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Capítulo 1

Infância, Formação, Conversão e Chamado


“Mas Deus me separou desde o ventre materno e me chamou por sua graça. Quando lhe agradou
revelar o seu Filho em mim para que eu o anunciasse entre os gentios, não consultei pessoa alguma” (Gl 1.15,16).

Robert Reid Kalley nasceu em Mount Florida, Glasgow, do condado


de Lamark, Escócia, em 8 de setembro de 1809. Era filho de Robert Kalley e
Jane Reid Kalley e irmão germano de Jane Dow Kalley, um ano mais velha que
ele. Seus pais eram membros da Igreja da Escócia, onde ele foi apresentado
em 16 de outubro de 1809.

O pai de Kalley faleceu antes que ele completasse um ano de idade


e sua mãe casou-se com David Kay, viúvo com quatro filhos. Quando kalley
tinha cerca de 6 anos, a mãe veio a falecer e ele e sua irmã permaneceram sob
os cuidados do padrasto. Sobre a infância de Kalley pouco se sabe, além de
um quase afogamento no rio Clayde, aos oito ou nove anos, quando só não
faleceu pelo “providencial socorro de alguém que, vendo-o em tais apuros, se
atirou à água e o salvou de morte quase certa”1.

Aos dezesseis anos, matriculou-se no curso de Artes na Glasgow


University, onde estudou retórica, latim e grego. David Kay, seu padrasto, o
queria ministro da Igreja da Escócia, mas, na faculdade, ele afastou-se da fé,
abraçou o ateísmo com convicção e decidiu que estudaria medicina.

Em primeiro de setembro de 1827, Kalley recebeu seu diploma pela


Glasgow Royal Infirmary. Especializou-se em Farmácia e Cirurgia pela
Glasgow Faculty of Medicine and Surgery e, somente em 1938, tornou-se
Doutor em Medicina pela Glasgow University. Escrevendo mais tarde, ele
afirmou que nesse período não acreditava na existência de um Ser eterno e
julgava que o cristianismo fosse uma completa ilusão.

A partir de 1829, Kalley trabalhou como médico em navios que


faziam a rota com o extremo Oriente. Em uma dessas viagens, em 1831, ele
visitou a Ilha da Madeira, passagem sobre a qual mais tarde se referiu nesses
termos: “Passei por lá durante minha viagem para as Índias Orientais (1831)...
e, se alguém me dissesse que no futuro eu seria preso lá (em Funchal) por ter
distribuído Bíblias e ensinado as suas doutrinas, eu, provavelmente, pensaria
nisto como o mais improvável que poderia ser preconcebido a meu respeito”2.

Após o período de viagens, o doutor se estabeleceu em Kilmarnock,


Ayrshire, em 1832. Ali, ganhou fama como cirurgião, esportista e dançarino,
1
PORTO FILHO, M. A Epopeia da Ilha da Madeira. Robert Reid Kalley: Apóstolo em Três Continentes. Rio
de Janeiro: 1987. p. 16
2
FORSYTH, William B. Jornada no Império: Vida e Obra do Dr. Kalley no Brasil. São José dos Campos.
Editora Fiel, 2006. p. 16
tempo em que também fazia questão de propagar seu ateísmo. Entretanto,
suas experiências como médico abririam as portas para o despertamento da fé.
Primeiro, um doente muito pobre testemunhou para o doutor a respeito da
graça salvadora de Jesus. Em seguida, uma impressão muito mais forte foi
causada em sua mente por uma paciente muito pobre e em estado terminal de
câncer. A história comovente é contada por William B. Forsyth. Ouçamo-lo:
O quarto onde ela estava poderia estar precisando das coisas mais
básicas, mas para o doutor, quando fazia suas frequentes visitas, o
quarto parecia ter uma qualidade etérea, algo que sua mente
científica não podia explicar. O Senhor que está nos céus fazia sua
presença e glória ser uma realidade para sua humilde serva, no
momento das terríveis dores. O seu testemunho balançou os
alicerces da descrença do Dr. Kalley. Poderia realmente haver um
Deus? “Leia o Livro”, ela pedia insistentemente; “está tudo no Livro” 3.

O resultado, conta-nos Forsyth, foi que Kalley “começou a estudar


as Escrituras diligentemente, num esforço para descobrir o segredo da vitória
daquela mulher sobre a destruição que a doença produzia, o desamparo da
pobreza e, ultimamente, a própria morte”4.

Finalmente, dois livros completaram o ciclo que levou o doutor à


convicção cristã. Um deles foi a obra “Meditações Vespertinas sobre a Vida,
Morte e Imortalidade”, de Edward Young (1683-1765). O segundo foi “Profecia
Cumprida”, do Dr. Keith. Enquanto que com a primeira leitura ele foi compelido
a confessar a existência de “algo eterno”, com a segunda ele convenceu-se “de
que o ateu é mais crédulo que o cristão”. Através de um “lento processo de
racionalização” foi que, segundo Douglas Nassif Cardoso, “o médico dançarino
transformou-se no médico evangelista, no profeta da fé” 5.

Kalley, desde o início de sua fé, foi um obreiro incansável. Em 1833


ele tornou-se membro da Igreja da Escócia e já no ano seguinte formou uma
classe de rapazes pobres, aos quais ensinava as Escrituras aos domingos e
quintas-feiras, à noite. Mais tarde, em 1845, ele falou à Assembleia Geral da
Igreja Livre da Escócia as seguintes palavras, que bem descrevem toda a sua
carreira:
Eu era um ateu, e me deleitava na frieza, na escuridão, na sensação
de declarar abertamente minha descrença. Quando descobri, digo-o
para a minha satisfação, que há um Deus e que este livro [apontando
para a Bíblia] vem de Deus, senti que todo cristão é chamado para
entrar naquele campo de serviço no qual ele pode usar, para a glória
de Deus, os variados talentos com que cada um foi dotado pelo
próprio Deus. Quanto a mim, tinha de pensar seriamente de que

3
Op. Cit. p. 17, 18
4
Op. Cit.
5
NASSIF CARDOSO, Douglas. Práticas Pastorais do Pioneiro na Evangelização do Brasil e de Portugal. São
Bernardo Campo, São Paulo: 2002. p. 22
forma um médico cristão como eu poderia melhor servir o Filho de
Deus6.

Então logo o Dr. Kalley começou a bater nas portas das agências
missionárias. Quando leu em uma revista da Sociedade Missionária de Londres
solicitando médicos missionários, ele requereu à Sociedade Missionária da
Igreja da Escócia que o enviasse para servir na China, mas obteve resposta
negativa porque esta agência não mantinha trabalho missionário ali.

Em seguida, fez pedido à Sociedade Missionária de Londres, em


1837, que realmente carecia de um médico missionário na China. Após muitas
entrevistas na SML, seu pedido foi aceito em 7 de novembro de 1837. Eis o
teor da minuta do Comitê da SML: “Foi decidido que o Dr. Roberto Reid Kalley,
da Igreja da Escócia, Kilmarnock, indicado pelo pastor e Reverendo John
Ward, ministro da Igreja Congregacional de lá, seja aceito como missionário
assistente e médico para o trabalho na China”. No entanto, sua aceitação
estava condicionada ao aprofundamento dos seus conhecimentos médicos e
teológicos. Então, ele vendeu imediatamente sua casa e sua clínica e
matriculou-se na Glasgow University para completar seus estudos, atendendo
ao desejo da SML.

Nesse interregno, Kalley noivou com Margareth Crawford, de


Paisley, e escreveu à SML para falar sobre sua noiva, oportunidade em que
informou sobre seu caráter e sua vocação ao campo missionário. Entretanto, a
SML tinha regra no sentido de que nenhum candidato aprovado ao campo
missionário poderia iniciar um relacionamento sem prévio conhecimento e
aprovação do Comitê da agência. Kalley, humildemente, expressou seu pesar
pelo rompimento da regra e reembolsou a SML por quaisquer despesas com
sua avaliação e aprovação, desculpas que foi lhe foram dadas prontamente.

O resultado é que até agora temos um homem com um chamado


irresistível, com convicções de que tudo quanto precisa fazer nesta vida é estar
à serviço do Senhor que lhe salvou, mas ainda sem campo missionário.
Veremos no próximo estudo como portas novas e surpreendentes lhe foram
abertas.

Por ora, penso ser relevante destacar, a partir dos fatos da vida de
Kalley até agora estudados, as seguintes lições:

Em primeiro lugar, a providência de Deus nos forja para o serviço


que Ele quer que empreendamos. Veremos no curso de nossos estudos da
vida e obra de Kalley que diversos detalhes relacionados à sua formação,
desde a infância, e passando por sua profissionalização, contribuíram para a
obra que ele haveria de realizar para a glória de Deus.

6
FORSYTH, William B. Jornada no Império: Vida e Obra do Dr. Kalley no Brasil. p. 18, 19
Em segundo lugar, quando portas se fecham definitivamente
devemos encarar as circunstâncias não com ânimo frustrado e desiludido, mas
como sinalizações de Deus para o que Ele quer realizar. Paulo uma vez foi
impedido de pregar na Ásia e na Bitínia, visto que Deus possuía outros planos
para o apóstolo. Kalley foi impedido de ir à China, também por circunstâncias
alheias à sua vontade, porque o Senhor do escocês também tinha outros
planos para ele.

Em terceiro lugar, Deus também usa obreiros de forma não


convencional e atípica. Kalley não foi um missionário que diríamos “típico”. Ele
rejeitou a formação para o ministério que seu padrasto quis lhe dar. Também
não se tornou um pastor local típico, nem foi enviado após um procedimento
formal e prévio por uma sociedade missionária. Isso não quer significar, no
entanto, que não tenha sido profunda e intensamente usado por Deus, como
constataremos nos próximos capítulos.

Finalmente, é relevante relembrar a decisão de Kalley quanto a estar


a serviço do Filho de Deus com todos os talentos e oportunidades que Ele
mesmo nos deu. De fato, todo cristão genuíno deve tomar a mesma decisão, a
de gastar sua existência no serviço do Redentor.

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