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As Instâncias do Tempo na Constituição do Sujeito

Tatiana Ferreira Peres

"De manhã escureço,


De dia tardo,
De tarde anoiteço,
De noite ardo!
A oeste a morte
Contra quem vivo,
Do sul cativo,
Oeste é meu norte!
Outros que contem,
Passo por passo,
Eu morro ontem,
nasço amanhã.
Ando onde há espaço,

A proposta deste artigo é discutir a função do tempo e da linguagem na constituição do sujeito e na clínica
psicanalítica.

Se o objeto de estudo da Psicanálise é o inconsciente e este é estruturado como linguagem, temos então
um paradoxo, não há como separar função do tempo e da linguagem, na medida em que são as escansões
lingüísticas que marcam o ritmo e estabelecem a lógica do sujeito (Je).

Podemos dividir a constituição do sujeito em três tempos: O inconsciente como discurso do Outro, o
Estádio do Espelho e o complexo de Édipo. Apesar de haver certa sucessão temporal e neste sentido, é de
um tempo cronológico que falamos, a passagem de um a outro não estão ligados a uma maturação
biológica do organismo, eles se inter-relacionam.

No texto sobre o tempo lógico e a asserção antecipada, Lacan discute três movimentos lógicos: Instante
de Olhar, Momento de Compreender e Momento de Concluir. Mais que uma justificativa para o corte na
sessão analítica, o artigo é uma micro teoria do Ato. A partir da articulação das três instâncias de tempo,
constitutiva do sofisma é possível verificar a gênese do sujeito.

Para exemplificar, Lacan utiliza-se do seguinte problema lógico: três detentos são escolhidos e em suas
costas lhes é afixado um círculo, podendo ser preto ou branco. O primeiro que conseguir deduzir qual
seria a sua cor, seria libertado. Para tanto, sua conclusão deveria estar fundamentada pela lógica e não
somente pela probabilidade.

Os três detentos receberam a informação de que havia três círculos brancos e dois pretos, sendo a única
possibilidade de dedução então, o que cada um observava nas costas do outro.

Os três dirigem-se conjuntamente a porta da cela e se declaram: "Sou branco, e eis como sei disso: Dado
que meus companheiros eram brancos, achei que se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o
seguinte: "Se eu também fosse preto, o outro devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria
saído na mesma hora, logo não sou preto. E os outros teriam saído juntos convencidos de serem branco.
"Se não estavam fazendo nada, è que eu era branco como eles".

O Instante de Olhar está relacionado ao sujeito impessoal do conhecimento, sujeito da ciência, que se
colocou um enigma: Porque o bebê está chorando? (p.ex.) "O tempo de compreender pode-se reduzir ao
instante de olhar (...) momento relacionado ao sujeito reflexivo, que busca a solução deste conflito.

A tensão temporal que se estabelece, instaura uma pressa (fazer o bebê parar de chorar). E numa certeza
antecipada tenho acesso a verdade, momento de concluir, pois na medida em que o bebê de fato para de
chorar, posso ter garantia de que era fome. Se ele não pára posso verificar outras possibilidades: fraldas
sujas ou desejo de colo.

Podemos então pensar, que no discurso analítico, quando um analista se ocupa de uma ação interpretativa
apontando um significante ou sugerindo um significado, possibilita ao sujeito dizer: sim, é isto! Ou não é
isto! O sujeito é chamado a se posicionar, a se declarar: "Sou branco." E a partir deste ato, novas
associações podem ser realizadas.

"O corte é uma escansão". Assim, como a interpretação que instaura uma pressa para o momento de
concluir, "levando o sujeito à produção de significantes". Promovendo uma experiência de
ressignificação, transformando a posição subjetiva do sujeito diante de sua verdade e de seu desejo.

Portanto, o tempo está no registro do Outro, assim como a constituição do sujeito que é a articulação
lógica entre o furo e o discurso. Pois, o momento de concluir, é marcado pela "ação e a não ação daquele
que ocupará o lugar do Outro, que provocará sua decisão de se declarar"

Abre-se um tempo de parada entre tensão e apaziguamento, responsável pela instauração de uma falta,
que faz traço, um furo no real. Temos então, o Traço Unário, se inscrevendo, durante os dois primeiros
tempos constitutivos, para depois, na dissolução edípica, se ligar aos significantes.

"O significante sempre se antecipa ao sentido e é na cadeia que o sentido insiste, mas que nenhum dos
elementos da cadeia consiste na significação de que ele é capaz nesse momento."

Entre S1, matriz simbólica e S2, surge o sujeito, pois na articulação de S2 com S1 existe o "Grito", que
num primeiro momento é desarticulado do objeto. Marcado pela necessidade, ganha estatuto de demanda
na medida em que é tomado pelo Outro como um apelo, um pedido.

A mãe antecipa um sujeito em seu bebê, permitindo que ele advenha na escansão da sua fala e do tempo
de suas ações no que se refere aos cuidados diários.

"O sujeito é um efeito da orientação no tempo da cadeia significante, um efeito retroativo", pois, sou
sujeito do enunciado (sou falado) antes de poder ser sujeito da enunciação (eu sou).

É a partir da retroação, asserção antecipada, que concluo. Mas neste movimento, algo se perde. Há um
deslizamento metonímico na tentativa de recuperar o objeto perdido. Este objeto, que Lacan nomeia como
objeto a, é a causa do desejo e da substituição de S2 por S3 e assim por diante.

"O tempo é essencialmente tempo na narrativa, portanto, na linguagem e pela linguagem, escandida pela
morte simbólica, que renova o sentido no ponto de estofo que produz significação que só toma sentido na
articulação da sintaxe autenticada pelo Outro, revelando a dialética imortal/mortal – ausência e
presença".

Esta fenda que se abre marca definitivamente a entrada do infans ao simbólico, dividindo p que se perdeu
(o intraduzível), como real e dando lugar a palavra, que é o ato de se fazer presente onde o Outro é
ausente por sua falta a ser.

"Com relação a isto, o verdadeiro trauma não é a ausência da mãe, mas a ausência na mãe. Diante da
ausência da mãe, a criança tem recurso para fazê-la voltar". É um duplo movimento, da mãe e do bebê.
"... ao perder o suporte do ritmo do Outro, o sujeito deve se tornar capaz de criar seu próprio ritmo para
se apoiar". Se neste meio tempo, algo impedir o acesso a palavra, e mãe e bebê (se um ou outro, ou
ambos) se virem confrontados ao furo real... o estado de fascinação no qual se mergulha, reduz a um
silêncio, que toda forma de se colocar, de pedir ajuda a qualquer Outro lhe é interdita". Explicando
melhor, seria o que Winnicott descreve como agonia impensável, que é vivido pelo sujeito como uma
queda sem fim e na sessão analítica observamos como ausência da cadeia associativa, o que eu denomino
como um impasse.

Se no primeiro tempo da constituição do sujeito, tempo da alienação primária, no qual o bebê é o discurso
parental, surge a clivagem entre real e simbólico é no estádio do espelho que se instaura o imaginário, o
momento da separação.

Observamos a seguir:
Momento de Momento de
Instante de Olhar
Compreender Concluir

2º tempo da constituição
1º tempo da do sujeito
constituição do sujeito
- Alienação secundária;
-Criança como sujeito
do enunciado;
- 2º tempo do espelho
-Alienação primária
-2º tempo da pulsão

2º tempo do estádio do
3º tempo do estádio do
espelho
espelho
- Criança se confunde,
-Criança se reconhece
pensa que a imagem do
como objeto do gozo da
espelho é outra criança;
mãe;
-é o outro que dá a
- 1º tempo do Édipo;
imagem ideal do Eu.

1º tempo do estádio do espelho


2º tempo do Édipo

- Criança se vê e não se 3º tempo do Édipo


- Identificação com os
reconhece;
equivalentes fálicos (tirania);
- Reconhecimento da falta
- 1º tempo da pulsão; (castração);
- Ser ou não ser o falo?
(declínio)
-2 º tempo da pulsão;

1º tempo do Édipo 3º tempo da constituição do


sujeito
- Criança se identifica como
falo da mãe; -Separação;

- 3º tempo da pulsão -Fantasma

Através da tabela, podemos notar que, cada um desses modos de tempo nega e contém em si a
contradição do momento anterior, eles se relacionam.

O primeiro tempo do Estádio do espelho, a criança não vê e não se reconhece na imagem. No momento
seguinte, a criança vê a imagem e a reconhece como sendo de outro semelhante, outra criança. É na
antecipação da mãe em lhe dizer sujeito (é o nenê!), antes mesmo de uma maturação neurológica, que a
criança se reconhece um Eu (moi) diferente de sua mãe, mas se mantém alienada como objeto de gozo do
Outro. Do corpo fragmentado a criança passa apreender seu corpo integrado, totalizado em uma imagem á
disposição do outro enquanto falo. Terceiro tempo da pulsão, que estabelece a ligação do outro como
objeto, permitindo a restauração do laço e a não entrada do autismo.
Coincidindo, temos o primeiro tempo do Édipo. No segundo tempo, a certeza da criança ser ou não ser o
falo fica abalada. Ela percebe que a mãe tem outros interesses que não ela, ponto nodal do declínio
edípico, "a criança é forçada pela função paterna a aceitar não ser o falo, assim como não tê-lo."

A criança plenamente inserida na ordem simbólica, na busca incessante de tapar sua falta, torna-se sujeito
de desejo. Marcado indelevelmente pela angústia de castração, em sua forma ontológica de ser faltante ou
de ser pra morte.

É a partir do posicionamento do sujeito frente à castração que teremos as estruturas definidas por Lacan:
neurose, psicose e perversão.

Pois bem, a partir do exposto até aqui, podemos observar a constituição é marcada por uma sonoridade,
quer pela voz materna que vai inserindo no bebê no campo do simbólico, quer como o ritmo estabelecido
entre ausência e presença. A voz da mãe capta o bebê através da musicalidade do manhês e na suposição
de que ali tem um sujeito a ouvi-la e a responder, mesmo que no inicio ela o faça por ele. Penso, portanto,
que se a musica pode ser percebida como algo inerente a humanização, podemos fazer seu uso na clinica
psicanalítica.

Os leitores psicanalistas hão de pensar na musicalidade existente no discurso de seus analisandos e nas
escansões a partir do ato. Entretanto, proponho aqui, pensarmos sobre a possibilidade de utilizarmos o
canto como forma interpretativa, instaurando a pressa para o momento de concluir.

O que faz o corpo mexer quando ouvimos uma música? Porque algumas nos fazem flutuar nos
mobilizando sentimentos que não sabemos explicar? Para Didier-Weill isto acontece porque a linguagem
é clivada em música e palavra, por sermos atravessados por algo da ordem do intraduzível entre real e
simbólico.

"O poder da música é poder de comemoração do tempo primordial em que o sujeito, antes de receber a
palavra, recebe previamente uma base, uma raiz sobre a qual poderá em segundo lugar, germinar a
palavra; nesta base original que concebemos, com efeito - não memorável, mas comemorável – de uma
inscrição primordial, sem mediação do imaginário, do simbólico no real, somos levados a reconhecer o
Traço Unário de Lacan". Pois antes do verbo, da palavra, há o som ritmado da batida do coração da mãe
ou o barulho de outros órgãos que o bebê escuta ainda no ventre.

Neste sentido, a música permite a entrada ao trauma e a palavra, sua saída, através da metaforização.
Entre uma nota e outra, há uma ausência, um silêncio, na espera da próxima nota, nos garantindo a
presença, similar a atitude materna que permite ao filho ir ao mundo, reafirmando que ela estará ali (nem
que seja dentro dele mesmo).

Se a constituição do sujeito é a articulação lógica entre o furo e o discurso do Outro, a musicalidade é sua
intermediadora, na medida em que o infans percebe a ressonância musical antes da compreensão dos
fonemas. Isto é percebido, na observação dos bebês e suas mães, é a voz materna (manhês) que capta o
olhar do bebê, quando isso não acontece vemos uma relação sem sonoridade, a voz é vazia e metalizada,
observada geralmente em mães de crianças autistas.

Se é necessário mãe e bebê se capturarem para existirem, a música na sessão analítica ode ser uma
recapturação. Ela tira o sujeito de um estado siderado no instante do olhar para fazer escansão,
instaurando a pressa de concluir, permitindo ao analista presentificar a metonimização da cadeia. "A
música não diz a verdade, ela diz somente o real, pelo fato de que ela o leva à existência e, nisso, seu
poder é, ao mesmo tempo, superior ao da palavra e menor que o dela."

O analista pode presenciar cenas de angústia, que não são da ordem de um deciframento, por estar fora da
significância e, portanto, relacionada ao objeto a. Diante de uma "queda sem fim", a música pode ser o
limite que ampara.

Para concluir, a função do analista através de seu ato, é favorecer que o sujeito se implique com o seu
desejo, se há algo que o impede e que é da ordem do intraduzível é preciso ser criativo, por isso termino
com Lacan: "...não há dúvidas que o analista pode jogar com o poder do símbolo, evocando-o
deliberadamente nas ressonâncias semânticas de suas colocações. Essa seria a via de um retorno ao uso
dos efeitos simbólicos numa técnica renovada de interpretação." Ou seja, precisamos reinventar a clínica,
com cada paciente e com cada momento sócio cultural.

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