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PERFIL DO ALUNO E DOS CURSOS DO ENSINO SUPERIOR. O ENSINO E


APRENDIZAGEM NESSE CONTEXTO
*Mônica Farias
Especialista em Docência no Ensino Superior

“Planejamento didático é como um jogo de


xadrez. É mexer peças num tabuleiro de maneira
estratégica”
Prof. Alexandre Franco

Como início das reflexões sobre as questões do planejamento didático no ensino


superior, é necessário que, inicialmente, haja uma compreensão do cenário em que tal
planejamento ocorrerá no fazer docente. Tendo por texto-base o artigo Ensino Superior no
Brasil: cenário, avanços e contradições (FRANCO, 2008), tratamos de como a
democratização do acesso ao ensino superior no País, com a expansão (quantitativa, sem seu
equivalente qualitativo) evidenciou o que já era percebido: os resultados insatisfatórios de
desempenho desses alunos no ensino médio público provoca reflexos e impactos sobre o
desempenho no ensino superior.
“São esses meninos que vamos receber. É com eles que temos que trabalhar”,
salientou o professor Alexandre Franco ao longo da disciplina, lembrando que esses
“problemas no itinerário formativo” não podem ser ignorados por nós no processo de
construção dos passos do planejamento didático.
De acordo com essa concepção da necessidade de um professor consciente dessa
realidade brasileira no ensino superior, precisamos estar atentos ao processo de organização
das disciplinas sob nossa responsabilidade, tendo em mente o impacto que esses futuros
egressos terão sobre a sociedade. Precisamos saber articular nossa disciplina com as demais
presentes no curso, de modo a dar significado, no contexto mais amplo, àquele pequeno
pedaço de que cuidamos; saber qual a contribuição de minha disciplina para a formação, de
acordo com o perfil do egresso definido pelas diretrizes curriculares. Para que, assim atuando,
seja possível darmos nossa contribuição para reduzir a “distância entre a educação superior
que temos e a que efetivamente necessitamos” (FRANCO, 2008, p. 62)

Processo didático no ensino superior e o planejamento do trabalho pedagógico


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Essa articulação da parte (nossa disciplina) em relação ao todo (o curso) deve ser, mais
que uma tentativa, um ato intencional. Essa intencionalidade pode e deve estar contemplada
na maneira que compreendemos o processo didático.
O processo didático não pode ser considerado, de forma alguma, como aleatório. Se
pretendemos ter como objetivo uma articulação entre todos os saberes promovidos pelo curso
de graduação, devemos obedecer a uma sistematização desse processo de planejamento.
No texto-base da aula (FARIAS et ali, 2012), “sistematizar e “planejar” parecem ser
percebidos como conceito bastante agressivo para alguns professores. Planejamento, para
esses, é sinônimo de engessamento. O planejamento didático não tem o propósito de ser
cartesiano/hermético. No entanto, também não deve ser volúvel/flexível demais. Há que se
buscar o equilíbrio.
Ainda no texto citado, discute-se o planejamento como um “continuum”: partes
articuladas e que devem obedecer e uma sequência de construção para que constitua um todo
significativo. E esse “todo significativo” não deve ser compreendido como estático e terminal
para o professor. A cada ano, é importante nos fazermos as perguntas que balizarão nosso
planejamento: por quê ensinar? Para quê ensinar? Como ensinar? Com o quê? O que
pretendemos com esse ensino? A cada nova turma, esse conjunto de respostas - elementos
que compõem o planejamento - devem refazer o caminho desse processo sistematizado que
constitui o planejar: a realização de um diagnóstico, a definição de objetivos, conteúdo,
metodologia, recursos e formas de avaliação.
Embora todos esses elementos sejam indissociáveis e tenham igual importância no
contexto do processo didático, urge ao docente do ensino superior compreender a importância
do papel dos objetivos de ensino. “Objetivos são horizonte e alicerce” (FARIAS et. al, 2012,
p.115) e devem ser o fio condutor de todos os demais elementos da sistematização do
planejamento. Quando enfatizo a urgência do despertar dos professores do ensino superior
para o papel dos objetivos no planejamento do ensino, parto da percepção (minha e discutida
em sala) a respeito do privilégio ao conteúdo em lugar dos objetivos no ato de planejar o
ensino, conforme praticado por muitos docentes. “Cobrir” todo o conteúdo de um livro-texto
da matéria, conforme crítica apresentada por Antônio Carlos Gil (2009) acaba sendo o real
objetivo de muitos professores. Essa preocupação, inclusive, é o que pretendo pesquisar em
meu trabalho de conclusão, voltado para a formação de profissionais de comunicação.
A respeito dos conteúdos - embora contem com posição privilegiada num contexto
equivocado de redução da importância dos objetivos no processo de planejamento -, esses
também acabam, de alguma forma, comprometidos. Ao considerarmos que os conteúdos
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existem em sua expressão conceitual, factual, atitudinal e procedimental, são os conceituais


que parecem se destacar - por vezes, de forma exclusiva. É fundamental, no ato de planejar,
considerar a abordagem de todas as formas de conteúdo. Os critérios para sua seleção devem
considerar seu significado, sua utilidade e sua adequação à realidade do aluno. Em especial os
procedimentais, que serão os responsáveis por construir habilidades para o futuro egresso.
Essas habilidades e também competências, definidas pelas diretrizes curriculares dos
diferentes cursos, devem pautar todo o processo do planejamento do trabalho pedagógico. Ao
planejarmos, devemos nos perguntar quais saberes o aluno precisa possuir após passar por
minha disciplina e, dessa forma, dar conta dos desafios e problemas que serão impostos pelo
mundo do trabalho? Quais capacidades precisa desenvolver, para que essas se transformem
em habilidades e se convertam em competências? Como irei formar meu aluno para que ele
resolva os problemas que encontrará em sua profissão?

Objetivos e conteúdos no planejamento didático

Olhar para esses futuros problemas, aliás, parece ser a chave para o planejamento
didático; para a definição do melhor itinerário para construção do conhecimento. Nesse
momento é que o professor irá começar a selecionar e priorizar os elementos da disciplina
com potencial para contribuir no desenvolvimento de habilidades e competências.
Considerando esse aspecto, voltamos aos objetivos como alicerce para o planejamento. Quais
problemas eu espero que o aluno esteja apto a resolver quando estiver atuando
profissionalmente? Ele saberá lidar com eles? Quais habilidades preciso que ele desenvolva?
Respondidas tais questões e definidos os objetivos, o professor terá especificado aquilo que
pretende desenvolver nas dimensões do poder fazer (capacidades), do saber fazer
(habilidades) e do fazer bem feito (competências).
A partir daí, serão os conteúdos a desempenhar o papel de auxiliar na construção desse
poder saber/saber fazer bem feito na resolução de problemas do cotidiano do futuro
profissional. Para que esse objetivo de ensino seja atingido, os conteúdos, além de contemplar
as dimensões já citadas, devem ter relevância, pertinência e abrangência, e sua presença na
distribuição temporal do planejamento deve partir das questões mais específicas para, ao final,
apresentar questões mais plurais e abrangentes, que possibilitem aos alunos perceber um todo
significativo ao final da disciplina.
Definidos os conteúdos significativos para eu sejam alcançados os objetivos de ensino
para a construção de competências, o professor deve olhar para as formas como irá trabalhar
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os conteúdos de forma que façam sentido no processo de construção dessas competências.


Entra em cena a metodologia do ensino e as estratégias para os objetivos propostos sejam
atingidos.

Estratégias didáticas para o ensino superior

A estratégia, conforme apresentado em sala de aula, é o que anima a aula. Ela é o


conjunto de mecanismos que operacionalizam a aula. Elas devem ser coerentes com os
objetivos e conteúdo. Deve gerar o equilíbrio dos momentos da aula, motivando e
mobilizando os alunos para a aprendizagem. Não pode ofuscar nem conteúdo, nem objetivo.
Estratégias espetaculares, com muita “pirotécnica” podem fazer o conteúdo se perder. A
escolha errada de estratégias pode colocar a perder os objetivos pretendidos.
As estratégias também desempenham, no ensino superior, alguns papéis. Estratégias
podem ser mecanismos de nivelamento – conhecendo meus alunos e seus repertórios de vida
e de conhecimento posso adotar estratégias que possam situar todos no contexto da disciplina,
para que todos “estejam na mesma página”. Estratégias também podem ser um mecanismo de
contextualização, onde o professor tem a oportunidade de apresentar os referenciais básicos
da área estudada. Saber propor estratégias depende da compreensão de quem é nosso aluno,
da coerência em relação aos conteúdos e da eficácia em relação aos objetivos pretendidos.
Além disso, é importante saber que nem toda estratégia tem a mesma validade em diferentes
cursos. A escolha da estratégia depende do curso, do perfil dos alunos e do perfil pretendido
para o egresso.
Antes da seleção de estratégias para o trabalho de cada tema de cada aula, o professor
deve avaliar criticamente seus objetivos, para saber direcionar a escolha da metodologia para
a construção desses objetivos. A metodologia não pode e nem deve estar descolada deles. É
preciso conhecer as diferentes opções de abordagem metodológica e saber quais operações de
pensamento serão mobilizadas naquele processo, e quais nos interessam diretamente para o
desenvolvimento de uma habilidade específica almejada em nossos objetivos. Não
esquecermos que, anteriormente, nos perguntamos quais os problemas que desejamos que
nossos alunos estejam aptos a resolver em sua vida profissional. Na definição das abordagens
metodológicas do ensino, mais uma vez retornamos à nossa constatação de que o olhar do
professor para os problemas orientadores da formação do aluno podem ser a chave do
planejamento didático, se impondo também no momento das escolhas do “como ensinar”.
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Resolução de problemas

O mundo real do trabalho - aquele, para o qual estamos preparando nossos alunos -
não é prioritariamente (por vezes, nem remotamente) científico. Como professores, devemos
contemplar, em nosso processo de planejamento didático, provocar oportunidades de ensino-
aprendizagem que proporcionem uma aproximação entre o mundo do saber (ideias) e o
mundo do fazer (trabalho)
Ao planejar uma disciplina pautado por um ou mais problemas reais que deverão ser
compreendidos e resolvidos pelo egresso, o professor pode organizar estrategicamente seu
curso em torno da solução de problemas do mundo do trabalho, trazendo para a sala de aula
mais do que conteúdos que auxiliarão no desenvolvimento dessa competência resolutiva. É o
próprio problema (real ou construído com elementos da realidade do futuro egresso) que será
trazido para a sala de aula e apresentado aos alunos, que deverão se apropriar desse
fato/situação.
A metodologia da Aprendizagem Baseada em Problemas (ABP), apresentada no artigo
de Decker e Bouhuijs (ARAÚJO E SASTRE, 2009), está localizada no contexto das
metodologias ativas, nascidas das discussões iniciadas nos anos 1970 em torno da necessidade
de desenvolvimento de um protagonismo perante os problemas apresentados pelos contextos
sociais vividos.
Na ABP o aluno, solicitado a identificar e aprofunda-se nas questões envolvidos no
problema apresentado, é provocado a buscar soluções para esse problema. Este aspecto da
ABP estimulo o aluno ao desenvolvimento de habilidades de pesquisa.
Nessa situação, objetivos, conteúdo e metodologia de ensino são elementos
explicitamente conectados. Sem essa conexão perde-se o significado da proposta.
Outro aspecto evidenciado pela adoção da ABP é a necessidade do desenvolvimento
de um olhar contextual para a questão apresentada ao aluno, o que exigirá dele,
possivelmente, mobilizar conhecimentos e conteúdo não unicamente restritos à disciplina que
apresentou o problema, mas a outras pelas quais já tenha passado, ou mesmo conhecimento de
outras áreas. Como um problema real não possui apenas um viés, é necessário a adoção de
outras estratégias metodológicas para o conhecimento das múltiplas facetas do problema.
A adoção da ABP constitui um grande desafio para o professor – e pudemos
dimensionar brevemente esse desafio durante a elaboração do protótipo de planejamento
didático com uma abordagem de ABP. O planejamento didático construído em torno de uma
abordagem da ABP precisa contemplar a dimensão de formação a partir dos elementos que
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estamos construindo. É necessário um olhar crítico, que considere a relevância dos temas que
serão trabalhados; a justificativa que pautou a escolha dos temas e, principalmente, os
objetivos que se pretende atingir com essa estratégia. O professor também não pode perder de
vista que ali, naquele problema escolhido para o trabalho, está a expressão de um conteúdo.
Se o professor não identifica esse conteúdo, corre o risco de não atingir seus objetivos.
Também deve cuidar para não deixar que o “diferente” proposto pela ABP ofusque todos os
demais elementos de seu planejamento didático.
Concluímos, com a leitura dos textos e as discussões em sala de aula, que a ABP pode
ajudar a romper com ideias conservadoras do planejamento. Tem o potencial para diminuir a
carga de ensino e ampliar a carga de aprendizagem, derrubando a prática da “educação
bancária”, tão bem definida por Paulo Freire.
Nesse contexto, as competências do docente para romper com as práticas tradicionais
dessa educação que “deposita conhecimento” nos alunos exigem um olhar cuidadoso para
todo o processo do planejamento didático. No texto de Terezinha Rios (2007) somos alertados
para diversos aspectos a serem contemplados em nossas práticas de ensino que alterem esse
cenário.
Preocupados e pressionados pela lógica enviesada que compreende o processo de
ensino como transferência de conteúdo do professor para o aluno, não nos questionamos de
que forma estamos promovendo, em nossas disciplinas, a interlocução entre o mundo do
trabalho e o mundo das ideias. Não nos perguntamos de que forma aquele “amontoado” de
conteúdo que escolhemos dá significado ao que será vivido no mundo real. O processo de
planejamento didático, nas suas opções e omissões, evidencia sua intenção formativa - mais
teórica, mais técnica, mais holística - e sugere a compreensão desse professor sobre o papel de
sua disciplina num cenário muito mais amplo, que acaba muitas vezes se mostrado apenas
limitada ao “seu quadrado”. É essa compreensão que nós, alunos do curso do Senac, não
temos mais o direito de abraçar.

REFERÊNCIAS

ANASTASIOU, Lea G. C, ALVES, Leonir P. Processos de ensinagem na universidade.


Florianóplos: Univille, 2007.

DECKER, Isonir, BOUHUIJS, Peter A. Aprendizagem baseada em problemas e metodologia


da problematização: identificando e analisando continuidades nos processos de ensino-
aprendizagem. In: ARAÚJO, Ulisses, SASTRE, Genoveva. Aprendizagem baseada em
problemas no ensino superior. São Paulo: Summus, 2009. P. 177-201.
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FARIAS, Isabel et al. Didática e docência: aprendendo a profissão. Brasília: Liber, 2012.

FRANCO, Alexandre. Ensino superior no Brasil: cenários, avanços e contradições. Jornal de


Políticas Educacionais. Curitiba: UFPR, n. 4, 2008. p. 53-63

GIL, Antônio Carlos. Didática do ensino superior. São Paulo: Atlas, 2009.

RIOS, Terezinha. Competência ou competências: o novo e o original na formação do


professor. In: DALVA, Rosa E. G., SOUZA, Vanilton Camilo (orgs). Didática e práticas de
ensino: interfaces com diferentes saberes e lugares formativos. São Paulo: Editora DP&A,
2007. p. 154-171.

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