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Copyright © Paulus 2007 Diregao edtoral Palo Bazogla Coordenagdo esitril Vall José de Casto Producio editorial GWM ares Gras Impressio e acabamento PAULUS Apoie Conseha Nacional de Deservobienta Clentiico e Teenoégico (CNP) ~ Bras ‘Dados internacional de Catalogacdo na PublicacSo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, 5°, Brasil) Machado, arin (© sueto na tela: mados de enunciagao no cinema eno Leberespago/ lindo Machado, - S20 Paulo: Palus, 2007. = (Comunicagao) Biblografia ISBN 978-85-300-2670.6 1, Civeespaco 2. Cinema 3, Sujeto Flosota) Milo 4, See 05-9552 co0-2022 Indices para catalogo sistematico: 1, Sujata : Mods de enuncigéo : Cinema e dberespace: Comuricacdo: Sodologia 3022 © PAULUS - 2007 ua Francisco Cruz, 229 (04117-031 ~ Sio Paulo Basi) “Tel: (11) 5084-2066 ~ Fax: (11) 5579-3627 won paulus.com.br editriak@pauius.com br ISBN 978-85-349-2670-6 Sumario PARTE | 0 SUIEITO NO CINEMA, Capitulo 1 O ENIGMA DE KANE Capitulo 2 UBIQUIDADE E TRANSCENDENCIA. opituio 3 © OLHO PRIVADO E SEU DUPLO. Capitulo AJANELA DO VOYEUR epitulo 5 A ESQUIZE DO OLHAR Copitulo 6 0 SISTEMA DA SUTURA, Cepituio? © ESPECTADOR NO TEXTO. Copituto 8 IDENTIFICAGAO, PROJECAO, ESPELHO. Capitulo 9 (© PONTO DE ESCUTA Capitulo 10 ARISE DA ENUNCIACAO “a n 107 1s PARTE I (0 SUIEITO NO CIBERESPAGO ...... Capitulo 11 A AUTOMATIZACAO DO SUJEITO Capitulo 12 © DEMIURGO E 0 ROBO Capituto 13 AS PERSONAGENS ARTIFICIAIS Capitulo 14 ATRAVESSANDO A TELA: A IMERSAO Cepitule 15 TECNICAS DO OBSERVADOR Capito 16 DE VOLTA A CAVERNA capitulo 17 ‘A EMERGENCIA DO CORPO Cepitulo 18 REGIMES DE IMERSAO ..... Cepituio 18 NOVAS FIGURAS DA SUBJETIVIDADE BIBLIOGRAFIA CITADA, OBRAS AUDIOVISUAIS E DIGITAIS CITADAS 1a 133 us 1S 163 175 187 97 am 29 2a 27 PARTE I O SUJEITO NO CINEMA © ENIGMA DE KANE m “pequenino defeito”, apontado por Pauline Kael (1980, [ p. 78), com respeito & coeréncia narcativa de Citizen Kane, pode servir de gancho para introduzir nosso problema. No filme de Orson Welles, a palavra-chave Rosebud & pronuncia- da por Kane no seu leito de morte pouco antes de « bola de vidro espatifar-se no cho ¢ alertar a enfermeira. Quando esta penetra no quarto, refletida num dos estilhagos concavos do vidro, 0 corpo de Kane j estava rigido na cama. A criadagem, como vire- mos a saber mais tarde, havia ficado do lado de fora. Quer dizer: no havia ninguém no quarto de Kane quando ele morreu €, por- tanto, ninguém poderia té-lo ouvido pronunciar as palavras fi- nais. Isso quer dizer que o pretexto principal do filme ~ a busca de um significado para Rosebud, que supostamente deveria “explicar” 0 homem Charles Foster Kane encontea-se de cara comprometido por um “equivoco” na construgio de sua estrutt- ‘A observacio de Kael é irrelevante, pois se basela num conceito de verossimilhanga demasiado escrupuloso para as liberdades do mundo diegético, Mas ofezece um bom pretexto para nos permitir indagar sobre a nacureza do plano cinemacogréfico. Como se pode dizer que “ninguém" viu (¢ ouviu) Kane pronunciar a palavra com CaO. ETO NATELA final se a imagem ¢ o som correspondentes a essa cena foram efe- ivamence vistos © ouvidos no filme? Uma pessoa, pelo menos, esteve presente no quarto de Kane no momento de sua morte ¢ péde testemunhar 9 movimento de seus labios pronunciando Rosebud: 0 espectador. E, se considerarmos que 0 olhar que o es- pectador deposita no filme € subsidisrio de um outeo olbae, aquele que determina 0 angulo, a distancia e a duragdo segundo 0s quais © motivo é dado & visio, ndo é dificil imaginar a preseaca de uma outra tescemunha no leito de morte, aquela justamente que 0 espectador assume quando vé o filme. De fato, ha sempre “alguém” a mais dentro da cena de um filme, alguém que eventualmente sabe mais que as personagens, as vezes também menos, mas de qualquer forma alguém que aio € necessariamente um protagonista explicitado na agio. Esse alguém € quem vé, no final do filme, o crené sendo devorado pelas chamas na fornalha do castelo, enquanto nele aparece ins- ccita a palavra Rosebud. O enigma do filme se revelari a esse al- _guém e apenas a ele (além do espectador que assume o seu olhar), pois as personagens no escavam presentes nesse lugar e nesse momento, quando o objeto Rorebud é identificado pela primeica vez. Hé, portanto, um outro olhar dentro do filme, um olhar efe- tivamente presente, pois é ele que testemunha a derradeira pa- Javea de Kane ¢ depois desvenda o scu significado, mas nfo se ‘confunde necessariamente com os olhares que trocam entre si as personagens do filme. Dificil € localizé-lo, pois, como na maior parte dos filmes, ele permanece invisivel 0 tempo todo, no se deixando marcar no préprio corpo da nacrativa, Essa testemunha invisivel seria ~ grosseiramente falando sem considerat as metamorfoses do imaginétio operadas pela die- ese ~ 0 fordgrafo que “registra” a cena, além de todo o pessoal técnico que fabrica o filme. Se os planos em questio — os labios de Kane pronunciando @ palavra enigmédtica antes de morcer ¢ 0 ‘een6 Revebud arclendo nas chamas ~ estivessem colocados no con- cexto de um documentirio ou de uma reportagem de celejornal, ‘fo eestaria a menor diivida de que uma testemunha, pelo menos, ‘OENIGMA DE KANE 11 presenciara as duas cenas: 0 fordgrafo que as “registro” ¢ nos permite agora contemplé-las. Sem esse olho agenciador do plano, as cenas simplesmente no existiriam para 0 oferecimento a0 nosso olhar. Daf que o fato puro ¢ simples da existéncia de um plano jé pressupée o trabalho de enunciagao de um sujeito que pr mordialmente 0 “olhou” (e eventualmente também o “ouviu para que ele pudesse ser finalmente concemplado por n6s, espec- adores. Mas se estamos no terreno da ficgio - ¢ 0 cinema, no _gr0sso da sua produciio, nos presenteia habitualmente com pla- fos que apontam para sieuagSes imagindrias, ¢ nfo pare o regis~ cco documencal ~ corna-se problematico identificar essa insténcia responsével pela visio e audigio, uma vez que sua natureza e loca~ lizagio devem segucamente ser de outra ordem, diferentes, por- tanto, daquelas que dizem respeito & equipe técnica que as cons- 116i, Pois, tal como 0 narrador literério, a instincia que “ve” & “ouve”, que, portanto, di a ver ¢ ouvir (e também dispie os pla- 1nos, monta-os, ordena-os), €, ela também, um fato da Flegio ¢, como tal, circunscrita ao universo da diegese. Mas, entio, que instancia é essa ¢ como ela se constitui? Por certo, esse problema nao é novo. A literatura, pelo menos, ‘tem colocado com uma insisténcia que beira a obsessio, a ponto de muitas obras produzidas pelo menos nos Gltimos cem anos consticuizem 0 préprio afloramento dessa instincia getadora do discurso, ou, como se costume dizer nos cfrculos especializados, uma Literacura do “ponto de vista”. Em outros termos, 0 que ocorre na literatura moderna € que a narracio se deixa,contami- nat cada vez mais pelo seu processo de enunciagio, fazendo emer- gir, a todo momento, ou pelo menos problematizando, esse “alguém” que se intromete na diegese para conformé-la & sua visio. As formas como isso se da variam desde a adogio pelo nar- rador do ponto de vista de uma personagem, o que implica a par- Cialidade e a subjetivacio do universo diegético, até a dissolugao do narrador numa multiplicidade de vozes que se defrontam e se contradizem ao longo de uma narrativa descentralizada € aberta. De qualquer forma, na literatura, a sombra do nartador € sempre Conn C0. (0 SUrerTO Wa TELA 12 mais facilmente idencificével, pois os sinais de sua presenga esto marcados no préprio enunciado. Grote mode, code texto literécio € consticufdo por uma “fala” (parole). Sendo assien, & quase inevi- tavel que dessa questio clementar (“isso € uma fala ow um discur- so”) se passe naturalmence a uma outea queseao dela derivada ‘mas quem fala e quando © de onde? Uma vee ideatificada a vor que doa 0 texto, pode-se perfeitamente questionar a natureza do seu © seu poder na dimensio da hiseéria, Com a lireracura moderna, ja nl temos propriamente “hist6rias", mas pontos de vista sobre elas. saber e relativiva Esse problema € particularmente fundante no Citizen Kane, pois sabemos que se trata de um filme conseru‘do sobre “pontos de vista”, © tema ja estava na mira de Orson Welles na época de realizagio de seu célebre filme: nao se pode esquecer que a sua intengio original, assim que chegou a Hollywood, era adapcar para a cela o Heart of Darknes, de Joseph Conrad, um romance fem que diversos focos narratives (0 do narrador andnimo, o de Marlow 0 de Kurtz) se encaixam. Mas os “pontos de vista” miil- tiplos de Citizen Kane so poncos de vista liceritios, colocados pelo texto (roteito), no coincidindo, encrecanto, com 0 ponto de visea do plano, ou seja, com a posigo que o olho da cimera ocupa em relagio a0 motivo, Isso quer dizer que os “narradores” que apa- recem no filme “contando” verbalmence aspectos diferentes e conttadic6rios da personalidade de Kane (Thatcher, Bernstein, Leland, Susan ¢ Raymond) no correspondem cxatamence a0 sujeito cinematogrifico no sentido mais préprio do tetmo. Al- guns exemplos podem nos ajudar a entender isso. Leland, béba- do e dormindo em cima da maquina de escrever, no poderia tet ouvido a conversa entre Kane ¢ Bernstein sobre seu artigo para 0 jornal, ainda que essa seqiiéncia esteja colocada no filme “dentro” de seu depoimento. Da mesma forma, Susan, desfalecida depois da tentativa de suicidio, nfo poderia saber 0 que conversaram Kane e 0 médico a seu respeito, ainda que seja ela quem “narra” essa cena. Quer dizer: depois que cada “narrador” lieririo comeca «falar, o filme ganha autonomia ¢ caminha “sozinho", a despeito «dn visilo pessoal desse “narrador”. Os “pontos de vista" literirios hilo. fesolvem, portanco, 0 problema do cestemunho do plano. Coneinuamos sem saber quem estava presente no escritério de LLolondl 041 no quarto de Susan para observar aquilo que os “narra- lores” literérios nio poderiam cer visto ou ouvido. A mesma enti- dade invisivel e misteriosa eetorna: quem é ela? Talver se pudesse dizer que 6 Thompson, 0 repérter que “amar- ara no fim concluir da impos- sibilidade de se chegar a uma idéia unicéria sobre @ personagem Kane, De fato, ele est presente no filme numa estrucuca tipica de “visio subjetiva"t ele raramence aparece dentro do plano e, quando aparece, esté na penumbra, no podemos ver a sua face. Uma vez ou outra, observamos dele apenas uma silhueca furtiva, ‘A seqiténcia do depoimento de Leland, por exemplo, aparece quase cotalmente em cimera subjetiva, sem nunca mostrar 0 contracam- po onde estaria Thompson e para o qual se dirige o olhar daquela personagem. Quer dizer: o ponto de vista “fisico” de Thompson tem relagio ao plano coincide com o ponto de vista da cimera em muitos momentos, conscrucao tipica da subjetividade no cinema, (ou seja, da encarnagio do sujeito da visio, Talvez haja aqui um eco do malogrado projeto anterior de Welles (Heart of darkness), ‘que consistia em apresentar a personagem principal (Marlow) acravés de um uso extensivo da cimera subjetiva, Welles empres- taria apenas a sua voz A personagem, uma vez que esta tlcima no setia representada no plano da imagem: ela seria encarnada pelo lho da cimera, Pessoalmence, Welles atuaria como outra perso- nagem, 0 misterioso Kurtz, na verdade uma espécie de alter ¢g0 invertido de Marlow (Kawin, 1978, pp. 43-44). Nao tendo con- seguido resolver todos os problemas técnicos ¢ econdmicos desse filme, Welles teria desistido dele, mas poderia ter transferido parce dos procedimentos para Citizen Kane, No encanto, a intervengio de Thompson apenas episédica em Kane, de modo que uma possivel sugestio de cdmera subjetiva a0 cchega a ser um procedimento dominance no filme. Ao longo de toda a ttama, no € Thompson quem vé o desenrolar dos eventos: ra 08 diversos “pontos de vista” ‘OEMIGMA DE KANE 13 coming C40 (wero wa TELA 4 ele apenas vé as pessoas que viram os facos relacionados com Kane. E basta que o filme transforme em imagens a narrativa de cada “narrador” para que tanto 0 ponto de vista de Thompson quanto o do préprio “narrador” desaparecam, retornando & cena a ‘mesma encidade misteriosa que estamos tentando identificar. Se Citizen Kane fosse um romance, 0 seu problema esteutural se resolveria facilmente encadeando vérias narracivas na primeica pessoa, cada uma representando 0 “ponto de vista” de cada perso- nagem. Thompson nasraria a hiscéria de sua busca do significado de Rorebud € quando estivesse ouvindo o depoimento de oucras personagens passaria a palavra a cada um de seus incerlocucores, como fazia Joseph Conrad, entre outros. Mas no cinema a coisa 1ndo € to simples assim, pois nfo se trabalha apenas com o dis- ‘curso (verbal) de cada personagem, mas também com o olhar que cada uma delas deposita sobre a cena. Mais que um jogo de falas, ‘uma “polifonia”, como queria Bakhtin, no cinema cemos um jogo de olhares, uma “polivisto”, cuja nacuceza € dificil decifras. Se na érea da literatura o tema da instincia aarradosa jé acu- mulon vasta fortuna critica, na eeoria do cinema muita coisa ainda resta por fazer, apesar do boom das teorias da enunciagio no cinema, sobretudo nos anos 1980. No romance, tudo é uma ques- tio de voz € modo: quem fala, como ¢ de onde? A lingiiistica jé havia construido a base dessa discussio, quando aprendeu a se dar conta do fenémeno da subjetividade no discurso verbal, ou seja, da relagio que o enunciado mantém com a sua inseéncia produ- tora, isso que os franceses chamam de énonciation (Benveniste, 1966, pp. 258-266), os ingleses de siterance (Holquist, 1990, pp. 59-63) e os russos, os primeiros a enfocar 0 problema, de vis- 4Aézivanie (Volochinov, 1930, pp. 109-157; Bakhtin, 1990, p. 133). ‘Tevetan Todorov (1971, pp. 239-240) parciu justamente de uma ‘oposigdo feita por Benveniste entre histbria e discurso ~ duas for- mas de produglo textual em que ou a enunciagio se apaga (bisté- ria) ow a enunciagio se mostra (déscurse) — para construit sua famosa “tipologia do narrador lirerario”, segunda a qual 0 snjei- to da enunciagdo pode: ver “de dentro” (0 narrador sabe mais que ‘OENIGNA OF KANE as personagens), ver “de fora” (0 narrador sabe menos que as per sonagens) ou ainda ver “com (o narrador sabe canto quanto as personagens). Visando precisar e formalizar mais essa classifica- fo, Gérard Genette (1972, pp. 206-207) propie falar de focali~ sagdo, cermo que ele considera mais abstrato e mais adequado 20 texto verbal que, por exemplo, “ponto de vista” ou “campo de visio”. Assim, na mesma ordem da classificagio de Todorov, ele fala de “focalizacio zer0", “focalizagio externa” e “focalizagio in- teena” (que pode ser, por sua vez, fixa, variavel ou mileipla). Evi- dentemente, a classificagio tem efeito apenas operativo, pois @ separagio entre o que procede do narcador ¢ se coloca como tal ¢ co que pode ser atribuido as personagens é muito dificil de sec eca- sada com precisio. A obra inteira de Mikbail Bakhtin € dedicada a restituir a riqueza e a complexidade das relagdes que se escabe- lecem, em cada obra literfria, entre as personagens ¢ o “olhar” que a inseancia narradora derrama sobre elas. ‘Algumas tentativas de “adaptar” as classificagées literdrias & narrativa cinematogrifica j& foram cealizadas, mas os resultados rio sio satisfat6rios. Frangois Jost (1983, p. 196), por exemplo, seguindo 0 conceito de focalizagao de Genette, mas convertendo-o em “ocularizagio”, pois no cinema trata-se de uma orientagio dos olhos, e nao (apenas) da vor, fala em “ocularizagio intern: “ocularizagio externa”, para indicar respectivamente a identifica

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