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Editorial a convite
Sob a designação de psiquiatria incluem-se três mais significativas desse processo. Foi quando a
tipos de conceitos diversos, apesar de correlacionados: assistência aos doentes mentais se tornou médica.
a assistência, o conhecimento e o ensino do Surgiu na França, com a reforma patrocinada por Pinel
conhecimento psiquiátrico. Como não é possível e instituída por Esquirol, e que serviu de modelo para
abarcar todo esse universo, trataremos aqui e agora as transformações na assistência psiquiátrica de todo o
apenas de um aspecto do primeiro conceito: a mundo ocidental. Foi quando a assistência aos doentes
assistência psiquiátrica pública. mentais se transformou em responsabilidade médica e
A assistência aos doentes no Brasil colonial era estatal. No Brasil, também foi aí que nasceu a
extremamente precária. A maior parte dos cuidados assistência psiquiátrica pública, já reformada segundo
era prestada por curandeiros de todos os matizes, os valores da época.
inclusive sacerdotes católicos (especialmente os O Brasil sofrera grandes transformações
jesuítas). Os médicos formados eram raríssimos, e socioeconômicas e políticas. A corte portuguesa se
mesmo os cirurgiões e barbeiros licenciados mudara apressadamente para o Rio de Janeiro, tangida
dificilmente eram encontrados, a não ser nos centros pela invasão das tropas napoleônicas; o país deixara de
maiores, e serviam principalmente as pessoas ser colônia e fora transformado em reino unido com
importantes. Não havia especialistas em psiquiatria, Portugal e Algarve, o que representou uma enorme
mas os hospitais da Irmandade da Santa Casa promoção em seu status político. A abertura dos portos,
abrigavam, mais que tratavam, os enfermos mais o fim da proibição de atividades econômicas e
necessitados. Sem casa e sem recursos – ou sem eira e educacionais que havia caracterizado o regime colonial
sem beira, como se dizia na época. Sem eira porque dera origem a uma nova situação econômica, cultural e
não tinham propriedades rurais, nem beira, ou uma política. A Independência, a superação da monarquia
casa, um telhado com beiral sob o qual pudessem absoluta e a adesão ao liberalismo econômico
viver. Os mais pobres de todos não tinham onde cair marcaram esse momento e se refletiram em todos os
mortos, ou seja, não tinham um túmulo em uma igreja aspectos da vida nacional – inclusive na assistência
onde pudessem ser sepultados para fugir à vala comum. psiquiátrica.
Os enterros “decentes” só começaram a ser feitos fora O início da urbanização, premissa e conseqüência
das igrejas no século XIX. Os hospitais, até o século dessa transformação, mudou a fisionomia do Rio de
XVIII, confundiam-se com albergues para pessoas Janeiro, de Ouro Preto e Salvador (únicas cidades
doentes que não tivessem quem cuidasse delas. Os brasileiras dignas de serem consideradas
hospitais das Irmandades das Santas Casas de “urbanizadas”) e, por outro lado, criou, ampliou e
Misericórdia acolhiam e albergavam esses doentes em expôs novos problemas sanitários. Um deles dizia
condições sanitárias muito más, mesmo para aquele respeito aos enfermos psiquiátricos, que, se eram
momento histórico-social. inoperantes nas pequenas comunidades rurais,
Foi entre o fim do século XVIII e início do XIX, tornavam-se visíveis e perturbadores no meio urbano.
com o avanço do conhecimento científico e da Cuidar deles se transformou em um ônus difícil de ser
consciência social, que a medicina começou a tomar a suportado até pelas famílias, tanto no plano objetivo
forma atual. A Revolução Francesa, no plano político, como no subjetivo.
e os avanços científicos relacionados com a Revolução O Hospício do Rio de Janeiro foi inaugurado
Industrial, no plano econômico, foram as influências como parte da comemoração da Declaração da
Todos enfrentavam a poderosa Federação Brasileira Essa proposta foi atropelada pelo Projeto Paulo
de Hospitais, que sustentava a manutenção do quadro Delgado, fortemente apoiado, já de saída, pelos partidos
existente. de esquerda, por amplas camadas do movimento
A ABP preparou um Projeto de Lei para médico, pelo movimento sanitarista e pela burocracia
estabelecer o que seria um Estatuto do Enfermo sanitária federal. Os antipsiquiátricos responderam com
Psiquiátrico, que previa a desospitalização esse projeto, de cunho atécnico e antimédico, que obstou
progressiva, à medida que fossem instalados serviços a tramitação do plano da APB: passaram-se 10 anos até
de cuidados primários (nas unidades sanitárias), que o projeto fosse aprovado, e ainda assim quase
secundários (nas policlínicas e hospitais gerais) e inteiramente descaracterizado. Pode-se crer que os
terciários (hospitais especializados e centros de burocratas apoiaram o projeto anarquista porque ele era
habilitação e reabilitação), todos integrados na rede menos dispendioso e permitia que o poder federal
geral de assistência médica e social (integração que repassasse o encargo para os municípios, livrando-se
se considerava essencial para prevenir a das responsabilidades que havia assumido desde 1930.
discriminação e a exclusão). Aí acabam-se os primórdios e inicia a atualidade.