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“A Teoria Freudiana sobre a gênese das psicopatologias a partir do estudo do caso

clínico do homem dos lobos”

Jaume Ferran Aran Cebria

Fátima Siqueira Caropreso

Introdução

Como o próprio Freud adverte nas Conferências de Introdução à Psicanálise


(1915-17), a gênese das neuroses é um fenômeno multidimensional e complexo. O pai da
psicanálise esboça nessas conferências um esquema geral descrevendo os principais
fatores etiológicos que contribuem ao desenvolvimento de uma neurose. Ao longo de sua
obra posterior, Freud complementa, repensa e retoma alguns dos conceitos apresentados
nas Conferências; mas não abandona o marco geral nelas descrito. Uma forma de
acompanhar o desenvolvimento do pensamento freudiano a esse respeito é atentar às
diversas menções que o autor realiza na sua obra ao caso clínico do Homem dos Lobos,
com o que procura discutir ou exemplificar determinados conceitos, como a função da
angústia ou a importância relativa das fantasias filogenéticas. Assim, procuramos
descrever a teoria freudiana a respeito da gênese das psicopatologias a partir do marco
conceitual das Conferências de Introdução à Psicanálise, analisando a evolução do
pensamento freudiano sobre esse tema, através do estudo do caso clínico do homem dos
lobos e das obras freudianas posteriores nas quais o pai da psicanálise menciona este caso
ou se refere aos fatores etiológicos descritos nas Conferências.

A partir desse estudo, podemos perceber a maior ou menor importância relativa


dos fatores constitucionais em relação aos ambientais, o que poderia ser determinante
para as possibilidades de que o tratamento de uma dada neurose seja, ou não, efetivo e
duradouro.

Como veremos, com base na sistematização desta pequena parte da teoria


freudiana que este texto pretende oferecer, pode-se considerar que na etapa final da sua
obra Freud concede um peso maior aos fatores constitucionais, com as conseqüências
prognósticas já antecipadas.
Objetivo

O objetivo geral deste artigo é identificar, discutir e avaliar as concepções


psicanalíticas freudianas mais diretamente relacionadas com o problema da etiologia das
psicopatologias, com destaque para o modo complementar como aí atuam os fatores
constitucionais e biológicos, por um lado, e os fatores ambientais e adquiridos por outro.

O objetivo específico desse artigo é tentar compreender, a partir do caso clínico


do Homem dos Lobos, qual é o papel concedido por Freud às experiências, às memórias
filogenéticas, à constituição pulsional e às fantasias na determinação das psiconeuroses.

Metodologia

A metodologia de pesquisa pautou-se pela análise estrutural dos principais


trabalhos freudianos relevantes para o tema dessa pesquisa, complementada por um
trabalho de análise comparativa com a bibliografia de comentadores da obra freudiana.
De modo geral, toma como modelo para esse tipo de investigação a proposta de Dreher
(2000), que tem a vantagem de, simultaneamente, valorizar os aspectos propriamente
teóricos da investigação científica em psicanálise, sem perder de vista sua necessária
referência às evidências clínico-empíricas, das quais eles partem e cuja análise
pretendem, em última instância, informar. Os principais textos freudianos trabalhados
são: “Conferências de Introdução à Psicanálise” (1915-17) “Recordar, Repetir e
Reelaborar” (1914), “A repressão”(1915), “Pulsões e seus destinos” ( 1915), “ Da história
de uma neurose infantil” (1919), “Inibição, Sintoma e Angústia” (1926), “Análise
terminável e interminável” (1937),“Novas conferências de introdução à Psicanálise”
(1931-32).

Apresentação do caso do Homem dos Lobos.

O paciente conhecido como “Homem dos Lobos”, Sergei Pankejeff, era um adulto
jovem de classe socioeconômica alta cujo pai tinha um caráter marcadamente depressivo.
O paciente, pouco antes dos 4 anos de idade, desenvolveu uma histeria de angústia que
se transformou em uma neurose obsessiva religiosa que durou até os 10 anos. Sergei levou
uma vida normal dos 10 aos 18 anos, momento em que sofreu um surto psicológico após
uma infecção de gonorréia. Ele foi analisado por Freud de 1910, com 24 anos de idade,
até 1914, ano em que o próprio analista a deu por finalizada. No momento em que ele
começou a terapia psicanalítica ele era completamente dependente, incapaz de levar uma
vida autônoma. O paciente foi tratado de sua neurose infantil cerca de 15 anos após ela
ter acabado. A parte inicial do tratamento foi caracterizada por um longo período de
apatia, no qual não houve avanços. A respeito disso, Freud considerou que o paciente
tinha tanto medo de ter que levar uma vida autônoma que desenvolveu uma resistência a
cura. Neste sentido, podemos considerar que esta resistência seria um exemplo do que
Freud descreve na 24ª das Conferências de Introdução à Psicanálise (1915-17) como
ganho secundário da doença. Esta resistência inicial só pôde ser vencida por causa do
efeito da transferência entre Freud e seu paciente e à decisão de Freud de marcar um prazo
máximo para a conclusão do tratamento. Finalmente foi possível analisar o material
psíquico necessário para atingir uma correta compreensão do caso e o cancelamento dos
sintomas. No entanto, o analista austríaco reconhece em Análise terminável e
interminável (1937) que essa cura não foi definitiva, acontecendo varias recaídas.

Como o próprio Freud afirma, a importância deste caso radica em que a gravidade
dos sintomas e a duração do tratamento permitem aprender muito sobre o
desenvolvimento anímico, particularmente sobre como as pulsões sexuais participam da
gênese das neuroses.

Desenvolvimento do pensamento freudiano a respeito da etiologia das neuroses

Entre 1915 e 1916, Freud publica as Conferências de Introdução à Psicanálise,


nas que, entre outros assuntos, aborda o tema da etiologia das neuroses. Nestes textos, o
pai da psicanálise esboça um quadro geral dos diferentes fatores etiológicos e suas inter-
relações. Estes fatores devem ser considerados desde dois pontos de vista: o dinâmico e
o quantitativo. Na perspectiva dinâmica, ou qualitativa, considera-se que possuem
relevância etiológica três aspectos: a fixação libidinal, a frustração de desejos sexuais
inconscientes e a inclinação ao conflito psíquico.
A fixação libidinal, de natureza endógena, seria um fator predisponente à neurose.
Esta fixação pode ser definida como a demora de alguma aspiração sexual em alguma das
etapas do desenvolvimento sexual do indivíduo. Tal fixação se explica mediante uma
característica da libido, sua viscosidade, ou seja, a tenacidade com a que ela se adere a
determinadas orientações e objetos. Esta viscosidade apresenta uma grande variabilidade
em cada pessoa, os motivos da qual são desconhecidos. O autor austríaco menciona
novamente essa viscosidade da libido como sendo um fator de resistência à cura em
Análise terminável e interminável (1937), onde admite que a real natureza dessa
característica da libido permanece incógnita.

Nesta fixação, representante do fator constitucional no esquema etiológico das


neuroses, cabe distinguir dois subfatores: a disposição herdada e a predisposição
adquirida na primeira infância. Segundo Freud em História de uma Neurose Infantil
(1918), na família de seu paciente russo parecia existir uma clara tendência à neurose.
Sua irmã, dois anos mais velha e bastante inteligente, deu mostras de desequilíbrio mental
a partir dos 20 anos e morreu estando de viagem, por ingestão de alguma substancia
venenosa. Um tio paterno parece ter sofrido também uma grave neurose obsessiva, e
vários outros parentes apresentavam sintomas neuróticos. Além disso, a infância de
Sergei foi marcada pelas doenças dos seus progenitores. Por um lado, a mãe
freqüentemente se via impedida de cuidar das crianças (o próprio Sergei e sua irmã), por
causa de dores abdominais e, por outro, seu pai acabou desenvolvendo uma forte
depressão cujo tratamento o afastava da residência familiar.

As disposições herdadas são a seqüela que deixaram as vivências dos nossos


antepassados. Esta proposição é, segundo Freud, logicamente necessária; pois não
poderíamos haver herdado disposição nenhuma, se esta não tivesse sido adquirida em
algum momento prévio na história filogenética do homem. Esse fator filogenético
ganhará uma importância cada vez maior na obra freudiana. A libido pode-se fixar em
práticas ou vivências da sexualidade infantil, interesses parcialmente abandonados e em
objetos resignados da infância. Portanto, o período infantil é especialmente relevante, pois
é quando acontece a primeira manifestação das pulsões inatas da criança e podem surgir
ainda outras pulsões por causa de influências externas. O fato de algumas das vivências
infantis serem produto da fantasia, ou serem mistura de verdade com mentira não faz com
que elas sejam menos determinantes na gênese das neuroses; pois, como argumenta
Freud, no mundo das neuroses a realidade psíquica é a decisiva. Em relação a este ponto,
o analista austríaco descreve em História de uma Neurose Infantil (1918) que a partir de
uma série de sonhos, o paciente lembra-se de um episódio no qual sua irmã o instou a
manusear os genitais. Também ela pegou seu pênis e comentou que a babá fazia isso com
o jardineiro. Essas vivências foram transformadas em fantasias nas quais ele assumia o
papel ativo, querendo despir a irmã e sendo punido por isso.

A fixação está vinculada com outro mecanismo psíquico, a regressão, que consiste
em voltar a alguma etapa anterior do desenvolvimento. Estas duas funções estão
estreitamente relacionadas: quanto mais forte seja a fixação em determinada fase do
desenvolvimento, mais provavelmente uma aspiração sexual vai regredir a esta mesma
fase, quando seja frustrada, ou seja, quando enfrente algum obstáculo para a sua
satisfação. Paralelamente, a aspiração libidinal oporá menor resistência aos impedimentos
externos quanto mais forte seja a fixação. A regressão pode ser de dois tipos: retrocesso
aos primeiros objetos nos quais foi investida a libido, que são de natureza incestuosa, e
retrocesso de toda a organização sexual a fases anteriores. Ambos os tipos são muito
importantes para a gênese das neuroses. Como relata Freud em História de uma Neurose
Infantil (1918), no caso de Sergei Pankejeff, aconteceram esses dois tipos de regressão.
Por um lado, o paciente regrediu da fase fálica à fase sádico-anal, por que começou a
praticar a masturbação na frente da sua babá, que reprovou duramente esta atitude e ele
relacionou essa reprovação com o perigo de castração; pelo outro, a rejeição da babá fez
Sergei voltar à sua escolha de objeto primária, seu pai, com quem ele tinha realizado o
processo psíquico de identificação.

A regressão é possibilitada porque objetos e orientações da libido se conservam,


em certa medida, nas representações da fantasia. No entanto, as fantasias apenas são
toleradas enquanto o investimento libidinal nelas seja pequeno. No momento em que
grande quantidade de energia libidinal é investida nas fantasias, de forma que se
desenvolva algum tipo de esforço para realizá-las, estas entram em conflito com o eu e
são reprimidas, passando ao inconsciente, onde a libido encontra seus pontos de fixação.
Resumindo, a libido recorre à fantasia como meio para chegar à fixação. Este passo
intermediário é chamado introversão.

Em relação aos conceitos de fixação e regressão, deve ser salientada uma idéia
que aparece recorrentemente na obra freudiana no sentido de que, apesar do
desenvolvimento por fases do psiquismo humano, as diferentes etapas nunca são
completamente superadas. Isso é afirmado, por exemplo, em referência aos diversos tipos
de angústia, na 32ª das Novas Conferências de Introdução à Psicanálise (1931-32) e
também, considerando o desenvolvimento psíquico em geral, em Análise terminável e
interminável (1937).

O segundo fator etiológico que Freud comenta nas Conferências de Introdução à


Psicanálise (1915/16) é a frustração. Ela é um fator exógeno, acidental. É entendida como
a impossibilidade de satisfazer desejos libidinais a que a pessoa aspira com exclusividade.
Como foi mencionado, a frustração produz a regressão da libido aos pontos de maior
fixação. Esta regressão pode levar à perversão, no caso da sua aceitação, ou à neurose, no
caso da sua recusa. Desta forma, os sintomas surgem como satisfações substitutivas da
satisfação recusada, ou seja, os sintomas neuróticos seriam formas substitutivas da
satisfação frustrada. A exclusividade da forma de buscar satisfação é um requisito
necessário para a contração da neurose, pois de outro modo, a energia libidinal poderia
ser sublimada em metas socialmente aceitáveis ou ser dirigida a outros objetos, em virtude
da sua considerável plasticidade. A respeito deste aspecto, pode resultar interessante
destacar que o pai da psicanálise menciona em Análise terminável e interminável (1937)
a exaustão da plasticidade como sendo um elemento que age como resistência à cura em
alguns casos de pacientes jovens, resultando difícil discernir as possíveis causas de tal
exaustão.

O terceiro elemento que vamos considerar na etiologia das neuroses é a inclinação


ao conflito, fator que será ressaltado por Freud em Análise terminável e interminável
(1937) e vinculado à pulsão de morte. Neste texto, o autor austríaco comenta que um tipo
peculiar de resistência à cura seria a pulsão à destruição, que se manifesta na compulsão
à repetição. Em Inibição, Sintoma e Angústia (1926), Freud destaca o papel da compulsão
à repetição, que faz com que uma pulsão análoga à reprimida em primeiro lugar, seja
também reprimida; mesmo não existindo mais a situação original de perigo. Assim, a
compulsão à repetição exerce uma função de fixação da repressão. Às vezes, o eu
consegue recuperar o domínio sobre a pulsão não perigosa; mas muitas vezes não. Freud
conclui que são relações quantitativas as decisivas para determinar se serão mantidas as
antigas situações de perigo, ou seja, se serão conservadas as repressões do eu.

Segundo comenta Freud em Análise terminável e interminável (1937), a pulsão de


agressão explicaria a inclinação ao conflito, que se apresenta em numerosos pacientes,
que, por exemplo, em lugar de repartir sua libido disponível entre sua orientação
homosexual e a heterosexual se vêm compelidos a escolher uma delas sem nenhum grau
de tolerância para a outra. No decurso do processo civilizatório, o homem teria aprendido
a interiorizar sua agressividade, que seria responsável, em geral, pelos conflitos psíquicos.

A existência de conflitos psíquicos não é per se patogênica. É própria do


funcionamento mental normal de todo indivíduo. Devem concorrer outros ingredientes
para que aconteça a contração de uma neurose. No surgimento do conflito, pode-se
observar tipicamente a existência de uma aspiração libidinal que resulta frustrada, o que
leva a libido a procurar satisfação em outros objetos. Freud explicitamente afirma em
Pulsões e seus destinos (1915) que as pulsões sexuais podem trocar facilmente seus
objetos, de forma que podem acabar atingindo objetivos muito diferentes das suas metas
originais. Porém, quando estas vias alternativas são rejeitadas pelo eu, a satisfação
libidinal é novamente vedada mediante a repressão, que tem que ser considerada o traço
mais representativo das neuroses, pois sem ela o sujeito ia se tornar pervertido ou infantil,
mas não neurótico. Estas coerções internas podem ter-se originado na história filogenética
da espécie humana a partir de impedimentos físicos. Quem dá vigor a estas coerções e
exerce o veto sobre as aspirações sexuais são as forças pulsionais não sexuais, ou pulsões
egóicas, regidas pelo princípio de realidade, que, em contraposição ao princípio de prazer,
aceita adiar metas prazerosas para adequar o comportamento às convenções decorrentes
da vida em sociedade.

Em poucas palavras, o eu pode ter duas atitudes frente à regressão aos pontos de
fixação: ou admiti-la, e então a pessoa se torna perversa, ou rejeitá-la, o que provocará
uma repressão. Portanto, a inclinação ao conflito depende tanto do desenvolvimento do
eu quanto do desenvolvimento da libido.

Em vista disso, pode-se dizer que os sintomas são formações de compromisso


entre dois tipos de pulsões: as sexuais e as egóicas; por isso resultam tão resistentes. O
papel da pulsão egóica é sustentar a função repressora.

No artigo metapsicológico intitulado A repressão (1915), Freud postula que a


satisfação da pulsão submetida à repressão seria possível e prazerosa, mas incompatível
com outras exigências. Assim, a condição para a repressão é que o motivo do desprazer
adquira maior poder que o prazer da satisfação.
Neste mesmo texto, Freud propõe a existência de uma repressão primordial, pela
que lhe é vetado o acesso à consciência ao representante psíquico da pulsão,
estabelecendo-se uma fixação deste representante com a pulsão. Existiria também uma
repressão secundária, ou repressão em sentido próprio, que recai sobre derivados
psíquicos do reprimido primordial ou sobre vias psíquicas que tem se associado com ele.
Assim, na repressão secundaria, existem duas forças em jogo: por um lado, a repulsa da
consciência e, pelo outro e não menos importante, a atração que o reprimido primordial
exerce. Sem esta cooperação entre essas duas forças, a repressão secundaria poderia não
acontecer. A repressão, na verdade, embora cinda qualquer vínculo entre o reprimido e a
consciência, não obstaculiza a existência nem o desenvolvimento do reprimido, nem sua
capacidade de formar conexões. De fato, como a consciência não exerce nenhum controle
sobre o representante psíquico da pulsão reprimida, esta se desenvolve com maior
liberdade no inconsciente. A respeito disso, o pai da psicanálise considera em Análise
terminável e interminável (1937) que o objetivo da terapia seria submeter setores do isso
ao governo do eu. Agora, se esses derivados conseguem se distanciar suficientemente
desse representante psíquico, eles tem aberto o caminho à consciência. Em realidade, é
precisamente isso o que acontece com os sintomas.

Ainda no artigo sobre a repressão, Freud comenta que uma das suas características
é que exige um esforço constante. O reprimido continua querendo acessar a consciência
e é preciso um esforço permanente em sentido contrario; para manter-lo inconsciente.

A pulsão, mesmo reprimida, pode se encontrar em diversos estados de ativação,


ou seja, com diferentes quantidades de energia psíquica investida nela. O derivado de uma
pulsão reprimida, mesmo tendo um conteúdo muito semelhante a tal pulsão, se estiver
pouco investido com energia psíquica, não será objeto de repressão. Porém, se essa pulsão
resulta reforçada mais do que determinado nível, o conflito se tornará atual e se ativará o
mecanismo de repressão.

No caso da repressão, devemos distinguir, por um lado, a representação da pulsão


e, pelo outro, a energia da pulsão, que podem ter destinos diferentes. A representação ou
é expulsa da consciência ou mantida no inconsciente; enquanto a energia pulsional ou é
completamente sufocada, ou ressurge qualitativamente mudada ou se transforma em
angústia.
Como o objetivo da repressão era o evitar o desprazer, o destino da energia
pulsional acaba sendo mais importante que o destino do representante da pulsão. Se o
processo de repressão não consegue evitar o surgimento de desprazer ou de angustia,
Freud afirma que ele fracassou, ao menos parcialmente. Se uma repressão chegasse a ser
completamente bem sucedida, nunca poderíamos saber que aconteceu.

Posteriormente, em Inibição, Sintoma e Angústia (1926), Freud mudará sua


concepção sobre a natureza e a função da angústia. Se anteriormente ele considerava que
a energia investida na pulsão reprimida seria transposta automaticamente em angústia,
neste momento, o autor passa a considerar que a energia necessária para o surgimento da
angústia provém do eu, que funcionaria como seu lugar de armazenagem. Mas, mesmo
assim, como se obtém a energia suficiente como para causar angústia/desprazer? Freud
evita essa dificuldade postulando que a angústia não é algo novo que se produz a partir
da repressão, mas algo que se reproduz como um estado afetivo, seguindo uma imagem
mnêmica preexistente. Ou seja, Freud postula a existência de uns estados afetivos
presentes na vida psíquica, como sedimentos de antiqüíssimas vivências traumáticas, que
são reativados na presença de situações semelhantes.

Parece claro que a angústia foi gerada numa situação de perigo e é reproduzida
sempre que se apresenta uma situação semelhante. Para Freud, cada idade, cada etapa do
desenvolvimento tem associada uma determinada condição de angústia. Na primeira
etapa de imaturidade biológica teríamos o perigo do desvalimento psíquico (decorrente
de seu desvalimento físico). Na primeira infância, o perigo é a perda de objeto, ou seja, a
separação da mãe, que é um objeto que recebe um enorme investimento libidinal, pois é
a fonte de alimentação e cuidados. Na fase fálica, o perigo é a castração; nesta fase é o
penis o objeto que recebe um elevado investimento libidinal, também porque representa
a possibilidade de união com a mãe, de acordo com Ferenczi. Mais tarde, esta angústia
de castração se transforma em angústia frente à consciência moral. O que se teme é o
castigo do supereu. No entanto, estas situações de angústia podem conviver e levar o eu
a determinadas reações de angústia em períodos posteriores ao que seria adequado ou
podem acontecer varias ao mesmo tempo. Portanto, podemos entender que não existe o
perigo de considerar a angústia de castração como o único motor dos processos defensivos
que conduzem à neurose. Nesse sentido, no caso da mulher a situação de perigo mais
eficaz seria a perda de objeto. Na verdade, a perda do amor por parte do objeto, mais do
que a perda do objeto em si. Dada a maior prevalência da histeria entre a população
feminina, Freud postula que esta perda de amor do objeto teria a mesma função geradora
de angústia que a angústia de castração nas fobias e a angústia frente ao supereu na
neurose obsessiva.

Freud apresenta duas hipóteses. Na primeira a angústia seria um sintoma da


neurose; mas na segunda haveria um vínculo mais íntimo entre elas. Assim, toda
formação de sintoma surgiria para escapar da angústia. Os sintomas ligariam a energia
que de outro modo seria descarregada em forma de angústia. Portanto, esta se torna um
fenômeno fundamental para a compreensão das neuroses. O eu emprega a angústia como
sinal para evitar uma situação de perigo, que seria desprazerosa e, a partir desse sinal, se
forma um sintoma para cancelar a situação de perigo. Como sintoma, podemos entender
uma formação substitutiva, um processo de defesa semelhante à fuga de um perigo
exterior e mediante o qual o eu tenta fugir de um perigo pulsional.

Uma argumentação semelhante a respeito da função da angústia é desenvolvida


pelo autor austríaco na 32ª das Novas Conferências de Introdução à Psicanálise (1931-
32), segundo a qual seria por causa da angústia que se gera a repressão e, além disso, essa
angústia sempre responderia, em última instância, a uma situação de perigo exterior. O
modo como a repressão é gerada seria o seguinte: o eu percebe que a satisfação de
determinada pulsão emergente causaria alguma das situações de perigo típicas, cujo
arquétipo é o nascimento, momento em que advém um enorme aumento de estimulação
com a que o aparelho psíquico não consegue lidar, causando desprazer. Quando o eu é
fraco demais para controlar aquela pulsão, entra em jogo o mecanismo da repressão: o eu
antecipa imaginariamente a satisfação da citada pulsão, junto com as sensações
desprazerosas que acompanhariam a situação temida; assim se ativa automaticamente o
principio do prazer, que executa a repressão da pulsão perigosa. Diversas reações podem
acontecer: a angústia pode dominar totalmente à pessoa ou o eu tenta fazer um contra-
investimento, mas sua energia se combina com a da pulsão para formar um sintoma, ou
ela fica no eu como formação reativa, que passaria a fazer parte do caráter do sujeito.

A angústia ostenta um papel relevante no caso clínico de Sergei Pankejeff, Freud


escreve em História de uma Neurose Infantil (1918) que um evento em particular marcou
a divisória entre a conduta meramente rebelde do paciente e seu comportamento neurótico
posterior. Este evento foi um sonho que causou nele um grande sentimento de angústia.
A origem dos diferentes elementos oníricos do sonho (6 ou 7 lobos de caudas grandes,
subidos numa árvore) aparentemente pode-se encontrar em uma ilustração de um livro
com a qual a irmã do paciente costumava a assustá-lo, histórias que contava seu avó e
contos populares. A impressão causada por estes contos derivou em zoofobia. Da análise
do sonho, o analista austríaco chegou à conclusão de que existiu um desejo sexual voltado
para o pai, desejo que gerou uma angustia (um desprazer). Portanto, esta meta sexual
passiva relativa ao pai foi reprimida, dando origem, como formação substitutiva, à fobia
aos lobos. A força pulsional responsável por esta repressão foi, segundo Freud aponta, a
libido narcísica genital do paciente, que vetou uma satisfação para a consecução da qual
parecia que devia ser castrado.

Nas Conferências de Introdução à Psicanálise (1915/16) Freud discute outro


aspecto importante de se tratar a respeito da etiologia das neuroses: a grande variabilidade
individual da importância de uns ou outros elementos na equação geral da gênese das
neuroses. Para explicar esta variação, Freud desenvolveu o conceito de séries
complementares, que podem ser concebidas como sistemas binários cujos elementos se
inter-relacionam de forma tal que o aumento de um acarreta a diminuição proporcional
do outro e vice-versa. Freud identificou quatro destas séries.

A primeira gira em torno dos pólos: frustração exterior e fixação libidinal. Freud
considera a possibilidade de atribuir maior peso ao fator endógeno na ponderação da
importância destas duas variáveis para a contração das neuroses, mas acaba relacionando
esta opção com a extensão que se queira dar ao próprio conceito de neurose. Mais
especificamente, quanto maior a fixação, menor será a frustração necessária para produzir
a regressão libidinal, até que no limite seja possível se pensar em uma neurose com
etiologia quase que totalmente endógena e outras com etiologia quase que exclusivamente
exógena. Em relação à dinâmica entre esses dois pólos, Freud comenta em Análise
terminável e interminável (1937) que nas neuroses existe uma ação combinada do fator
constitucional e do acidental. Quanto mais importante seja o primeiro, mais facilmente
um trauma levará à fixação, deixando uma perturbação do desenvolvimento como
conseqüência. Quanto mais importante seja o fator traumático, mais vai manifestar o
sofrimento que este gerou, mesmo num paciente com um funcionamento pulsional
normal. Assim, é claro, do ponto de vista freudiano, que as neuroses com etiologia
traumática apresentam um prognóstico mais favorável. O autor austríaco considera que
somente nesses casos, em que mediante o fortalecimento do eu se consegue tramitar
corretamente o que não o foi em períodos anteriores, se pode falar de uma análise
definitivamente acabada. Os fatores desfavoráveis para a análise, e que podem atrapalhar
seu desenvolvimento, tornando-a interminável, seriam a intensidade constitucional das
pulsões e a alteração prejudicial do eu adquirida nos processos de defesa.

Em História de uma Neurose Infantil (1918), Freud discute o valor das vivências
da primeira infância na gênese da neurose. Para Freud, no caso do homem dos lobos e em
consonância com o sentido global da teoria psicanalítica, estas vivências são
indubitavelmente relevantes. Sendo que, de acordo com a teoria freudiana, a constituição
sexual como fator interno predisponente e a frustração formam uma série complementar
na gênese das neuroses, Freud explica que o fato de uma criança contrair uma neurose no
seu terceiro ou quarto ano evidencia que o fator constitucional pode ser tão eficaz que
nenhuma frustração é requerida para dar origem à neurose.

Na segunda série, resultado da decomposição dos fatores determinantes da fixação


em seus elementos, os dois fatores em jogo são as disposições herdadas e as
predisposições adquiridas na primeira infância. A respeito deste ponto, Freud aponta
também em Análise terminável e interminável (1937) que cada pessoa seleciona e usa só
alguns dos mecanismos de defesa existentes, o que parece indicar a existência de
predisposições inatas. Porém, não resulta muito útil querer fazer distinções muito precisas
entre o que é adquirido e o que é herdado, pois o que vem determinado por herança foi
adquirido também pelos nossos antepassados. Embora o isso constitua o psiquismo
original do sujeito, até mesmo o eu, ainda não desenvolvido, pode ter suas futuras
orientações pré-estabelecidas. Da mesma forma, também alguns conteúdos psíquicos
parecem ser herdados.

De forma semelhante, a terceira serie, como exposto nas Conferências de


Introdução à Psicanálise (1915/16), se refere à intensidade e a força patogênica das
vivências infantis versus a das vivências posteriores. Assim, quando as vivências da
infância são mais relevantes, se produz a inibição do desenvolvimento sexual; mas há
também casos em que a intensidade de conflitos posteriores é o fator determinante que
acaba, pela via da regressão, intensificando o valor patogênico de certas vivências
infantis. Portanto, haveria num extremo a inibição do desenvolvimento e, em outro, a
regressão. Entre ambos, varias possibilidades de conjugação desses dois fatores.

Finalmente, encontramos a quarta série. Seus dois componentes são a realidade e


a fantasia das vivências infantis. As vivências que tipicamente aparecem nas primeiras
fases do desenvolvimento sexual dos neuróticos são: o fato de ter visto os progenitores
praticando sexo, ser seduzido por algum adulto e a ameaça de castração, seja esta real ou
uma elaboração simbólica, nascida da interdição de manipular os próprios genitais e da
percepção da aparência dos genitais femininos.

Estas fantasias primordiais têm origem, provavelmente, no desenvolvimento


filogenético da espécie. Sua fonte seriam as pulsões e seu conteúdo seria proveniente em
parte das experiências infantis e em parte do patrimônio filogenético herdado. Quando no
entendimento da criança das suas vivências há certas lacunas, estas são preenchidas
recorrendo a memórias adquiridas, pela via da filogênese, dos nossos antepassados. A
fantasia é uma atividade psíquica que permite a sobrevivência de fontes de prazer
resignadas, liberando-as do princípio da realidade e do exame de realidade, ou seja, a
determinação de se são ou não reais. Uma forma comum de fantasia é o sonho diurno,
que pode ser consciente ou inconsciente e que é a fonte tanto dos sonhos noturnos quanto
dos sintomas neuróticos. Na discussão que Freud leva a cabo em História de uma Neurose
Infantil (1918) sobre se a cena primordial (ver os pais praticando o ato sexual) é uma
vivência real ou uma fantasia filogenética, perante a impossibilidade de decidir por uma
ou por outra, acaba recomendando que, neste tipo de casos, não se recorra à explicações
de tipo filogenético até ter esgotado as possíveis explicações ontogenéticas. O autor
austríaco destaca a possibilidade de que condições semelhantes façam adquirir ao
indivíduo as mesmas representações que já lhe pertencem como herança própria da
espécie. Em Recordar, Repetir e Reelaborar (1914), o autor austríaco aponta ainda que
em muitos casos resulta impossível lembrar vivências chave da infância, as quais, embora
não foram compreendidas no seu momento, são compreendidas retroativamente e que
conhecemos através dos sonhos. Assim, no caso do paciente russo, podemos pensar que
sua vivência da cena primordial lhe foi revelada por meio do famoso sonho dos lobos.

A segunda perspectiva sobre a etiologia das neuroses da que Freud trata nas
Conferências de Introdução à Psicanálise (1915/16) é o ponto de vista econômico, ou
quantitativo. A esse respeito, afirma que a quantidade, a magnitude das energias que
entram em jogo, tem que ser tida em conta em todo lugar. Um conflito psíquico não
irrompe sem chegar a acumular certa intensidade energética. A importância patogênica
dos fatores constitucionais depende de quão grande é o desequilíbrio entre a magnitude
de uma pulsão respeito de uma oposta. De fato, todo homem tem os mesmos tipos de
disposições no qualitativo; as diferenças estão nas proporções quantitativas. Da mesma
forma, para avaliar a resistência à contração das neuroses, é importante levar em conta a
quantidade de libido que a pessoa pode conservar sem aplicar e quanta fração desta pode
sublimar. O objetivo do aparelho anímico de evitar o desprazer pode-se descrever em
termos quantitativos como a tentativa de dominar os volumes de estímulo que operam no
seu interior, impedindo que cheguem a produzir desprazer.

Considerações finais

Nas Conferências de Introdução à Psicanálise (1915-17), Freud postula que na


gênese de toda neurose haveria uma combinação de três fatores dinâmicos: um fator
constitucional, a fixação libidinal; um fator exógeno, a frustração e um mecanismo de
funcionamento psíquico, a inclinação ao conflito. Neste momento da teorização
freudiana, não encontramos uma atribuição de importância maior ou menor para cada um
destes fatores.

No relato que o autor realiza do caso clínico de seu paciente russo, Sergei
Pankejeff, em História de uma Neurose Infantil (1918), Freud ressalta a aparente
predisposição de Sergei à neurose, determinada tanto ao nível hereditário/familiar quanto
ao nível das vivências traumáticas da sua infância, entre as que podemos citar a impressão
que lhe causou a cena primordial, o episodio de sedução protagonizado pela sua irmã e a
reprovação que sua babá fez das suas práticas masturbatórias junto à intelecção da
possibilidade de castração. Assim, Freud parece focar sua atenção no fator constitucional.
Neste sentido, o analista austríaco discute o papel da filogenia e da experiência
ontogenética, assim como das vivências realmente vivenciadas e das fantasias; no
entanto, não chega a atribuir um peso específico no esquema etiológico das neuroses a
nenhum desses pólos que configuram duas das series complementares que ele descreve
nas Conferências.

Em Análise terminável e interminável (1937), Freud, embora lembrando que nas


neuroses existe uma ação combinada do fator constitucional e do acidental, parece
inclinar-se a atribuir maior peso aos do primeiro tipo, como a constituição pulsional e a
debilidade do eu. Do ponto de vista freudiano, as neuroses com etiologia traumática
apresentam um prognóstico mais favorável. O autor austríaco considera que somente
nesses casos, em que mediante o fortalecimento do eu se consegue tramitar corretamente
o que não o foi em períodos anteriores, se pode falar de uma análise definitivamente
acabada. Os fatores desfavoráveis para a análise, e que podem atrapalhar seu
desenvolvimento, tornando-a interminável, seriam a intensidade constitucional das
pulsões e a alteração prejudicial do eu adquirida nos processos de defesa.

No caso do homem dos lobos, além da citada predisposição, encontramos uma


poderosa repressão de seus desejos de tipo homossexual. A esse respeito, Freud comenta
em Análise terminável e interminável (1937) que as repressões acontecem na primeira
infância (o que as qualificaria como fator constitucional) e seriam defesas do eu imaturo
e débil. Posteriormente, não acontecem novas repressões, mas se mantêm as antigas e o
eu as usa para refrear as pulsões. Estas repressões infantis efetivamente dependem da
relação de forças entre as pulsões e o eu, e não resistem a um aumento da intensidade
pulsional. Encontramos também, no caso de Sergei Pankejeff, uma regressão à fase
sádico-anal e ao objeto primário da libido, o que foi provavelmente facilitado pela
existência de uma fixação libidinal nestes pontos. Freud identifica ainda outro mecanismo
que atua como resistência à cura e à “normalidade” psíquica. Este mecanismo seria o
sentimento de culpa (consistiria em agressividade do sujeito voltada para si mesmo), que
está vinculado à pulsão de morte e, portanto, teria fundamento também na constituição
pulsional do sujeito.

Podemos concluir, então, que efetivamente Freud acaba destacando a importância


dos fatores constitucionais na gênese das neuroses.

Referências

Freud, S. (1914). Recordar, Repetir y Reelaborar. Em: Sigmund Freud Obras


Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. 12, p.145-158, 1998.

Freud, S. (1915). Pulsiones y destinos de pulsión. Em: Sigmund Freud Obras


Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. 14, p.105-134, 1998.

Freud, S. (1915-17). Conferencias de introducción al psicoanálisis. Em: Sigmund


Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. 15 e 16, 1998.

Freud, S. (1918). De la historia de una neurosis infantil. Em: Sigmund Freud


Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. 17, p.1-112, 1998.
Freud, S. (1926) Inibición, Sintoma e Angústia. Em: Sigmund Freud Obras
Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol.20, p. 71-160, 1998.

Freud, S. (1931-32). Nuevas Conferencias de introducción al psicoanálisis. Em:


Sigmund Freud Obras Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol. 21 e 22,
1998.

Freud, S. (1937). Análisis terminable e interminable. Em: Sigmund Freud Obras


Completas. Buenos Aires: Amorrortu Editores, vol.23, p.211-254, 1998.

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