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1590/0103-656420160007
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Da perda do objeto: o encontro sobre o abismo
Rafaela Brandão Alves*
Marcela Toledo França de Almeida
Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação. Goiânia, GO, Brasil
Resumo: Este artigo teoriza sobre a relação entre a perda do objeto de satisfação plena e as possíveis experiências
de gozo. A fim de empreender essa discussão serão tomados como centrais os conceitos de das Ding em Freud e
objeto a em Lacan, alicerçados nos conceitos de angústia, gozo e erotismo, este último encontrado nas elaborações
do filósofo Georges Bataille. Ademais, será resgatada a noção de sublimação, via de satisfação pela qual o sujeito
bordeja o furo deixado pela perda do objeto fazendo um laço social. O registro simbólico é, portanto, o responsável
por fazer este laço, já que estaria nas palavras a possibilidade de um encontro sobre o abismo cavado pela divisão
sexual. A linguagem teria, portanto, a função de preencher o buraco deixado pela perda do objeto, uma promessa
apaziguadora, mas impossível de ser bem-sucedida, uma vez que sobre essa fenda nada se fala.
Entre um ser e outro, há um abismo, contínuo da satisfação total. Esse objeto, no entanto, não
há uma descontinuidade. vem e nunca virá, pois há um abismo intransponível entre
Bataille eles – abismo esse agora pensado pela psicanálise entre o
sujeito do desejo e o objeto desejado.
O sujeito, para a psicanálise, é fraturado por uma A inadequação permanente do objeto é fator de
cisão entre sistemas regidos por princípios distintos, como diferenciação do homem e do animal. Quanto aos animais
o inconsciente, princípio de prazer, e o consciente, princí- pode-se dizer da completa satisfação das suas necessidades,
pio de realidade. Esta secção na topologia psíquica é um ao passo que do homem fala-se de uma parcial satisfação
corte que nos remete à origem da palavra sexo e carrega a do desejo. Ideia melhor desenvolvida por Freud (1930/1997)
noção de uma separação entre continentes. Um continente em seu texto O mal-estar na civilização, o que ele deno-
é reconhecido por sua borda, seu limite, uma marca, assim mina de recalque orgânico numa extensa nota de rodapé,
como para o psiquismo, que tem no corte da experiência diz de um esquecimento da espécie na passagem de um
com a realidade a inscrição do sexual na experiência hu- tempo mítico, anterior à inscrição da linguagem nos des-
mana. Esta divisão é a cicatriz que posteriormente, na ten- dobramentos do humano. No texto freudiano, a aquisição
tativa de retomar um tempo anterior à borda, será vivida da bipedia e o distanciamento do olfato dos órgãos sexuais
como trauma. teriam processualmente estabelecido o primado da visão
Não muito distante desta secção psicanalítica, e o deslocar do funcionamento instintual para o pulsional,
Bataille pensa o ser em sua essência descontínua de que como reelabora Marco Antonio Coutinho Jorge (2013), psi-
já na reprodução a descontinuidade estaria em jogo. Desde canalista brasileiro que retoma essa passagem enfatizando
esse momento originário somos separados por um abismo, a importância de seus efeitos na releitura freudiana:
ou seja, a dissolução das formas contínuas provoca um
abismo entre um ser e outro, e estes são apenas capazes de Após a perda do olfato como elemento predomi-
compartilhar a vertigem desse abismo. nante, todos os orifícios corporais parecem ter sido
Partindo da concepção da secção traumática e da acionados na produção da excitação sexual, e o cor-
descontinuidade do ser, chega-se a um núcleo comum po, regido outrora pelo sentido unívoco do olfato,
da experiência que é a incompletude, marca traumatizante parece ter passado a explorar a complexa plurali
no sujeito que acredita na possibilidade de certo dia vi- dade a ele inerente. (p. 145)
venciar o prazer máximo e, aliviado, poder dizer que tudo
está completo. Contudo, no instante em que a satisfação Nas especulações sobre essas diferenças, haveria
não é devidamente alcançada – e nunca o será completa- para o animal um saber instintual que o dirigiria ao objeto
mente devido à secção em sua origem – o sujeito vive a adequado à satisfação de seus órgãos e, portanto, à repro-
inconsistência do objeto eleito, e a falta apresentada o man- dução, que não se apresenta como uma questão diante da
tém ligado ao movimento que insiste no encontro com o sua existência, da sua continuidade, pois também sua fini-
tude não está em questão. Ou seja, a dissolução das formas
* Endereço para correspondência: brandaoalvespsi@gmail.com contínuas estaria posta para o homem, ser de linguagem,
From the loss of the object: the encounter over the abyss
Abstract: This paper contains theories regarding the relationship between the loss of the object of full satisfaction and the
possible experiences of jouissance. In order to undertake this discussion, central concepts will be used such as those from das
Ding in Freud, and the object “a” in Lacan, based on the concepts of anguish, joy and eroticism, the latter being a concept found
in Georges Bataille’s works. It will also recover the notion of sublimation, the path to satisfaction by which the subject borders
the emptiness left by the loss of the object, making a social bond. The symbolic register is thus responsible for making this bond,
because by using words the subject could possibly make an encounter over the abyss created by sexual detachment. Language
would therefore have the function of filling the emptiness left by the loss of the object, a soothing promise, but impossible to
be fulfilled, since nothing is said about this emptiness.
Résumé: L’article théorise sur la relation entre la perte de l’objet de satisfaction pleine et des possibles expériences de jouissance.
Pour entreprendre cette discussion on prend, comme des concepts centraux, das Ding chez Freud et l’objet a chez Lacan, fondés
sur les concepts de l’angoisse, de joie et d’érotisme, le dernier trouvé chez le philosophe Georges Bataille. Il sera également
rachetée la notion de sublimation, par l’intermédiaire de la satisfaction par lequel le sujet borde le trou laissé par la perte de
l’objet faisant lien social. Le registre symbolique est donc chargé de faire ce lien, car la possibilité d’une réunion sur la fosse
Resumen: El artículo teoriza sobre la relación entre la pérdida del objeto de satisfacción plena y las posibles experiencias del
gozo. A fin de emprender esa discusión serán tomados como centrales los conceptos de das Ding en Freud y objeto a en Lacan,
basado en los conceptos de angustia, gozo y erotismo, éste encontrado en las elaboraciones del filósofo Georges Bataille. Será
también rescatada la noción de sublimación, vía de satisfacción por la cual el sujeto aborda el vacío dejado por la pérdida del
objeto haciendo lazo social. El registro simbólico es por lo tanto responsable por hacer este lazo, pues estaría en las palabras
la posibilidad de un encuentro sobre el abismo producido por la división sexual. El lenguaje tendría, por lo tanto, la función
de tapar el vacío dejado por la pérdida del objeto, una promesa apaciguadora, pero imposible de ser exitosa, ya que una vez
tapado el vacío después nada se habla.
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