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Legado de 1968: como uma

revolução de esquerda ajudou


os capitalistas a vencer
Embora um imenso abismo separe a revolução
social da década de 1960 dos protestos atuais,
testemunhamos uma reapropriação semelhante da
energia da revolta pelo sistema capitalista
Por Slavoj Zizek

20/02/2018 08:39

Os protestos de maio de 1968 transformaram o mundo


ocidental. Hoje, quase 50 anos depois, está claro que o
movimento supostamente de esquerda acabou ajudando o
capitalismo a triunfar.

Embora um imenso abismo separe a revolução social da década


de 1960 dos protestos atuais, testemunhamos uma reapropriação
semelhante da energia da revolta pelo sistema capitalista.
Um dos slogans mais conhecidos pichados nos muros de Paris
em 1968 era: "as estruturas não caminham pelas ruas", ou seja,
não era possível explicar as grandes manifestações de
estudantes e trabalhadores de 68 nos termos do estruturalismo.
E é por isso que alguns historiadores até postulam 1968 como a
data que separa o estruturalismo do pós-estruturalismo, que
seria, segundo muitos, muito mais dinâmico e propenso a
intervenções políticas ativas.

A resposta do psicanalista francês Jacques Lacan foi que era


exatamente isso o que havia acontecido em 1968: as estruturas
desceram sim para as ruas – os eventos explosivos visíveis
eram, em última análise, o resultado de uma mudança estrutural
na textura social e simbólica básica da Europa moderna.

Light My Fire

As consequências da explosão de 68 mostram que ele estava


certo. O que efetivamente decorreu de 68 foi o surgimento de
uma nova cara do "espírito do capitalismo". De fato, o sistema
abandonou a estrutura fordista centralizada do processo de
produção e desenvolveu uma forma de organização em rede
fundada na iniciativa do empregado e na autonomia no local de
trabalho.

Assim, em vez de cadeias de comando hierárquicas e


centralizadas, hoje temos redes com uma infinidade de
participantes, organizando o trabalho sob a forma de equipes ou
projetos. Que estão atentos à satisfação do cliente e a uma
mobilização geral dos trabalhadores graças à visão de seus
líderes. Este novo "espírito de capitalismo" recuperou de forma
triunfal a retórica igualitária e anti-hierárquica de 1968,
apresentando-se como uma bem-sucedida revolta libertária
contra as organizações sociais opressivas do capitalismo
corporativo E o socialismo "realmente existente".

As duas fases deste novo "capitalismo cultural" podem ser


claramente discernidas através de mudanças estilísticas na
publicidade. Nas décadas de 1980 e 1990, predominava a
referência direta à autenticidade pessoal ou à qualidade da
experiência que, aos poucos, deram lugar à mobilização de
temas socioideológicos (como a ecologia e a solidariedade
social). Na realidade, a experiência em questão hoje é a
experiência de fazer parte de um movimento coletivo maior, de
cuidar da natureza e do bem-estar dos doentes, pobres e
necessitados, e fazer algo por eles.

Uma ajudinha?

Eis um caso deste "capitalismo ético" levado ao extremo: a


TOMS Shoes, empresa fundada em 2006 com a seguinte
premissa: a com cada par de sapatos comprado, a TOMS dá um
par de sapatos novos a uma criança em situação precária – “One
for One”: usar o poder de compra dos indivíduos para um bem
maior.

Porque entre os 7,6 bilhões de pessoas no planeta, quatro


bilhões vivem em condições inconcebíveis para aqueles que
estão no topo da pirâmide. Mas agora o pecado do consumismo
(comprar um novo par de sapatos) pode ser expiado e, assim,
apagado pela consciência de que uma pessoa que realmente
precisa de sapatos recebeu outro par sem pagar nada. O que
significa que o próprio ato consumista é apresentado como parte
da luta contra os males causados, essencialmente,
%u20B%u20Bpelo consumismo capitalista.

De forma semelhante, muitos outros aspectos de 68 foram


integrados com sucesso na ideologia capitalista hegemônica e
são hoje mobilizados não apenas pelos liberais, mas também
pela direita contemporânea, em sua luta contra qualquer forma
de "socialismo". Por exemplo, a "liberdade de escolha" é usada
na defesa dos benefícios do trabalho precário. Então, esqueça a
ansiedade por não ter certeza de como você vai sobreviver nos
próximos anos e se concentre no fato de ter conquistado a
liberdade de "se reinventar" muitas vezes, de evitar a prisão de
um mesmo trabalho monótono.

Reviravolta total

Os protestos de 1968 centraram sua luta contra (o que era


percebido como) os três pilares do capitalismo: a fábrica, a
escola e a família. Como resultado, cada um destes domínios foi
submetido à transformação pós-industrial. O trabalho de fábrica
torna-se cada vez mais terceirizado ou, no mundo desenvolvido,
reorganizado na forma de trabalho de equipe interativo não-
hierárquico pós-fordista. Enquanto isso, uma educação
privatizada flexível e permanente substitui crescentemente a
educação pública universal, e múltiplas formas de arranjos
sexuais flexíveis substituem a família tradicional.

Ao mesmo tempo, apesar de sua vitória, a esquerda perdeu: o


inimigo direto foi derrotado, mas substituído por uma nova, e
ainda mais direta, forma de dominação capitalista. No
capitalismo "pós-moderno", o mercado invade novas esferas,
até agora consideradas domínio privilegiado do estado, da
educação às prisões e à segurança.

Quando o "trabalho imaterial" (como a educação) é celebrado


como o trabalho que produz as relações sociais de forma direta,
não se deve esquecer o que isso significa numa economia de
commodities. Significa que novos domínios, até então excluídos
do mercado, passam a ser comoditizados. Então, quando
estamos com dificuldades, já não conversamos com um amigo,
mas pagamos um psiquiatra ou um conselheiro para cuidar do
problema. E, em vez dos pais, babás e educadores remunerados
vão cuidar das crianças.

Fardo pesado

Ninguém deve, é claro, esquecer as conquistas reais de 68. O


movimento inaugurou uma mudança radical na forma como
lidamos com os direitos das mulheres, a homossexualidade e o
racismo. Após os gloriosos anos 60, simplesmente não se pode
praticar atos ou proferir discursos racistas e homofóbicos como
ainda se podia na década de 1950. Desse modo, 68 não foi um
evento único, mas sim ambíguo, que combinou diferentes
tendências políticas: por isso, também foi uma pedra no sapato
de muitos conservadores.

Nicholas Sarkozy deixou isso claro quando disse, em sua


campanha eleitoral, em 2007, que sua grande tarefa era fazer
com que a França finalmente superasse 68. Não se pode deixar
de notar a ironia da observação: o fato de Sarkozy, com suas
explosões caricatas e seu casamento com Carla Bruni, poder ter
sido o presidente da França é, também, resultado das mudanças
nos costumes trazidas por maio de 68.

Temos, portanto, um legado do Maio de 68 "deles" e um


"nosso". Na memória coletiva predominante hoje, "nossa" ideia
básica das manifestações de maio em Paris, e o vínculo entre os
protestos estudantis e as greves operárias, está esquecida. O
verdadeiro legado de 68 reside na sua rejeição do sistema
capitalista liberal, em um NÃO absoluto a ele, melhor traduzido
na fórmula: Soyons réalistes, demandons l'impossible! (Sejamos
realistas, exijamos o impossível!).

A verdadeira utopia é a crença que o sistema global existente


pode se reproduzir indefinidamente, e que a única maneira de
ser realmente "realista" é endossar aquilo que, dentro das
coordenadas deste sistema, parece impossível. A fidelidade a
maio de 68 é, portanto, melhor expressada pela questão: como
podemos nos preparar para essa mudança radical e como
estabelecer as suas bases?

Slavoj Zizek é filósofo, pesquisador sênior do Instituto de


Sociologia e Filosofia da Universidade de Ljubljana, professor
na Universidade de Nova York e diretor internacional do
Birkbeck Institute for Humanities, da Universidade de Londres.

Tradução de Clarisse Meireles


https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Legado-de-1968-como-uma-revolucao-de-
esquerda-ajudou-os-capitalistas-a-vencer/4/39401#.WpF7lGBij00.email

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