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PROMETEUS

FILOSOFIA EM REVISTA
Ano 2 - no.3 Janeiro-Junho/ 2009 ISSN 1807-3042

GÓRGIAS: PRIMEIRA OU SEGUNDA FASE?

Alessandra Daniela Marchi,


Mestranda em filosofia pela USP

Resumo: A obra platônica pode ser dividida em três fases distintas que agrupam diálogos com
características comuns. No entanto, alguns diálogos são de difícil colocação, pois possuem
características comuns a mais de uma fase. O Górgias é um desses diálogos. Por um lado, possui
argumentos característicos dos primeiros diálogos, e, por outro, demonstra uma maturidade
temática e uma postura dogmática de Sócrates que mais se aproxima da República, portanto,
da segunda fase. Entender quais são as possibilidades de agrupamento dos diálogos de Platão é
fundamental para se propor o deslocamento do Górgias dos diálogos socráticos para a segunda
fase, ou seja, aproximá-lo do mesmo ambiente conceitual da República, e, a partir disso,
começar a enxergar no texto elementos filosóficos relevantes ao desenvolvimento da filosofia
moral e política de Platão.

Palavras-chave: Górgias, República, filosofia.

Abstract: The platonic work can be divided into three distinct phases which form groups of
dialogues with common characteristics. Nevertheless, some dialogues are hard to be placed
because have characteristics which are common to more tan one phase. The Gorgias is one of
these dialogues, from one side, has arguments characteristically from the first dialogues and,
from the other, demonstrate thematic maturity and a dogmatic posture from Socrates which
approximates more to the Republic, therefore, the second phase. To understand which are the
possibilities of grouping the Plato dialogues is fundamental to propose shifting Gorgias from the
socratic dialogues to the second phase, therefore approaching it to the same environmental
concept of Republic, and, from this point, start seeing in the text philosophical elements
relevant to the development of the moral and political philosophy of Plato.

Keywords: Gorgias, Republic, philosophy.


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O Górgias, acredito, é um dos diálogos mais arrojados de toda a obra de Platão. Não

somente por sua variedade temática, mas também pelas várias possibilidades de leitura,

interpretação e posicionamento junto aos outros diálogos. Três interlocutores revezam-se na

conversa com Sócrates, marcando, assim, três partes bem distintas no diálogo. Por essa razão,

alguns pesquisadores no passado questionaram sua unidade. Penso ser hoje consensual entre os

estudiosos a continuidade que cada interlocutor dá a conversa desenvolvida até então por seu

predecessor, formando, assim, um texto uno, logicamente, multifacetado, já que Sócrates troca

opiniões com três personagens distintos.

Falemos agora um pouco sobre os três personagens que representam a retórica e seus

simpatizantes e do representante supremo da filosofia das obras de Platão, Sócrates. O primeiro

interlocutor é o famoso retor Górgias, acerca do qual, Sócrates, no início da sua conversa,

interessa-se em saber quem é, ou melhor, de que se ocupa o renomado sofista, depois, qual é a

sua “arte” e assim por diante. Nessa parte inicial, Sócrates demonstra um grande respeito por

Górgias e o diálogo ainda assemelha-se àqueles dos Diálogos Socráticos. Contudo, a entrada de

Pólo, o segundo debatedor, indicará um novo rumo, tanto no conteúdo quanto no tom enfático

e opinativo que Sócrates adquire. Essa parte, apesar de Pólo ser um personagem pouco

expressivo, é de extrema importância por seu conteúdo e também para ressaltar a diferença

entre este e os diálogos da primeira fase da obra platônica, como veremos adiante. O terceiro a

dialogar com Sócrates é Cálicles, este personagem tem uma importância ímpar para se

entender o novo rumo que Platão dará a sua teoria política depois da República; essa terceira

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parte também ressalta a maturidade textual e temática do Górgias e termina com um inusitado

mito escatológico.

O Górgias pode ser conceitualmente aproximado da República, alguns autores já

reconheceram isto. Contudo, para ratificar essa proposta é imprescindível uma análise mais

aprofunda de algumas das propostas de disposição dos diálogos, bem como um minucioso

estudo do próprio texto. Faremos isso ao longo desse artigo.

Dois importantes critérios de disposição dos diálogos são: a divisão cronológica e a

divisão estilométrica. Na primeira, é adotada a análise de alusões a eventos históricos feitas

dentro dos diálogos a fim de determinar sua data de composição. A estilometria, por sua vez,

exclui todo o conteúdo filosófico e divide os diálogos por meio de similaridades gramaticais,

vocabulares, sintáticas e rítmicas, como, por exemplo, a presença de hiatos, o estudo das

partículas, entre outros. Ambas as interpretações são unânimes ao considerarem o Górgias um

representante dos primeiros diálogos compostos por Platão. Esses estudos partilham de grande

consideração e respeito no mundo acadêmico e, por essa razão, meu objetivo não é ignorá-los

nem refutá-los. Ao contrário, estou citando-os justamente por acreditar em sua importância.

Entretanto, por ser filosófico e teórico meu interesse no texto, limito-me apenas a citá-los.

Falarei agora de outras importantes e conhecidas reorganizações da obra platônica, mais

centradas no conteúdo dos textos e na separação das idéias de Sócrates e de Platão. Há a visão

Unitarista proposta por Schleiermacher, baseada na peculiaridade da linguagem, na área

comum do conteúdo e do formato específico de cada diálogo. Esse comentador agrupa os

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diálogos em duas partes com três subdivisões, mas isso não significa que em sua percepção há

duas séries de diálogos, os éticos e os físicos, mas sim uma única série, denominada Unitarista.

Charles Kahn apresenta duas alternativas de leitura dos diálogos: a Unitarista, já citada, e

a em três grupos consecutivos, baseados em diferentes estágios do pensamento de Platão. Para

Kahn, as idéias platônicas são contínuas. Não há, portanto, um período socrático, no qual as

teses e idéias apresentadas nos textos fossem uma mera transposição das teorias de Sócrates.

Kahn ainda se opõe à idéia de que existem diferentes estágios de formulação do pensamento de

Platão; o que há, segundo Kahn, é um grupo completo e multifacetado de uma única visão

filosófica. Dentro dessa perspectiva o Górgias é o esboço do Protágoras. Ainda segundo Kahn, é

no Górgias que o personagem Sócrates tornou-se um emblema para a própria escolha de Platão

da vida dedicada à filosofia.

Para Kahn, este diálogo foi composto por Platão em 390-388 aC., antes, portanto, da

viagem de Platão à Itália e à Cecília e bem antes da fundação da Academia, a qual marca a

segunda fase da obra platônica e a composição da República.

Gregory Vlastos defendeu veementemente a presença de uma fase socrática, na qual

Platão apenas transcreveria as idéias de Sócrates, e uma segunda fase, marcada pela introdução

da teoria das idéias, em que Platão rompe com as doutrinas do mestre e passa a se opor a elas.

Terence Irwin traduziu e fez um útil comentário acerca do Górgias, e utilizarei boa parte

de seus comentários sobre a posição do diálogo em questão e das características de cada fase, a

fim de delimitar as razões que me levam a crer que o Górgias não pertence ao universo

conceitual dos diálogos socráticos. Irwin, apesar de não defender explicitamente o afastamento

completo do Górgias da primeira fase, admite que cronologicamente ele é mais tardio do que
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os diálogos menores e predecessor da República. Por essa razão, o autor lista algumas

característica para validar sua tese, são elas:

 O tom assumido por Sócrates é mais positivo e dogmático do que nos diálogos

menores. Seus longos discursos demonstram uma exposição sistemática de

conceitos e idéias.

 No Górgias a recorrência da canônica questão ‘o que é’ é menor. É importante

salientar que é com esse tipo de questão que Sócrates inicia seu diálogo; contudo,

ao invés de se centrar nela, o filósofo expõe a sua opinião acerca do que é e

aonde deve ficar a retórica.

 O tratamento do conflito da alma no Górgias e o problema da virtude parecem

ser colocados junto com a idéia de que o conhecimento é suficiente para que a

virtude esteja presente. Não mais com a defesa da unidade das virtudes do

Protágoras, inclusive, sua visão acerca do hedonismo parece opor-se a deste

diálogo. No Górgias Sócrates também discute de uma forma mais clara as

implicações políticas de sua doutrina do que nos primeiros diálogos.

 O mito escatológico final demonstra o interesse pela imortalidade da alma.

Assim, Irwin admite que há razões para colocar o Górgias após os primeiros diálogos.

Entretanto, o paralelo entre ele e o Protágoras é grande e importante, dificultando a decisão. O

Protágoras defende o método e a doutrina de Sócrates em contraponto com as doutrinas

sofísticas. O Górgias, por sua vez, defende o ponto-de-vista de Sócrates (ou Platão) contra o

ponto-de-vista retórico. Convém ressaltar que há importantes diferenças na postura de Sócrates


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e em importantes doutrinas nos diálogos, e o apogeu dessa disparidade está no tratamento que

cada um dá ao hedonismo.

Do ponto de vista estilístico e filosófico temos duas divisões dos diálogos, do ponto de

vista político, em três fases, e do ponto de vista moral, em duas. A divisão em três fases

privilegia a teoria política ou ausência dela:

Fase Socrática (primeira): as idéias do Sócrates histórico predominam, foi definida a

partir dos testemunhos aristotélicos e dos estudos estilísticos. Esses diálogos via de regra são:

elênquicos, não ontológicos, utilizam método indutivo, são refutativos, Sócrates assume nada

saber, não possuem teoria metafísica e são aporéticos. Seus representantes são: Apologia de

Sócrates, Críton, Íon, Hípias Menor, Laquês, Eutífron, Carmides, Protágoras, República I ,

(Górgias).

Segunda Fase: apresentação da teoria das idéias, presença da metafísica, Sócrates torna-

se porta-voz das teorias platônicas, diferenças de estilo e conteúdo. Essa fase coincide com a

fundação da Academia e a composição da República. Os diálogos desta fase são: Hípias Maior,

Eutidemo, Lísias, Mênon, Menexeno, República II-X, (Górgias), Fédon, Fedro, Crátilo, Banquete,

Pârmenides, Teeteto.

Terceira Fase: entrada de Aristóteles na Academia; há a revisão da Teoria das Idéias;

nessa fase Platão busca novos caminhos para tal teoria. Assim, o problema não é mais a

explicação da existência dos dois mundos (sensível e inteligível), mas sim a explicação da

relação das idéias entre si. Por exemplo, a distinção entre uma proposição falsa e uma

verdadeira. Sócrates perde sua relevância e deixa de ser o porta-voz de Platão. Os diálogos que

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ilustram esta última parte da obra de Platão são: Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias, Leis (XII

livros), Epinomis e as Leis.

A divisão moral, por sua vez, possui duas fases e privilegia o desenvolvimento da teoria

moral da ação. A primeira fase é a Socrática, caracteriza-se por ser intelectualista, defender a

unidade das virtudes, centra-se no Protágoras e coincide com a primeira fase da divisão

política.

A segunda fase tem a República como seu marco principal, introduz elementos não

cognitivos para explicar a ação, ou seja, as afecções tornam-se elementos importantes na

compreensão e desenvolvimento dos atos humanos. A tripartição da alma e o conflito entre

suas partes são os grandes responsáveis pela mudança de perspectiva na obra platônica, pois o

autor deixa de reproduzir as teses socráticas e introduz suas próprias opiniões acerca das

virtudes e da política.

As duas leituras apresentadas acima, longe de serem opostas, são, na verdade,

coexistentes e complementares.

Os testemunhos aristotélicos são a principal fonte de características para a delimitação

do que são idéias de Sócrates e o que são de Platão. Tais características são:

 Sócrates discute a ética, mas não se ocupa da natureza como um todo. As

sensações ficam de fora de sua busca, pois são instáveis e sempre mudam de

opinião (Metafísica 987b 1-8),

 Sócrates não alega ter conhecimento e baseia sua busca na questão “o que é”

(Met. 1078b 17-32),

 Sócrates não faz alusão à teoria das idéias (Met. 1086b 2-7),
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 Sócrates possui uma visão racionalista das virtudes; assim, era a razão quem

tornava o homem virtuoso ou não. Defende também a tese da unidade das

virtudes (Ética Nicomaquéia VI, 13, 1145 a1-2).

Para Irwin, as características dadas por Aristóteles para separar as idéias platônicas das

socráticas são suficientes para posicionar o Górgias junto aos diálogos socráticos. Pretendo

investigar a validade dessa afirmação e até que ponto o diálogo em questão satisfaz estas

características. A partir de agora tentarei mostrar por qual razão acredito que o Górgias não se

enquadra na primeira fase da obra de Platão. Recapitulando: as principais características dos

diálogos socráticos são o método elênquico com colaboração do interlocutor; final aporético;

Sócrates busca uma definição, não propõe uma opinião ou doutrina; não há apelo à

imortalidade da alma e nem à teoria das idéias.

Sócrates no Górgias vale-se de dois conceitos contrários, ou ao menos desprezados, pelo

método elênquico, são eles os discursos longos, apesar de exigir discursos curtos tanto de

Górgias quanto de Pólo, e doutrinários, como, por exemplo, em 464 b2-466 a3 (parte em que

Sócrates separa arte de lisonja e filosofia de retórica), e termina com um mito sobre o pós-

morte similar ao do Livro X da República, porém a escatologia não era necessária até o

Protágoras por que a alma era simples, mas, na medida em que Platão introduz a idéia de uma

alma tripartida e conflituosa, a noção de recompensa extraterrena para aquele que reprime

seus apetites e impulsos faz-se necessária, principalmente levando em consideração que

Sócrates, o filósofo, não obteve o reconhecimento e prestígio merecidos em vida.

Pólo, tentando refutar a idéia de Sócrates sobre o que é ser justo ou injusto e o que é

mais vantajoso, ironicamente acaba desenvolvendo a idéia tão cara à República de que o justo
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é aquele que segue sua natureza (predestinação), mesmo que seja de escravo, e vive feliz na

condição à qual foi designado (Górgias, 471 a4-d2). Sócrates não discute esse ponto, mas é

realmente notável a definição de justiça dessa passagem. O paradoxo proposto por Sócrates,

que diz ser pior cometer do que sofrer injustiça, também traz implícita a idéia de que o injusto é

aquele que não se contenta com seu lugar de direito e busca, sempre de forma perversa, alterar

sua condição; como, por exemplo, o escravo que mata seus parentes para tornar-se tirano e

desfrutar de toda sorte de injustiças e riquezas sem ser punido.

A libertinagem e a injustiça como expressão de poder, quando não há qualquer punição,

são invejadas por todos os homens segundo Pólo, tese esta ratificada por Cálicles. Nesse

contexto, fica difícil para Platão continuar a defender sua cidade justa da República baseando-

se apenas na boa vontade de seus ouvintes e no desejo de serem justos e felizes apenas porque

são governados por quem visa ao bem supremo e não a seus interesses pessoais. Desse modo,

além da boa persuasão, o filósofo necessitará de mecanismos de coerção para que a cidade seja

harmônica, justa e feliz. A educação possui um papel fundamental na República, pois quanto

mais cedo as pessoas forem afastadas do vício e iniciadas na virtude, mais chance de sucesso o

método filosófico possui. No entanto, como a natureza humana é perversa, mecanismos

retóricos e coercivos nunca devem ser descartados.

No Górgias, aqueles que cometem injustiça se comportam cegamente diante daquilo que

é benéfico e ignoram em que medida é mais infeliz conviver com a alma não saudável do que

com o corpo não saudável. Por isso, fazem de tudo para viver uma vida injusta, buscando

sempre as maiores vantagens, e evitando que a justiça lhes seja aplicada e sua alma libertada do

maior mau, que é a vida entregue aos prazeres, apetites e ambições. Por isso, Sócrates diversas
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vezes no diálogo insiste na necessidade de correção da injustiça. A persuasão, por sua vez, é

uma alternativa para convencer o homem do justo; porém se ela não for capaz de afastar a

alma humana do vício, medidas punitivas e severas devem ser aplicadas.

Cálicles exacerba a idéia de que a natureza humana é tirar vantagem dos outros para

obter sempre mais, introduzindo a idéia de ‘lei da natureza’. Segundo Cálicles, o mais forte deve

dominar os fracos. No entanto, estes, como são a maioria criaram a lei convencional e

igualitária, a fim de escapar do domínio dos fortes. Mas nem mesmo os criadores da igualdade

escapam da ambição pelo poder, já que, se fossem capazes de subjugar os outros aos seus

domínios, exerceriam seu poder natural da forma mais violenta. As implicações dessa tese

dentro da filosofia platônica nem são tanto morais, pois Platão não deixa de defender seu ideal

de virtude e justiça, mas o grande impasse está na sua teoria política, visto que fica quase

impossível para o filósofo governar frente ao desejo humano de obter os maiores prazeres e as

maiores riquezas sem ter que se preocupar com os princípios ético-morais.

Por Cálicles vemos também que Platão insere no Górgias (482c3-500e2) a crítica ao

método Socrático, devido à sua ineficácia refutativa, que confunde e inverte as teses de seus

interlocutores sem, contudo, convencê-los a tornarem-se filósofos ou, pelo menos, a obedecer

ao verdadeiro conhecedor do que é o bem. Assim, na opinião de Cálicles, os filósofos abstêm-se

da vida política e são dignos de censura, já que devem abandonar a filosofia para dedicarem-se

à vida política e pública. Platão busca mostrar o contrário e, ao mudar sua proposta política e

incluir elementos como a persuasão e a coerção em seu sistema de governo, cria mecanismos

para que o filósofo possa se tornar o verdadeiro monarca e governar.

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Para finalizar, gostaria de falar um pouco da importância do vocabulário no Górgias. Em

diversos momentos Sócrates se esforça para distinguir e definir termos que se aplicam às artes e

àqueles que dizem respeito às artes espúrias ou que se fazem passar por arte. O grande alvo

dessa distinção, como não poderia ser diferente, é a retórica e a persuasão, pois Platão precisa

delimitar conceitualmente o uso e função da retórica para assim poder propor um uso

filosófico e benéfico da persuasão. Desse modo, Sócrates separa a retórica do campo moral,

afinal ela é o simulacro de uma arte política, e atribui dois usos possíveis para a persuasão, o

mal feito pela retórica com base na opinião e sem preocupações com a justeza ou não de seus

fins, e o uso que a filosofia faz dela, um uso benéfico cujo objetivo é passar o saber sob forma de

opinião aquelas pessoas incapazes de alcançar o verdadeiro conhecimento. Vários outros

exemplos e delimitações de termos são feitos no diálogo a fim de formar uma espécie de

vocabulário filosófico ou moral, necessário a Platão para definir, delimitar e separar o campo

de atuação da filosofia em contraposição com aquele da retórica, da sofística e da poesia.

Espero ter demonstrado a maturidade filosófica do Górgias, de fato não me arrisquei a

propor um lugar para o diálogo dentro da obra platônica, visto que considero essa uma tarefa a

ser muito pensada e fundamentada.

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