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GUIÃO DE EDUCAÇÃO conhecimento, Género e cidadania no Ensino Secundário

2.4.

Introduzir questões de género


no currículo: um ato de política
das e dos docentes?

O
trazer para dentro da sala de Segundo José Augusto Pacheco
aula assuntos e temas vistos “Pelo espaço que ocupa na sociedade,
muitas vezes como políticos
com a predominância da formação
pode desencadear junto de quem
como aprendizagem ao longo da vida,
aprende, das famílias e da própria instituição
escolar, no seu todo, uma certa sensação de o currículo é uma destacada arena
estranheza ou mesmo de suspeição sobre da política cultural que se converte,
as reais intenções de quem ensina. Mas, a de forma explícita e/ou implícita, num
política pode e deve ser entendida como capital simbólico institucionalizado e
o envolvimento das pessoas na vida da num campo com interesses e inves-
polis, da comunidade, traduzindo a própria
timentos proporcionais aos espaços
dinâmica das sociedades, a forma como estão
constituídos por posições sociais
organizadas e o papel de cada um e de cada
uma na administração da vida comum. Além face ao conhecimento.” (2002:119)
disso, como nos relembra Guacira Lopes
Partindo deste pressuposto, importa
Louro (2000), numa alusão a um princípio
fazer as seguintes questões:
básico dos movimentos feministas, “o pessoal
é político” (p. 43), sendo indispensável trazer • Para além dos conteúdos programáticos, que
esses – outros – assuntos para a escola, ‘outros assuntos’ poderão levar-se para a
para que alunos e alunas possam aprender sala de aula? Que temas específicos correrão
a problematizá-los e ousem cooperar para o risco de ser vistos como ‘políticos’?
transformar arranjos perversos e desiguais, • Que temas/materiais serão apropriados?
parafraseando a referida autora (ibidem), em • Como incorporá-los nos temas ‘oficiais’?
alicerces sólidos do bem comum.
• Como articulá-los com o manual adotado?

É indispensável, por isso, promover a • Que tipo de aula, que práticas e rotinas da sala de
consciência crítica, que é o garante do pleno aula promoverão ou facilitarão a introdução de ‘outros
exercício da cidadania, e essa também é assuntos’, de temas e práticas diferentes, como,
por exemplo, o género, a equidade, a justiça?
uma função da escola e das e dos docentes,
dada a sua posição privilegiada – pelo lugar • Serão precisos, realmente, ‘outros
simbólico que ocupam na sociedade – de assuntos’ ou bastará olhar para os ‘velhos
luta a favor da transformação de todas as temas’ com um olhar ‘novo’?
condições de opressão e de dominação. • Não será o próprio currículo também político?

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ENQUADRAMENTO TEÓRICO l Género e Currículo

princípios fundamentais a ter


presentes pelos docentes
“ A perspetiva liberal ou humanista enfatiza um currículo multicultu-
ralista baseado nas ideias de tolerância, respeito e convivência harmo-
para ajudar os/as estudantes
a desenvolver atitudes
niosa entre as culturas... Apesar do seu impulso aparentemente gene-
roso, a ideia de tolerância, por exemplo, implica também uma certa construtivas partindo da
superioridade por parte de quem mostra ‘tolerância’. Por outro lado, a sua liberdade de escolha
noção de ‘respeito’ implica um certo essencialismo cultural, pelo qual individual, mas tendo
as diferenças culturais são vistas como fixas, como já definitivamente sempre em atenção o bem
estabelecidas, restando apenas ‘respeitá-las’. Do ponto de vista mais comum, de entre os quais
crítico, as diferenças estão sendo constantemente produzidas e repro- se destacam os seguintes:
duzidas através de relações de poder. As diferenças não devem ser
simplesmente respeitadas ou toleradas. Na medida em que elas estão • a necessidade
sendo constantemente feitas e refeitas, o que se deve focalizar são de reconhecer a
precisamente as relações de poder que presidem à sua produção. Um
currículo inspirado nessa concepção não se limitaria, pois, a ensinar ligação estreita entre
a tolerância e o respeito, por mais desejável que isso possa parecer, ética e educação,
mas insistiria, em vez disso, numa análise dos processos pelos quais as assumindo-se que
diferenças são produzidas através de relações de assimetria e desigual-
dade. Num currículo multiculturalista crítico, a diferença, mais do que educar não tem só a
tolerada ou respeitada, é colocada permanentemente em questão. ” ver com conhecimento
Tomaz Tadeu da Silva, 2000: 91. e verdade mas também
com noções de bem
e de mal e com a
As preocupações atrás a mudança da escola e da urgência de lutar contra
expressas são frequentemente sociedade, de modo a que o
as desigualdades e as
conotadas com o movimento benefício seja mútuo.
da pedagogia crítica, que Henry Giroux (1991), um dos injustiças, dentro e fora
tem na sua base a intenção pensadores da pedagogia da sala de aula;
principal de contribuir para crítica, estabelece nove
• a necessidade de
entender a ‘diferença’,
seja ela a dos modos
“ O currículo pode, assim, configurar um espaço de disputas de signi-
ficação da pessoa e da sociedade, fértil na construção de identidades e como se constituem e
perentório no cultivo das relações de poder estabelecidas, mas, simul-
se mantêm as entidades
taneamente, tem a capacidade de se reconfigurar e organizar em torno
de uma dinâmica de questionamento, de contestação e mesmo de ‘professor/a’ e ‘aluno/a’,
transgressão. Podemos, então, entender o currículo como um processo seja a que se manifesta
social, político e relacional; como algo socialmente construído e em
por via da classe social,
permanente processo de des-reconstrução, aceite e contestado nas
fases que vulgarmente designamos de construção e de implementa- da ‘raça/etnia’, do
ção. É um processo que parece desenvolver-se por uma permanente sexo, da orientação
aferição, por vezes problemática, de oportunidades e constrangimen-
tos no que se refere à capacidade de promover interpretações e adap-
sexual, do país de
tações, de (re)adaptar a forma e conteúdo do currículo a interesses origem, da capacidade
específicos, às particularidades da escola e do contexto da aula e às física e/ou mental e
necessidades de aprendizagem de cada educando/a. ” outras, e que será
Paula Silva e Luisa Saavedra, 2012: 52.
reconhecida, validada

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(ou não) e, possível e


desejavelmente, tornada A abordagem crítica está relacionada, sobretudo,
com a tomada de consciência de que os factores
menos opaca ou
políticos influenciam as perspetivas dos/as
reduzida;
educadores/as, das/os alunas/os e das instituições,
• a necessidade de criando forças hegemónicas, consideradas,
dessacralizar o currículo, muitas vezes, opressivas e constrangedoras.
de desafiar noções Na educação (…) o objectivo de despertar o espírito
e a consciência crítica dessas forças é visto como
petrificadas do que
fundamental. Trata-se, pois, de uma abordagem, que
é educativo e digno
está associada à tradição emancipatória (…).
de entrar na sala de
Adaptado de Albertina L. Oliveira, 2005: 89.
aula, de confrontar os
mitos da ‘neutralidade’,
um conjunto de conceções erradas, na linha do que afirmou
‘responsabilidade erróneas, politicamente Eric Hawkins (1981, p. 30), tanto
individual’ e ‘tempo motivadas, relativamente a na escola como na vida.
igual para todos/as’ determinadas visões mais
e de problematizar a tradicionais de pedagogia e Como se disse atrás, este Guião
de professor/a empenhado/a. não pretende fazer sugestões de
universalidade dos
Assim, ter-se-á de esclarecer novos conteúdos curriculares,
‘factos’, do ‘saber’ e que, quer nos apercebamos sobrecarregando os programas
dos ‘valores’; disso, quer não, como nos oficiais das diferentes disciplinas,
• a necessidade de ir disse o referido autor, “toda mas sim promover uma
a educação é [um ato de] lógica de análise impregnada
para além da crítica e da
política e [todas] as escolas pelo género, das temáticas
denúncia e incluir visões são locais de política cultural” consagradas no currículo,
de um outro mundo, (1994, p. 301), e que não será sendo esta também uma atitude
um mundo melhor legítimo invocar o estatuto de política de quem ensina.
porque vale a pena neutralidade para as formas de
educação mais tradicionais ou A promoção de um currículo
lutar, num processo
conservadoras e, ao mesmo atento às questões de género
que poderá ser rotulado tempo, olhar com estranheza – e às desigualdades sociais
como utópico, mas quem se propõe tornar as entre mulheres e homens –
que é indispensável. suas alunas e os seus alunos deve passar não só por uma
‘um bocadinho mais sábios’, análise das escolhas políticas e
Numa reflexão crítica sobre entendendo-se, aqui, a institucionais de quem decide,
o papel das e dos docentes, sabedoria como a capacidade quer em termos dos conteúdos
no desempenho das suas de fazer as opções certas já considerados prioritários,
funções profissionais, Alastair que se aprende, habitualmente, quer ao nível dos manuais
Pennycook (1994) sugere tendo de viver com as pedagógicos e outros recursos
que nos debrucemos sobre consequências das opções didáticos adotados21 (ver texto

21 Ver a este propósito o estudo de Teresa Alvarez Nunes (2007), publicado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Géne-
ro, com o título Género e Cidadania nas Imagens de História, no âmbito do qual a autora fez uma análise de manuais escolares
e de software educativo de História, do 12º ano, cobrindo a época contemporânea.

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em caixa), mas também por uma visão da escola aos diferentes países membros (ver texto em
como um corpo dinâmico, com responsabilidades caixa), tendo como objetivo usar a educação
educativas e sociais, de combate a todas as formal e todas as restantes dinâmicas que
formas de subordinação que atentem à liberdade ocorrem na escola, como meios de prevenção
de rapazes e de raparigas, ao longo da sua vida. das diversas formas de discriminação que
E esta atenção estende-se, como não poderia possam colocar mulheres e homens em
deixar de ser, à formação inicial e contínua de patamares desiguais de mobilidade social.
profissionais de educação de todos os níveis
de ensino, de forma a integrar a temática da A Recomendação Rec (2007)
igualdade entre homens e mulheres como 13 do Comité de ministros aos
elemento estruturante das orientações educativas
Estados-membros do Conselho
e do funcionamento e organização da escola.
da Europa, sobre a integração da
Esta reflexão pode assentar nos mesmos dois perspetiva da igualdade de género
eixos de leitura que Teresa Alvarez Nunes (2009) na educação, adotada a 10 de
propôs para a análise dos Manuais Escolares. outubro de 2007, deixa indicações
Na esteira da proposta desta autora, abordar o claras quanto aos programas
currículo na ótica do género poderá alicerçar-se de ensino, currículos escolares,
em dois aspetos:
matérias ensinadas e exames:
1) a visibilidade dada a homens e a mulheres em
diferentes áreas; 24. conceber especial atenção à
2) as conceções sobre o feminino e o masculino
dimensão de género no conteúdo
(que podem transmitir, ou não, associações dos programas de ensino e no
estereotipadas entre traços/competências/ desenvolvimento dos currículos em
valores/interesses e pessoas de cada um dos geral (especialmente nas matérias
sexos). científicas e tecnológicas), e rever os
programas sempre que necessário;
Estas preocupações não são recentes e
as diversas instâncias internacionais22 têm 25. analisar o lugar dado às mulheres
estabelecido medidas e feito recomendações nos programas de ensino e nas

“ 67. b) Apoiar a implementação de planos e programas de acção que garantam a qualidade


da educação (…) e a eliminação da discriminação de género e dos estereótipos de género nos
currículos e materiais escolares, bem como do processo educativo; (…)
67. d) Desenvolver um currículo sensível às questões de género a partir do ensino pré-primário,
escolas básicas, formação profissional e universidades, tendo em vista a consideração dos
estereótipos de género como uma das causas de fundo da segregação na vida profissional. ”
Iniciativas e Ações futuras para a Implementação da Declaração e da Plataforma de
Acção de Pequim – 2000 (cf. Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, 2013).

22 Consultar para o efeito o documento com o título Estratégias internacionais para a Igualdade de Género – A Plataforma de Ação
de Pequim (1995-2005), publicado pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.

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diferentes disciplinas, e chamar Na publicação já atrás referida, de 2014, do


a atenção para a experiência e o Conselho da Europa, também é novamente
reiterada a importância de se reverem os curricula
contributo das mulheres para as
do ensino formal de cada país membro, de
matérias ensinadas; modo a que eles sejam considerados inclusivos
26. ter em conta, no planeamento no que diz respeito às diferentes experiências
e à diversidade de conhecimentos de todos os
dos programas de ensino, os
cidadãos e cidadãs, dentro de cada sociedade e
interesses e as preferências das entre as sociedades do mundo (p. 21).
raparigas e dos rapazes face aos
seus modos de aprendizagem e de Torna-se, pois premente permitir que o currículo
ensino, a fim de promover o seu escolar possa, segundo as palavras de Teresa
sucesso escolar e ampliar a gama de Joaquim (2008), “abrir no género o heterogéneo”
(p. 9), que leve alunos e alunas, e também
opções educativas e profissionais;
docentes, à “desconstrução do pensamento,
27. tornar a educação para a vida no sentido do que é próprio do trabalho de
privada parte dos programas pensar – abrir novas possibilidades, outras
(diferentes, mas não desiguais) formas de pensar,
escolares, sempre que necessário,
[de] trabalho de crítica e de auto-crítica” (idem,
a fim de estimular a autonomia ibidem).
dos rapazes e das raparigas
neste domínio, torná-los/as mais Como adverte Francisco Sousa (2010),
responsáveis nas suas relações “o projecto de construção de aprendizagens
significativas falha quando não se consegue
e comportamentos emocionais e
compatibilizar o conhecimento representado pelo
sexuais, combater os estereótipos currículo formal com o conhecimento pessoal
sexistas sobre os papéis resultante da experiência do[s/as] aluno[s/as]”
desempenhados por cada sexo e (p. 50), pois, aquele é construído em função
preparar os e as jovens para uma de um/a aprendiz abstrato e apela ao domínio
nova parceria entre mulheres e de certos códigos, referências culturais e
tipos de inteligência que podem afastar os/as
homens na vida privada, tal como na
discentes reais desse modelo standard, seja por
vida pública. aspetos ligados à cor da pele, à origem social
(Recomendação Rec (2007) 13 do Comité ou à pertença sexual, entre outros referentes
de ministros do Conselho da Europa). identitários23.

23 Ver a este respeito a obra de Francisco Sousa (2010), como o título Diferenciação curricular e deliberação docente, publicada
pela Porto Editora, e inserida na Coleção Currículo, Políticas e Práticas (nº 34).

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2.5.

Conclusão

F
alar do currículo do ensino secundário cada disciplina em si, mas também do significado
na perspetiva da sua necessária que esta etapa da escolaridade tem para a vida
sensibilidade para as implicações de alunos e de alunas, confrontados/as com
que a ordem social de género tem a necessidade de uma tomada de decisão
trazido à vida de mulheres e homens, ao longo – prosseguimento de estudos ou passagem
dos tempos e em diferentes áreas e sociedades, para o mundo do trabalho – que nem sempre
não é uma tarefa simples. E a dificuldade de tal estão preparados/as para fazer numa fase
desafio deriva não apenas da complexidade de tão precoce das suas vidas (ver caixa).

“ De facto, no caso dos/as adolescentes que prosseguem os estudos e que, por isso, são obri-
gados institucionalmente a escolher uma opção vocacional à entrada do secundário, as deci-
sões tomadas podem confrontar-se com dúvidas, incertezas e questionamentos. A temporali-
dade biográfica, mais densa e potencialmente complexa, assente num processo subjetivo de
exploração visando a busca (normativamente obrigatória) da plena realização de si pode colidir
com a temporalidade institucional imposta no momento preciso da escolha. Adicionalmente
há que contabilizar a volatilidade dos contextos sociais, económicos e políticos que, mesmo
marginalmente, não deixam de interferir na avaliação pelos sujeitos daquilo que é uma esco-
lha boa e/ou uma escolha certa, uma vez que não estão ausentes, como verificámos, preocupa-
ções com os aspetos mais instrumentais da escolha. A partir do reconhecimento das potenciais
tensões associadas às duas temporalidades, explorámos então um modelo de percurso escolar
no secundário que permite dar conta das formas de acomodação, mas também de eventuais
“disritmias” de tempos e modalidades (institucionais e subjetivas) de sucesso, plasmadas em
quatro itinerários-tipo, entendidos numa perspetiva dinâmica — as “carreiras focadas”, as “carrei-
ras atrasadas”, os “itinerários exploratórios” e os “itinerários erráticos”. (…).
Para lá dos percursos, fomos ainda perscrutar os sentidos que os/as protagonistas lhes confe-
rem — para entender, assim, a avaliação subjetiva dos mesmos. À afirmação da livre escolha
dos seus (per)cursos, que celebra os valores da autonomia individual e da realização de si a que
estes/as alunos/as tão fortemente aderem, pelo menos narrativamente, contrapõem-se refe-
rências a alguns constrangimentos institucionais presentes (opções e cursos não disponíveis na
escola frequentada) ou futuros (antecipação das diferentes oportunidades profissionais que cada
opção oferece) que afetam a plena realização de sonhos e justificam, pelo menos em parte, o
sentido dos percursos trilhados. Mais do que uma narrativa unívoca, é de uma composição de
referências normativas (mais expressivas, umas, mais instrumentais, outras) que as escolhas e os
percursos escolares tendem a ser fabricados. ”
Adaptado de Maria Manuel Vieira, Lia Pappámikail, Cátia Nunes, 2012: 66-67.

por: Cristina C. Vieira (coord.), Maria Helena Loureiro e Lina Coelho 087

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