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ÁFRICA

Estudos interrompidos, gravidez precoce e exposição ao HIV são
algumas das graves conseqüências das uniões forçadas

Pais fazem de suas filhas moeda de troca
SHARON LAFRANIERE
DO "NEW YORK TIMES", EM MALÁUI 

Os problemas de Mapendo Simbeye começaram no início do ano passado,
quando as colinas áridas da fronteira norte do Maláui, perto da Tanzânia,
rejeitaram suas tentativas de cultivar até mesmo a mandioca, a mais
resistente das plantas. Então, para poder dar comida a sua mulher e a seus
cinco filhos, contou o lavrador, ele procurou seu vizinho, Anderson Kalabo,
e pediu um empréstimo a ele. Kalabo lhe deu 2.000 quachas ­algo em torno
de US$ 16. A família pôde se alimentar.
Mas um outro problema estava criado: como Simbeye, um agricultor
miserável, poderia saldar a dívida com Kalabo?
A solução que ele encontrou é uma que deve chocar a maioria das pessoas
não familiarizadas com o país, mas que constitui um costume profundamente
entranhado nos patriarcados rurais da África subsaariana.
Simbeye enviou sua filha Mwaka, de 11 anos, uma garota tímida que
cursava a primeira série escolar, para a choupana de Kalabo, situada na
colina vizinha. Ali ela se tornou empregada da primeira esposa de Kalabo e,
ela contou, a nova parceira sexual dele.
Mwaka, que hoje tem 12 anos, disse que seus pais em nenhum momento lhe
disseram que ela seria a segunda esposa de um homem cerca de 30 anos
mais velho. "Eles disseram que eu teria de espantar os pássaros da plantação
de arroz", falou, olhando fixamente para o chão diante de sua casa feita de
tijolos de barro. "Eu não sabia nada sobre casamento."
A menina fugiu, e, depois de seis meses, seus pais a aceitaram de volta em
casa. Mas uma semana percorrendo o seco e montanhoso norte do Maláui
sugere que sua fuga constitui exceção. Em terras distantes e isoladas como
essa ­onde os meninos são mais valorizados do que as meninas, os homens
mais velhos dão valor a esposas jovens, os pais cobiçam dotes e as mães não
têm poder para intervir­, muitas meninas africanas como Mwaka são
obrigadas a passar diretamente da infância para o casamento diante de uma
simples palavra de seus pais, às vezes anos antes de chegarem à puberdade.
As conseqüências dessas uniões forçadas são estarrecedoras: adolescência e
estudos interrompidos precocemente, gravidez precoce e partos de alto risco,
mulheres adultas condenadas à subserviência e, nos últimos anos, exposição
ao HIV, o vírus causador da Aids.
Cada vez mais, educadores, autoridades sanitárias e até mesmo legisladores
vêm desencorajando ou mesmo proibindo esses casamentos.
Na Etiópia, por exemplo, onde estudos mostram que em um terço dos
Estados as meninas costumam se casar antes dos 15 anos, um Estado adotou
medidas em abril. As autoridades disseram ter anulado os casamentos de 56
meninas de entre 12 e 15 anos, por serem consideradas menores de idade, e
ter aberto processos legais contra os pais de metade delas por terem forçado
suas filhas a contrair esses casamentos.
Apesar disso, segundo o Unicef, o casamento de meninas continua a ser uma
instituição enraizada em bolsões rurais em toda a África subsaariana,
alimentada pela idéia secular de que as meninas ocupam o escalão mais
baixo da sociedade.
Estudos mostram que a idade média em que as meninas se casam nessa
região ainda é uma das menores do mundo, enquanto a porcentagem de mães
adolescentes está entre as mais altas do planeta.
Nas sociedades rurais, costumes como esse resistem à desaprovação do
mundo externo.
"Fala­se muito, mas o valor da criança do sexo feminino continua a ser
baixo", disse Seodi White, coordenadora no Maláui do Fundo de Pesquisas
sobre Mulheres e Direito no Sul da África.
"A sociedade ainda se apega à idéia da educação para os meninos e ainda vê
a menina como mercadoria de troca. No norte da África, meninas de apenas
10 anos são dadas como bem de troca para o ganho da família. Depois disso,
as mulheres passam a ser propriedade de seus maridos, sem ter poder
nenhum."
Em povoados espalhados por todo o norte do Maláui, meninas muitas vezes
são dadas em casamento ao chegarem à puberdade, ou mesmo antes, a
qualquer homem que seus pais escolherem, às vezes a maridos até 50 anos
mais velhos do que elas. Mais tarde, essas mesmas meninas muitas vezes
preferem a miséria ao divórcio, porque a tradição reza que, nas tribos
patriarcais, as filhas e os filhos pertencem ao pai.
Em entrevistas, pais e filhas da região explicaram sem nenhum
constrangimento a lógica por trás dessas uniões forçadas entre pessoas de
gerações diferentes.
Uness Nyambi, do povoado de Wiliro, disse que foi dada em casamento
quando ainda era criança, para que seus pais pudessem pagar pela noiva que
seu irmão queria. Hoje, aos 17 anos, ela tem dois filhos, o mais velho de
quase 5 anos, e um marido que acredita ter 70 anos. "Por causa desses dois
filhos, não posso deixá­lo."
Beatrice Kitamula, 19, foi forçada a casar­se com seu marido rico, que hoje
tem 63 anos, porque seu pai devia uma vaca a outro homem. "Fui
sacrificada", fala, contendo as lágrimas. Ela comparou a uma penitenciária o
conjunto confortável de casas de tijolo que seu marido possui no povoado de
Ngana. "Quem está na prisão não tem direitos", declara.

A miséria crescente, agravada pela
Aids e pela seca, coloca ainda mais
meninas em risco de casamento sob
coação

No minúsculo povoado de Sele, Lyson Morenga deu sua filha de 12 anos,
Rachel, em casamento a um conhecido de 50 anos para que ele próprio, que
era viúvo, pudesse se casar novamente.
O caso foi relatado por um parente, Stewart Simkonda, que contou que
Morenga lhe deu um touro preto que recebeu do marido de Rachel em troca
da sobrinha de Simkonda. Ele disse que Morenga prometeu lhe dar uma
segunda parte do dote após o casamento da irmã menor de Rachel.
Representantes do governo de Maláui dizem que estão se esforçando para
proteger meninas como Rachel. Um projeto de lei que foi submetido ao
Parlamento visa elevar a idade mínima para o casamento para 18 anos, a
norma mundial. Hoje, as meninas no Maláui podem se casar legalmente
entre os 15 e 18 anos, desde que tenham o consentimento dos pais.
Os defensores dos direitos das mulheres saúdam o projeto de lei, mesmo
sabendo que seu efeito seria limitado, já que neste país, como em boa parte
da região subsaariana, muitos casamentos se dão segundo os costumes
tradicionais, não sendo celebrados dentro do direito civil.
No ano passado o governo deu a 230 voluntários treinamento em métodos
para proteger crianças, especialmente meninas. Voluntários da Comissão de
Direitos Humanos do Maláui, da Igreja Católica e até unidades policiais de
proteção a vítimas também procuram intervir.
Na aldeia de Iponga, por exemplo, no ano passado, Mbohesha Mbisa
conseguiu evitar um casamento forçado com seu tio, aos 13 anos de idade,
recorrendo à delegacia de polícia local. Os policiais convenceram seu pai a
desistir do plano.
"Eu estava apavorada, mas queria me proteger", diz a menina, que hoje cursa
a sexta série.
Mesmo assim, dizem autoridades do Maláui, a miséria crescente nessa
região, agravada pela Aids e pela seca recente que vem devastando as
plantações, coloca ainda mais meninas em situação de risco de casamento
sob coação.
"A prática existe há muito tempo, mas vem se agravando em função do
desespero reinante", comentou Penston Kilembe, diretor dos serviços de
bem­estar social do Maláui. "Ela está presente especialmente em
comunidades fortemente atingidas pela fome. As famílias que não
conseguem mais se alimentar vendem seus filhos a famílias mais ricas."
"Os avanços conquistados no combate aos casamentos precoces vêm se
perdendo", declarou a secretária principal do Ministério do Gênero, Andrina
Mchiela.

Dote
Os defensores dos direitos das mulheres querem abolir o costume de dar um
dote, conhecido como "lobolo", dizendo que ele cria um incentivo financeiro
para os pais darem as filhas em casamento. Mesmo eles, porém, descrevem a
tradição como politicamente intocável.
Sob sua forma mais benigna, o "lobolo" é símbolo de apreciação dado pela
família do noivo à família da noiva. Sob sua forma mais disseminada,
porém, ele transforma meninas no equivalente humano a cabeças de gado.
Em boa parte do norte do Maláui, o "lobolo" costuma ser negociado em
encontros exclusivamente masculinos que envolvem a discussão de entrada,
prestações, pagamentos únicos e, ocasionalmente, estornos pagos por
mulheres que fogem de seus maridos.
Jimmy Mwanyongo tem 45 anos e é chefe da aldeia de Karonga. Ele
explicou o casamento de sua filha no mesmo tom em que descreveria
qualquer transação comercial. Sentado sobre uma esteira de palha em sua
casa de seis cômodos, explicou que, alguns anos atrás, prometeu cuidar das
duas vacas de seu vizinho.
Em vez disso, porém, vendeu as vacas para custear os estudos de seu filho
adotivo. Um ano depois, em 2002, o vizinho em questão, Ridein Simfukwe,
perdeu sua mulher. Mwanyongo contou que se sentiu na obrigação de
oferecer sua filha como substituta. "Pelo fato de eu ter vendido as duas
vacas, não tive outra escolha."
Edah tinha 17 anos, olhos grandes e expressivos e corpo sensual. Apesar de
já ter um filho ilegítimo, dizem seus vizinhos e parentes, ela poderia ter
escolhido o pretendente que quisesse. Simfukwe tinha 63 anos, nove filhos
adultos e muitos netos. "Edah concordou. Eu não amarrei uma corda em seu
pescoço, não a arrastei para cá", disse o vizinho.
Edah diz que seu pai fez tudo menos isso. "Meu pai não me deixava comer",
ela contou. "Ele me expulsou de casa. Dizia para mim: "Vá encontrar um
lugar para dormir!". Ele dizia: "Vá para seu marido, senão vou lhe matar de
tanto açoitar"."
Sua mãe, Tabu Harawa, tomou o partido da filha, mas foi em vão. "Eu disse
a meu marido: "É como se você a estivesse matando". Era uma vergonha."
Ela acrescentou: "Se isso acontecer outra vez, vou me divorciar dele".
Hoje Edah tem 20 anos e uma filha de 11 meses. Ela teme por seu futuro.
"Meu marido é velho", explicou, sentada na varanda de sua casinha de sapé.
"Ele pode morrer a qualquer hora. Provavelmente vai me deixar com mais
filhos. Para onde eu vou depois disso?"
Ela disse que sua vida é tão livre quanto a dos dois bois de estimação que
seu pai hoje atrela a sua carroça de madeira para arar a terra na primavera.
"Sou como uma escrava."
Mwaka Simbeye deve aos outros moradores de sua aldeia, Chikutu, o fato de
ter podido voltar à casa de seus pais, depois da temporada passada na
choupana de seu vizinho. De volta à escola, agora na segunda série, ela ainda
é suficientemente criança para divertir­se brincando de pega­pega. Seu corpo
ainda é o de uma criança.
Num sussurro quase inaudível, ela conta que, na casa de Kalabo, tinha que
fazer todo o serviço da casa. "Lavar a louça, limpar a casa, buscar água e
lenha, cozinhar quando a primeira esposa não estava ali."
Seu pai, Mapendo Simbeye, que devolveu os US$ 16 que recebera por
Mwaka, disse que aceitou a filha de volta em sua casa quando soube que
poderia ser preso pela polícia local. Numa clareira que faz as vezes de centro
social do povoado, ele confessa que subestimou Mwaka, dizendo: "Minha
filha vale mais do que 2.000 quachas".
A mãe de Mwaka, Tighezge Simkonda, parece uma versão mais velha da
filha e é tão tímida quanto esta. "Eu fui contra o casamento", ela comentou
em voz baixa, lançando um olhar amedrontado para seu marido, que batia
papo ao lado. "Falei: "minha filha é jovem demais". Mas o controle é dos
homens. As filhas pertencem ao homem."

Tradução de Clara Allain 

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