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15/02/2018 A especulação imobiliária e os pobres no Peru - Le Monde Diplomatique

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FIM DA IDADE DO OURO EM LIMA

A especulação imobiliária e os pobres no


Peru
EDIÇÃO - 73

por Elizabeth Rush

agosto 1, 2013

Em Lima, como em toda a América Latina, os esforços de planejamento urbano se resumem


frequentemente à integração gradual de novos assentamentos espontâneos. Enquanto antes
esse processo se organizava de modo a favorecer a emergência de verdadeiros bairros,
atualmente ele não visa a nada além da especulação imobiliáriaElizabeth Rush

Em um sábado de janeiro, à noite, centenas de pessoas se reuniram para festejar o segundo aniversário de Los
Alamos, um povoado de construções precárias no Peru. Em outros lugares do mundo, uma comunidade como
essa seria quali cada de favela, bairro de lata ou zona de ocupação. Em Lima, porém, ganha o nome mais
aprazível de pueblo joven (jovem comunidade). O otimismo da fórmula traduz o estado de espírito característico
da capital peruana, onde o fato de ocupar coletivamente um pedaço de terra ainda disponível, mesmo de
maneira informal ou irregular, é considerado uma forma legítima do processo de urbanização. Com o passar do
tempo, algumas dessas “jovens comunidades” conquistaram a reputação, junto a outros bairros mais nobres, de
lugares mais animados da cidade
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lugares mais animados da cidade.

Em Los Alamos, a noitada está no auge: a multidão dança na pista de terra batida ao ritmo de uma orquestra de
salsa apertada em um palco improvisado e degusta cerveja em temperatura ambiente no ar quente da noite de
verão. Na manhã seguinte, a paisagem é outra: o pueblo joven se transforma em cidade fantasma. Bandeiras e
brasões ainda decoram os barracos de compensado que remontam a uma vila rústica de alguma colina perdida,
mas não há viva alma na rua, à exceção de alguns cachorros anêmicos dormitando sob o sol. Batemos em todas
as portas, sem sucesso, até que uma termina por abrir. “Depois da festa de ontem à noite, as pessoas caram tão
cansadas que foram para o lugar onde moram, no baixo Huaycán, as zonas C e D”, explica Leonarda Ruiz, uma
mulher robusta com dois lhos agarrados à barra de sua saia. Seu marido trabalha no centro de Lima como
engraxate e chegará em casa apenas depois do anoitecer. “Podemos conversar, mas não sei grande coisa”, diz a
mulher. Los Alamos tem apenas três famílias residentes, incluindo a dela.

Durante muito tempo, as ocupações de terra foram feitas de maneira coletiva, pois isso permitia que os
migrantes pobres vindos das montanhas peruanas estabelecessem um local de vida comum e compartilhassem
seus magros recursos. Hoje, a maior parte dos camponeses que “descem para a capital” com a esperança de uma
vida melhor se instala como pode, cada um por sua conta.

O terreno de Leonarda está 16 quilômetros a leste do centro de Lima, na encosta mais elevada do Vale de
Huaycán. Das escadinhas da entrada, a jovem tem uma vista privilegiada da cidade, com suas ruas e avenidas
retilíneas, seus jardins públicos, comércios, escolas, telecentros, lanchonetes, cemitérios e campos de futebol –
os tão numerosos campos de futebol.

Há quarenta anos, Huaycán não passava de um deserto. Depois, uma guerrilha maoista se espalhou pelo interior
do país, desencadeando uma espiral de represálias sangrentas que desestabilizou a economia peruana e
impulsionou milhares de camponeses a buscar refúgio na capital. As favelas se multiplicaram: primeiro na
periferia próxima ao centro, depois cada vez mais longe, até esse vale esquecido. Em vez de ignorá-los ou puni-
los, a prefeitura de Lima decidiu prestar auxílio aos refugiados que tentavam construir suas casas nas terras
comunais. Pesquisas geológicas e topográ cas foram realizadas com o objetivo de elaborar um plano de
desenvolvimento. Os migrantes construiriam com as próprias mãos as infraestruturas prescritas pela prefeitura,
que em contrapartida forneceria o acesso a água, eletricidade e transporte. No intervalo de uma noite, ou quase,
nascia um pueblo joven.

Essas “comunidades jovens” são apresentadas com frequência em conferências internacionais como um modelo
de desenvolvimento urbano informal. De fato, os povoados que se bene ciaram desse programa entre os anos
1960 e 1980 impressionam pela vitalidade, (relativa) paz social e forte implicação de seus habitantes na vida da
comunidade. No início dos anos 1990, contudo, sob a condução do presidente neoliberal Alberto Fujimori (1990-
2000), o título de propriedade se impôs e principalmente a “reabilitação” da habitação informal. A antiga
parceria entre poderes públicos e moradores dessas terras foi substituída por uma privatização em cadeia do
espaço de vida, com o objetivo de transformar os habitantes, à mercê de uma economia de mercado triunfante,
em pequenos proprietários.

Uma vila abandonada antes mesmo de ter nascido

As populações que vivem nas “jovens comunidades” construídas durante ou depois desse período ainda lutam –
em alguns casos, há décadas – para que as prestadoras de serviços básicos, privatizadas, aceitem subsidiar a
água ou a eletricidade. Cada vez mais, as terras prestes a abrigar um novo pueblo jovensão alvo de especulação
imobiliária em bene cio dos habitantes do centro de Lima. A alta dos aluguéis resultante desse processo impede
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o acesso de novos migrantes ao único lugar que até então poderiam custear.

Diante da casa de Leonarda, passa uma jovem elegantemente vestida, com um smartphone pendurado na cintura
da calça jeans. “Minha mãe é fundadora histórica de Huaycán. Em 2008, ela comprou todos esses terrenos dos
Collonac [um grupo de habitantes indígenas]”, conta, apontando para as alturas erodidas da colina. Sua mãe não
foi a única a aproveitar o momento. Em todos os arredores de Lima, caciques locais se apropriaram ilegalmente
de terras visadas pelos migrantes para em seguida extorquir uma soma de qualquer um que pretendesse se
estabelecer de forma permanente. Antigos migrantes, instalados mais abaixo no vale, pagam a soma, acampam
nas parcelas de terra durante alguns meses – o tempo de construir barracos provisórios – e depois voltam para

suas casas e esperam a chegada de novas pessoas, como a família de Leonarda. Em um país onde as
oportunidades imobiliárias são raras, comprar e revender esses terrenos representa, para muitas famílias
modestas, uma forma de ter uma renda mensal.

“Tudo o que queríamos era um terreno nosso para plantar alguns legumes e mandar as crianças para a escola”,
explica Leonarda. Há um ano, ela e sua família deixaram seu vilarejo natal, a 900 quilômetros dali, próximo à
fronteira com o Equador, para levar uma nova vida na capital. Contudo, já se foi a época em que seus
semelhantes podiam ocupar coletivamente as terras sem desembolsar um centavo. Para obter o direito de
habitar um terreno na encosta da colina no cinturão da cidade, Leonarda e seu marido precisaram fazer um
depósito de US$ 2,8 mil – o equivalente a quatro anos de aluguel – a um vizinho distante do baixo Huaycán.

“Aqui não temos água corrente nem estradas ou esgoto. Temos eletricidade, mas é clandestina e custa muito
caro”, revolta-se Leonarda. Cabanas desabitadas pintadas de cores vivas constelam a colina atrás dela, como um
punhado de confete espalhado pelo deserto. Muitas construções permanecem inacabadas, com quatro muros
ocres esperando um teto. Em geral, é assim que nascem as novas zonas urbanas informais: à base de papelão,
zinco e lona, o que não impede que depois se transformem em bairros habitáveis. A parte alta de Huaycán,
porém, difere dos pueblos jóvenesfundados no passado: é uma vila abandonada antes mesmo de ter nascido.
Entre todas as penúrias sofridas por Leonarda, a mais dolorosa é certamente a ausência de vizinhos.

“Uma cidade para todos”: o slogan de Lima aparece em todo lugar, no novo metrô da capital, nas cisternas de
água no meio das colinas áridas, nos uniformes de trabalho de scais encarregados de avaliar as terras às
margens do Rio Rimac. Um terço dos peruanos vive em Lima e, entre os habitantes da capital, um terço ocupa
terrenos que não lhe pertencem. Durante todo o século XX, a cidade não parou de crescer em razão dos milhões
de camponeses desalojados de suas terras pela agricultura industrial, a guerrilha do Sendero Luminoso e a
brutalidade da contrainsurreição. De 1940 a 1993, Lima viu sua população multiplicar-se por vinte.1 A cada nova
leva de migrantes, cresce a di culdade de encontrar alojamento, e os novos habitantes constroem suas próprias
casas e cidades nos con ns da periferia, sem qualquer título de propriedade. Nesse local onde a Cordilheira dos
Andes mergulha no Oceano Pací co, aqueles que não possuem meios de morar no platô verdejante do centro de
Lima cavam um espaço nos interstícios da geologia: contrafortes montanhosos, recantos desérticos e vales
escarpados.

Houve um tempo em que Lima experimentou uma pressão demográ ca tão forte que o Estado precisou
estabelecer uma parceria inédita com os migrantes rurais. A periferia da capital seria para sempre remodelada.
Em 1971, duzentas famílias se organizaram para ocupar terrenos privados da cidade superpovoada de Pamplona,
próxima a Lima. No dia combinado, eram 9 mil famílias. Diante do caos que representava aquele precedente, as
autoridades não mediram esforços: o general Juan Velasco Alvarado, então no poder (1968-1975), decidiu em
primeiro lugar cortar a distribuição de alimentos aos “invasores”, depois os expulsou em ônibus que os levaram
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para uma terra árida. Sem saber, Alvarado acabava de lançar as fundações do que se tornaria o arquétipo da
cidade autogestionada: Villa El Salvador.

No mapa, Villa El Salvador parece triste e previsível como um hospital. Não há nenhum vestígio de sinuosidade
no quadrilátero de ruas retilíneas que se cruzam em ângulos retos e intervalos regulares. O planejamento da
cidade foi realizado durante o governo do general, e os próprios moradores foram encarregados de executar as
obras. Os habitantes, em sua maioria desempregados desde a chegada a Lima,2 asseguraram – com as próprias
mãos e gratuitamente – a construção das infraestruturas, desde a terraplanagem para o traçado das ruas até as
fossas e os encanamentos públicos. Em 1975, a população de Villa El Salvador já contava com 30 mil pessoas, a
maior parte com acesso a água corrente e eletricidade após cinco anos de mudança para o deserto.3

“O governo e a população entraram em um acordo: se os migrantes zessem o esforço de construir as fundações


dessas cidades novas, caberia ao Estado fornecer-lhes os serviços básicos ou no mínimo estabelecer algum tipo
de compromisso de subsídio”, explica Daniel Ramírez Corzo, antigo migrante de Villa El Salvador que se tornou
conselheiro do prefeito para questões de habitação. Depois de inaugurar o período de urbanização informal
mais orescente da história de Lima, essa cidade erigida no nada se tornou uma referência para outras
comunidades, como a do baixo Huaycán. Durante as duas décadas seguintes à sua criação, comunidades
informais do mesmo tipo começaram a aparecer nas areias do deserto.

Durante essa idade do ouro, os refugiados econômicos que desembarcavam na capital eram considerados
parceiros na expansão de Lima. Foram eles que garantiram a impressionante prosperidade dessas colônias

visitadas por urbanistas do mundo inteiro. Com o passar do tempo, contudo, o Estado endureceu sua política e
consagrou a vitória dos interesses privados sobre os públicos.

Há menos de vinte anos, o presidente Fujimori – hoje na prisão, especialmente pela violação de direitos
humanos – conduziu a campanha de privatização de terras mais radical já conhecida no mundo. O instrumento
dessa política era o Organismo de Formalização da Propriedade Informal (Cofopri). Financiado pelo Banco
Mundial e inspirado em teorias neoliberais do economista Hernando de Soto (segundo o qual “os pobres não são
o problema, mas a solução”), o Cofopri pretendia conferir títulos de propriedade aos residentes dos pueblos
jóvenes.

Por que arriscaria minha casa por um empréstimo?

Em seu livro O mistério do capital, De Soto explica: “A maior parte dos pobres já possui recursos su cientes para
ter êxito no sistema capitalista. Em realidade, o valor de seus bens é imenso: quarenta vezes maior que o
montante da ajuda internacional recebida no mundo inteiro desde 1945. […] Mas esses recursos não se
apresentam na forma como se deveria. […] Sem documentos que atestem a propriedade, essas posses não
podem ser transformadas diretamente em capital: não podem ser vendidas fora de pequenos círculos locais nos
quais as pessoas se conhecem e con am umas nas outras, não podem servir como garantia de empréstimos e
créditos, não podem servir como bens de raiz na ocasião de um investimento”.4 Bastaria, portanto, conferir um
título de propriedade a esses ocupantes para garantir-lhes os frutos suculentos do capitalismo – a saber, capital
disponível para acesso a crédito – e melhorar sua existência para o maior benefício de sua comunidade.

Durante a era Fujimori, o Peru privilegiou – mais do que a construção – a propriedade privada como solução ao
problema de moradia, por duas razões principais. Em primeiro lugar, os direitos de propriedade acordados à
força com os habitantes tinham um valor irrisório: US$ 60 por título – muito menos do que o fornecimento de
tijolos e cimento por parte do Estado. Em seguida, apresentavam a dupla vantagem de fazer outras medidas
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redistributivas parecer supér uas – como a scalidade progressiva ou o subsídio à construção de novas
moradias – e preservar os interesses dos mais ricos. Graças à varinha mágica do Cofopri, o Estado pretendia
suprimir a barreira que impedia os pobres de gozar plenamente da riqueza que “eles já possuíam”: o solo sobre o
qual dormiam. Mas essa felicidade obrigada da pequena propriedade não foi su ciente para convencer os
habitantes dessas comunidades a agir como deveriam segundo essa lógica. Eles não correram para o banco para
se endividar.

“Por que eu arriscaria minha casa por um empréstimo, já que ela é a coisa mais importante da minha vida?”,
questiona Casio Vizcarra, presidente de Virgen de Guadalupe, uma das primeiras comunidades a receber os
títulos de propriedade do Cofopri. Fabricante de bijuterias artesanais, músico amador e pai solteiro de duas
crianças, conseguiu poupar dinheiro su ciente para equipar seu lar com encanamento, piso de concreto e uma
televisão por satélite. As economias necessárias para tudo isso levaram tempo, muito mais do que se tivesse
pedido um crédito bancário, mas é justamente essa longa e paciente melhoria do lar que permitiu a tantas
comunidades se desenvolverem “pouco a pouco”.

Ao lado de seus vizinhos, Vizcarra domou as colinas pedregosas sobre a qual vive abrindo uma estradinha a
golpes de picareta e utilizando o cascalho da rocha como material para preparar as fundações de outras casas.
Durante mais de dez anos, lutou para que sua comunidade tivesse ligações de água corrente e esgoto. Quando a
companhia de águas Sedapal nalmente cedeu às reivindicações, ele mostrou a seus camaradas como utilizar os
novos vasos sanitários. Vizcarra é engenhoso e prudente. Como a grande maioria dos antigos ocupantes que se
tornaram pequenos proprietários periféricos, ele se recusa obstinadamente a se endividar.5

Interrogado sobre essa resistência ao crédito bancário, o diretor do Cofopri, Jeús Tarabay Yaya, elude a questão
opondo os “bons cidadãos”, aqueles que “possuem senso de negócios”, aos “espíritos retrógrados”, para quem “o
empreendedorismo faz falta”. Vizcarra, seus vizinhos e a maioria dos habitantes dos pueblos jóvenes de Lima
pertencem, de forma manifesta, à segunda categoria.

Seriam necessárias décadas e centenas de pequenos passos cansativos para que as comunidades de exilados
construíssem para si uma existência decente nas terras que ocupam e fazem fruti car. Mas, sob o reinado do
Cofopri, ter um título de propriedade não é tão complicado: basta pegar um número de protocolo no escritório
central de San Isidro e esperar que um funcionário chame seu nome no guichê.

No coração de Lima, na sala de espera iluminada por uma luz uorescente, alguns migrantes vestidos com a
roupa de domingo folheiam nervosamente seus dossiês. Para obter um título de propriedade, eles precisam
provar dez anos de presença na parcela de terra que reivindicam e dispor de um atestado, expedido por um
engenheiro, con rmando que o terreno é apto a abrigar construções. Possuir um título de propriedade pode se
revelar útil. Entretanto, os mecanismos que condicionam sua aquisição inegavelmente exercem in uência sobre
a forma de desenvolvimento de uma cidade.

Segundo estimativas, o número de pessoas alojadas sem direitos básicos ou títulos de propriedade deverá
dobrar no mundo durante os próximos 35 anos. No espaço de duas gerações, poderiam representar um terço da
população mundial, contra um sexto hoje. A maioria residirá nos limiares das grandes metrópoles em expansão
frenética. Nesse sentido, Lima é um estudo de caso. Há dois anos, a Índia enviou uma delegação ao Peru para
veri car se o sistema do Cofopri poderia ser aplicado a cidades como Nova Déli e Bombaim para gerenciar a
própria superpopulação. Hoje, um olhar super cial sobre a capital peruana pode capturar a imagem dessas
“jovens comunidades” como locais de desenvolvimento exemplar, sem, contudo, desvendar o papel fundamental
que outrora teve a parceria entre poder público e cidadãos organizados coletivamente. A percepção do mundo
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não é impermeável às distorções induzidas pela economia de mercado, e numerosos visitantes estrangeiros
poderiam até atribuir o sucesso dos pueblos jóvenesà ideologia da propriedade privada.

Para Teresa Cabrera, pesquisadora do Centro de Estudos e Promoção do Desenvolvimento (Desco), “o acesso
fácil à propriedade promovido pelo Cofopri destruiu certo equilíbrio. As terras nos limites de Lima se tornaram
alvo dos especuladores, que procuram esses títulos de propriedade sem se preocupar com o processo de
consolidação local que prevalecia até então. Essas regiões não sofrem nenhuma melhoria, e o componente social
da vida comunitária desapareceu”. A solidariedade entre os habitantes na época das ocupações coletivas de terra
cedeu o lugar a uma anexação especulativa promovida a esporte nacional.

Victor Raul Acuna sonhava em ter sua própria casa e decidiu seguir os passos de seus pais. Em 2005, se instalou
em um pedaço da estrada desativada na saída Oeste de Villa El Salvador, a cidade onde cresceu. “Vários
pequenos grupos já viviam nessa estrada”, conta. “A colônia deles pegou fogo em um incêndio, por isso vieram
para cá. Eu, minha mulher, meus dois lhos e outras quase quatrocentas pessoas nos juntamos a eles.” Juntos,
decidiram formar uma nova comunidade batizada de Juan Pablo Segundo, em homenagem ao antigo papa.
Novatos em política, Acuna e seus camaradas não perceberam a que ponto as práticas de ocupação de terra
mudaram desde aqueles primeiros dias de Villa El Salvador.

Primeiro, uma parte dos fundadores de Juan Pablo Segundo revendiam várias vezes os mesmos títulos de
propriedade, antes de desaparecerem. Os novos habitantes padecem de brutalidades policiais e da falta de água.
Além disso, a maior parte dos lotes revendidos foi dividida em dois, e a comunidade passou a ter problemas

relacionados ao tamanho dos terrenos com eventuais regularizações. A questão mais espinhosa, contudo, são as
casas vazias. Entre os primeiros habitantes do pueblo joven, muitos construíram rapidamente um barraco
inabitável com a única função de apoiar a demanda de propriedade. “Essas pessoas já possuem uma casa bonita
em Lima, mas, como querem ganhar mais dinheiro, deixam a nós, os verdadeiros habitantes, todo o trabalho de
melhoria, enquanto esperam tranquilamente pelo título de propriedade e as ligações de água e energia elétrica.
Depois disso, eles revenderão a casa e nunca mais os veremos”, queixa-se Acuna, abrindo e fechando as falanges
calejadas, com traços ainda recentes do trabalho de pedreiro.

Acuna apresenta ao visitante alguns sucessos dos quais a comunidade se orgulha, como o ponto de água público
e as calhas decoradas com bandeirinhas amarelas e brancas que drenam as escassas águas da chuva para as
cisternas de plástico dispostas em frente a cada casa. Mas o objetivo de uma existência decente com serviços
básicos estáveis ainda permanece longínquo, mais do que ele gostaria de admitir. Hoje, sete anos após a
instalação sobre essa duna de areia, a única fonte de energia elétrica a que possuem acesso é uma ligação
clandestina. Sua casa ainda não tem água corrente e a estrada é muito íngreme para que caminhões-pipa da
Sedapal possam usá-la. “Adoraríamos receber um título de propriedade, talvez ele nos permita obter os serviços
que nos faltam”, comenta esperançoso. O que ele ignora, e que o Cofopri trata de esquivar qualquer
reconhecimento nesse sentido, é que um título de propriedade apenas para ele não traz nenhuma garantia em
matéria de desenvolvimento.

Primeiro programa de habitação social

“Um pedaço de deserto não é solução, mas um pedaço de papel também não”, observa Corzo. “Sem acesso a
serviços públicos, o título de propriedade apenas contribui para manter os habitantes dessas colônias informais

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na pobreza.” Mês passado, esse eleito do Conselho Municipal de Lima lançou o primeiro programa de habitação
social da história da capital peruana, uma alternativa à política de acesso à pequena propriedade. A expansão
vertical nas zonas menos afastadas da cidade constitui, de acordo com sua visão, uma solução melhor para os
migrantes que se amontoam nos bairros periféricos mais populosos da cidade.

A prefeita de Lima, Susana Villarán, de esquerda, se comprometeu a colocar um m nas práticas clientelistas
herdadas da era Fujimori. Mas a transição não se dá sem sofrimento. Além de dispor de modestos recursos,
suscita o rancor dos eleitos perseguidos pelo Conselho Municipal por corrupção. Esses políticos decidiram

empreender uma campanha para destituir Susana, processo que culminou em um referendo que a prefeita
venceu por estreitos 3%, no dia 17 de março deste ano.

Antes de deixar Los Alamos, deparamos com uma família vinda de La Victoria, bairro central de Lima que abriga
o orescente mercado de Gamarra, dos atacadistas de tecido. À exceção de Leonarda e da lha da especuladora,
essas são as únicas pessoas com quem cruzamos nessa colina desolada no dia seguinte à festa de aniversário do
pueblo joven. A família veio atrás de um negócio comentado por um amigo. “Nosso país se desenvolve
rapidamente, por isso é uma boa ideia comprar um pedaço de terra para tirar algum dinheiro”, explica o pai, que
trabalhou na capital durante quase cinco anos. Para fugir do calor sufocante, abrigamo-nos sob a sombra de
uma casa desabitada. “Mas o terreno é muito alto, assim como seu preço”, lamenta o visitante. “Não há nada
aqui; eu queria esse pedaço de terra para meu lho, que não precisa se mudar já, mas quanto tempo será que
demoraria para que a estrada e a água corrente chegassem até aqui?”, questiona. Tentamos responder à
pergunta dele durante um bom tempo. A menos que o lho dele meta a mão na massa por conta própria. Ou que
o Estado decida, nalmente, intervir.

Elizabeth Rush é Escritora e membro da agência fotográ ca Makoto.

1 Daniella Gandolfo, City at its limits: taboo, transgression, and urban renewal in Lima [A cidade no limite: tabu,
transgressão e renovação urbana em Lima], University of Chicago Press, 2009.
2 Gustavo Riofrio, The case of Lima, Peru. Understanding slums: case studies for the Global Report [O caso de
Lima, Peru. Entendendo favelas: estudo de caso para o Relatório Global], ONU Habitação, Nairóbi, 2003.
3 Peter Schübeler, “Participation and partnership in urban infrastructure management” [Participação e parceria
em administração de infraestrutura urbana], Banco Mundial e Banco Internacional para a Reconstrução e o
Desenvolvimento (Bird), Washington, 1996.
4 Hernando de Soto, Le mystère du capital [O mistério do capital], Flammarion, Paris, 2005.
5 Antonio Stefano Caria, “Titulos sin desarrollo: los efectos de la titulación de tierras en los nuevos barrios de
Lima” [Títulos sem desenvolvimento: os efeitos da titulação de terras nos novos bairros de Lima], Estudios
Urbanos, Lima, n.4, 2007.

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