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Editorial a convite

Editorial a convite

Breve histórico da psiquiatria no Brasil:


do período colonial à atualidade
Brief history of psychiatry in Brazil: from the colonial period
to the present

Luiz Salvador de Miranda-Sá Jr.

Sob a designação de psiquiatria incluem-se três mais significativas desse processo. Foi quando a
tipos de conceitos diversos, apesar de correlacionados: assistência aos doentes mentais se tornou médica.
a assistência, o conhecimento e o ensino do Surgiu na França, com a reforma patrocinada por Pinel
conhecimento psiquiátrico. Como não é possível e instituída por Esquirol, e que serviu de modelo para
abarcar todo esse universo, trataremos aqui e agora as transformações na assistência psiquiátrica de todo o
apenas de um aspecto do primeiro conceito: a mundo ocidental. Foi quando a assistência aos doentes
assistência psiquiátrica pública. mentais se transformou em responsabilidade médica e
A assistência aos doentes no Brasil colonial era estatal. No Brasil, também foi aí que nasceu a
extremamente precária. A maior parte dos cuidados assistência psiquiátrica pública, já reformada segundo
era prestada por curandeiros de todos os matizes, os valores da época.
inclusive sacerdotes católicos (especialmente os O Brasil sofrera grandes transformações
jesuítas). Os médicos formados eram raríssimos, e socioeconômicas e políticas. A corte portuguesa se
mesmo os cirurgiões e barbeiros licenciados mudara apressadamente para o Rio de Janeiro, tangida
dificilmente eram encontrados, a não ser nos centros pela invasão das tropas napoleônicas; o país deixara de
maiores, e serviam principalmente as pessoas ser colônia e fora transformado em reino unido com
importantes. Não havia especialistas em psiquiatria, Portugal e Algarve, o que representou uma enorme
mas os hospitais da Irmandade da Santa Casa promoção em seu status político. A abertura dos portos,
abrigavam, mais que tratavam, os enfermos mais o fim da proibição de atividades econômicas e
necessitados. Sem casa e sem recursos – ou sem eira e educacionais que havia caracterizado o regime colonial
sem beira, como se dizia na época. Sem eira porque dera origem a uma nova situação econômica, cultural e
não tinham propriedades rurais, nem beira, ou uma política. A Independência, a superação da monarquia
casa, um telhado com beiral sob o qual pudessem absoluta e a adesão ao liberalismo econômico
viver. Os mais pobres de todos não tinham onde cair marcaram esse momento e se refletiram em todos os
mortos, ou seja, não tinham um túmulo em uma igreja aspectos da vida nacional – inclusive na assistência
onde pudessem ser sepultados para fugir à vala comum. psiquiátrica.
Os enterros “decentes” só começaram a ser feitos fora O início da urbanização, premissa e conseqüência
das igrejas no século XIX. Os hospitais, até o século dessa transformação, mudou a fisionomia do Rio de
XVIII, confundiam-se com albergues para pessoas Janeiro, de Ouro Preto e Salvador (únicas cidades
doentes que não tivessem quem cuidasse delas. Os brasileiras dignas de serem consideradas
hospitais das Irmandades das Santas Casas de “urbanizadas”) e, por outro lado, criou, ampliou e
Misericórdia acolhiam e albergavam esses doentes em expôs novos problemas sanitários. Um deles dizia
condições sanitárias muito más, mesmo para aquele respeito aos enfermos psiquiátricos, que, se eram
momento histórico-social. inoperantes nas pequenas comunidades rurais,
Foi entre o fim do século XVIII e início do XIX, tornavam-se visíveis e perturbadores no meio urbano.
com o avanço do conhecimento científico e da Cuidar deles se transformou em um ônus difícil de ser
consciência social, que a medicina começou a tomar a suportado até pelas famílias, tanto no plano objetivo
forma atual. A Revolução Francesa, no plano político, como no subjetivo.
e os avanços científicos relacionados com a Revolução O Hospício do Rio de Janeiro foi inaugurado
Industrial, no plano econômico, foram as influências como parte da comemoração da Declaração da

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Maioridade do Imperador Pedro II e já nasceu busca de lucro. O doente mental se transformou em


moderno, pois seguiu o recém-instituído modelo uma fonte inesgotável de lucro para empresários que
francês e serviu de paradigma para os demais que o viviam dessa condição.
seguiram. Era um estabelecimento médico voltado para No plano da assistência pública direta, a tônica do
a recuperação dos doentes. O Hospício do Rio hoje é enfrentamento desse problema residiu na tentativa de
utilizado como Reitoria da UFRJ. Trata-se de um ambulatorização do tratamento. O Serviço Nacional
palácio mais suntuoso que qualquer outro da época, de Doenças Mentais, desde a primeira gestão, do
mais que o Palácio Real da Praça Quinze ou o de São Professor Jurandyr Manfredini, encetou outra tentativa
Cristóvão, tendo sido equiparado pelo Palácio de reforma, elegendo como principal meta a
Guanabara, edificado para servir de morada a D. Isabel, substituição da hospitalização pela assistência
princesa herdeira, quando de seu casamento, muitos ambulatorial. Nos anos 50 e 60, esses recursos se
anos após. Coisa semelhante se deu nas províncias. A multiplicaram, principalmente em unidades sanitárias
exemplo do caso do Rio, muitos desses hospitais eram e como anexos de hospitais psiquiátricos públicos. A
palácios maravilhosos para a época. principal crítica a esse sistema era a manutenção da
Esses são os fatos acerca das enfermidades segregação do enfermo e da enfermidade psiquiátrica,
mentais graves que, curiosamente, deram origem a além dos cuidadores da rede de assistência. Os
duas interpretações opostas. Os historiadores otimistas Colóquios de Psiquiatria Assistencial e Preventiva que
os explicam como sendo fruto da caridade cristã, do se davam nos congressos da Associação Brasileira de
desejo de minorar o sofrimento alheio, de solidarizar- Psiquiatria (ABP) e da Sociedade de Neurologia,
se com quem padece uma doença que todos temem. Os Psiquiatria e Higiene Mental do Brasil testemunharam
pessimistas, por sua vez, atribuem-nos ao desejo de esse esforço, que não foi adiante porque o Estado
esconder a miséria e a loucura, de aumentar o Brasileiro era decididamente privatista nessa área. Por
sofrimento do sofredor. Provavelmente, ambos têm isso, na assistência previdenciária, o processo correu
parte da verdade. na direção oposta: a hospitalização foi priorizada
A despeito dos prédios majestosos, a falta de unicamente porque era mais lucrativa para quem a
recursos eficazes para o tratamento dos doentes e a promovia. Esse fato se refletiu na assistência pública
pobreza de sua clientela determinaram sua progressiva direta, uma vez que se transformou em paradigma
deterioração e declínio, ainda que o aumento da terapêutico na consciência social e na ideologia de
população enferma exigisse a expansão do sistema, com muitos terapeutas. Deu-se também o fenômeno de
a ampliação de suas unidades. Entre os anos 20 e 30 do transferência de pacientes desospitalizados na rede
século XX, deu-se o primeiro esforço de reforma: pública para serem internados em serviços
Juliano Moreira e Ulisses Pernambucano foram os credenciados pela previdência social pública. Essa
primeiros artífices. Ulisses diferenciou os serviços de situação foi muito agravada pela instituição da ditadura
psicóticos agudos dos crônicos, instituiu um serviço militar e pelo avanço ideológico neoliberalista, sobre o
aberto para tratamento em regime de pensão livre, criou qual muito já foi relatado.
um sistema de educação especial e um serviço de saúde A Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM),
mental. Mas não viveu o bastante para ver prosperar sua sob o comando de Hamilton Cerqueira, secundada
obra nem para assistir à degradação de sua criação. pela ABP e apoiada nos organismos federais e
À medida que a falta de remédios específicos para estaduais, lideraram uma tentativa de reforma que
os enfermos psiquiátricos continuava, o processo de colocasse o avanço técnico a serviço dos pacientes.
degradação da assistência psiquiátrica pública no Carlos Gari de Faria foi o componente gaúcho dessa
Brasil, tal como no resto do mundo, prosseguia e se tentativa, que iniciou um vigoroso processo de
aprofundava. A degradação só poderia ser detida com transformação responsável da assistência psiquiátrica.
a descoberta dos fármacos psicotrópicos, que Com a derrocada da ditadura, criaram-se
possibilitaram o efetivo enfrentamento das condições para uma reação mais eficaz, não fosse pela
enfermidades mentais. Foi a revolução divisão dos esforços reformistas. A reação à má
psicofarmacológica. À penicilina, que tratava assistência psiquiátrica se deu em três planos
efetivamente a sífilis, acrescentaram-se os freqüentemente antagônicos: o plano médico-
neurolépticos e os antidepressivos, que transformavam psiquiátrico, o plano antipsiquiátrico e o plano
os portadores das grandes psicoses em pacientes tecnocrático. A reação psiquiátrica foi realizada pela
ambulatoriais. Mas tal avanço implicou outro ABP, a antipsiquiátrica foi encarnada por agentes de
problema: a assistência psiquiátrica pública se dividiu tendências anarquistas abrigadas no Partido dos
em duas: a assistência patrocinada pelo Estado e aquela Trabalhadores, e a reação burocrática esteve
mantida pela previdência social pública, que se representada pelos dirigentes de serviços públicos e
multiplicou movida única ou predominantemente pela alguns agentes do chamado Movimento Sanitarista.

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Todos enfrentavam a poderosa Federação Brasileira Essa proposta foi atropelada pelo Projeto Paulo
de Hospitais, que sustentava a manutenção do quadro Delgado, fortemente apoiado, já de saída, pelos partidos
existente. de esquerda, por amplas camadas do movimento
A ABP preparou um Projeto de Lei para médico, pelo movimento sanitarista e pela burocracia
estabelecer o que seria um Estatuto do Enfermo sanitária federal. Os antipsiquiátricos responderam com
Psiquiátrico, que previa a desospitalização esse projeto, de cunho atécnico e antimédico, que obstou
progressiva, à medida que fossem instalados serviços a tramitação do plano da APB: passaram-se 10 anos até
de cuidados primários (nas unidades sanitárias), que o projeto fosse aprovado, e ainda assim quase
secundários (nas policlínicas e hospitais gerais) e inteiramente descaracterizado. Pode-se crer que os
terciários (hospitais especializados e centros de burocratas apoiaram o projeto anarquista porque ele era
habilitação e reabilitação), todos integrados na rede menos dispendioso e permitia que o poder federal
geral de assistência médica e social (integração que repassasse o encargo para os municípios, livrando-se
se considerava essencial para prevenir a das responsabilidades que havia assumido desde 1930.
discriminação e a exclusão). Aí acabam-se os primórdios e inicia a atualidade.

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