Você está na página 1de 8

Anais do V Congresso da ANPTECRE

“Religião, Direitos Humanos e Laicidade”


ISSN:2175-9685

Licenciado sob uma Licença


Creative Commons

SINCRETISMO RELIGIOSO LATINO-AMERICANO EM DO AMOR E


OUTROS DEMÔNIOS, DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

Lucila Jenille Moraes Vilar


Mestranda em Ciências da Religião
Universidade do Estado do Pará
lucilavilar@yahoo.com

ST 02 – RELIGIÃO COMO TEXTO: LINGUAGEM E PRODUÇÃO DE SENTIDO

Resumo: A presente comunicação busca analisar a relação entre Religião e Literatura a partir da obra
Do amor e outros demônios, do escritor colombiano Gabriel García Márquez, destacando as maneiras
que o romance narra o sincretismo religioso latino-americano. O livro relata a história de Sierva María de
Todos los Ángeles que, nas primeiras páginas da história, foi mordida por um cão raivoso. A jovem,
desde o seu nascimento, se fez forte aos contextos desfavoráveis e viveu a margem do carinho e
atenção dos pais: Dom Ygnacio de Alfaro y Dueñas e Bernarda Cabrera. Encontrou um núcleo familiar
de acolhimento junto a Dominga de Adviento e aos escravos da senzala de sua casa. Foi a governanta
que a amamentou, batizou-a em Cristo e a consagrou a Olokun, divindade ioruba de sexo incerto. A
presença e caracterização das culturas que povoam o mundo colonial latino americano é uma das
características do romance e demonstra como a literatura reaviva aspectos multiculturais do continente. A
pesquisa foi desenvolvida por meio de levantamento bibliográfico, construção de um banco de dados e
em um segundo momento foi feita uma cartografia analítica, onde foi construído mapa tecido a partir das
imagens produzidas pelos personagens narrados por García Márquez. A pesquisa tem como
fundamentação teórica autores que abordam o sincretismo religioso como uma prática que tem, entre
outras características, o ‘poder’ de reinterpretar, em especial Massimo Canevacci e sua obra Sincretismo:
uma exploração hibridações culturais. O romance problematiza a questão do sincretismo religioso
praticado pelos marginalizados e também demonstra que a religião oficial da cidade, no caso, o
cristianismo, reconhece a existência desse sincretismo e questiona seu papel enquanto Instituição.
Consideramos que a personagem principal, Sierva María, metaforiza elementos transversais à obra e a
outros personagens, pois a jovem marquesinha, ao encontrar-se imergida tanto no contexto de
religiosidade africana quando no contexto cristão-católico, torna-se um ser de fronteira que transita e
interfere nos dois lados e também é vista de maneira diferente nos dois contextos.

Palavras-chave: Sincretismo; Religião; Literatura; Romance; Gabriel García Márquez.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


1.Introdução

Durante sua trajetória literária, Gabriel García Márquez ficou conhecido como o
autor de Cem anos de solidão. Entretanto, a produção do colombiano não deve ser
resumida a esse romance. Esse livro representa um marco na vida do escritor e na
história latino-americana, lançado no ano de 1967, quando ainda era um desconhecido
escritor que pouco vendia livros, em poucos meses Cem anos de solidão virou sucesso
mundial e alcançou o posto de best-seller. García Márquez utilizou esse sucesso global
para ajudar a divulgar outros escritores do continente, sendo um dos protagonistas na
consolidação do movimento que se denominou de “boom da literatura latino-
americana”1.

A principal característica do boom foi mostrar para o mundo europeu uma forma
de ser, ver e entender diferente do estabelecido como padrão por eles próprios. Ou
seja, era a forma que a América Latina via sua realidade cultural, marcando de maneira
clara suas diferenças de realidade em relação à produção literária européia e norte-
americana que integravam o chamado “cânone ocidental”. Para Romero o mais
interessante nesse processo de criação literária é que García Márquez retrata de
maneira igualitária as situações tidas como “realistas” e as “maravilhosas”. Essa
capacidade de misturar elementos considerados “reais” com os “irreais” acompanhou o
colombiano durante sua vida e se fez presente em quase todas as suas obras.

Nessa mistura de elementos que vão desde a violência ao espírito carnavalesco


presentes no ethos latino-americano, García Márquez destaca em suas obras um
elemento importante ao ser-humano e a América Latina: a solidão. Há o relato e a
reescritura de diversas situações e maneiras onde os personagens (protagonistas ou
secundários) se vêem sozinhos. No seu discurso de agradecimento pelo Nobel de
Literatura García Márquez fez algumas considerações sobre o assunto:

1
ROMERO, Maria Rosilana Zoch. Erotismo, velhice e conhecimento em Amor em tempos do Cólera. Dissertação
em Letras. Universidade Santa Cruz do Sul. 2009, p 37.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


Eu me atrevo a pensar que é esta realidade descomunal, e não só a sua
expressão literária, que este ano mereceu a atenção da Academia Sueca de
Letras. Uma realidade que não é a do papel, mas que vive conosco e determina
cada instante de nossas incontáveis mortes cotidianas, e que sustenta um
manancial de criação insaciável, pleno de desdita e de beleza, e do qual este
colombiano errante e nostálgico não passa de uma cifra assinalada pela sorte.
Poetas e mendigos, músicos e profetas, guerreiros e malandros, todos nós,
criaturas daquela realidade desaforada, tivemos que pedir muito pouco à
imaginação, porque para nós o maior desafio foi a insuficiência dos recursos
convencionais para tornar nossa vida acreditável. Este é, amigos, o nó da
2
nossa solidão .

Em outras passagens do discurso o escritor fez críticas ao modo como a cultura


européia, de uma maneira geral, costuma medir o povo, a economia, a política latino-
americana com a mesma régua que se medem. Ignorando que o processo de formação
histórico-social não foi e não é igual entre a Europa e a América Latina, além disso, a
busca e construção de identidade própria são tão violentas e destruidoras para os
latino-americanos como foram e são para os europeus. García Márquez critica também
a constante vontade da cultura latino-americana em querer se encaixar nos padrões de
interpretação e conduta ditados pela Europa. Para o autor:

A interpretação da nossa realidade a partir de esquemas alheios só contribui


para tornar-nos cada vez mais desconhecidos, cada vez menos livres, cada vez
mais solitários. Talvez a Europa venerável fosse mais compreensiva se tratasse
de nos ver em seu próprio passado. Se recordasse que Londres precisou de
trezentos anos para construir sua primeira muralha e de outros duzentos para
ter um bispo, que Roma se debateu nas trevas da incerteza durante vinte
séculos até que um rei etrusco a implantasse na história3.

Essa necessidade de impor à América Latina padrões europeus de ser e estar


no mundo não é uma postura recente. Desde a carta de Colombo o novo continente
“descoberto” recebeu o tom de exaltação, predominava a noção de “país novo”, havia a
esperança de haver no futuro grandes progressos. França4 atribui à literatura latino-
americana papel efetivo na construção de consciências nacionais e, por conseqüência,
na formação das próprias nações. Pois, para a pesquisadora, a ideia de nação deve
estar pautada na articulação de imagens chaves, que através de metáforas ajudam a
construir um discurso identitário e de auto-imagem. Na América Latina esse discurso

2
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução de Eric Nepomuceno. 77ᵃ ed. Rio de Janeiro:
Record, 2011, pp 9-10.
3
GARCÍA MÁRQUEZ, Ibid, p 10.
4
FRANÇA, Fátima Yukari Akiyoshi. Macondo, Melquíades e o problema da transculturação. Dissertação em letras.
Universidade Federal de Uberlândia. 2013.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


identitário tem sérios problemas na formação de auto-imagens, pois essas não estão
voltadas para aspectos culturais internos, dependem do outro europeu ou norte-
americano, quer seja para imitá-lo, quer para rejeitá-lo.

Nas histórias de García Márquez estão representadas situações contadas por


seus avôs ou vividas por ele na Colômbia e García Calclini5 considera que os escritores
e artistas plásticos têm na experiência do estranhamento a oportunidade de olhar o país
de origem de outro modo. Por isso que boa parte das consideradas grandes obras
literárias latino-americanas foram escritas no exterior. Esses autores são peregrinos
pensando à distância o sentido do lugar de origem. Há que se entender que o ser
latino-americano não deve ser definido somente tendo como ponto de referência o que
acontece no território delimitado como América Latina. As possíveis respostas e
conclusões sobre os modos de ser também estão fora da região, basta olhar para os
emigrados. Outra questão levantada por García Calclini 6 foram as propostas que
surgiram, desde o século XIX, para definir o que é ser latino-americano, pensadas
como exercícios ontológicos e políticos. Buscava-se o ser nacional ou regional: a
brasilidade, a mexicanidade, a peruanidade e, como síntese, o “ser latino-americano”.
Por vezes, idealizando as raízes indígenas, em outros casos, potencializando a unidade
de “caráter” que teríamos herdado da modelação ibérica.

O romance Do amor e outros demônios teria surgido como inspiração para


García Márquez em 26 de outubro de 1949, quando o escritor era repórter de um jornal
colombiano e foi designado para registrar a remoção das criptas funerárias do convento
histórico de Santa Clara, que iria virar um hotel de cinco estrelas. García Márquez teria
ficado impressionado com o túmulo de uma jovem marquesa, cujo cabelo continuava a
crescer, mesmo depois de sua morte. Ao ver a cena lembrou-se de uma das histórias
contadas por sua avó, sobre uma marquesinha venerada no Caribe por seus milagres e
que morreu de raiva, após ser mordida por um cachorro. Pensou se a jovem da história
de sua avó seria a mesma que estava enterrada no convento de Santa Clara e
escreveu “A ideia de que aquele túmulo pudesse ser dela foi a minha notícia do dia, e a

5
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Latino-americanos à procura de um lugar neste século. São Paulo: Iluminuras,
2008, pp 29-33.
6
GARCÍA CANCLINI, Ibid, 41.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


origem deste livro”7. O romance tem, aparentemente, como eixo transversal o amor
entre Sierva María e o padre espanhol incumbido de exorcizar os demônios que
estariam possuindo o corpo da jovem. Contudo, para além de uma história de um amor
proibido, que já foi contada e recontada em tantos romances, Do amor e outros
demônios evidencia aspectos opressivos da sociedade colonial, demonstrando que
tanto colonizadores e colonizados vivenciam as incertezas da construção de uma
história multicultural e fragmentada. Vejamos alguns exemplos:

 A protagonista do romance é uma jovem de 12 anos que nasceu numa


família católica, mas foi batizada a Olokun, orixá iorubá;

 A pessoa que moldou o caráter, os padrões éticos e a percepção de


mundo de Sierva María não foi o seu pai e muito menos a sua mãe, foi
Dominga de Adviento, ex-escrava e governanta da casa em que a jovem
nasceu;

 O reconhecimento por parte do padre Cayetano Delaura e do médico


Abrenuncio de Sá Pereira Cão de que a mistura étnico-cultural presente
na América Latina não permite que os indivíduos que aqui nasceram ou
para cá se mudaram vejam com clareza de onde são ou o que são;

 Os cenários descritos no romance demonstram a decadência tangível do


processo de colonização representada pelo império espanhol e pelo
cristianismo: o Convento de Santa Clara é fantasmagórico, a Igreja da
cidade está se desfazendo a olho nu, o manicômio de mulheres e a casa-
grande onde Sierva María nasceu estão em decadência, as ruas da
cidade são sujas e fétidas, havia o descaso com os negros escravos que
eram trazidos para a cidade como animais e quando morriam antes de
chegar eram jogados ao mar (mas acabavam boiando e amanheciam nas
praias desfigurados, inchados e com uma coloração roxo-avermelhada),
os leprosos jogados ao chão de tijolos do hospital Amor de Deus e
amarrados a postes pessoas contaminadas pelo vírus da raiva;

7
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Do amor e outros demônios. Rio de Janeiro. 21 ed. Record, 2012, p 12.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


 Reconhecimento por parte do bispo da cidade, Dom Toribio de Cáceres y
Virtudes, que o processo de colonização gerou efeitos colaterais não
apenas nos colonizados e que, por isso, a Igreja Católica observa que seu
projeto de conquista de novos adeptos não foi tão bem sucedido como
gostaria e que o sangue derramado e a mistura religiosa acontece para
todos os lados envolvidos, ninguém consegue sair ileso;

 No convento de Santa Clara, até as noviças mais castas e “corretas” em


sua fé, ao verem em Sierva María a possibilidade de conexão com
“demônios”, pedem favores que jamais pediriam a anjos celestiais;

2. Sincretismo religioso: entre despedaçamento e remodelagem

Para Canevacci8 o sincretismo é fundamental para entendermos as mudanças


que acontecem no processo de globalização que conecta, modifica e carrega as
maneiras tradicionais de construção de cultura, consumo e comunicação. O termo não
é apenas a possibilidade de expandir o entendimento de um contexto construído por
meio de retiradas e mutações, mas também admite nortear o seu processo de
construção dentro de correntes criativas, descentradas e abertas. Há nele o paradoxo
de um termo aparentemente generalista demais, mas que é essencialmente particular.
Há quem o use como sinônimo mais chique ou mais pré-conceituoso de: pastiche,
patchwork, marronização, mélange, mulatismo, aculturação. Onde o que há em comum
nessa tentativa de pulverizar o conceito em micro categorias é a busca por tentar
compreender as conseqüências do despedaçamento e remodelagem que o sincretismo
proporciona, tirando de zonas de conforto percepções estético-ética-etnica e de estilos
de vida.

Para o antropólogo o sincretismo atropela, dissolve e da novos moldes às


interações entre aspectos alheios e conhecidos, entre as classes mais ricas e as mais
pobres da sociedade contemporânea. Com esse fenômeno as banalizadas oposições

8
CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridizações culturais. São Paulo: Studio Nobel:
Instituto Cultural Ítalo-brasileiro, 1996, p 13.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


binárias acabam perdendo sentido e são lembranças de um passado maçante e
simplificador. Assim, o sincretismo ganha espaço nas análises acadêmicas graças às
mudanças trazidas pelos estudos da cultura, que hoje não é mais entendida como um
bloco único, que tem a função de condensar e ligar entre si sujeitos, gêneros, classes,
etnias; mas sim pluralizar, fragmentar. E é nesse contexto que se encontra o
sincretismo religioso que seria um processo pacífico de interação entre o vencedor e o
vencido. Onde o vencido acaba aceitando seu novo status de convertido, mas insere
suas divindades e suas tradições religiosas no contexto religioso do vencedor. E o
vencedor, de maneira não oficial, sabe e reconhece a sobrevivência das religiões que já
existiam antes de sua chegada. O sincretismo religioso faz parte de uma relação
defensiva: há a sujeição à aliança com a religião invasora, que tentara calar as já
existentes desde que haja, de alguma maneira, a tolerância cultural que irá interferir nas
práticas religiosas de todos os envolvidos. É uma realidade que está em movimento e
do movimento, pois não permite que paire a ideia de imobilismo da psique, nem as
teorias que tentam demonstrar que as ações culturais são a reprodução de um ethos
imutável, permanente e cíclico. É a negação da vontade que alguns pesquisadores e de
algumas teorias têm de criar sistemas sintéticos, evolucionismos unilineares,
progressivos. Há, em contra partida, a personificação da realidade que parecem estar
em desordem, confusão, em constante movimento 9.

Acreditamos que o romance Do amor e outros demônios apresenta o sincretismo


religioso de duas maneiras, a primeira enquanto representação da formação
multicultural latino-americana, onde os conflitos e situações de entendimento entre o
cristianismo, a religiosidade indígena e as práticas religiosas africanas são retratados
de maneira dinâmica, mostrando como as relações na obra são construídas sobre o
caminho aberto pelo sincretismo religioso enquanto prática cultural que despedaça
práticas religiosas tidas como “tradicionais”, “puras”, “originais” e que ao entrar em
contato com o diferente incorpora elementos novos, construindo assim, de maneira
diária, constante as modificações práticas religiosas em um território fraturado pelas
ações devastadoras dos povos colonizadores.

9
CANEVACCI, Ibid, 13-21.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221


Referenciais

CANEVACCI, Massimo. Sincretismos: uma exploração das hibridizações culturais. São


Paulo: Studio Nobel: Instituto Cultural Ítalo-brasileiro, 1996.

FRANÇA, Fátima Yukari Akiyoshi. Macondo, Melquíades e o problema da


transculturação. Dissertação em letras. Universidade Federal de Uberlândia. 2013.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas: estratégias para Entrar e Sair da


modernidade. São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, 2013.

GARCÍA CANCLINI, Néstor. Latino-americanos à procura de um lugar neste século.


São Paulo: Iluminuras, 2008.
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução de Eric Nepomuceno.
77ᵃ ed. Rio de Janeiro: Record, 2011.

GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Do amor e outros demônios. Rio de aneiro, ed.


Record, 2012.

ROMERO, Maria Rosilana Zoch. Erotismo, velhice e conhecimento em Amor em


tempos do Cólera. Dissertação em Letras. Universidade Santa Cruz do Sul, 2009.

Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. GT0221

Você também pode gostar