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CÉZANNE

D. H. Lawrence
(ext. ​Introduction to these paintings​)

A verdade é que, com Cézanne, a arte moderna francesa deu seu primeiro passo de volta à real
substância, à substância objetiva, se podemos chamá-la assim. A terra de Van Gogh era ainda terra subjetiva,
ele mesmo projetado na terra. Mas as maçãs de Cézanne são uma real tentativa para deixar a maçã existir em
sua própria entidade separada, sem transfusão de emoção pessoal. O grande esforço de Cézanne era, como
foi, o de empurrar a maçã para longe de si, e deixá-la viver por sua própria conta. Parece uma pequena coisa
a fazer: contudo, é o primeiro signo real que o homem fez por vários milhares de anos de que quer admitir
que a matéria existe ​verdadeiramente​. Estranho como pode parecer, por milhares de anos, em suma, já desde
a mitológica ‘Queda’, o homem tem estado constantemente preocupado em negar a existência da matéria, e
provar que a matéria é somente uma forma de espírito. E então, no momento em que isto é feito, e nós
percebemos finalmente que a matéria é somente uma forma de energia, o que quer que isso possa ser, no
mesmo instante a matéria se ergue e nos atinge na cabeça e nos faz perceber que ela existe absolutamente,
uma vez que ela é, ela mesma, energia compacta.
Cézanne sentiu na pintura, quando ele sentiu pela maçã. De repente, ele sentiu a tirania da mente, da
branca e desgastada arrogância do espírito, da consciência mental, do ego enclausurado em seu paraíso
pintado de azul celeste por si e para si mesmo. Ele sentiu a prisão azul celeste. E um grande conflito se
iniciou dentro dele. Estava dominado por sua velha consciência mental, mas queria terrivelmente escapar
dessa dominação. Ele queria ​expressar ​o que súbita e convulsivamente conheceu. A existência da matéria.
Queria terrivelmente pintar a existência do corpo, fazê-lo artisticamente palpável. Mas não podia. Ainda não
tinha conseguido. E isso foi a tortura de sua vida. Queria ser a si mesmo em seu próprio corpo procriativo –
e não podia. Ele era, como o resto de nós todos, tão intensa e exclusivamente uma criatura mental, ou uma
criatura espiritual, ou um egoísta, que não mais podia identificar-se com seu corpo intuitivo. Ele queria,
terrivelmente. No início, ele se determinou a fazê-lo por pura arrogância. Mas, não deu certo; não poderia
ser dessa forma. Ele tinha, como um crítico dizia, que se tornar humilde. Mas não era uma questão de se
tornar humilde. Era uma questão de abandonar sua soberba cerebral e sua ‘desejada ambição’ e se voltar ao
que lhe interessava. Pobre Cézanne, lá está ele em seus autorretratos, mesmo naqueles mais vistosos,
espiando como um rato e dizendo: Eu ​sou u​ m homem de carne, não sou? Pois, ele não estava bem, assim
como nenhum de nós está. O homem de carne foi lentamente destruído através dos séculos, para dar lugar ao
homem de espírito, o homem mental, o ego, o eu consciente de si. E em sua alma artística, Cézanne
conheceu-o, e quis erguê-lo na carne. Ele não podia fazê-lo, e isso o amargurou. Entretanto, com sua maçã,
ele empurrou a pedra da porta da tumba.

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Ele queria ser um homem de carne, um homem real: escapar de sua prisão azul celeste para o ar real.
Queria viver, viver realmente no corpo para conhecer o mundo através de seus instintos e de suas intuições,
e ser a si mesmo em seu sangue procriativo, não em seu mero espírito e mente. Ele queria, queria
terrivelmente. E onde quer que tentasse, sua consciência mental simplesmente o sobrepujava e não lhe
permitia pintar a mulher de carne, a primeira Eva que viveu antes da absurda folha de figueira. Não podia
fazê-lo. Se quisesse pintar pessoas intuitiva e instintivamente, ele não podia fazê-lo. Seus conceitos mentais
se interpunham na frente, e isso ele ​não iria pintar – meras representações do que a ​mente ​aceita. Não o que
as intuições obtêm – e eles, seus conceitos mentais, não o deixariam pintar a partir da intuição; eles se
intrometiam a todo o momento, desse modo ele pintou seu conflito e seu fracasso, e o resultado é pouco
mais que ridículo.
Mulher, não lhe era permitido conhecer por intuição; seu eu mental, seu ego, esse demônio sem
sangue, o proibia. Homem, outro homem, igualmente não lhe era permitido conhecer – exceto por uns
poucos, poucos toques. A terra, igualmente, não lhe era permitido conhecer: suas paisagens são, na maioria
das vezes, atos de rebelião contra o conceito mental de paisagem. Após uma luta com unhas e dentes por
quarenta anos, ele teve sucesso em conhecer uma maçã, completamente; e, não tão completamente, um jarro
ou dois. Isso foi tudo o que conseguiu.
Parece pouco, e ele morreu amargurado. Mas, é o primeiro passo que conta, e a maçã de Cézanne é
uma grande coisa, maior que a Ideia de Platão. A maçã de Cézanne rolou a pedra da boca da sepultura, e se o
pobre Cézanne não pôde se desenrolar de suas roupas de defunto e de sua mortalha mental, e teve que
permanecer ainda na tumba até morrer, pelo menos ele nos deu uma chance.
A história de nossa era é a nauseante e repulsiva história da crucificação do corpo procriativo pela
glorificação do espírito, a consciência mental. Platão foi o arqui-sacerdote dessa crucificação. A arte, essa
serva, humilde e honestamente serviu a essa ação vil durante três mil anos pelo menos. O Renascimento
enfiou a lança no lado do corpo já crucificado, e a sífilis pôs veneno na ferida feita pela lança imaginativa.
Demorou ainda trezentos anos para o corpo acabar: mas no século dezoito ele se tornou um cadáver, um
cadáver com uma mente anormalmente ativa: e hoje, ele fede.
Nós, caro leitor, você e eu, nós nascemos cadáveres, e nós somos cadáveres. Duvido se há mesmo
algum de nós que tenha alguma vez conhecido tanto quanto uma maçã, uma maçã inteira. Tudo o que
conhecemos são sombras, mesmo de maçãs. Sombras de tudo, do mundo inteiro, sombras até de nós
mesmos. Estamos dentro da tumba, e a tumba é ampla e sombria como o inferno, mesmo se azul-celeste por
uma pintura otimista, assim nós achamos que é todo o mundo. Mas, nosso mundo é uma ampla tumba cheia
de fantasmas, réplicas. Somos todos espectros, não fomos capazes de tocar nem mesmo uma maçã.
Espectros nós somos uns para os outros. Espectro, você é para mim, espectro eu sou para você. Sombra você
é até para você mesmo. E, por sombra, eu entendo ideia, conceito, a realidade abstraída, o ego. Nós não

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somos sólidos. Nós não vivemos na carne. Nossos instintos e intuições estão mortos, nós vivemos
envolvidos em torno da mortalha da abstração. E o toque de algo sólido nos fere. Pois nossos instintos e
intuições, que são nossos órgãos do tato e conhecendo através do tato, eles estão mortos, amputados. Nós
andamos, falamos, comemos, copulamos, rimos e evacuamos envoltos em nossas mortalhas, todo o tempo
envoltos em nossas mortalhas.
É por isso que a maçã de Cézanne machuca. Ela faz as pessoas gritarem de dor. E foi somente
quando seus seguidores o fizeram voltar a uma abstração que ele foi aceito para sempre. Então, os críticos
levaram e abstraíram sua boa maçã à Forma Significante, e daí em diante Cézanne foi salvo. Salvo para a
democracia. Colocado a salvo na tumba de novo, e a pedra rolada de volta. A ressureição foi adiada mais
uma vez.
E a ressureição será adiada ​ad infinitum ​pelos bons cadáveres burgueses em suas mortalhas
cultivadas. Eles vão montar uma capela para o corpo nascido, mesmo se é somente uma maçã, e vão matá-lo
imediatamente. Eles estão bem despertos, como cadáveres, estão alertas. E um pobre rato de um Cézanne
está sozinho por anos. Quem mais mostra uma centelha da vida desperta em nosso maravilhoso cemitério
civilizado? Tudo está morto, e o sussurro ensinando, com fosforescente esplendor, o êxtase estético e a
Forma Significante. Se os mortos somente sepultassem seus mortos. Mas a arte morta não morreu por nada.
Quem enterra sua própria espécie? Os mortos são astuciosos e estão alertas para agarrarem qualquer centelha
de vida e sepultá-la, assim como eles já enterraram a maçã de Cézanne e colocaram sobre ela uma lápide
branca da Forma Significante.
Pois, quem dos seguidores de Cézanne faz outra coisa a não ser seguir como o funeral triunfante das
realizações de Cézanne? Eles o seguem a fim de sepultá-lo, e eles conseguiram. Cézanne está enterrado bem
fundo sob todos os Matisses e Vlamincks de seus seguidores, enquanto os críticos leem o sermão fúnebre.
É muito fácil aceitar Matisse, Vlaminck, Friesz e todo o resto. Eles são tão-somente Cézanne
abstraído novamente. Eles são todos apenas trapaceiros, mesmo se espertos. Eles são todos mentais, egoístas
mentais, egoístas, egoístas. E portanto, eles são todos aceitáveis agora para os cadáveres iluminados dos
​ ocês não precisam ter medo de Matisse, Vlaminck e do resto. Eles nunca lhes darão sua
conoisseurs. V
anatomia de cadáver em um jarro. Eles são apenas sombras, mentes charlataneando e brincando de charadas
na tela. Podem ser charadas bem divertidas, e eu sou inteiramente a favor da charlatanice. Mas, é claro, são
somente jogos dentro do cemitério, jogado por cadáveres e ​hommes d’esprit, e​ mesmo ​femmes d’esprit​,
como Mademoiselle Laurencin. Quanto ao ​espírito​, diz Cézanne, não dou um peido por ele. Talvez não!
Mas o ​connoisseur ​dará grandes somas de dinheiro. Encarreguem os mortos para pagarem por sua diversão,
quando a diversão é mortal.
A figura mais interessante na arte moderna, e a única figura realmente interessante, é Cézanne: e
isso, não tanto por causa de suas realizações quanto de sua luta. Cézanne nasceu em Aix-en-Provence em

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1839: pequeno, tímido, embora algumas vezes um desafiante briguento, sensitivo, cheio de grande ambição,
embora regido ainda mais profundamente por um ingênuo sentido mediterrâneo de verdade ou de realidade,
imaginação, chamem como quiserem. Ele não era uma grande figura. Embora sua luta fosse
verdadeiramente heroica. Ele era um burguês, e não devemos jamais nos esquecer disso. Ele tinha uma
moderada renda burguesa. Mas, um burguês em Provence é muito mais real e humano do que um burguês na
Normandia. Ele está muito mais próximo das pessoas verdadeiras, e as pessoas verdadeiras são muito menos
dominadas pela reverência a seu respeitável dinheiro burguês.
Cézanne era ingênuo até um certo ponto, mas não um tolo. Ele era antes insignificante e a grandeza o
impressionava terrivelmente. Contudo, ainda mais forte nele era a pequena chama de vida onde ele ​sentia
coisas, para ser mais exato. Ele não traiu a si mesmo a fim de obter sucesso porque ele não podia: para sua
natureza era impossível: ele era demasiado puro para ser capaz de trair sua própria pequena chama
verdadeira por recompensas imediatas. Talvez seja o que de melhor se pode dizer de um homem, e isso
coloca Cézanne, pequeno e insignificante como ele é, entre os heróis. Ele ​não ​abandonaria sua própria
imaginação vital.
Ele era terrivelmente impressionado pelo esplendor físico e resplandecência, como as pessoas
costumam ser nas terras do sol. Ele admirava terrivelmente a esplêndida virtuosidade de Paul Veronese e
Tintoretto, e mesmo dos pintores barrocos posteriores e não tão bons. Ele desejava ser como eles – ele
queria terrivelmente. E ele tentou com muito, muito afinco, com um amargo esforço. E sempre falhou. É
uma frase falsa dizer com os críticos que “ele não podia desenhar”. O sr. Fry diz: ‘Com todos os seus raros
dotes, acontecia lhe faltar o dom comparativamente mais comum da ilustração, o dom que qualquer
desenhista de revistas ilustradas aprende numa escola de arte comercial.’
Ora, essa frase nos entrega de uma vez só o vazio da crítica moderna. Em primeiro lugar, alguém
pode aprender um ‘dom’ em uma escola de arte comercial ou em algum outro lugar? Um dom certamente é
dado, nós assumimos isso tacitamente, por Deus ou pela Natureza, ou por qualquer poder mais elevado que
nós sustentamos como sendo responsável por coisas pelas quais não temos escolha.
Estava, então, Cézanne privado desse dom? Ele era simplesmente incapaz de desenhar um gato de
modo que se parecesse com um gato? Absurdo! A obra de Cézanne está plena de desenhos acurados. Suas
mais triviais pinturas, sugestivas cópias de outros mestres, são perfeitamente bem desenhadas – isto é,
convencionalmente bem desenhadas: assim são algumas de suas paisagens, e mesmo o retrato de M. Geffroy
e seus livros, que é, ou era, tão famoso. Por que todas essas frases hipócritas sobre não saber desenhar? É
claro que Cézanne podia desenhar, tão bem como qualquer outro. E ele tinha aprendido tudo o que era
necessário para isso nas escolas de arte.
Ele ​podia d​ esenhar. E entretanto, em suas composições terrivelmente sinceras à maneira do
Renascimento tardio ou do barroco, ele desenhou muito mal. Por que? Não porque não podia. E não porque

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ele estava sacrificando a ‘forma significante’ à ‘forma insignificante’, ou à mera habilidosa representação,
que é aparentemente o que os próprios artistas querem dizer quando falam sobre desenhar. Cézanne
conhecia tudo sobre desenhar, e certamente sabia tanto quanto seus críticos sobre a forma significante.
Contudo, ele não obteve sucesso nem em desenhar aquelas coisas observadas direito, nem combinando suas
formas de modo que alcançasse a forma real. Ele simplesmente fracassou.
Ele fracassou lá onde seus pequenos e habilidosos sucessores teriam obtido êxito com olhos
fechados. E por que? Por que Cézanne fracassou em seus primeiros quadros? Responda isso e você
conhecerá um pouco melhor sobre o que é a arte. Ele não fracassou porque ele não entendia nada de desenho
ou da forma significante ou do êxtase estético. Ele conhecia tudo isso, e não dava nada por essas coisas.
Cézanne fracassou em suas primeiras pinturas porque ele estava tentando com sua consciência
mental fazer algo que seu corpo vivo provençal não queria ou não podia fazer. Ele desejava ardentemente
fazer algo grande, voluptuoso e sensualmente satisfatório, à maneira de Tintoretto. Sr. Fry chama isso de sua
“ambição desejada”, que é uma boa frase, e diz que ele tinha de aprender humildade, que é uma frase ruim.
A “ambição desejada” era mais que uma mera ambição desejada – era um desejo genuíno. Mas era
um desejo que pensava que poderia ser satisfeito por expressões barrocas já feitas, enquanto que precisava
realizar um casamento inteiramente novo entre a mente e a matéria. Se cremos em reencarnação, então nós
devemos acreditar que após um certo número de novas encarnações no corpo de um artista, a alma de
Cézanne ​deveria p​ roduzir grandes, voluptuosos e sensualmente ricos quadros – mas de forma alguma à
maneira barroca. Porque os quadros que ele realmente produziu com inegável sucesso são os primeiros
passos naquela direção, sensual e rica, sem o menor sinal de barroco, mas novo, a nova apreensão do homem
da realidade substancial.
Havia, então, uma certa discrepância entre a ​noção d​ e Cézanne do que ele queria produzir, e seu
outro, intuitivo conhecimento do que ele ​podia p​ roduzir. Pois, enquanto a mente trabalha com
possibilidades, as intuições trabalham com atualidades, e o que você ​intuitivamente d​ eseja, é isso o que é
possível para você. Ao passo que o que você mentalmente ou “conscientemente” deseja é nove de dez vezes
impossível: atrele sua carroça nas estrelas, e você ficará somente onde está.
Assim, o conflito, como de costume, não está entre o artista e seu meio, mas entre a ​mente e​ a
intuição e​ o ​instinto d​ o artista. E o que Cézanne precisava aprender não era humildade – falsa palavra! – mas
honestidade, honestidade consigo mesmo. Não era uma questão de algum dom, de forma significante ou de
êxtase estético: era uma questão de Cézanne ser ele mesmo, somente Cézanne. E quando Cézanne é ele
mesmo, ele não é Tintoretto, nem Veronese, nem nenhum outro barroco. Contudo, ele é algo ​físico​, e mesmo
sensual: qualidades que ele havia identificado nos mestres do virtuosismo.
A propósito, se pensarmos em Henri Matisse, um verdadeiro virtuose, e o imaginarmos possuído por
uma “ambição desejada” para pintar grandes e extravagantes pinturas barrocas, então nós sabemos

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imediatamente que ele não teria de se tornar ‘humilde’ de modo algum, mas ele começaria e pintaria com
grande sucesso grandes e extravagantes modernas pinturas barrocas. Ele teria êxito porque tem o dom da
virtuosidade. E o dom do virtuosismo significa simplesmente que você não tem de se tornar humilde, ou
mesmo honesto consigo mesmo, porque você é uma criatura mental inteligente que é capaz de fazer, à
vontade, as intuições e instintos servirem a algum conceito mental: em suma, você pode prostituir seu corpo
para sua mente, seus instintos e intuições, você pode prostituí-los à sua ‘ambição desejada’, numa espécie de
processo masturbatório, e você pode produzir as glórias impotentes de virtuosidade. Mas, Veronese e
Tintoretto são verdadeiros pintores; eles não são meros ​virtuosi,​ como são alguns homens posteriores a eles.
Esse ponto é muito importante. Qualquer ato criativo ocupa a consciência inteira de um homem. Isto
é verdadeiro paras as grandes descobertas da ciência assim como as da arte. As descobertas verdadeiramente
grandes da ciência e as verdadeiras obras de arte são produzidas pela consciência inteira do homem
trabalhando junto em uníssono e em unidade: instinto, intuição, mente, intelecto, todos fundidos numa
consciência completa e apreendendo o que podemos chamar de uma verdade completa, ou uma completa
visão, uma completa revelação no som. Uma descoberta, artística ou qualquer outra, pode ser mais ou menos
intuitiva, mais ou menos mental: mas a intuição terá de entrar, e a mente terá de entrar também. A
consciência inteira é afetada em todo os casos. – E uma pintura requer a atividade da imaginação inteira,
pois ela é feita de imagens, e a imaginação é aquela forma de completa consciência na qual predomina a
consciência das formas, das imagens, a consciência ​física.​
E o mesmo se aplica à genuína apreciação de uma obra de arte, ou o ​alcance d​ e uma lei científica,
assim com a produção de coisas semelhantes. A consciência inteira é ocupada, não só e simplesmente a
mente, ou somente o corpo. A mente e o espírito sozinhos não podem nunca compreender realmente uma
obra de arte, embora eles possam, de uma forma masturbatória, provocar o corpo a uma resposta extasiada.
O êxtase morrerá como cinzas e mais cinzas. E a razão por termos tantos cientistas triviais promulgando
‘fatos’ fantásticos é porque muitos cientistas modernos trabalham da mesma forma, somente com a mente, e
forçam as intuições e instintos a uma aquiescência prostituída. A afirmação verdadeira de que a água é H​2​O
é um ​tour de force ​mental. Com nossos corpos nós sabemos que a água ​não é​ H​2​O, nossas intuições e
instintos, ambas sabem que não é assim. Mas elas são intimidadas pela mente impudente. Ao passo que se
nós disséssemos que a água, sob certas circunstâncias, produz dois volumes de hidrogênio para um de
oxigênio, então as intuições e instintos concordariam inteiramente. Mas que a água seja ​composta ​de dois
volumes de hidrogênio para um de oxigênio, nós não podemos acreditar fisicamente. É preciso algo mais.
Algo está faltando. É evidente que a ciência alerta não nos pede para acreditar na asserção trivial de que
água ​é H​2​O, mas as crianças da escola têm de acreditar nisso.
Um caso similar se encontra em todas essas coisas modernas sobre astronomia, estrelas, suas
distâncias e velocidades e assim por diante, falando de bilhões e trilhões de milhas e anos e assim por diante:

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é somente esotérico. A mente está se revelando em palavras e as intuições e instintos são simplesmente
deixadas de lado, ou prostituída numa espécie de êxtase. Com efeito, a espécie de êxtase que jaz em figuras
absurdas tais como 2.000.000.000.000.000.000.000.000.000 de milhas ou de anos ou de toneladas, figuras
que abundam em livros ​científicos ​modernos sobre astronomia, é tão-somente a espécie de êxtase estético
que críticos de arte super-mentais asseveram que experimentam hoje nas pinturas de Matisse. É tudo tolice.
O corpo está ou atordoado com um cadáver, ou prostituído por ridículas excitações, ou então permanece
friamente à parte.
Quando leio sobre o quão distante está o sol, e do que ele é feito, e assim por diante, e assim por
diante, eu acredito em tudo o que sou ​capaz d​ e acreditar, com a verdadeira imaginação. Mas quando minha
intuição e instinto não podem mais alcançar, então eu chamo minha mente para uma parada. Não vou aceitar
meras afirmações mentais. A mente pode afirmar qualquer coisa, e finge que prova qualquer coisa. Minhas
crenças, eu as testo em meu corpo, em minha consciência intuitiva, e quando aí obtenho resposta, então
aceito. O mesmo ocorre com as grandes ‘leis’ científicas, como a lei da evolução. Depois de anos de
aceitação das ‘leis’ da evolução – aceitação um tanto quanto desnecessária ou humilde – agora percebo que
minha imaginação vital faz grandes reservas. Acho que não posso, com a melhor boa vontade do mundo,
acreditar que as espécies tenham “envolvidas” de uma forma de vida comum. Eu simplesmente não posso
sentir isso, tenho que violar minha consciência intuitiva e instintiva de alguma coisa, para me fazer acreditar
nisso. Mas, desde que eu sei que minhas intuições e instintos pode ainda serem mantidas por preconceitos,
eu procuro no mundo por alguém que me faca sentir intuitiva e instintivamente a verdade da “lei” – e eu não
encontro ninguém. Encontro cientistas, assim como artistas, afirmando coisas de que estão ​mentalmente
certos, de fato presunçosamente convencidos, mas sobre as quais são demasiados egoístas e retóricos para
serem ​intuitivamente, instintivamente c​ ertos. Quando encontro um homem, ou uma mulher, intuitivamente e
instintivamente certos de algo, sou todo respeito. Mas para com artistas ou cientistas fanfarrões, como se
pode ter respeito? A intrusão do elemento egoísta é uma prova segura de incerteza intuitiva. Nenhum
homem que está seguro pelo instinto e pela intuição se ​vangloria​, embora ele possa lutar com unhas e dentes
por suas crenças.
O que nos conduz de volta a Cézanne, por que ele não podia desenhar, e por que ele não podia pintar
obras-primas barrocas. É somente porque ele era real, e somente podia acreditar em sua própria expressão
quando exprimia um momento de totalidade ou completude de consciência nele mesmo. Ele não podia
prostituir uma parte de si mesmo à outra. Ele não ​podia ​masturbar, em pintura e em palavras. E isso é dizer
muito hoje; a grande época da consciência masturbadora, quando a mente prostitui o corpo reponsivo
sensitivo, e somente força reações. A consciência masturbadora produz todo o tipo de novidades, que excita
por um momento e então morre. Não posso produzir uma simples e genuinamente nova afirmação.

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Não temos de agradecer Cézanne por sua humildade, mas antes por seu alto espírito orgulhoso que
recusou a aceitar os enunciados loquazes de seu eu mental superficial. Ele não era pobre de espírito o
suficiente para ser superficial – nem humilde o bastante para se satisfazer com clichês emocionais e visuais.
Tão emocionantes quanto os mestres barrocos eram para ele neles mesmos, ele percebeu que tão logo os
reproduzisse, ele não produziria senão clichês. A mente está plena de toda espécie de memórias, memória
emocional, visual, táctil, memórias, grupos de memórias, sistemas de memórias. Um clichê é somente uma
memória gasta que não tem mais raiz intuitiva ou emocional, e se tornou um hábito. Enquanto que uma
novidade é somente um novo agrupamento de clichês, um novo arranjo de memórias costumeiras. É por isso
que uma novidade é tão facilmente aceita: ela dá o pequeno choque ou emoção de surpresa, mas ela não
perturba o ser emocional e intuitivo. Não nos força a ver nada de novo. É somente um novo complexo de
clichês. O trabalho da maioria dos sucessores de Cézanne é somente novo, somente um novo arranjo de
clichês, logo se tornando envelhecido. E os clichês são os clichês de Cézanne, somente que nos próprios
primeiros quadros de Cézanne, os clichês são todos, ou quase todos, clichês barrocos.
A história do início de Cézanne como pintor é a história de sua luta contra seu próprio clichê. Sua
consciência desejava uma nova realização. E sua mente toda pronta lhe oferecia a todo o momento uma
expressão toda pronta. E Cézanne, demasiado orgulhoso e altivo internamente para aceitar clichês prontos
que vinham com sua consciência mental, guarnecida com memórias e que pareciam zombar dele em suas
pinturas, passou a maior parte de seu tempo despedaçando suas próprias formas. Para ser um verdadeiro
artista, e para a imaginação viva, o clichê é o inimigo mortal. Cézanne travou uma luta amarga contra ele.
Despedaçou-o milhares de vezes. E ainda assim ele reaparecia.
Agora, de novo, nós podemos ver porque o desenho de Cézanne era tão ruim. Ele era ruim porque ele
representava um clichê despedaçado, estraçalhado, terrivelmente agredido. Se Cézanne tivesse desejado
aceitar seu clichê barroco, seu desenho teria sido perfeitamente e convencionalmente “certo”, e nenhum
crítico teria uma palavra a dizer sobre isso. Mas quando seu desenho estivesse convencionalmente certo,
para o próprio Cézanne ele estaria irrisoriamente errado, seria um clichê. Assim, ele se precipitava sobre ele
e golpeava todas as sua formas, o maltratava, e quando ele se encontrava tão estraçalhado que ficava todo
errado, e ele exausto com isso, ele o abandonava; amarguradamente, porque isso não era ainda o que queria.
E aqui aparece o elemento cômico nas pinturas de Cézanne. Sua raiva do clichê o fazia distorcer o clichê
algumas vezes até a paródia, tal como vem em quadros como ​O Pasha e​ ​A mulher. V
​ ocê vai ser um clichê,
não é? Ele cerrava os dentes. “Então seja!” E ele o empurrava numa agitação de exasperação para a paródia.
E a completa exasperação torna a paródia ainda divertida; mas o riso está um pouco do lado errado da face.
Esse esmagamento dos clichês durou um longo tempo na vida de Cézanne; na verdade, ele o
acompanhou até o fim. A maneira que ele trabalhou e trabalhou sobre suas formas foi sua maneira nervosa
de estender o fantasma de seu clichê, enterrá-lo. E então, quando ele desaparecia talvez de suas formas, ele

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permanecia em sua composição, e ele teve que lutar com os ​limites d​ e suas formas e contornos, para lá
enterrar seu fantasma. Somente sua cor ele sabia que não era clichê. Ele deixou isso para seus discípulos
fazerem do mesmo modo.
Em seus melhores quadros, o melhor das composições de natureza morta, que me parecem ser as
maiores realizações de Cézanne, a luta contra os clichés ainda continua. Mas foi nos quadros de natureza
morta que ele aprendeu seu método final para ​evitar o cliché; apenas deixando aberturas [gaps] através das
quais ele cai no nada. Assim ele fez sua paisagem ter êxito.
Em sua arte, durante toda a sua vida, Cézanne esteve enredado numa atividade dupla. Ele queria
exprimir algo, e antes que ele pudesse fazê-lo, ele tinha de lutar contra o cliché cabeça de hidra, cuja última
cabeça ele nunca pode cortar. A luta contra o cliché é a coisa mais óbvia em seus quadros. A poeira da
batalha se ergue densamente e as lascas voam selvagemente. E é essa poeira da batalha e o voar das lascas
que seus imitadores ainda imitam tão fervorosamente. Se você der a um alfaiate chinês uma roupa para ele
copiar e se ocorrer dessa roupa ter um remendo, o alfaiate cuidadosamente fará um rasgo na roupa e a
remendará numa réplica exata. E esta parece ser a principal ocupação dos discípulos de Cézanne, em todos
os lugares. Eles se absorvem em reproduzir erros de imitação. Ele detonou várias explosões a fim de
explodir a fortaleza do clichê, e seus seguidores fazem grandes imitações de fogos de artifício das explosões,
sem a menor noção do verdadeiro ataque. Eles fazem, de fato, uma investida contra a representação, a
representação fiel: porque, nas pinturas, de Cézanne elas são explodidas. Mas, eu estou convencido de que o
que o próprio Cézanne queria ​era ​a representação. Ele ​queria a​ representação fiel. Somente que ele a queria
mais f​ iel. E uma vez que temos a fotografia, é algo difícil, muito difícil, conseguir uma representação ​mais
fiel: que tem que ser.
Cézanne era um realista, e ele queria ser fiel à vida. Mas, ele não podia se satisfazer com o clichê
óptico. Com os impressionistas, a visão puramente óptica se aperfeiçoou e virou clichê imediatamente, com
uma surpreendente rapidez. Cézanne percebeu isso. Artistas como Courbet e Daumier não eram puramente
ópticos, mas o outro elemento nesses dois pintores, o elemento intelectual, era clichê. À visão óptica eles
acrescentaram o conceito de força-pressão, quase como um freio hidráulico, e esse conceito de força-pressão
é mecânico um clichê, embora ainda popular. E Daumier adicionou a sátira mental, e Courbet, um toque de
uma espécie de socialismo: ambos clichê e não imaginativo.
Cézanne queria algo que não fosse nem óptico, nem mecânico, nem intelectual. E, para introduzir em
nosso mundo de visão algo que não é nem óptico, nem mecânico, nem intelectual-psicológico, é preciso uma
real revolução. Foi uma revolução o que Cézanne começou, mas que ninguém, aparentemente, foi capaz de
continuar.
Ele queria tocar o mundo da substância uma vez mais com o toque intuitivo, para estar ciente dele
com a consciência intuitiva, e para expressá-lo em termos intuitivos. Ou seja, ele queria deslocar nosso

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modo presente de consciência mental-visual, a consciência de conceitos mentais, e substituí-lo por um modo
de consciência que fosse predominantemente intuitivo, a consciência do toque. No passado, o primitivo
pintava intuitivamente, mas ​na direção d​ e nossa presente forma conceitual, mental-visual de consciência.
Eles estavam trabalhando longe de sua própria intuição. A humanidade nunca foi capaz de confiar na
consciência intuitiva, e a decisão de aceitar a confiança marca uma revolução muito grande no curso do
desenvolvimento humano.
Sem saber, Cézanne, o tímido e pequeno homem convencional que se protegia atrás de sua esposa,
de sua irmã e de seu pai jesuíta, era um puro revolucionário. Quando ele dizia para seus modelos: “Seja uma
maçã! Seja uma maçã!” ele estava enunciando as primeiras palavras para a queda não somente dos idealistas
jesuítas e cristãos juntos, mas para o colapso de nossa maneira inteira de consciência, e a substituição por
outra. Se o ser humano está caminhando para ser uma maçã, como ele era para Cézanne, então estamos
caminhando para ter um novo mundo de homens: um mundo do qual se tem muito pouco a dizer, homens
que podem sentar quietos e somente estar fisicamente lá, e serem verdadeiramente não-morais. Era isso que
Cézanne queria dizer com seu: “Seja uma maçã!” Ele sabia perfeitamente bem que no momento em que a
modelo começasse a intrometer sua personalidade e sua “mente”, seria cliché e moral, e ele teria pintado um
cliché. A única parte dela que não era banal, conhecida ​ad nauseam​, clichê vivo [living cliché], a única parte
dela que não era um clichê vivo era sua maçãneidade. Seu corpo, mesmo seu sexo, era conhecido, até a
náusea: ​connu! connu! ​uma chance sem fim de conhecimento causa-e-efeito, a rede infinita do odiado cliché
que nos enreda a todos num total aborrecimento. Ele conhecia isso tudo, ele odiava isso tudo, ele recusava
isso tudo, esse tímido e “humilde” pequeno homem. Ele conhecia, como um artista, que o único pedaço de
uma mulher que hoje em dia escapa de ser um clichê todo feito e todo conhecido é a parte maciesca dela. Ó,
seja uma maçã, e abandone todos os seus pensamentos, todos os seus sentimentos, toda sua mente e toda sua
personalidade, dos quais conhecemos tudo a respeito e achamos aborrecido além do suportável. Abandone
tudo isso – e seja uma maçã! É a maçãneidade do retrato da mulher de Cézanne que o faz tão
permanentemente interessante: a maçãneidade, que traz também consigo o sentimento de conhecer o outro
lado tão bem quanto, o lado que não vemos, o lado oculto da lua. Pois a apercepção intuitiva da maçã está
tão ​tangivelmente c​ onsciente da maçã, que está consciente dela ​toda em volta [​ all round]​, ​e não somente
apenas da frente. Os olhos veem somente as frentes, e a mente, no todo, está satisfeita com a frente. Mas, a
intuição exige toda a volta, e o instinto, a interioridade. A verdadeira imaginação está, para sempre, curvada
para o outro lado, para as costas da aparência apresentada.
Assim, segundo minhas impressões, os retratos de madame Cézanne, particularmente o retrato com o
vestido vermelho, são mais interessantes do que o retrato de M. Geoffroy, ou os retratos da empregada ou do
jardineiro. Igualmente, ​O Jogador de Cartas c​ om duas figuras me agrada mais do que aquele com quatro.

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Mas, temos de lembrar que, em suas pinturas de figuras, enquanto estava pintando a maçãneidade,
estava também deliberadamente pintando ​fora ​a tão chamada humanidade, a personalidade, a “semelhança”,
o clichê físico. Ele tinha deliberadamente que pintá-lo fora, deliberadamente para fazer as mãos e as faces
rudimentares, e assim por diante, porque se ele as tivesse pintado completamente, elas teriam sido um clichê.
Ele ​nunca v​ enceu o denominador do clichê, a intrusão e a interferência dos conceitos todos prontos, quando
ele se volta para as pessoas, para os homens e para as mulheres. Especialmente para as mulheres, ele só pôde
dar uma resposta clichê – e isso o enlouquecia. Por mais que tentasse, as mulheres continuavam sendo para
ele um objeto conhecido e todo feito, e ele ​não podia ​quebrar a obsessão do conceito para conseguir a
consciência intuitiva delas. Exceto com sua esposa – e em sua mulher ele pelo menos conheceu sua
maçãneidade. Mas, com sua empregada ele fracassou mais ou menos. Ela era um pouco clichê,
especialmente a face. Do mesmo modo com M. Geoffroy.
Com os homens Cézanne frequentemente escapava insistindo sobre as roupas, essas jaquetas de pano
rígido com grossas dobras, esses chapéus, essas blusas, essas cortinas. Alguns do ​Jogadores de Cartas,​ os
maiores com quatro figuras, parecem um pouco banais, tão ocupados com coisas pintadas, roupas pintadas, e
a humanidade um pouco cliché. Nenhuma boa cor, nem habilidosas composições, nem “planos” de cor, nem
qualquer outra coisa salvará um clichê emocional de ser um clichê emocional, embora eles possam, é claro,
enfeitá-lo e torná-lo mais interessante.
Lá onde Cézanne escapou algumas vezes do clichê e deu realmente uma completa interpretação
intuitiva dos verdadeiros objetos, foi em algumas de suas naturezas-mortas. Para mim, essas boas cenas de
natureza-morta são puramente representativas e totalmente fiéis à vida. Aqui Cézanne fez o que queria fazer:
ele fez as coisas inteiramente reais, ele não deixou nada de fora deliberadamente, e ainda ele nos deu uma
triunfante e rica visão intuitiva de umas poucas maçãs e alguns potes. Pela primeira vez sua consciência
intuitiva triunfou e invadiu sua expressão. E aqui, ele é inimitável. Seus imitadores imitam seus acessórios
de toalhas de mesas como latas, etc. – a parte não real de suas pinturas – mas eles não imitam os potes e as
maçãs, porque eles não podem. É a verdadeira maçãneidade e não se pode imitá-la. Todo homem deve
criá-la, de si mesmo, nova e diferente: nova e diferente. No momento em que ela parece um Cézanne, ela
não é nada.
Mas, ao mesmo tempo em que Cézanne estava triunfando com a maçã e a maçãneidade, ele estava
ainda lutando contra o clichê. Quando ele faz a Sra. Cézanne quase ​imóvel,​ quase maciesca, ele começa
fazendo o universo deslizando dificilmente sobre ela. Tal era parte de seu desejo: fazer a forma humana, a
forma de ​vida,​ chegar ao repouso. Não estáticas – ao contrário. Móvel, mas alcançando o repouso. E, ao
mesmo tempo, ele põe o mundo material não movente em movimento. As paredes se contraem e deslizam,
as cadeiras se curvam ou se erguem um pouco, as roupas se torcem como papel queimando. Cézanne fez
isso, em parte, para satisfazer seu sentimento intuitivo de que nada está realmente ​estaticamente ​em repouso

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– um sentimento que parece que ele teve fortemente – como quando ele assiste os limões secarem ou se
descolorirem por fungos em seu grupo de naturezas-mortas, o quais ele deixa lá em repouso por tanto tempo
que ele ​podia ​ver o fluxo gradual de mudança; e, em parte, para lutar contra o clichê, que diz que o mundo
inanimado ​é ​estático, e que as paredes ​são i​ móveis. Em sua luta contra o clichê, ele nega que paredes são
imóveis e cadeiras são estáticas. Em seu ser intuitivo ele ​sentia​ essas mudanças.
E essas duas atividades de sua consciência ocupam suas últimas paisagens. Nas melhores paisagens,
ficamos fascinados com a misteriosa ​mudança ​da cena sob nossos olhos; ela muda enquanto nós a
contemplamos. E percebemos, com uma espécie de transporte, o quão intuitivamente ​verdadeiro é isso a
respeito das paisagens. Ela ​não ​é imóvel. Ela tem sua própria e estranha anima, e para nossa percepção de
olhos arregalados, ela muda como um animal vivo sob nossos olhares. Esta é uma qualidade que Cézanne
alcançou maravilhosamente.
Então, novamente, em outras pinturas ele parece estar dizendo: Paisagem não é como isso e não
como isso e não como isso e não... etc. – e cada ​não é​ um pequeno espaço em branco na tela, definido pelos
restos de uma asserção. Algumas vezes Cézanne constrói uma paisagem essencialmente sem omissões. Ele
coloca franjas no complicado vácuo do clichê, por assim dizer, e nos oferece isso. É interessante de uma
​ as não é a coisa nova. A maçãneidade, a intuição se foi. Temos somente um repúdio
forma ​repudiativa, m
mental. Isto ocupa muitas das últimas pinturas: e extasia os críticos.
E Cézanne estava amargurado. Tão longe tenha ido sua ​vida, e​ le nunca rompeu a horrível tela de
vidro dos conceitos mentais para alcançar o verdadeiro ​toque ​de vida. Em sua arte ele tocou a maçã, e isso
foi uma grande coisa. Ele conheceu intuitivamente a maçã, e intuitivamente a fez brotar na árvore de sua
vida, na pintura. Entretanto, quando ele aborda algo além da maçã, a paisagem, as pessoas e, acima de tudo,
o nu feminino, o clichê trinfou sobre ele. O clichê triunfou sobre ele, e ele ficou amargo, misantrópico.
Como não ser misantrópico quando homens e mulheres são somente clichês para você, e você odeia o
clichê? A maioria das pessoas, é claro, ama o clichê – porque a maioria das pessoas ​são o​ clichê. Entretanto,
por causa disso tudo, há talvez mais maçãneidade no homem, e mesmo na mulher nua, do que Cézanne era
capaz de obter. O clichê se intrometia, e assim ele somente o abstraía para longe dele. Aquelas suas últimas
aquarelas de paisagens são justamente espécies coloridas de contornos. O branco é vazio, o qual era a última
palavra de Cézanne contra o clichê. Ele é um vazio e os contornos estão lá para afirmar a vacuidade.
E pelo simples fato de que nós podemos reconstruir quase instantaneamente uma paisagem inteira
das poucas indicações que Cézanne oferece, mostra o quanto a paisagem é clichê, como ela existe toda feita
em nossas mentes, como ela existe num caixa postal da consciência, por assim dizer, e nós precisamos
somente que nos seja dado seu número para sermos capazes de abri-la, completa. As últimas aquarelas de
Cézanne, feitas com uns poucos toques sobre o papel branco, são uma sátira da paisagem de modo geral.
Elas deixam tanto para a imaginação! ​– essa imortal e hipócrita frase, que quer dizer elas nos dão a pista

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para um clichê e o clichê aparece. É para isso que o clichê existe. E essa espécie de imaginação é
tão-somente uma memória saco de pano armazenada com milhares e milhares de esboços velhos e realmente
sem valor, de imagens, etc., clichês.
Podemos ver o que uma luta significa, a fuga da dominação dos conceitos mentais já feitos, a
consciência mental toda preenchida com clichês que intervêm como uma completa tela entre nós e a vida.
Significa uma longa, longa luta, que provavelmente durará para sempre. Mas Cézanne conseguiu com a
maçã. Não consigo pensar em ninguém mais que tenha feito algo.
Quando colocamos em termos pessoais, é uma luta num homem entre seu próprio ego, que é seu eu
mental todo feito e pronto que habita um paraíso azul celeste colorido por ele mesmo, ou um paraíso negro
também colorido por ele, e seu outro eu livre e intuitivo. Cézanne nunca se libertou de seu ego, em sua vida.
Ele assombrou as franjas da experiência. “Eu que sou tão frágil na vida” – mas pelo menos ele o conheceu.
Pelo menos ele teve a grandeza de se sentir amargo a esse respeito. Não como o complacente burguês que
agora o “aprecia”.

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