitar entre ambos, além da função de levar as oferendas que vão garantir esse delicado
equilíbrio. Reginaldo Prandi (2005) descreve que
Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole
numerosa, e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua.
É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido
social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das
linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade
do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz
sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a
reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam –
instrumento ogó – que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e
desregrado de Exu-Elegbara. (Prandi, 2005)
22
O deus do Bem, Ormuzd, estava sempre em guerra contra o deus do Mal e da ignorância, Ariman. (Van LOON, 1981)
49
Raul Lody (2003, p. 192) vai descrever também que o ogó – instrumento de madeira
que representa o falo – não é muito comum no imaginário brasileiro; o tridente de ferro é seu
principal substituto, como um símbolo de poder e de força.
No entanto, dada a historicidade dos mecanismos sincréticos utilizados durante os
longos anos do regime escravocrata no Brasil, os cristãos associaram essas características de
Exu, apontadas por Prandi, ao diabo bíblico, inimigo de Deus e da humanidade. Esse seria um
dos principais pontos – em que irei me deter nesse trabalho – que impedem o trânsito ou
conciliação dos neopentencostais com as religiões afro-brasileiras e impossibilitam qualquer
cristão de se identificar com o símbolo do tridente exposto na obra.
Desta forma, na obra Tridente de NI, a tensão despertada pela ambigüidade desse
símbolo é potencializada não só pela grandeza do desenho, como também pelo local
escolhido, pela visibilidade que alcançou, e, principalmente, pelo diálogo com a cruz. Essa
potência não só impediu a identificação dos moradores com a obra como criou um conflito
com os neopentencostais, que se utilizaram de todos os mecanismos para finalmente, sob os
mesmo auspícios da Prefeitura que apoiou a construção, subir ao mirante e tentar a destruição,
ao apagar a obra.
Há outros exemplos de arte urbana que sofreram processos análogos. O artigo de
Roger Sansi, de 2007, cita alguns casos.
50
social e aceitação por esses grupos de forma fragmentada. Há um processo contínuo de
construção simbólica que no final do texto é amadurecido e assumido pelo tempo. Este último
é que confere força não só de permanência como de apropriação de novos significados pelo
próprio grupo social. O monumento a Zumbi acaba extrapolando os enunciados do acervo da
cidade utilizados na metodologia de pesquisa descritos por Knauss, transitando entre as
categorias ―excluído‖ e ―gratidão‖. Escamoteando uma homenagem, tenta fixar
simbolicamente uma aliança entre Estado e sociedade.
Já no trabalho de Vogler não vamos encontrar esse tempo de permanência, e a
intenção de compor alianças simbólicas entre Estado e sociedade toma caminhos inusitados.
Há resíduos na memória. Os evangélicos se apropriam desse recurso simbólico para projetar-
se no tecido social da cidade. Sem esvaziar o sentido político da imagem, escamoteando uma
universalização da imagem, modificam o tridente na tentativa de apagá-lo. Há a ação natural
das chuvas que efetivamente desgastam a cal, fazendo o tridente sumir. As apropriações
acontecem ali no limiar da obra, quando poderia acabar. Simplesmente ser esquecida e não
passar de um lampejo de memória. Sua permanência fixa lugar na memória coletiva graças ao
burburinho criado para apagá-lo. As matérias do jornal evangélico, que podem ser entendidas
como instrumento de mobilização e aniquilação, são apropriadas pelo artista e expostas como
obra em uma galeria de arte, circulando em revistas ou nas outras formas que o artista decida.
Esses tipos de trabalhos artísticos abrem um campo de possibilidades para repensar
não só a problemática afro-brasileira na disputa pelo espaço no imaginário social, como na
questão da intolerância religiosa que vem agindo num crescente descompasso, utilizando a
mídia e o poder público nos seus ataques massivos.
As tensões entre ―excluído‖ e ―gratidão‖ são inversamente exploradas na medida em
que o então prefeito altera sua posição de patrocinador da obra para interditor. A ironia do
artista se revela. A ambigüidade do tridente, entre Posídon, Exu e o Diabo, colocam o poder
público ―entre a cruz e o tridente‖, ou melhor, entre Deus e o Diabo. Parodiando esse dito
popular, publica o ensaio na revista Concinnitas constando as matérias jornalísticas do
tridente, constando na capa e contracapa da edição suas serigrafias dos cartazes lambe-lambe
Fé em Deus / Fé em Diabo – sendo Fé em Deus na capa e Fé em Diabo na contracapa.
51
VIII
Ao transitar pela metrópole do Rio de Janeiro vamos perceber que esse é um espaço de
tensão, e, ao mesmo tempo, de troca e reciprocidade, já que acaba sendo um espaço
democrático de comunicação com a sociedade. Alcança, em alguns casos, a legalidade por
receber patrocínio das esferas públicas – como a obra objeto deste estudo. Essa tensão,
embate simbólico causado pelo diálogo entre a cruz e o tridente nos abre um campo de
possibilidades de interpretações e de identidades. A apropriação do mirante para intervenção
funciona como uma reanimação do sentimento de pertencimento do lugar propondo uma
contramemória histórica ou redescobrindo histórias suprimidas que estão situadas de maneira
particular.
Embora os tridentes – tanto de Exu, quanto de Netuno e do diabo – tenham a mesma
morfologia acabam se distinguindo semanticamente. O tridente dos Exus de alguma forma
traz em sua leitura o peso da construção social e histórica de um espaço de reconhecimento
dos afro-descendentes e sua arte, cultura e signos, que vêm contornando ações empreendidas
para aniquilar suas referências, com pouca visibilidade, mesmo com as políticas afirmativas e
criação de espaços museológicos.
Podemos classificar a ambiguidade simbólica da obra Tridente como um caso de
pseudomorfose. Como afirma Yves Alain Bois, ―quanto menos se sabe do contexto, a gênese,
mais facilmente pode-se tornar vítima do tranco da pseudomorfose‖ (2006). Aqui, para essa
situação, tomaremos a definição do fenômeno da pseudomorfose como ―o surgimento da
forma A, morfologicamente análoga ou mesmo idêntica à forma B, que, no entanto, não
mantém relação alguma do ponto de vista genético‖ (Bois, 2006). Contém a mesma forma,
mas conteúdos diferentes.
O fato do fenômeno da pseudomorfose estar relacionado à situação que envolveu a
obra aqui estudada nos sugere que tipo de juízo entra nesse jogo de relações. Vale observar os
depoimentos recolhidos classificando o tridente como ―feio e agressivo‖, entre outras
sentenças, que aqui poderíamos tratar como juízos estéticos, obtidos a partir da experiência
imediata da arte. À primeira vista, o tridente pode até não agradar, porém seria necessário
conhecer melhor o que está em jogo, muito embora não se chegue à experiência estética
52
através da reflexão do pensamento. As análises feitas pelo jornal impregnam a obra de juízos
obtusos, fazendo uma domesticação do olhar.
O que torna aqui a obra desconcertante é a tensão despertada pela pseudomorfose,
potencializada, como já apontei, não só pela monumentalidade do desenho, como também
pelo território simbólico do cruzeiro, pelo diálogo com a cruz, e, acrescento, principalmente,
pela sexualidade mal compreendida em relação ao orixá em questão, acionando por outro lado
o conceito do tradicional ―pecado‖, explorado pelas entidades católicas e evangélicas. Se o
tridente é um símbolo que representa Exu, ligado à sexualidade, como resolver essa
aproximação de idéias tão contrárias trazidas pela cruz, que representa o martírio de Cristo
para expiar os pecados da humanidade, com suas idéias de privação e castidade?
Há certa frustração nas expectativas do público, não só na forma de apresentação que
foge do âmbito tradicional das belas artes, mas como também na flutuação entre o decoro das
contradições que envolvem a construção da memória do espaço físico, potencializado pelo
Mirante do Cruzeiro. Toda uma carga simbólica religiosa foi tensionada pela apropriação
repentina, como se um símbolo fosse negação do outro. O que para as tradições afro-
brasileiras também não chega a ser um problema, uma vez que dentro dessa lógica religiosa e
cultural, tudo que existe tem o seu Exu pessoal: inclusive o prefeito, o artista, os vendedores,
as comunidades evangélicas etc.
Por outro lado, o subjetivo do tridente não é encontrado em lugar algum, nem
escamoteando a moral cristã, nem subvertendo o símbolo, mas no seu teor que pode avivar o
sentido da sexualidade. Desta forma, pode ser percebido como um afrontamento onde
―concebe a deflagração semântica da imagem menos como um simples afastamento do que
uma violência, um ‗desublimizatório‘ ato de agressão‖. (BOIS, 1996).
53
IX
Observações finais
54
Na obra Tridente de NI vamos encontrar um conjunto de operações: a apropriação de
uma prática extremamente comum, pintura de cal sobre encostas e pedras; a apropriação do
símbolo carregado de ambiguidades; a ressignificação desse símbolo – o tridente; a
ressignificação e a consequente valoração do cruzeiro; sua enunciação: intervenção urbana. A
inversão da própria lógica do monumento, a sensação de fim e o reaparecimento da obra
reapropriada em diversas mídias.
Seja lá qual tenha sido a escolha do artista para o monumento entre a cruz e o tridente,
cooptação e consumo, sensacionalismo e propaganda religiosa ou denúncia do populismo mal
engendrado, não homenageia, satiriza.
55
Capítulo II
O GIGANTE DA ENCRUZILHADA
9
Montagem da escultura
Exu dos Ventos na
entrada do Parque
Metropolitano de Pituaçu
(BA), 1998.
Foto cedida por
Mário Cravo Jr.
I
23
CRAVO Jr, Mário. Entrevista concedida a Mônica Linhares. Oficina do Espaço Cravo, Parque Metropolitano de Pituaçu,
Salvador (BA), 21/9/2009.
24
São Pedro Arrependido, Frei Agostinho da Piedade, século XVII. Terracota, Museu de Arte Sacra, Salvador. Foto de
Cravo Neto. Essa citação e foto aparecem em sua autobiografia de 2001, p. 80.
57
10
11
58
Outro artista citado por Mário Cravo é Francisco Chagas – O Cabra (séc. XVIII). Nas
imagens anteriores podemos ver o Cristo atado na coluna25 e o Senhor Morto do Carmo26 que
influenciaram principalmente pelas soluções plásticas nas interpretações da anatomia,
inteiramente próprias e heterodoxas. Os ritmos indicadores de movimentos musculares num
sentido espiral ascendente foram referências constantes para as confecções dos vários Cristos.
Em relação ao vocabulário plástico de elementos da cultura e religião de matriz
africana não defende nem uma arte negra, afro-brasileira ou descendente. Insiste que a arte é
linguagem da humanidade, e escreve: “a tradição cultural e religiosa abriga em seu seio um
caldo de herança antropológica rica e diversificada em níveis variados‖ (2002, p. 55). Dessa
forma, pelo dinamismo da arte e pelos vastos fenômenos da sensibilidade expressiva se opõe a
denominações que defendam um conceito racial para caracterizar maneiras de se fazer arte.
Vale ressaltar que dentre as principais referências bibliográficas que tratam a arte afro-
brasileira – como Mão afro-brasileira e o material produzido pelo Museu Afrobrasil (São
Paulo, 2006) – não há citação a Mário Cravo neste contexto. Já no material da Associação
Brasil 500 Anos Artes Visuais, integrante da Mostra do Redescobrimento, Marta Heloísa
Leuba Salum escreve: ―As epopéias sobre Cristo e Exu, bem como seus ex-votos formalmente
associados a esculturas de origem africana, não são suficientes para fazer do eloqüente e
polêmico Mário Cravo Jr. um artista afro-brasileiro‖. Em outro trabalho que trata
especificamente o tema da arte afro-brasileira (Conduru, 2007, p. 66) também não restringe a
produção de Mário Cravo ao universo afro-brasileiro, embora não seja negada a sua
importância e contribuição como ―múltiplo experimentar derivado da crença moderna na
aplicação dos meios artísticos e no potencial da criatividade humana pautados na idéia de
ação‖.
Exu, enquanto temática de Mário Cravo, aparecerá não como ícone religioso resultante
de fé, mas da estreita relação com o ato de criação. Supõe a criatividade mais próxima da fé
de ofício do que da fé religiosa. De maneira categórica, afirma que elegeu como temática em
sua obra, mais de meio século atrás, o orixá do candomblé, o personagem mitológico; e que
essa figura em que vem trabalhando nada tem a ver com o catolicismo apostólico romano, o
cão ou o demônio. Sua escolha se faz pela similitude com o comportamento do homem na
sociedade, e escreve:
25
Cristo atado na Coluna, Francisco Chagas. Século XVIII, madeira policromada, Museu do Carmo, Salvador, BA. Foto de
Cravo Neto.
26 Senhor Morto, Francisco Chagas. Século XVIII, madeira policromada, Museu do Carmo – Salvador, BA. Foto de acervo
pessoal.
59
Aos personagens humanizados da minha Bahia, da minha Baía de Todos os Santos, costumo
com freqüência ―vesti-los‖ de Exu, porque para mim parecem figuras rebeldes, galhofeiras,
brincalhonas e de certa maneira muito moleques. Meu Exu ideal é um arquétipo da
baianidade. Uma espécie de logos de minha cidade, e por isso os interpreto de mil e uma
formas: vestidos, nus, carregando centenas de filhos agarrados à sua pele ou balançando ao
vento como um espantalho. Às vezes o vejo estruturado e amarrado em feixes de grossas
madeiras como um corpo descomunal surgindo como uma hecatombe atômica. (Exu segundo
Mário Cravo, 2002, p. 83)
Quando questionado sobre o porquê dos chifres, descreve que em nada têm eles de
demoníaco, que algumas vezes ―representam as antenas, os para-raios que captam energia
cósmica‖ (CRAVO, 2001, p. 65). Revela que a criação pode tanto ser um ato prazeroso quanto
sofrível: ―quando há dor, há chifres‖, afirma. Muitas vezes seu processo de criação pode
simplesmente fluir, outras vezes pode implicar em um processo de dor. Esses chifres, os
córneos, são elementos que saem involuntariamente em seu trabalho; são decorrentes de o
artista passar tantos anos envolvido com essa temática; são referências constantes tanto nas
esculturas quanto nas pinturas, gravuras e desenhos. Algumas vezes aparecem em meio a uma
miscelânea que inclui o imaginário popular, os ex-votos e as manifestações culturais
regionais.
Seus personagens compõem sincretismos das religiões, mitos,
histórias e folclore com seus pares na identidade baiana. Vamos
encontrar desde Exus cangaceiros a variados Exus diabo, eleitos por
Mário Cravo como ápice da temática em ferro. ―Semelhanças dentre
algumas e outras deidades cultuadas no culto Católico Apostólico e
Romano… e não havia nenhum [similar] pro Demo. Então puseram
essa idéia de chifres que é baiana.‖27
A escolha no sentido de utilização da sucata se deu pela
escassez de ―recursos apropriados‖, uma vez que, na Bahia, logo nos
primeiros trabalhos, o artista não dispunha de fundições de bronze, o
que encarecia o custo de produção, buscando então, na inventividade
das práticas artesanais e na utilização de materiais disponíveis, uma
opção de patrocínio da sua autossuficiência artística.
As primeiras citações sobre a temática de Exu na obra de
Mário Cravo pela imprensa surgirão, no final da década de 1950, 12 Exu a Villa Lobos,
vergas de ferro
através da obra Exu a Villa Lobos.28 Embora os primeiros trabalhos soldadas. Bahia.
27
CRAVO Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21/9/2009. Salvador (BA).
28
Revista Casa & Jardim, nº 135, março de 1966. Reportagem do acervo do antigo Espaço Cultural Desembanco, hoje no
Museu da Bahia.
60
com Exu remontem aos anos 1940,29 entre litografias e xilogravuras partindo da observação
direta das filhas de santo nos candomblés do Engenho Velho – nos tempos de Tia Massi,30
Opô Afonjá e do Bate Folha, entre outros.
Descreve essa primeira fase como ―documentação da parte de expressão facial no
momento de transe, os movimentos abertos ou hieráticos‖ (Cravo, 2002, p. 62). Fixa imagens
perceptivas que não demandem esforço de interpretação, como na imagem seguinte Cabeça
de Candomblé, de 1952, sem especificar qual seja o orixá. À medida que vai mergulhando
nesse universo e desvendando sua riqueza poética, as formas do artista vão se tornando mais
intensas, mais íntimas e desmistificadas, como vemos adiante, no desenho da Cabeça de Exu,
de 1956. A distância hierática do primeiro desenho do momento do transe se transforma,
ganha potência e se impõe quando a personalidade inerente ao personagem Exu se apresenta,
com certo desalinho na dinâmica dos traços em tinta pilot, como se a dinâmica de Exu
entrasse na forma plástica do desenho.
13 Cabeça de Candomblé
Monotipia, 1952.
(0,46 x 0,65)
14 Cabeça de Exu
Tinta pilot, 1956.
(0,56 x 0,77)
Algumas dessas obras participaram da 18ª Bienal Internacional de São Paulo,31 no ano
de 1985,32 em que a curadoria revisita o modernismo. No catálogo da exposição, Stella
Teixeira de Barros e Ivo Mesquita citam o ateliê de Mário Cravo como um importante grupo
29
Por ocasião da exposição comemorativa dos 70 anos do artista na Fundação Jorge Amado, em 1993, Mário Cravo descreve
no material publicado de maneira didática e cronológica sua pesquisa visual em torno de Exu. Publicado também no livro
Esboço, de 2002, p. 62.
30
Maria Maximiana da Conceição, quinta ialorixá da Casa Branca do Engenho Velho – Ilê Axé Iyá Nassô Oká.
31
Obras que constaram na XVIII Bienal de SP 1985: Filha de Xangô, (53x36) desenho, 1947. Homem (Figura de
Candomblé), (0,50 x 0,46) desenho, 1948. Rosto de Mulher (0,41x 0,25) desenho, 1952. Cabeça (0,30 x 0,21) desenho, 1949.
Rosto de Mulher (0,53x 0,45) desenho, 1949.
32
Vale lembrar que, no Rio de Janeiro, em 1984, sob o governo de Leonel Brizola, iniciam as comemorações do Movimento
Negro a Zumbi no dia 20 de novembro (SOARES, 1999, p. 117). Em meados do ano seguinte, a Rede Globo estréia a
minissérie Tenda dos Milagres de Jorge Amado, situando a Bahia como pequena África e centro da luta dos negros contra a
intolerância religiosa e racial.
61
de gravura, entre outros igualmente importantes, que vão aparecer dentro de uma clave
expressionista de envolvimento político-social e ao final os descreve.
No entanto, esta ―crônica‖ [sobre a exaltação do popular e costumes regionais como fonte
fundamental integradora do homem e da terra brasileira] tende muitas vezes a folclorizar e
mitificar seus conteúdos, na medida em que os esteticiza e faz deles um recorte idealizado da
cadente realidade.33 (Mesquita, 1985, p. 18)
Essa crítica generaliza e não atende especificidades tanto dos grupos de gravadores
citados no texto34 e presentes na exposição, quanto dos conteúdos. No caso dos orixás e de
Exu, considero já serem estéticos e míticos na sua fonte e em sua essência. Ao propor essa
fala há certa superficialidade tanto sobre os conteúdos tratados, como com o envolvimento
político-social dos grupos de gravura dentro da realidade em que estão inseridos. Talvez aos
olhos dos curadores, no conjunto de uma exposição sob o título ―Expressionismo no Brasil:
heranças e afinidades‖, de atenção voltada às influências europeias, temas como o candomblé
tenham sofrido estranhamento, ficando à mercê desse impacto sem um tratamento adequado
que o resguardasse do malgrado.
Num segundo momento, Mário Cravo inicia uma série de esculturas em pedra sabão e
ferro, inserindo em sua pesquisa os aspectos referentes à personalidade de Exu, contendo certa
brutalidade e sensualidade, misto de temperamento brincalhão e mordaz. Imbuído desses
predicados é que Mário Cravo torce, separa e torna a unir com fogo o ferro, em formas que
revelam Exu. E nesse trabalho revela também sua busca por um ―figurativismo brutal‖
(CRAVO, 2002), expandindo suas interpretações por caminhos sincréticos não só com outros
orixás, mas também com outra temática de sua predileção: o Cristo crucificado.
15
Exu mola de Jeep, escultura de sucata de ferro,
1958. Parque do Ibirapuera (SP).
33
Catálogo da Bienal: Expressionismo no Brasil – heranças e afinidades. Catálogo XVIII Bienal de São Paulo, 1985, p. 18.
34
Ateliê Coletivo do Recife – Abelardo da Hora, Gilvan Samico, Wellington Virgolino, Ionaldo; Clubes de Gravura Gaúchos
– Carlos Scliar, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Danúbio Gonçalves, entre outros; além do grupo que gravitou em torno
da revista Joaquim de Curitiba – Guido Viaro, Poty, etc.
62
A partir dos anos 1950, suas experimentações plásticas se voltam para a unificação
entre personagem e símbolo surgindo assim misturas entre a cruz e o Cristo e entre Exu e o
tridente. Une orgânica e intrinsecamente o símbolo pelo personagem. No Exu mola de Jeep,
como se surgisse do próprio tridente, Exu aparece fincado na terra tomando para si o
significado do tridente – a cruz invertida num sentido de agressividade –, compõe toda a
estrutura e confere forma e sentido à escultura.
A cruz se torna ausência presente na forma do corpo, em Cristo Baiano. Cristo, cujo
corpo representa o cordeiro de Deus, também é crucifixo. Ao olhar a obra vemos braços e
pernas abertos formando uma cruz na diagonal, cabeça pendida para trás olhando o céu e o
falo apontando o chão. Essa ausência da cruz leva o observador a uma encruzilhada visual e
nos perguntamos: esse corpo luta para manter-se em cruz? Ou luta para se libertar dela?
Olhando melhor nos perguntamos ainda se esse corpo luta. Talvez esteja entregue à fadiga,
muito embora o aspecto truculento dos músculos sugira uma tensão no sentido de força e
movimento. O artista ainda comenta a obra: ―Então você vê um Cristo que é meio Cristo,
meio Exu. Eu fiz um Cristo meio Pedro, crucificado de cabeça para baixo, e coloquei ele
assim em pé, com os braços abertos, com sexo em riste. Olha, a crítica aqui foi um inferno‖.35
Nesse jogo de representações e personagens tidos como antagônicos, Mário Cravo
incorpora cada vez mais a questão mitológica e sincrética à materialidade do objeto. Quer que
a madeira fale por si e não simule. Seja a madeira, madeira, a pedra, pedra e o metal, metal.
Mesmo que a escultura represente o homem, o personagem ou o que for. Que sejam a
16
Cristo Baiano, ferro em fusão. 1955. Bahia
(Catálogo revisitando cravo, fig. 2)
A peça participou da III Bienal de SP, em 1955.
35
CRAVO Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21/9/2009. Salvador (BA).
63
madeira, o metal ou a pedra a falarem primeiro ao olhar. Sem falar em pneus, poliuretano,
fibra de vidro, vidro e sucata em geral ou no que mais puder ser apropriado, aproveitado e
manipulado pelo artista.
Nos anos seguintes, Mário Cravo descreve o ganho de uma leveza em relação aos
Exus torcidos. Algumas vezes com conotações construtivistas armazenando ritmos
compactos, como pode ser visto no Exu a Villa Lobos, 1962.
Há a série de Cristos, de 1987, feitos com a madeira da demolição do antigo prédio do
Mercado Modelo – resultante do incêndio de 1969. Relata sua inquietude quanto à
conformidade das formas da cruz e dos crucifixos. Então retira a imagem de Cristo de sua
complacência resignada para agonizante luta com a cruz,
por vezes tentando libertar-se dela, onde a cruz e o Cristo
mantêm as mesmas materialidade e essência.
Em Mário Cravo, a cruz nunca é simplesmente cruz.
Há sempre algo a mais na economia do símbolo que a
distingue. Até mesmo a cruz – o mais totalizante dos
símbolos (CHEVALIER, 1996, p. 310), contendo uma
função de síntese e medida, sendo a grande via de
comunicação com o sagrado – não encontra sossego em sua
forma: reluta, é complexa, conflituosa. Além da série de
Cristos já descrita, há também a Cruz caída, da Praça da Sé,
em Salvador, feita em memória das demolições que foram 17
Cruz caída
toleradas de obras arquitetônicas singulares pertencentes ao Praça da Sé, em Salvador
Foto de arquivo pessoal, 2009.
patrimônio cultural da cidade de Salvador.36
36
São informações de CRAVO Jr., conforme entrevista concedida a Mônica Linhares, em Salvador (BA).
64
II
Exu dos Ventos parte do Sinal da Cruz
Òrúnmìlà, desejoso de ter um filho, foi pedir um a Òrìsànlá. Este lhe diz que ainda
não tinha acabado de criar seres e que deveria voltar um mês mais tarde. Òrúnmìlà
insistiu, impacientou-se querendo levar a qualquer preço um filho consigo. Òrìsànlá
repetiu que ainda não tinha nenhum.
Mário Cravo fez ainda o Sinal da Cruz e descreveu: ―O eixo da grande cruz penetra no
sentido vertical, o retângulo gerado pelos braços, e apóia-se no piso, no chão, tal qual um
feixe energético, um para-raios, unindo o céu, a terra e vice-versa‖ (CRAVO, 2002, p. 75).
Escultura em relevo, de proporções monumentais, com ritmos e planos construtivos em
soluções simétricas. No interior da cruz forma-se outra cruz em fenda com iluminação interna.
Trata-se de uma cruz para a fachada do distinto edifício da Casa do Comércio da Bahia.37
18
37
Sede da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado da Bahia – SESC, SENAI e SECEC – fundada em
1947, e também conhecida como Casa de Comércio Deraldo Motta. O edifício está na Av. Tancredo Neves e foi construído
na década de 80 pelo arquiteto Fernando Frank. A estrutura metálica do prédio foi projetada pelo engenheiro José Luis de
Souza. Fonte: www.fecomercio-ba.com.br, em 15/11/2009.
idéias e ações de quem a produz. Interage no espaço, no cotidiano dos passantes que
convivem com sua presença, enriquecendo-a de outros sentidos, podendo ainda ser admirada,
ignorada ou desafiada.
Das sobras do recorte do aço usado para o Sinal da Cruz foi criado o Exu dos Ventos,
em 1992, no ateliê da avenida Anita Garibaldi, em Salvador. Com seus quase dez metros de
altura, com um alongado braço indicador, parte da escultura é móvel, de corpo fixado ao chão,
num tripé. Guarda a mesma simetria e articulações angulares utilizadas em Sinal da Cruz.
Nesse mesmo corpo, podemos ver as costelas que servem de escada para manutenção da peça.
O autor a descreve:
E tem o Exu aqui no canto. O parque na frente. Essa escultura é móvel. Esse elemento é
móvel: a estrutura e os braços. A escultura toda é móvel. O corpo cola os braços e a cabeça,
que estão apoiados aqui em dois pontos de articulação: um aqui que balança o corpo e na
parte de cima, os braços. Apoiada aqui balança os braços. E em cima tem outro elemento de
apoio, um eixo e o outro elemento da cabeça, que faz a cabeça e os chifres, que é outro
independente. É um movimento interessante que faz ele ficar assim... como que chamamos
aqui na Bahia de mané-gostoso38.39
19
Montagem de Exu com
Mário Cravo ao topo,
no ateliê da Av. Anita
Garibaldi, 556,
Salvador, 1992. Foto
cedida pelo artista.
Desejoso de poder exibir suas obras permanentemente, Mário Cravo idealiza a criação
de um ambiente que acolha também atividades educacionais em integração de arte e natureza.
Inicia a criação do Espaço Cravo, em que a intenção é fugir do modelo vigente de museologia
38
Mané-gostoso – brinquedo infantil do artesanato popular em madeira que mexe braços e pernas.
39
CRAVO Jr, M. Entrevista concedida a Mônica Linhares, 21/9/2009. Salvador (BA).
66
e propor um museu a céu aberto sob o sol e a chuva em diálogo constante com a natureza.
Mário Cravo mantém relações políticas estreitas, que garantem lugar para seu trabalho
artístico. Nesta prática, doa ao Estado da Bahia um acervo de 800 esculturas – com mais 200
em consignação – num pleito entre artista e poder público; espaço didático e espaço oficina;
administração, conservação e patrocínio. Instala-se organicamente no Parque Metropolitano
de Pituaçu,40 em 1994, com totens vegetais, objetos alados, tridimensionais, móbiles,
desenhos, pinturas, produção em multimídia e também obras de outros artistas.
Algumas vezes o artista recebe pessoalmente as crianças em excursão de visitação ao
espaço didático e ao espaço oficina; além de outros grupos, mais raros, de alunos e
professores da Escola de Belas Artes, da Universidade Federal da Bahia.
Nesse contexto, de espaço e tempo, nosso protagonista – o Exu dos Ventos – foi
instalado, triunfante, à entrada do parque ―como a mais importante escultura, por sua
característica e monumentalidade‖ (CRAVO, 2002, p. 76) e lá permaneceu por mais seis anos.
40
O Parque Metropolitano de Pituaçu foi criado pelo decreto 23.666/77 do executivo estadual e é a maior reserva
ecológica com remanescente de Mata Atlântica da cidade de Salvador, Bahia. São 15 km de trilhas pavimentadas,
restaurantes, parques infantis, quadras poliesportivas, quiosques, esportes náuticos, além do museu a céu aberto.
67
III
Então perguntou: “Que é daquele que vi à entrada de sua casa?” É aquele mesmo
que ele quer. Òrìsànlá lhe explicou que aquele não era precisamente alguém que
pudesse ser criado e mimado no àiyé. Mas Òrúnmìlà insistiu tanto que Òsàlá
acabou por aquiescer.
Òrúnmìlà deveria colocar suas mãos em Esú e, de volta ao àiyé, manter relações
com sua mulher Yebìírú, que conceberia um filho. Doze meses mais tarde, ela deu à
luz um filho homem e, porque Òsàlá dissera que a criança seria Alágbára, Senhor
do Poder, Òrúnmìlà decidiu chamá-la de Elégbára.
No ano de 1998, o prefeito do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Conde visita Salvador por
ocasião da cerimônia de inauguração do Memorial Luis Eduardo Magalhães41. O monumento
foi por ele projetado. Compareceu o então presidente da República Fernando Henrique
Cardoso, além de familiares e aliados políticos. Posteriormente, ao visitar o Espaço Mário
Cravo, Conde conta em declaração ao jornal O Dia42 que chegou a fazer uma oferta ao
escultor pelo Exu dos Ventos, com o intuito de colocá-lo às margens da Lagoa Rodrigo de
Freitas. Teria se interessado também por um Cristo, que Cravo Junior não aceitou vender.
Logo depois, a empresa Lamsa43 – concessionária responsável pela Linha Amarela e
pertencente à empreendedora baiana Construtora OAS Ltda. – adquire a escultura para
oferecê-la ao município do Rio de Janeiro. A previsão de instalação da peça era junho de
2000. Porém, quando foi anunciado na imprensa em fevereiro do mesmo ano, sendo ainda ano
eleitoral para os cargos municipais, a instalação da escultura acionou redes sociais distintas
41
O monumento, localizado na avenida Luis Viana Filho – Paralela, possui três monólitos de pedra polida, um espelho
d‘água e uma estátua representado Luís Eduardo. Na base, uma placa indica que ali foi enterrado o coração do ex-deputado:
―Aqui se encontra o coração do deputado Luís Eduardo Magalhães‖. Vale lembrar que o coração foi retirado, sem
autorização da família, pelos médicos que acompanharam o político. A polêmica que envolveu o destino do órgão chegou ao
fim com a encomenda do monumento. Este foi projetado pelos arquitetos Luiz Paulo Conde, prefeito do Rio de Janeiro, e
Mauro Neves Nogueira. A estátua foi esculpida por Edgar Duvivier. A verba utilizada na construção do monumento foi
obtida através de doações feitas à Associação de Amigos de Luís Eduardo Magalhães.
42
Reportagem de Luiz Ernesto Magalhães ―Exu à base de restos de cruz‖, jornal O Dia, 14/2/2000.
43
―Concessão da via urbana Lamsa – Linha Amarela, no Rio de Janeiro, oficialmente Avenida Governador Carlos Lacerda,
trecho que compreende o quilômetro 6 (Cidade de Deus – Barra) até a Ilha do Fundão (ligação com a Linha Vermelha),
incluindo operação e manutenção. Este é um dos primeiros investimentos sob a modelagem de participação pública e privada
do Brasil (tendo de um lado a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, com suporte institucional, e de outro a OAS, com
aparato empresarial e recursos para o financiamento da obra). A Lamsa é a única concessão rodoviária municipal do país.‖
Trecho retirado do site OAS Investimentos, disponível em http://www.oas.com.br, em 15/11/2009.
68
numa acirrada disputa não só pelo espaço simbólico na Cidade, mas também pela utilização
do espaço na mídia impressa.
A notícia da encomenda da escultura baiana ao cenário carioca movimentou
autoridades religiosas. A Cidade Maravilhosa, que tem a imagem do Cristo Redentor em seu
ponto mais alto da paisagem – abraçando todos os cidadãos – passaria a ter Exu dos Ventos
em seu importante e mais novo entroncamento viário. Embora o prefeito tenha justificado seu
intento como homenagem às culturas afro-brasileiras, isso não foi suficiente para conter os
ânimos.
Importante entender o Rio de Janeiro além Cidade Maravilhosa cantada e contada nas
marchinhas de carnaval e nos cartões postais, mas como uma grande cidade moderna definida
por características materiais e imateriais próprias, com expressiva heterogeneidade e
diversidade sociocultural, como tão bem nos apresenta Gilberto Velho em Metrópole, cultura
e conflito (2007). As diferenças em termos de visão de mundo e estilos de vida entre
categorias sociais que convivem e interagem cotidianamente não são sempre óbvias. E nos
adverte
Reconhecer as diferenças, estranhar o que está próximo, relativizá-lo são meios de ter uma
visão mais complexa do mundo em que vivemos e, simultaneamente, buscar indagar sobre as
possibilidades de negociação e diálogo entre valores, interesses e atores diferenciados. A
tensão e o conflito fazem parte desse cenário. Cabe ser capaz de identificá-los e, em termos de
uma ação pública, valorizar a possibilidade de uma conciliação, como já nos falava Cícero, há
mais de dois mil anos, no contexto conflituoso da República Romana de então. (p.16)
70
candidatos Conde, César Maia e Benedita, como nos assinala Marcus Figueiredo, Luciana
Fernandes Veiga e Alessandra Aldé.44
Conde estreou na política como secretário de Urbanismo de César Maia, entre 1992 e
1996. Conde venceu as eleições seguintes apadrinhado por César Maia e administrou a
Prefeitura do Rio de Janeiro entre 1996 e 2000. Ambos dividiam méritos e deméritos dos
programas Favela-bairro, Rio-Cidade, na construção da Linha Amarela e na criação da
Guarda Municipal, entre outros. Se nas eleições de 1996 ambos buscavam convencer o
eleitorado carioca que Conde era César e vice-versa, nas eleições seguintes, após um
rompimento entre eles, o objetivo era disputar o mérito dos projetos: Conde pelo PFL e César
pelo PTB. Além de outros candidatos, a Prefeitura também estava sendo disputada com a
Benedita da Silva (PT) – cuja plataforma eleitoral contava com apoio de parte do Movimento
Negro tanto quanto contava com parte dos evangélicos. Essa configuração de apoio político é
compartilhada com o candidato Conde, efetivamente eleito.
Geralmente no período pré-eleitoral, compreendido entre março e julho, os políticos e
a mídia começam a mobilizar o eleitorado. É nesse período que iniciam a formação de
alianças. O envolvimento do eleitorado cresce ao longo processo eleitoral, e como nesse início
a propaganda política eleitoral ainda está proibida, a alternativa é a promoção de
acontecimentos ―eleitoreiros‖ para difusão na mídia. Nesse sentido, dentro da sociedade de
massa que compõe o Rio de Janeiro, a mídia assume um importante papel informativo, dando
maior ou menor visibilidade, a depender da importância que atribui a determinados assuntos
ou personalidades.
É nesse momento, e não em outro, que Exu dos Ventos ganha grande relevância pela
mídia impressa. E é nesse período que Exu fica mais forte e mais difícil que seus criadores. O
fato é que sendo pelas preocupações eleitoreiras ou por outro motivo qualquer, a inauguração
da escultura que estava prevista para meados do ano 2000 foi adiada para depois das eleições
pelo prefeito.
44
FIGUEIREDO, Marcus; ALDÉ, Alessandra; VEIGA, Luciana Fernandes. Cesar versus Conde e a nova política carioca: a
disputa eleitoral no Rio de Janeiro, 2000. In: SILVEIRA, Flavio (org.). Persuasão, estratégia e voto: as eleições municipais
de 2000. Porto Alegre, 2002.
71
IV
A mãe respondeu:
Omo na jeé
Omo na jeé
Filho come, come
Filho come, come
Omo l’okùn
Omo ni jìngìndìnríngín
A um se yì, mú s’òrun
Ara eni
Um filho é como contas de coral vermelho,
Um filho é como cobre,
Um filho é como alegria inestinguível.
Uma honra apresentável, que nos representará depois da morte.
Com a notícia da chegada da escultura de Exu ao Rio, a imprensa marca presença com
uma série de reportagens nos principais jornais cariocas, nos períodos de fevereiro, março e
dezembro de 2000. O jornal O Dia, dos mais populares e de maior circulação no Rio de
Janeiro, publica um total de doze matérias no período. É o jornal que dá maior destaque ao
conflito religioso, abrindo espaço para as opiniões dos evangélicos e para a Bancada
Evangélica da Assembléia Legislativa. Conta ainda com a seção ―Cartas na Mesa‖, onde
expõe várias opiniões de seus leitores.
O Dia inaugura a refrega em 16 de fevereiro de 2000, de forma provocativa, reunindo
a opinião de líderes religiosos sob a chamada ―Evangélicos e católicos reagem‖. Já no
primeiro parágrafo descreve a ofensiva do presidente da Igreja Prebisteriana, o pastor
Guilhermino Cunha, anunciado sua intenção de pedir audiência pública ao prefeito para
impedir a instalação da escultura. Em contrapartida, nesse mesmo texto, líderes católicos não
se opõem claramente demonstrando certa preocupação ―com a possibilidade de gerar mal-
estar‖. Em declaração pública, padre Jesus Hortal, reitor da PUC, complementa ―pode ofender
as convicções de alguém‖. A reportagem conta com declarações favoráveis de representantes
das religiões de matriz africana – os babalorixás Paulo de Oxalá, do candomblé, e, Jair de
Ogum da umbanda. Este último esclarece que Exu dos Ventos é uma entidade boa, mostrando-
se preocupado com a incompreensão de outros, que provavelmente passariam a chamar a
72
Linha Amarela de ―via do demônio‖. Fecha o texto com sugestão dos leitores de instalar, além
do Exu dos Ventos, obras de outras religiões tornando a Linha Amarela uma ―linha
ECUMÊNICA‖. Até Paulo Casé, autor do obelisco de Ipanema – obra feita durante a gestão
de Conde, no projeto Rio-cidade –, prestou seu depoimento defendendo o enriquecimento do
cenário urbano com a arte.
Dois dias depois, o jornal O Dia torna a incitar a cizânia através da chamada: ―Exu à
base de resto de cruz‖. Complementa logo abaixo, em destaque ―Escultura polêmica com um
olho e dois chifres foi feita com mesmo material usado em símbolo do cristianismo‖.
Contrapõe as falas do artista, do prefeito, do público e, com certa malícia, descreve ―o local
escolhido já ganhou até apelido de gozadores: seria a maior encruzilhada do mundo. Isto por
estar entre a avenida Brasil e a Linha Amarela, por onde passam 200 mil carros por dia.‖
Em geral ao final das reportagens é dada grande ênfase na intenção da bancada
evangélica de entrar com um processo na Justiça e utilizar o plenário em audiência pública
para tentar impedir a instalação da escultura.
No dia 22 de fevereiro de 2000, o mesmo jornal publica a chamada ―Motoristas
decidirão a instalação do Exu – Conde realizará plebiscito no pedágio‖. A reportagem
esclarece a decisão de Conde de realizar o plebiscito ―em data ainda a ser marcada‖, entre os
usuários da Linha Amarela, devido às pressões feitas pelos evangélicos. Seria feito um
questionário para distribuição na Praça de pedágio, oferecendo as opções do instalar a
escultura nos jardins do MAM ou no Parque do Flamengo.
Instigando ainda mais a polêmica, o jornal anuncia que o reverendo Guilhermino
Cunha, presidente da Igreja Presbiteriana, recebeu a oferta de uma empresa, cuja intenção era
fornecer dez mil adesivos em campanha contra o Exu dos Ventos na Linha Amarela, com os
dizeres: ―A linha é consagrada a Exu. Evite acidentes‖. Ainda anuncia que um grupo de
pastores irá ao local da escultura para ungir a via. O jornal contrapõe a opinião principal no
final do texto citando outras esculturas de entidades de candomblé existentes na cidade do Rio
de Janeiro, mantidas pela Prefeitura, que não receberam o mesmo tratamento.
No dia seguinte, o mesmo jornal publica na primeira página ―Xô, Exu‖ sob a foto dos
pastores com as mãos levantadas em oração e bíblia em punho, a imagem privilegia os dizeres
da placa ao fundo: ―Ampliação da Linha Amarela – por um Rio cada vez melhor.‖ Há quase
um trocadilho visual entre a manchete de capa e o texto no interior do jornal, que na realidade
informa sobre a falta de obras de drenagem na via; mas que, inicia o texto com ―Queima e
destrua todo mal!‖.
73
O jornal O Dia fecha o conjunto de reportagens no dia 2 de março de 2000, sob o
título ―Conde admite que Exu vai para o MAM. Prefeito quer evitar polêmica religiosa‖.
Entretanto, no corpo do texto, transcreve a fala do prefeito citando que ainda não havia
decidido sobre o local, mas que se houvesse muita resistência iria acabar indo para o MAM.
Cita ainda uma matéria de outro jornal evangélico, escrita pelo próprio bispo Edir Macedo,
abordando o assunto como uma afronta, sugerindo a perda de votos do prefeito entre os
evangélicos na tentativa de reeleição.
Exu dos Ventos voltará às páginas do jornal O Dia somente no final do ano, após as
eleições e em ocasião de sua inauguração em 16 de dezembro de 2000, sob a chamada
―Escultura de Exu inaugurada‖. O texto, além de recontar a polêmica, insiste que o pastor e
deputado estadual Mário Luiz (PMDB) líder do movimento contra a instalação no início do
ano, ainda iria à Justiça tentar impetrar um mandado de segurança. Em depoimento, declara
que a derrota de Conde nas urnas se deve a sua associação com Exu, complementando que
isso ainda iria trazer maldição para a vida dele, o prefeito.
No dia seguinte, Exu dos Ventos aparece com destaque na fotografia com o prefeito
comemorando juntamente com grupos ligados às comunidades religiosas de matriz africana.
Curiosamente, o conjunto aparece sob a chamada ―Grade na Linha Amarela – Depois de
morte de empresária, Conde quer que passarelas sejam cercadas‖.
O Jornal do Brasil, de maior circulação entre as classes mais altas do Rio de Janeiro,
publicou apenas uma matéria no dia 15 de dezembro de 2000, com uma foto sob o título ―Exu
dos Ventos‖. O texto trata de maneira informativa sobre a inauguração da obra pelo prefeito, a
aquisição da escultura pela empresa Lamsa, além de passar rapidamente pela polêmica com
evangélicos.
O jornal O Globo, um dos maiores jornais do Rio de Janeiro, apresenta matérias sobre
o evento, com destaque para a visão católica. Na primeira reportagem, abre polêmica entre a
representação católica do Cristo Redentor em contrapartida ao Exu dos Ventos afro-brasileiro.
Em outra reportagem, faz uma retrospectiva da obra do artista sobre os temas do candomblé e
de representações católicas de Cristos crucificados. Dá uma grande ênfase em quase todas as
reportagens ao posicionamento do Cardeal Dom Eugênio Salles, contra a escultura.
O jornal Extra, mais popular e de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro,
Grande Rio e Baixada Fluminense, inicia suas reportagens no dia 20 de fevereiro de 2000
com a chamada ―Figa de Guiné para benzer a Linha Amarela‖, aparentemente favorável à
instalação da escultura. Logo no primeiro parágrafo, situa o leitor sobre as características
positivas de Exu: ―Se depender da ação do Exu, uma entidade que entre outras coisas protege
74
os motoristas, é guardiã dos caminhos e leva para longe a maldade, brevemente os tiroteios,
alagamentos, protestos, acidentes e outros problemas que rondam alguns trechos da Linha
Amarela ficarão para escanteio‖.
Informa erroneamente que o prefeito autorizou a confecção da escultura pelo artista
plástico Mário Cravo Junior e que o Exu dos Ventos estaria sendo produzida em Salvador.
Descreve ainda a ida de 30 espíritas ao local para agradecer e abençoar, comandados por Jair
de Ogum, ―rei dos babalorixás‖.
Segundo Maria Clara Baltar (2005, p. 29), o jornal cria uma disputa de espaço na
cidade entre os católicos e espíritas, como são chamados os representantes das religiões afro-
brasileiras. Abre espaço aos representantes das religiões afro-brasileiras de se manifestarem
sobre o caso. Os evangélicos são citados, mas em nenhum momento foram exibidas suas
opiniões sobre o ocorrido.
Em outra reportagem, de 2 de março de 2000, o Extra exibe: ―O prefeito do Rio, Luiz
Paulo Conde, decidiu acender uma vela para Deus e outra para o Diabo: para não desagradar
umbandistas, católicos e nem evangélicos, ele decidiu que a escultura vai para o MAM‖. No
corpo da reportagem, cita a manifestação contrária de Dom Eugênio Sales.
Exu dos Ventos voltara às páginas desse jornal somente em 15 de dezembro de 2000,
um dia antes da inauguração, informando o local e a hora do evento, justificando que a
informação não foi divulgada anteriormente para evitar protestos de católicos e protestantes.
Entretanto, durante a realização desta pesquisa não foi localizado nenhum projeto,
ementa, petição ou ata de reunião nos sistemas de processamento do Legislativo ou do
Judiciário que dispusesse alguma referência sobre Exu dos Ventos. Foi encontrada somente:
uma Moção de Protesto45 contra a empresa Lamsa pela iniciativa de instalar Exu dos Ventos,
de autoria do deputado Alessandro Calazans, seguida ainda de discurso proferido pelo
deputado pastor Mário Luiz (PFL).46 Este último esclarece em seu discurso o desejo de tornar
pública sua indignação com a instalação da escultura de Exu. Sua perplexidade se dá, em suas
palavras, ―quando tentam agredir e utilizar imóveis públicos para impor a religião, agredindo
a religião dos outros‖. E complementa: ―porque Exu já é religião, com todo o respeito ao
religioso e com todo o ódio pelo trabalho negativo que isso proporciona à sociedade‖. O
pastor recebe um ―aparte‖ do deputado Carlos Dias, inicialmente corroborando com o
45
Moção de Protesto contra a iniciativa da Lamsa, de instalar uma escultura de Exu dos Ventos na Assembléia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro, protocolada sob o número 20001201802, de autoria do deputado Alessandro Calazans, publicado
no Diário Oficial no dia de 23/2/2000.
46
Discurso da Sessão Ordinária Inicial, publicado no Diário Oficial do dia 22/2/2000.
75
discurso do pastor para logo em seguida partir para uma disputa entre catolicismo e
protestantismo. Ironicamente, ao final, já tinham até se esquecido de Exu.
76
V
Então Òrúnmìlà trouxe todas as preás que pôde encontrar. E Esú acabou com elas.
No dia seguinte a cena se repetiu com peixes. No terceiro dia, Esú quis comer aves.
Gritou e comeu até acabar com todas as espécies de aves. Sua mãe cantava todos os
dias os versos acima e ainda acrescentava:
Mo r’omo na
Ají logba aso
Omo máa
No quarto dia, Esú quis comer carne. Sua mãe cantou como de hábito, e Òrúnmìlà
trouxe-lhe todos os animais que pôde achar: cachorros, porcos, cabras, ovelhas,
touros, cavalos, etc.; até que não sobrou nenhum. Esú não parou de chorar.
47
As duas linhas, Vermelha e Amarela, fazem parte do ―Plano Doxiadis‖, também conhecido como Plano Policromático, foi
publicado em 1965 e concebido pelo arquiteto e urbanista grego Constantino Doxiádis, sob encomenda do então governador
do estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1960-1965). Destinava-se à reformulação das linhas mestras do urbanismo da
cidade do Rio de Janeiro. Informação disponível em http://www.urbanismobr.org/bd/documentos.php?id=2765, em
19/1/2010.
77
Baixa do Sapateiro e Timbau (pertencentes ao Complexo da Maré)48 e à cidade universitária
(ilha do Fundão). Logo atrás, existe uma das avenidas mais movimentadas do Fundão –
notadamente pelas aulas de cursos noturnos, nos prédios do Centro Ciências Matemáticas e da
Natureza (CCMN), Centro de Tecnologia (CT) e Instituto de Alberto Luiz Coimbra de Pós-
graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE).
21
Foto da base da escultura Exu dos Ventos
RJ, Junho/2009. Foto acervo pessoal.
48
Complexo da Maré (ou simplesmente Maré) é um bairro da Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. Foi desmembrado
de Bonsucesso pela Lei Municipal 2.119, de 19 de janeiro de 1994. A região, também conhecida como Favela da Maré, reúne
diversas comunidades e favelas às margens da Baía de Guanabara. Com cerca de 130 mil moradores (dados de 2006), possui
o maior complexo de favelas do Rio de Janeiro, conseqüência dos baixos indicadores de desenvolvimento humano que
caracterizam a região.
78
Para compreender a ―dinâmica do olhar‖ que está em jogo no Exu dos Ventos –
especificamente na estrutura narrativa da Linha Amarela – é preciso considerar a interação do
observador com a obra e com sua orientação espacial. Paulo Knauss afirma em ―Olhares sobre
a cidade: as formas da imaginária urbana‖ (2001, p. 10) que os aspectos formais escultóricos
podem ser abordados a partir de sua relação com a forma urbana, organizando a construção
dos olhares sobre a cidade, dando sentido à imagem escultórica que se define como imagem
urbana.
Knauss parte da prerrogativa de centralismo, onde o ―poder de centro‖ (ARNHEIM,
1990) pode se desenvolver na escultura tanto em relação a sua posição na malha urbana como
em posição com o observador. Nesse sentido, Exu dos Ventos na Linha Amarela vai recusar o
poder do centro conferido pela localização central não só em relação às avenidas da Linha
Amarela e Linha Vermelha, mas como também em relação à planta do entorno onde está
instalado. Outra característica passa pela sua posição viária, percebida do ponto de vista do
veículo em velocidade, somando ao olhar mais um dinamismo sensível, potencializando suas
características cinéticas.
Lembro-me bem de quando o Exu dos Ventos foi instalado. Na época, fazia a minha
graduação na UFRJ e, quando pude observar a escultura, foi através da janela de um ônibus
em movimento. Fiquei feliz de ver Exu dos Ventos. Enquanto adepta de culto afro, senti-me
orgulhosa. Entretanto, não atentei para o detalhe de ser uma escultura móvel. E como o local é
quase exclusivamente de passagem viária, fui naturalizando esse personagem no cotidiano,
nas minhas idas e vindas. Depois de certo tempo recordo-me, de repente, de ter olhado a
escultura e achado sem graça. E ainda pensei na hora: ―Caramba, que coisa sem graça. Tanto
bafafá… e a escultura, de Exu só tem o nome‖. Depois é que me dei conta de que pelo menos
metade dela estava faltando.
Acredito que o nosso personagem Exu dos Ventos careça de uma vista adequada.
Minha grande dificuldade em compor essas análises é de não ter contemplado a obra como
platéia, e assim me relacionado com a espécie de presença cênica oferecida pelos movimentos
da escultura. Rosalind Krauss (2007, p. 244) chama nossa atenção para a temporalidade
estendida como conceito de tempo. Nos caminhos da escultura moderna há uma fusão da
experiência temporal da escultura com o tempo real, conferindo ao trabalho certa teatralidade.
Um dos aspectos mais notáveis da escultura moderna é o modo como manifesta a consciência
cada vez maior de seus praticantes de que a escultura é um meio de expressão peculiarmente
situado na junção entre repouso e movimento, entre o tempo capturado e a passagem do
tempo. É dessa tensão, que define a condição mesma da escultura, que provém seu enorme
poder expressivo.
79
Essa teatralidade, de certa forma, foi suspensa quando Exu dos Ventos se muda para a
Linha Amarela. Porém, o sentido cinético é deslocado do eixo da estrutura da obra – afinal
trata-se de uma escultura móvel – para aquele que a contempla. A dinâmica do olhar se
inverte e subverte a temporalidade pensada pelo artista. Artes de Exu? Talvez. Como já ouvi
dos mais velhos: ―Exu mata o pássaro hoje com a pedra que atirou ontem‖. Nessa nova
situação, é o olhar que se movimenta e não a obra, conferindo um novo caráter cinético ao que
antes era fixo.
Na tentativa de melhor compreender os olhares que se cruzam e que conferem sentido
à escultura Exu dos Ventos, fui até a Linha Amarela. Assim como no trabalho de campo do
Tridente de NI, minha intenção também passava pela recuperação da memória dos
funcionários de empresas vizinhas à escultura, que tivessem convivido com a obra inteira. No
entanto, durante a incursão percebi que era dada maior ênfase à questão simbólica de Exu do
que à apreciação estética.
Conversei com um dos técnicos da ambulância UTI Vida que presta serviço à Lamsa.
Logo de início, o entrevistado falou o nome do autor e da obra. Estava fazendo um curso para
pastor da Igreja Evangélica. Conta ainda que recentemente, Exu dos Ventos havia sido tema
das aulas, entre outras esculturas da cidade. Então insisti em questionar sobre o problema com
esta imagem, exatamente porque já existem, no Rio de Janeiro, outras imagens de referências
religiosas – como o próprio Cristo Redentor –, perguntei se não havia um pouco de
preconceito por se referir ao universo afro-brasileiro. Por que esse segmento religioso não
teria também o direito de figurar seus mitos em obras de arte distribuídas pela cidade? No que
o entrevistado respondeu: ―Por ser Exu e por ser associado ao diabo, o que deixa a situação
bem complicada‖. Insisti sobre a questão do preconceito e ele sentenciou:
Isso simplesmente não combina com o lugar. Esse negócio de mexer com o vento – o que isso
tem haver com esse lugar? É um local que tem toda uma questão ecológica e a meu ver não
combina com nada aqui, nem na forma e nem na idéia. Poderiam ter arrumado um lugar mais
adequado.
Um dos funcionários da Cedae, quando abordado sobre a escultura, com bom humor
respondeu: ―Isso aí é macuuumba!‖ Não contive o riso e perguntei o que entendia por
macumba: ―É, dona,... é macumba. Volta e meia vem um grupo aqui e deixa um monte de
‗sujeira‘ ali‖. Então, surpreendida, perguntei: ―Mas, na escultura?‖ E meu interlocutor
respondeu que sim, além de toda a volta e em todos os lugares da ilha. Que havia algum
tempo que não faziam nada, mas que era rotineiro deixarem oferendas aos pés da escultura.
Agradeci e, intrigada, me despedi. Algumas funcionárias do CCMN que descansavam de
80
frente para a avenida Seis também reclamaram da sujeira deixada com as oferendas, sem
entrar em maiores detalhes sobre a escultura.
Resolvi ponderar algumas questões nas narrativas coletadas. A primeira delas foi sobre
Exu dos Ventos não dialogar com o entorno da ilha, sugerindo que a idéia da instalação no
MAM encontraria local mais apropriado. Para sair do Fundão, qualquer ônibus precisa dar a
volta em toda ilha e, nesse percurso, observei a arquitetura dos prédios existentes,
principalmente em toda a avenida Um. Há um centro de pesquisas da Petrobrás, o Cenpes, e
em frente, na mesma avenida, está sendo erguido um enorme pavilhão todo em estrutura
metálica, em que a cobertura tem um formato de uma única onda. Logo na frente construíram
uma cúpula que confere um aspecto ainda mais futurista ao conjunto. Isso para utilizar de
linguagem leiga.
Dessa forma, é possível fazer uma abordagem da narrativa visual da escultura com a
forma urbana do Fundão. Exu dos Ventos afeta o espaço como um ator mecânico, que dialoga
com a passagem do tempo, inclusive pela estrutura de aço em moldes construtivos. Tudo isso
animado por uma fonte de energia externa. Esse aspecto cibernético encontra eco nos
modernos edifícios e centros de pesquisas de complexas tecnologias que compõem o campus
universitário, propondo um novo olhar sobre a ilha.
Rosalind Krauss (2007, p. 253) chama atenção ainda sobre o papel ideológico de toda
a arte. De que as obras de arte projetam uma imagem particular do mundo, ou de como é estar
no mundo. Esse ―mundo‖ é compreendido fundamentalmente diferente quando observado de
diferentes pontos de vista ideológicos. Embora haja toda uma construção histórica e
ideológica que levaram os cristãos católicos a traduzirem Exu como diabo no século XIX,
(VERGER, 2000, p. 119) essa construção ganha força com os neopentecostais.
Esse ataque às imagens de santos e orixás – que volta e meia são noticiados nos jornais
– em parte se baseiam numa concepção iconoclasta de que as imagens não possuem
legitimidade com os assuntos sagrados, numa disputa entre palavra (Bíblia) e imagem na
representação do sagrado.
Há uma clara tensão entre as concepções de imagem contida na escultura Exu dos
Ventos. Embora o artista afirme que não utiliza qualquer conotação religiosa ou ortodoxa
quando elege figuras religiosas como tema em suas esculturas. Porém esse sentido místico é
incorporado pelo público devoto no Rio de Janeiro. E, ironicamente, a escultura passa a ser
―alimentada‖ pelo povo-de-santo.
Na busca pela essência da escultura como imagem, Cristina Salgado (2008) chega à
concepção de imagem como espectro invisível, consubstanciado com o indizível, que encarna
81
em diferentes suportes. Entretanto, no exercício do enigma, problematiza que ―a atribuição de
valor a um ícone se relaciona com legitimidade, e esta, com a fidelidade à imagem que é seu
modelo original e fundador‖ (SALGADO, 2008, p. 141).
Entretanto no universo cultural do povo-de-santo, as dinâmicas religiosas da prática de
representação alcançam sua legitimidade como valor nos processos que se operam no seio da
vida religiosa. Essas representações são consubstancializadas nos assentamentos dos
ancestrais míticos, gerando ainda uma
Identificando-os como ídolos, com os seus ataques iconoclastas, os crentes tomavam uma
atitude com relação às esculturas absolutamente oposta à experiência estética, que esse
monumento esperava suscitar. Poderíamos explicar essa contradição nos termos seguintes: na
experiência estética temos uma consideração fundamentalmente sensitiva da aparência das
coisas observadas, independentemente da ―coisa-em-si‖ e do interesse do observador.
Idealmente, no juízo de gosto, sequer tocamos o objeto – é uma experiência muito visual,
subjetiva e intelectualizada. Diferenciamos o símbolo – o que a escultura representa – da coisa
em si; podemos apreciar a beleza do objeto independentemente da nossa fé religiosa – não
importa se acreditamos nos orixás ou não. A atitude do iconoclasta é totalmente diversa: a
aparência das coisas, para o iconoclasta, é engano e deve ser evitada; o que importa realmente
é o que está por dentro e, neste caso, não seria outra coisa além do Diabo.
82
VI
Imagem assento
Ìyá, Ìyá,
Ng ó je ó!
Mãe, mãe,
Eu quero comê-la!
A mãe repetiu a canção... e foi assim que Esú engoliu a própria mãe.
Òrúnmìlà, alarmado, correu a consultar Ifá que lhe recomendou fazer oferendas
contendo uma espada. Assim foi feito.
49
CRAVO Jr., entrevista concedida a Mônica Linhares, em 21/9/2009.
83
22
Inauguração da obra.
Foto Luis Carlos da Silva. RJ,
16/12/2000.
Na época em que começaram a frequentar as casas de candomblé da Bahia haviam lhe dito,
que ele, Cravo Junior era filho de Omolu. Carybé se envolveu mais profundamente com a
religião, completando suas iniciações. Porém Mário Cravo foi categórico em se colocar
apenas como um simpatizante ou visitante, sem maiores comprometimentos, de interesse
puramente artístico.
De acordo com Pai Celso o Exu assentado foi Exu Sete Encruzilhadas, que é uma
entidade da Umbanda ligada a Oxalá. Através dos búzios a entidade recomendou, ainda, que a
inauguração fosse feita pela manhã, com uma festa simples, sem bebida alcoólica e de poucos
convidados.
A assessoria do prefeito recomendou discrição para que não houvesse nenhuma
manifestação com cartazes contrários à escultura nem nada do tipo, uma vez que o
84
assentamento ocorreu no foro íntimo dos atores aqui descritos. A escultura foi montada no dia
15 de dezembro, pelo filho mais novo de Mário Cravo, Ivan. A cerimônia religiosa foi
realizada nesse mesmo dia, bem cedo, antes mesmo da chegada da escultura. Estavam
presentes apenas os sacerdotes envolvidos. E, assim, assentaram Exu no local que foi
destinado à escultura Exu dos Ventos.
No dia da inauguração, antes da chegada da comitiva e dos convidados, Pai Celso
conta que Mário Cravo Neto veio acompanhado de um sacerdote da Bahia, deram um obi50 a
Exu que respondeu satisfatoriamente sobre os procedimentos religiosos realizados.
Na hora marcada chegaram outras pessoas ligadas aos segmentos religiosos afro para
participar da inauguração, trajados com a indumentária religiosa observada na foto. O prefeito
pôde contemplar a escultura e comemorar essa instalação depois de todo o impasse que se
colocou diante da bancada evangélica e da mídia, mesmo após perder as eleições.
50
Obi – semente de noz de cola, originária da África, presente nas cerimônias e na prática do jogo de confirmação, cf.
BENISTE, 2000, p. 192.
85
VII
23
Escultura Exu dos Ventos
Ilha do Fundão, RJ
Agosto de 2009.
Foto Mônica Linhares.
86
Durante todo o tempo que durou esta pesquisa a escultura permaneceu no estado desta
foto: destituída de parte da estrutura móvel. Durante as entrevistas sobre o Tridente de NI
coletei a informação de que Exu dos Ventos teria sido danificado por vandalismo. Disseram
que traficantes da Favela da Maré – talvez simpatizantes das Igrejas Neopentecostais, teriam
arrancado a parte superior da escultura a tiros. Após a queda, parte da escultura teria sido
levada ao Pamplonão, como chamavam, na época, o galpão de pintura da Escola de Belas
Artes, no prédio da Reitoria.
Havia o intuito da Companhia Omo Aro de propor um projeto de restauração do Exu
dos Ventos, uma vez que mantém como missão principal ―resgatar o saber tradicional das
religiões afro-brasileiras e promover a preservação do meio ambiente a partir desse resgate‖.51
Fiquei alguns meses tentando contato com a Lamsa. Até que finalmente consegui falar
com o engenheiro responsável pela conservação que, gentilmente, informou que a escultura
era de responsabilidade da Fundação Parques e Jardins e que a parte faltante estaria guardada
num galpão na Praça Onze.
Entrei em contato com Fundação Parques e Jardins, na divisão responsável por
monumentos e chafarizes fui muito bem recebida pela equipe. Prontamente colocaram à
minha disposição os arquivos das reportagens, bem como fotografias da retirada da escultura
do local.
24
Foto da retirada de parte
da escultura pela FJP.
Rio, maio de 2005.
Cortesia de Vera Dias.
51
Texto extraído do folheto educativo Oku Abo Espaço Sagrado – Educação ambiental para religiões afro-brasileira,
produzido em parceria com a Fundação Cultural Palmares e Ministério da Cultura, com tiragem de 15 mil exemplares para
distribuição nas comunidades de Axé.
87
A arquiteta Vera Dias, responsável pelo setor, estava presente quando da retirada dessa
parte da escultura e esclareceu que foi derrubada por um forte vento, em maio de 2005.
Apontou, na foto, pela direção como está caída, que é contrária à direção do vento Sudoeste,
causador da queda. Disse ainda desconhecer indício de tiros ou algo do tipo. Também
desconhecia que a escultura tivesse passado pela Barra da Tijuca, como eu havia sido
informada, no Fundão.
Encontrei a parte superior da escultura abaixo do elevado por onde passa a avenida
Trinta e Um de Março. Por conseqüência da proximidade com áreas de risco e dos frequentes
furtos, todas as peças na parte externa do galpão estavam amarradas com correntes ou cabos
de aço. Surpreendentemente, deparei-me com a parte superior de Exu dos Ventos amarrada a
outra peça que, anteriormente, compunha uma cruz.
25
Parte superior da escultura Exu dos Ventos acorrentada à cruz. Fundação Parques e Jardins, Praça
Onze, RJ. Agosto de 2009.
Foto Mônica Linhares.
Não consegui maiores detalhes sobre a cruz. Mesmo na hora fiquei confusa, sem
conseguir identificar a parte completamente, pois que não tenho na memória a imagem da
escultura Exu dos Ventos inteira. Apesar de ter estudado no Fundão e ter passado diversas
88
vezes e observado, tive dificuldade de montar a imagem inteira. A minha relação com a
escultura passou a ser pela identificação do que está lá atualmente. E quando olhei a cruz,
fiquei sem saber se era outra cruz ou se eram indícios da tal ―sucata da cruz‖ que Mário Cravo
havia mencionado em sua carta. A partir de então fiquei pensando sobre essa insistência na
cruz.
89
VIII
26
Cristo em ascensão e Cristo amarrado
Madeira pintada, sucata de peças de madeira do incêndio do Mercado Modelo, 1987. Bahia. (Catálogo
Revisitando Cravo, fig. 2)
Exu e Cristo. Porque não Jesus? Cristo. Sutilezas da linguagem, onde há insistência na
cruz. Força do símbolo. A palavra Cristo contém em si a plasticidade dinâmica da ação.
Violência do homem. Homem crucificado. Homem contra a matéria numa luta sem fim. Na
cruz. Em cruz. Crucificado, mas não passivamente. Tudo constitui essa inquietude. O fazer do
artista, o homem, o espírito, a matéria. Reinterpreta a iconografia e o ícone com a matéria e a
forma, dando certo tratamento bruto à superfície, conferindo ineficiência à visão. É preciso
tato. Essa materialidade do humano na obra cria um potente jogo entre forma e símbolo.
Outro escultor, Alexander Calder cria seus móbiles jogando com o balanço do peso das
formas. Nesses Cristos, Mário Cravo joga com o balanço do peso dos símbolos. Entremeando
presenças, ausências e transfigurações, insere índices que tornam a matéria carnal: olhos,
dentes e pênis. Mede, mas não meticulosamente, esses artifícios, num equilíbrio estonteante.
E Exu? Paradoxalmente, em sua obra são quase antítese de seus Cristos, os Exus são
soberanos, serenos, combativos, galhofeiros, altivos. No mito, precede o humano, pois é
princípio dinâmico. Impermanente e inconstante, Exu não se fixa em forma nem em lugar.
Está sempre de passagem. Mário Cravo capta essa essência e seus Exus apresentam uma
harmonia volitiva na forma. Não há conflito entre o espírito e a matéria. O espírito
inconformado que opera em seus Cristos encontra certa plenitude nos Exus.
27
Exu
Cravo Junior
Escultura em cobre rebatido
Parte do grupo escultórico do
Correio, na Pituba, em Salvador
(BA), 2009.
Foto Mônica Linhares
91
O hercúleo Exu, integrante do grupo escultórico encomendado especialmente para o
prédio dos Correios de Pituba, em Salvador, feito a partir de recortes de cobre rebatido, se
conectam na superfície criando vazios, aparentando um simulacro muscular corpóreo,
compondo uma escultura de aproximados três metros de altura. Deixa à mostra espaços entre
um recorte ou outro, atravessados pela luz em alguns lugares. Há um espaço vazio que
corresponderia à região do diafragma, como se a musculatura estivesse contraída, retesada,
insuflado de ar e energia, como se Exu estivesse pronto para agir. Sustenta vigorosamente um
tridente sugerindo um estandarte – tem 4,5 m de altura – que está apoiado no chão e que
completa a firmeza de um tripé. Na outra mão, carrega um ―ocô‖.52 Um dos pés está apoiado
num banquinho. Na cabeça, sustenta os chifres e a lâmina. Mais uma vez Mário Cravo joga
esteticamente com a iconografia, reinterpretando-a entre sincretismos e ortodoxia, porém não
vertiginosamente como nos Cristos, mas numa estabilidade afirmativa sobre o lugar, o espaço.
Assim representa e reinterpreta Elégbára – o senhor do poder. Cravo, ao descrever essa
escultura, comenta
28
Fotos Cravo Neto. Catálogo Espaço Cravo, BA, 1998.
52
Não foi encontrada qualquer sugestão de significado para a palavra, por agora, ficamos com a definição do
próprio artista, um instrumento (em forma de concha) de comunicação com o Orum e que concede a Exu a
velocidade. Pode ser entendido como o caracol (okotô) que, de um ponto inicial, abre-se em espirais até o
infinito, cf. LODY, 2003.
92
Esse elemento se chama ocô. Que é um dos símbolos que ele carrega para levar a mensagem
entre os deuses. Pois tem que ter a velocidade instantânea. O banquinho onde ele coloca o pé:
é o privilégio, a autoridade. Que é coisa de uma metáfora africana, não? O assento que é o
sexo. Tem que ter uma deidade fálica. Como você pode entender isso, minha filha,
racionalmente? Que Oxalá, que é a deidade da limpeza, da procriação... Obviamente a
procriação está dentro da mecânica sexual com o Cristo crucificado. O que tem que ver a
procriação com Cristo crucificado? 53
Já no Exu dos Ventos, Mário Cravo parte para a economia formal de recortes
geométricos em sentido construtivo, encimado por uma condição cinética. Construtivo no
fazer, sem eliminar totalmente o figurativo e o simbólico; não nesse trabalho. Aqui, a pujança
do cadinho sincrético baiano aflora na organização simétrica das formas geométricas. Anima
sua escultura com movimento dos ventos. E quais ventos? Não foi feita para um lugar
específico. Seu projeto segue livre o curso da criatividade. Do ateliê vai para o Espaço Cravo,
em Salvador, e de lá para o Rio de Janeiro, como Exu, que caminha. Nessa obra podemos
reconhecer um pouco de outro semblante de seu trabalho, que encontraremos espalhado nos
gramados do Espaço Cravo.
O artista, imbuído de seu fascínio pelas máquinas, recicla equipamentos da indústria e
constrói esculturas-brinquedo para o Parque de Pituaçu, onde fica o Espaço Cravo, numa
experimentação lúdica, por vezes delicada, com o espaço, com o entorno e com o público.
Pelo telefone e com bom humor o artista descreveu ―você venha pela orla e logo verá um
parque com umas coisas esquisitas…‖ Entretanto, à primeira vista, as esculturas guardam a
memória dos brinquedos da infância: são bambolês que se equilibram... um bilboquê gigante,
piorras e piões aquáticos, trepa-trepas, cata-ventos, escorregas, dobraduras, divertidos Exus
que lembram piratas, e por aí vai. Há uma descontração com a matéria e logo esquecemos a
dureza e violência do processo escultórico.
Talvez o Exu dos Ventos de Mário Cravo seja um Exu menino, brincalhão como ele
só. Daquele mesmo, à entrada da casa de Òsàlá e querido por Òrúnmìlà. Talvez, ao ser colocado
à entrada do parque, com seu alongado braço, estivesse sempre a convidar ou a cumprimentar
aqueles que passassem por ali, indicando o caminho. A estrutura que sustenta a parte móvel
lembra um foguete, daquele que as crianças desenham, pronto para levantar vôo. Ainda, visto
por inteiro, aqueles robôs extraterrestres futuristas de um olho só que se movem sozinhos, que
estão prestes a caminhar mecanicamente. E na verdade, foi inspirado num brinquedo popular
infantil: o Mané-gostoso.
Pode parecer um tanto alheio, dada sua autonomia de movimentos. Mas é justamente o
lugar que envolve o observador numa relação de tempo e espaço ao som do mar e do vento.
53
Cravo Jr., em entrevista concedida a Mônica Linhares em 21/9/2009, Salvador (BA).
93
Assim como as outras esculturas do parque, Exu dos Ventos guarda esse intenso diálogo com
a natureza. É uma observação que requer ―outros tempos‖. Esse ―tempo‖ não é percebido
quando a obra passa a ter morada no Rio de Janeiro. Mas, na história, Òsàlá avisa: ―esse não é
propriamente alguém que possa ser mimado no Àiyé.‖ São referências sutis, que requerem um
olhar atento. Talvez o Rio de Janeiro não estivesse preparado para receber o Exu dos Ventos.
29
Esculturas do Espaço Cravo.
Fotos Mônica Linhares. BA, 2009
94
IX
Conciliações
30
Assentamento de Exu no ateliê do artista Mário Cravo Neto, filho do escultor.
Foto de abertura do site oficial do artista.
Mario Cravo Neto é um fotógrafo que também constrói uma visualidade do Candomblé com
múltiplas representações da religião, ora através de imagens simbólicas, unívocas que operam
como ícones, ora através de imagens fragmentadas da realidade, que juntas, constituem um
corpus poético. [...]―Laroyé‖ é, para os Yorubás, a saudação a Exu. Este livro do autor,
Laroyé, é, como ele mesmo disse, uma homenagem, uma oferenda para Exu. (Eliane Coster,
2007, p. 94)
95
reinterpretar essa relação entre Cristo e Exu passe mais pelo sincretismo entre Cristo e Oxalá
que qualquer outra coisa. Assim, descreve Oxalá como orixá da criação e procriação. Sendo a
procriação intrinsecamente ligada à mecânica do sexo, ao sêmen; e sabendo-se Exu
historicamente representado – em seus assentos na África – pelo falo, entendido como patrono
da cópula.
Cristo e Exu são dois temas fortes na obra de Mário Cravo e se unem no Exu dos
Ventos. Afinal é um Exu feito com o refugo da escultura de uma cruz cristã. Instalado numa
encruzilhada. O Exu assentado é um Exu ligado a Oxalá. E, inevitavelmente, é a cidade do
Cristo Redentor que recebe Exu dos Ventos.
Esse jogo entre Cristo e Exu é inserido no olho do furacão dos conflitos de
intolerância religiosa e participa ativando o diálogo com a sociedade. Várias disputas estão
presentes nessa polêmica. Nas palavras de Maria Clara Baltar (2004, p. 35)
Disputas essas tanto pelo domínio do espaço público (urbano) da cidade do Rio de Janeiro
como uma disputa ideológica e moral presente em cada umas das religiões. Há até mesmo
uma disputa política já que a colocação da obra poderia ser responsável pela perda de apoio
de um partido, no caso o do prefeito Conde, e por outro lado o fortalecimento de partidos que
fazem parte das bancadas evangélica ou cristã. Dessa forma, podemos concluir que a religião
e seus símbolos são peças fundamentais para o entendimento da realidade social, já que além
de um poder sobrenatural elas trazem consigo poderes políticos, econômicos e sociais.
Muitos são os pontos que ainda permanecem obscuros em torno de Exu dos Ventos.
Porém, quanto maior o mistério e a polêmica em relação à obra, tanto melhor para o artista.
Pois amplia o poder de alcance enquanto objeto estético e produtor de sentidos na cidade.
O que nos exige Exu dos Ventos nada mais é do que um esforço de pensar os mundos
sociais existentes na cidade, desconfiando criticamente do senso comum e das certezas
dogmáticas, como nos ensina Gilberto Velho (2007, p. 13) ao propor o estranhamento do
familiar.
Reconhecer as diferenças, estranhar o que está próximo, relativizá-lo são meios de se ter uma
visão mais complexa do mundo em que vivemos e, simultaneamente buscar indagar sobre as
possibilidades de negociação e diálogo entre valores, interesses e atores diferenciados.
96
conciliação. Porém, essa conciliação requer sempre o encontro dessa aliança entre Exu e
Orunmilá que passam a trabalhar juntos.
Podemos relacionar ainda a queda da parte móvel da escultura com o assentamento
que foi feito, na medida em que os assentamentos demandam cuidados, uma boa manutenção
na parte física da obra se faz necessária. A cidade demanda cuidados com Exu dos Ventos e
com o assentamento de Exu.
Talvez a Cidade Maravilhosa consiga representar a sua complexidade tendo o Cristo
católico de braços abertos e o Exu dos afro-brasileiros indicando o caminho conciliatório
entre cristãos e religiões de matriz africana.
Ficam registrados aqui os apelos às autoridades competentes, uma vez que tanto Mário
Cravo Junior quanto a Fundação Parques e Jardins demonstraram grande interesse em colocar
o Exu aos ventos, novamente.
Essas artimanhas – símbolos, sincretismos e personagens de fé – que se encontram no
campo da arte são artes de Exu.
97
CONCLUSÃO
Artes de Exu se evidenciam nas obras, no seu diálogo com a cidade, nos acordos e
desacordos. Mais do que propor um olhar sobre a cidade, a imaginária de Exu no Tridente de
NI e no Exu dos Ventos propõe um diálogo com a cidade.
Quando Exu dos Ventos e o Tridente de NI passam pela galeria de arte essa ocupação
cria uma distância ao teor religioso. E isso se evidencia quando os próprios evangélicos
propõem que o Exu dos Ventos ficaria melhor nos jardins do Museu de Arte Moderna
(MAM). Nesses espaços artísticos – tanto o Espaço Cravo, em Salvador, quanto a Gentil
Carioca, no Rio, e, possivelmente, os jardins do MAM – o olhar sobre as obras dialoga com o
universo da arte. Os trabalhos adquirem um estatuto definitivo como objeto de arte.
Ao habitar a rua, a produção de sentidos dialoga livremente com as culturas. As obras
tornam-se públicas assim como os sentidos atribuídos. O sentido religioso se sobrepõe.
A imprensa multiplica a imagem das obras. Fomenta desacordos e expõe opiniões
contrárias nos jornais. As manchetes mobilizam o público em atos fervorosos contrários e
favoráveis. As tentativas de aniquilação das obras proporcionam sua multiplicação, como no
mito em que Orunmilá avança sobre Exu com a espada para cessar sua voracidade. E o
espalha em todos os espaços. Somente após a multiplicação de Exu é que foi possível
conciliar todo o conflito que é Exu. E assim também acontece com Exu dos Ventos e Tridente
de NI.
Talvez tenha sido arte de Exu essa catalisação dos conflitos que aconteciam de forma
velada, passar às principais manchetes dos jornais, na ordem do dia, com nome e sobrenome.
Apesar da veiculação da imagem do Tridente de NI ficar restrita ao jornal O Dia e ao seu
tablóide, o discurso contido nas notícias causa confusão em relação à própria imagem do
jornal: em que informantes moradores de Nova Iguaçu apontaram o jornal Meia Hora de
Notícias como se fosse evangélico, e isso não é verdade.
Dentre os jornais que veicularam as notícias sobre Exu dos Ventos, o jornal O Dia deu
mais espaço para a opinião dos evangélicos, enfatizando o não apoio de outras vertentes
religiosas à instalação da obra por representar entidade de culto não-cristão em lugar público,
denominando a situação de ―guerra santa‖. Certamente esse posicionamento se deve à
concorrência com o jornal O Globo.
Os administradores públicos foram postos diante de uma grande encruzilhada: ficaram
entre o apoio ou a censura aos objetos de arte. Porém, a Carta Magna, no
artigo 215 da Constituição prevê que ―o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional e apoiará e incentivará a valorização e
a difusão das manifestações culturais‖. Também determina que o Estado ―protegerá as
manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos
participantes do processo civilizatório nacional‖, pois ―constituem patrimônio cultural
brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade brasileira‖ (BRASIL, 1988).
Assumir posição contrária aos objetos de arte poderia significar um retrocesso no
processo de ampliação da presença pública de valores afro-descendentes. Embora a
intervenção do prefeito, ao levar funcionários para apagar a obra, se cumpra no caso do
Tridente de NI, essa oposição à vertente afro não fica clara pela própria ambiguidade do
símbolo que é assumida pelo artista. Vogler conta que assumir o tridente como sendo de
Netuno foi inclusive sugestão de um amigo, pelo telefone, antes de falar com o repórter. E
assim se defendeu. Caminhar por cima do muro entre vizinhos com um chapéu vermelho de
um lado e preto do outro para fazer-los brigar é arte de Exu.
Em Exu dos Ventos não há ambigüidade. A temática utilizando os orixás do
candomblé é antiga no trabalho do artista. Apesar do discurso laico, há os relatos referentes ao
assentamento da escultura. Acredito que para esse dado participar da atribuição de sentidos na
imaginária urbana afro-brasileira seria necessário a divulgação do assentamento,
principalmente entre os adeptos das religiões de matriz africana.
Seria preciso levar estudos posteriores, de cunho mais documental, histórico, em que
os atores envolvidos se posicionassem no sentido de reconhecer o assento e lhe fornecer
status de patrimônio da cidade. Buscar entender essa construção de sentido do espaço sagrado
dentro da cidade, buscando situações similares. Seguindo por essa linha de pensamento,
porque não citar o próprio Cristo Redentor? Cuja escultura jaz sobre pequena capela que
simboliza o espaço sagrado católico? Ou ainda buscar esses similares na arquitetura utilizada
e na quantidade de igrejas neopentecostais enquanto espaço sagrado e como forma de
ocupação simbólica na cidade?
Talvez esse enredo de tantos desencontros desembocados numa arte circunstancial
entre a cruz e o tridente seja outra arte de Exu. Assim também como a insistência na cruz –
autorreferências contidas no Exu dos Ventos entre Cristos e Exus. São formas de lembrar
99
antigas conciliações simbólicas entre afro-descendentes e cristãos. A mesma conciliação que
associou Oxalá a Cristo e deu os cornos e o tridente a Exu.
No mito, a conciliação de Exu requer uma convivência cotidiana com Orunmilá. Artes
de Exu – assim como suas artimanhas – símbolos, sincretismos e personagens da vida e de fé
–, de certa maneira, lidam com a convivência entre diferentes. Parafraseando Marília Soares,
vão-se os palanques, as pessoas, os artistas, os partidos, influências religiosas e a arte
permanece.
100
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Cidade vaidosa: imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: 7Letras, 1999.
VAN LOON, Hendrik Willem. História da humanidade. Rio de Janeiro: Cultrix, 1981.
104
VELAME, Fábio Macedo. ―Orixás nos espaços públicos de Salvador: um processo de
dessacralização – estetização – espetacularização do patrimônio afro-brasileiro‖. V Enecult
Universidade Federal da Bahia, 2009. Disponível em 30/1/2010, no site
www.cult.ufba.br/enecult2009/19579.pdf.
VERGER, Pierre Fatumbi. ―Esu, Elegbara, Legba‖. In Notas sobre o culto de Orixás e
Voduns na Bahia de Todos os Santos, no Brasil, e na Antiga Costa dos Escravos, na África.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
TODAS AS REPORTAGENS
BRUM, Alexandre. ―Exu vai parar na justiça – deputado quer impedir que escultura fique na
Linha Amarela‖. Jornal O Dia, edição metropolitana, seção Geral, p. 8. Rio de Janeiro,
16/12/2000.
CIRINO, Flávia. ―Figa de guiné para benzer a Linha Amarela‖. Jornal Extra, primeiro
caderno, p. 7. Rio de Janeiro, 20/2/2000.
―CONDE inaugura a escultura Exu dos Ventos na Linha Amarela‖. Jornal O Dia, edição
metropolitana, seção Polícia, p. 29. Rio de Janeiro, 17/12/2000.
―ESCULTURA de Exu vai para o museu‖. Jornal O Globo, p. 5. Rio de Janeiro, 14/6/2000.
―ESCULTURA do Exu vai para o museu‖. Jornal O Dia, seção Geral. Rio de Janeiro,
14/6/2000.
―EVANGÉLICOS e católicos reagem‖. Jornal O Dia, seção Geral. Rio de Janeiro, 15/2/2000.
―EXU dos Ventos vai para o MAM‖. Jornal Extra, seção Extra. Rio de Janeiro, 2/3/2000.
―INAUGURAÇÃO Exu dos Ventos‖. Jornal do Brasil, seção Cidade, p. 22. Rio de Janeiro,
15/12/2000.
KAZ, Roberto. ―Mulher filé dá capilé a repórter nerd – com bom humor, sensacionalismo,
invenções e vulgaridade o Meia Hora resiste às organizações Globo no Rio‖. Revista Piauí,
edição especial para Flip, p. 16-18, julho, 2009.
105
―LIGAÇÃO entre as cores. Prefeitura inaugura hoje conexão entre as Linhas Amarela e
Vermelha‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 6. Rio de Janeiro, 24/2/2000.
LOPES, Ésio. ―Imagem de Exu causa polêmica‖. Jornal O Dia, edição metropolitana, seção
Opinião – Cartas na mesa, p. 6. Rio de Janeiro, 20/12/2000.
MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Exu contra os ‗tranca-ruas‘: empreiteira baiana quer instalar
estátua gigante de entidade do candomblé em acesso à via expressa‖. Jornal O Dia, seção
Geral. Rio de Janeiro, 15/2/2000.
MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Exu será tema para Câmara – audiência pública vai discutir
instalação de escultura na ligação das vias expressas‖. Jornal O Dia on-line. Rio de Janeiro,
acessado em 16/2/2000.
MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Fé na Linha Amarela: Exu será esculpido com restos de
cruz‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 7. Rio de Janeiro, 17/2/2000.
MAGALHÃES, Luiz Ernesto. ―Polêmica na Linha Amarela: Evangélicos não querem Exu na
pista. Escultura Baiana na via expressa provoca indignação de vereadores e deputados da
bancada de Cristo‖. Jornal O Dia, seção Capa, p. 3. Rio de Janeiro, 16/2/2000.
MARTINS, João Gilberto. ―Respeito às entidades religiosas‖. Jornal O Dia, seção Opinião –
Cartas na mesa, p. 6. Rio de Janeiro, 10/3/2000.
―MONUMENTO: Conde admite que Exu vai para o MAM‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 2.
Rio de Janeiro, 2/3/2000.
NETO, Lívia. ―Restauração da Mãe Água‖. Jornal da Associação Pro-Civitas, seção Notícia,
p. 3, outubro. Belo Horizonte, 2006.
106
NETO, Lívia. ―Restauração da Mãe d‘Água‖. Jornal da Associação Pro-Civitas, seção
notícia, p. 3, outubro de 2006. Belo Horizonte. Disponível em http://www.pro-
civitas.org.br/JornaisPDFs/Pro_Civitas_Jornal09_Out06final.pdf. Acessado em 23/2/2010.
―NOTA 10 para prefeito Luiz Paulo Conde que autorizou a instalação da escultura Exu dos
Ventos na Linha Amarela‖. Jornal O Dia, seção Dia a dia, p. 4. Rio de Janeiro, 18/2/2000.
SILVA, Eude Martins da. ―Exu dos ventos e o Cristo Redentor‖. In Vidamix on line, ano 4, nº
6. Editora Vida, 2002. Disponível em 15/11/2009, no endereço eletrônico
http://uol.com.br/bibliaworld/vidamix/num04/ined011.htm.
XÔ Exu! Pastores exorcizam Exu‖. Jornal O Dia, seção Geral, p. 4. Rio de Janeiro,
23/2/2000.
107
ANEXO A – Itá
II
Òrúnmìlà, desejoso de ter um filho, foi pedir um a Òrìsànlá. Este lhe diz que
ainda não tinha acabado de criar seres e que deveria voltar um mês mais tarde.
Òrúnmìlà insistiu, impacientou-se querendo levar a qualquer preço um filho
consigo. Òrìsànlá repetiu que ainda não tinha nenhum.
III
Òrúnmìlà deveria colocar suas mãos em Esú e, de volta ao àiyé, manter relações
com sua mulher Yebìírú, que conceberia um filho. Doze meses mais tarde, ela
deu à luz um filho homem e, porque Òsàlá dissera que a criança seria Alágbára,
Senhor do Poder, Òrúnmìlà decidiu chamá-la de Elégbára.
IV
A mãe respondeu:
Omo na jeé
Omo na jeé
Filho come, come
Filho come, come
Omo l’okùn
Omo ni jìngìndìnríngín
A um se yì, mú s’òrun
Ara eni
Um filho é como contas de coral vermelho,
Um filho é como cobre,
Um filho é como alegria inestinguível.
Uma honra apresentável, que nos representará depois da morte.
V
Então Òrúnmìlà trouxe todas as preás que pode encontrar. E Esú acabou com
elas. No dia seguinte a cena se repetiu com peixes. No terceiro dia, Esú quis
comer aves. Gritou e comeu até acabar com todas as espécies de aves. Sua mãe
cantava todos os dias esses versos e ainda acrescentava:
Mo r’omo ná
Ají logba aso
Omo máa
Visto que consegui ter um filho
O que acorda e usa duzentas vestimentas diferentes,
Filho, continue a comer.
No quarto dia Esú quis comer carne. Sua mãe cantou como de hábito, e
Òrúnmìlà trouxe-lhe todos os animais que pôde achar: cachorros, porcos,
cabras, ovelhas, touros, cavalos, etc.; até que não sobrou nenhum. Esú não
parou de chorar.
VI
Ìyá, Ìyá,
Ng ó je ó!
Mãe, mãe,
Eu quero comê-la!
A mãe repetiu a canção... e foi assim que Esú engoliu a própria mãe.
Òrúnmìlà, alarmado, correu a consultar Ifá que lhe recomendou fazer oferendas
contendo uma espada. Assim foi feito.
VII
VIII
109
IX
110
ANEXO B – Reportagens