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AS CARACTERÍSTICAS

DO FEDERALISMO
A federação não é uma organização de Estado que se apresenta de forma idên-
tica em todos os países que a adotam. Há grande variação entre as federações, por
razões históricas, políticas e geográficas. A federação é propícia para Estados de
grande amplitude geográfica, como Brasil, Canadá, EUA, Índia, embora adotada
em países cujos territórios são pequenos. Neste módulo, vamos destacar algumas
características da federação, ainda que nem todas características se manifestem
em todas as federações.

1. O federalismo deve estar previsto


em uma Constituição rígida
O conteúdo de uma Constituição pode ser formal ou material. O conteúdo
formal é aquele que consta da Constituição rígida, mas que poderia não estar
no texto constitucional. O conteúdo materialmente constitucional é aquele que
é próprio das constituições, como a organização dos poderes e os direitos funda-
mentais.
Há diversas matérias que não precisavam constar da Constituição da Repúbli-
ca de 1988, pois poderiam ser tratadas em leis ordinárias. É compreensível que os
Constituintes de 1987 e 88 tenham optado por uma Constituição mais extensa,
já que o processo constituinte teve uma forte presença da sociedade e cada setor
exercia a pressão para ver contemplados seus direitos no documento normativo
básico que serviria de alicerce para a reconstrução da democracia brasileira. Es-
ses setores alimentavam a expectativa de que, estando previsto seus direitos na
Constituição da República, aumentavam as chances de que tais direitos fossem
efetivamente cumpridos. Juridicamente, nada impede que muitos desses direitos
sejam tratados apenas no nível da legislação ordinária e, ainda assim, sejam efe-
tivados pelo Estado ou pelos particulares. Esses direitos são formalmente cons-
titucionais, porque são matérias que não precisam constar da Constituição para
fazer parte do mundo jurídico.
A decisão de se organizar o Estado na forma federativa é, ao contrário, uma
matéria que não pode ficar a cargo do legislador ordinário, pois ela é material-

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mente constitucional. Em uma federação, a Constituição define o âmbito de com-
petência de cada ente federativo (União e Estados, para utilizar as nomenclaturas
brasileiras), estabelecendo as matérias sobre as quais eles podem legislar. Secar a
cargo do legislador ordinário, como o da União, ele poderia alterar as atribuições
dos Estados, que teriam a sua autonomia comprometida.
Na Constituição da República de 1988, a decisão de organizar o Estado bra-
sileiro na forma de uma federação se expressa com evidência nos arts. 1º e 18. É
interessante observar que, no art. 1º da CR, não há referência à União como um
dos entes federativos, uma vez que essa palavra - união - aparece no texto do refe-
rido dispositivo com letras minúscula e poderia ser substituída por associação ou
reunião. No art. 18 da CR, ela já aparece com letra maiúscula, referindo-se a uma
parte da estrutura político-administrativa do Estado brasileiro. Isto se deve pelo
fato de o art. 1º se referir ao sentido original da federação, como um pacto entre
os Estados. Nesse sentido, a União é um resultado do pacto entre os Estados.
O termo ‘Estados’ a que se refere o art. 1º da CR não se refere apenas ao poder
público, mas abarca notadamente o seu povo, que tem a titularidade da sobera-
nia de decidir se integrar a uma federação, ainda que por meio de representantes
eleitos. É verdade que esta decisão não aconteceu no Brasil, que nasceu na forma
de um Estado unitário. Pode-se dizer que a decisão de participar de uma fede-
ração é a última decisão soberana das unidades que a integram, porque uma das
características da federação, que a distingue da confederação, é o fato de que não
se pode romper com pacto federativo. Como estabelece o art. 1º da CR, a Repú-
blica Federativa do Brasil é a união indisssolúvel dos Estados, dos Municípios e
do Distrito Federal.
Os arts. 1º e 18 da Constituição da República trazem uma novidade: a refe-
rência aos municípios como parte da federação. Evidentemente, eles já existiam
antes da Constituição da República de 1988, mas não gozavam do principal atri-
buto de um ente federado, que é a autonomia. Havia, pois, uma possibilidade de
ingerência dos Estados na organização dos Municípios. A Lei Complementar n.
3, de 28 de dezembro de 1972, do Estado de Minas Gerais, que dispunha sobre a
Organização do Município, estabelecia, por exemplo, regras de organização, de
atribuição e de funcionamento das Câmara Municipais, algo inimaginável após a
promulgação da Constituição da República de 1988, precisamente em virtude da
autonomia assegurada aos Municípios.
Há autores que, apesar de sua referência nos arts. 1º e 18 da CR, não reconhe-
cem o Município como entes federados, sob a alegação de que, embora gozem

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do principal atributo de um ente federativo, não dispõe de outro, que é a partici-
pação na formação da vontade nacional. Os Estados participam da formação da
vontade nacional por meio de seus representantes, que são os Senadores. De fato,
ainda que se reconheçam os Municípios como entes federados, eles não ostentam
os mesmos elementos que os Estados federados. Além do ponto acima destacado,
os Municípios, por exemplo, não têm três poderes – apenas Legislativo e Execu-
tivo - e suas Leis Orgânicas não são protegidas pelo controle de constitucionali-
dade concentrado. Apesar dessa controvérsia, é inegável que o Município ganhou
relevo na federação brasileira, assumindo cada vez mais importância.

2. A federação se organiza em níveis de governo


composto por entidades autônomas
As federações se organizam, como regra, em dois níveis de governo, salvo o
Brasil, cuja federação é composta por três níveis de governo: União, Estados e
Municípios.
A União tem uma dupla dimensão, que podemos nomeá-las de nacional e de
federal (stricto sensu) e perpassam os três poderes. No exemplo acima, apre-
sentamos uma situação em que a Presidente atua como representante do Estado
brasileiro, composto pelos três níveis da federação. Imaginemos agora quando a
União celebra um contrato com um dos Estados da federação: nesta situação, a
Presidente, ao subscrever o documento, não o faz mais em nome da República
Federativa do Brasil, pois está representando apenas a União. Os atos próprios
do exercício da soberania integram a dimensão nacional do Poder Executivo da
União.
Vejamos esta dupla dimensão nos poderes Legislativo e Judiciário. Toda lei
editada pela União é reconhecida como uma lei federal, mas elas se dividem em
leis nacionais e leis federais em sentido estrito. Aquelas se dirigem a toda a nação,
vinculando Estados e Municípios. Os exemplos são muitos, como os Códigos
Civil e Penal e a Lei de Licitação. As leis federais em sentido estrito vinculam
apenas a União e não precisam ser observadas pelos Estados e Municípios. Como
exemplos, mencionem-se a Lei nº 8112, de 11 de dezembro de 1990, que dispõe
sobre o servidor público federal, e a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que
disciplina o processo administrativo federal. Nestes casos, Estados e municípios
têm – ou deveriam ter – suas próprias leis sobre estas matérias.
No Judiciário, a distinção é evidente. Tanto os tribunais superiores – Supremo
Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, por exemplo – quanto a Justiça

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Federal integram o Poder Judiciário da União. Mas os Tribunais Superiores têm
uma função nacional, sendo instância de recurso de decisões proferidas pelos
órgãos jurisdicionais estaduais, em especial, os Tribunais de Justiça.
O art. 18 da Constituição da República é claro: União, Estados e Municípios
dispõem de autonomia. A soberania nacional pertence ao Estado federal, à Re-
pública Federativa do Brasil, embora órgãos da União sejam competentes para
praticar atos que a expressam, como, por exemplo, a celebração de um tratado .
Neste caso, tais órgãos o fazem em nome da República Federativa do Brasil. No
exemplo citado, a celebração de um tratado, o ato é efetivado pelo Presidente da
República (art. 84, VIII, da CR) e referendado pelo Congresso Nacional (Art.
49, I da CR). Esses atos são praticados por autoridades ou órgãos que integram a
União, mas o fazem em nome da República Federativa do Brasil.
O federalismo brasileiro tem a especificidade de ser divido em três níveis
de governo, União, Estados e Municípios, todos autônomos. A autonomia dos
entes federativos pode ser dividida em quatro elementos:
a) Auto-organização – refere-se à possibilidade dos Estados e dos Municí-
pios se organizarem por meio de suas Constituições e Leis orgânicas, nos termos,
respectivamente, dos arts 25 e 29 da Constituição da República. Caberia, aqui,
a pergunta. Se Constituições Estaduais e Leis Orgânicas organizam os entes fe-
derativos regionais e locais, qual instrumento normativo organiza a União? A
Constituição da República organiza a República Federativa do Brasil, mas alguns
dispositivos se referem exclusivamente à organização da União.
b) Autogoverno – implica na possibilidade de eleição dos governos nos três
níveis da federação e na liberdade que tais governantes têm de tomar decisões po-
líticas, nos limites da lei. Em virtude do autogoverno, não se pode falar de relação
hierárquica entre União, Estados e Municípios. Todos sabem que os prefeitos não
devem obediência ao Governador, nem este ao Presidente da República.
c) Autoadministração – cada ente federado tem a sua própria estrutura ad-
ministrativa, seus órgãos e seus servidores. Quantas são as secretarias, qual a
competência de cada órgão, qual quantidade de servidores em cada carreira, são
decisões próprias de cada ente federativo em decorrência de sua autonomia ad-
ministrativa.
d) Autonomia financeira – para que as dimensões de autogoverno e autoad-
ministração sejam efetivas, o ente federado deve dispor de recursos financeiros
próprios, ainda que estes recursos decorram de transferências de outros entes
federados constitucionalmente estabelecidas.

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3. Distribuição de competências entre os entes federados
Ao optar por uma federação, não basta o constituinte fazer referência aos ní-
veis de governo, assegurando-lhes autonomia. É preciso estabelecer as competên-
cias de cada ente federado em três distintas áreas:

• Legislativa;
• Administrativa ou executiva;
• Tributária.

A Constituição da República de 1988 estabelece, por exemplo, que compete pri-


vativamente à União legislar sobre trânsito e transporte; não obstante, os Municí-
pios são responsáveis pela oferta do transporte urbano. Os Estados, por sua vez, são
responsáveis por arrecadar o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotivos
– IPVA -, devem repassar aos Municípios 50% do valor arrecadado.
A distribuição de competências é um tema central e será objeto de exame mais
detido no próximo módulo do curso.

4. Participação dos entes federados descentralizados


na formação da vontade nacional
Os Estados, no sistema constitucional brasileiro, participam da formação da
vontade nacional de duas formas:
a) Senado Federal – o Congresso Nacional é formado por duas Casas, a Câma-
ra dos Deputados, composta de representantes do povo, e o Senado Federal, com-
posto por representantes dos Estados. Assim, os Estados participam da formação
da vontade nacional por meio de seus representantes, os Senadores.
b)Apresentação de Proposta de Emenda à Constituição – Os Estados podem
apresentar PECs, conforme estabelece o art. 60, III, da CR, ou seja, por meio de
mais da metade das Assembleias Legislativas, que devem aprovar o texto por
maioria relativa de seus membros.

5. A possibilidade de intervenção
em situação extraordinária
A autonomia do ente federativo é um princípio basilar de nossa Constituição
em vigor, tanto que o federalismo é uma cláusula pétrea (art. 60, § 4º da CR), ou

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seja, não pode ser abolido sequer pelo Constituinte derivado, aquele que detém
poder de alterar a Constituição.
Não obstante, é possível que, respaldados na autonomia, determinados agen-
tes políticos, ao invés de corresponder à atividade de autogoverno de uma comu-
nidade política, promovam o desgoverno, mediante, por exemplo, um quadro
de corrupção generalizado; ou situações nas quais os agentes políticos percam a
capacidade de governo, deixando se alastrar pelas ruas o caos. Para esses casos,
a Constituição da República, nos termos dos seus arts. 34 a 36, prevê mecanismo
para que a União possa intervir nos Estados e estes, nos Municípios. A interven-
ção será examinada de forma mais detida no módulo IV. Por ora, é importante
registrar que a restrição que ela provoca na autonomia do ente federativo tem
como finalidade restabelecer essa mesma autonomia.
Talvez possamos comparar a intervenção federal com a internação involuntá-
ria daquela pessoa que está perdendo as rédeas de sua conduta para as drogas e
para a bebida. A internação suprime o resto de autonomia que essa pessoa dispu-
nha, mas a finalidade permitir que ela possa, após o tratamento durante a inter-
nação, recuperar sua autonomia como indivíduo, libertando-se da dependência
das drogas ou da bebida. A intervenção federal também restringe a autonomia
federativa, mas com a finalidade de recuperá-la e preservá-la.

6. Existência de um órgão competente para dirimir


os conflitos federativos
Nas federações, as Constituição deve prever a existência de um órgão jurisdicio-
nal com competência para dirimir os conflitos federativos. No caso do Brasil, este
órgão é o Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 102, I, f, da CR. É interes-
sante observar que o STF é competente para dirimir os conflitos entre os Estados e
a União, ainda que o STF faça parte da União. Não há como ser diferente, porque
não existe estrutura político-administrativa que não esteja em um dos três níveis de
governo. Cabe apenas reiterar que, embora faça parte da União, o STF é um órgão
de caráter nacional, localizando-se no ápice do sistema judiciário.

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