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25/01/2018 Igreja Católica.

A guerra contra o Papa Francisco

IGREJA CATÓLICA

A guerra
contra o
Papa
Francisco
A sua modéstia e humildade
fizeram dele uma figura
popular por todo o mundo.
Mas, dentro da Igreja, as suas
reformas têm enfurecido os
conservadores e provocado
uma revolta. O homem que há
precisamente uma semana fez
81 anos, e vive com apenas um
pulmão, é o primeiro Papa não
europeu dos tempos modernos
e tem neste momento em mãos
uma Igreja dividida. Um dos
seus mais ferozes críticos, o
cardeal Burke, é o mesmo que
serviu de inspiração a uma
série de proeminentes figuras
laicas de direita nos Estados
Unidos, de Pat Buchanan a
Steve Bannon ou Newt
Gingrich.
ANDREW BROWN 24 de Dezembro de
2017, 8:30

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O Papa Francisco é actualmente um dos


homens mais odiados do mundo. E quem
mais o odeia não são ateus, protestantes ou
muçulmanos, mas alguns dos seus próprios
seguidores. Fora da Igreja goza de grande
popularidade, afirmando-se como uma
figura de uma modéstia e uma humildade
quase ostensivas. Desde o momento em
que o cardeal Jorge Bergoglio se tornou
Papa em 2013, os seus gestos prenderam a
atenção do mundo: o novo Papa guiou um
Fiat, transportou as próprias malas e pagou
a conta em hotéis; sobre os homossexuais,
perguntou: “Quem sou eu para julgar?”, e
lavou os pés de refugiadas muçulmanas.

Dentro da Igreja, porém, Francisco tem


desencadeado uma reacção feroz por parte
dos mais conservadores, que temem que
este novo espírito divida a Igreja ou até que
a destrua. Este Verão, um proeminente
clérigo inglês disse-me: “Mal podemos
esperar que ele morra. É impublicável o
que dizemos dele em privado. Sempre que
dois padres se encontram, falam sobre o
quão horrível Bergoglio é… ele é como
Calígula: se tivesse um cavalo, fazia dele
cardeal.” Claro que após dez minutos de
repetidas críticas, acrescentou: “Não pode
publicar nada disto, senão serei
despedido.”

Esta mistura de ódio e temor é frequente


entre os adversários do Papa. Francisco, o
primeiro Papa não europeu dos tempos
modernos e o primeiro Papa jesuíta da
História, foi eleito como um outsider dos
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poderes instituídos do Vaticano e era


esperado que fizesse inimigos. Mas
ninguém previu que fizesse assim tantos.
Desde a sua rápida renúncia à pompa do
Vaticano, que marcou desde logo a
diferença na relação com os mais de três
mil empregados civis do Vaticano, ao seu
apoio aos migrantes, às suas críticas ao
capitalismo global e, acima de tudo, à sua
intenção de reexaminar as posições da
Igreja relativamente ao sexo, o Papa tem
vindo a escandalizar os reaccionários e os
conservadores. A julgar pelos números das
votações do último encontro mundial de
bispos, quase um quarto do Colégio dos
Cardeais — o mais alto organismo da
organização clerical — está convencido de
que o Papa se está a aproximar da heresia.

A questão crítica prende-se com a sua visão


sobre o divórcio. Num corte com séculos,
senão milénios, de doutrina católica, o
Papa Francisco tem tentado encorajar os
padres católicos a darem a comunhão a
alguns casais divorciados ou casados em
segundas núpcias e a famílias cujos pais
não são casados. Os seus inimigos estão a
tentar forçá-lo a abandonar essa ideia.
Como ele se tem mantido firme e mostrado
uma sóbria perseverança face ao crescente
descontentamento, começam agora a
preparar-se para a guerra. No ano passado,
um cardeal, com o apoio de alguns colegas
já aposentados, levantou a possibilidade de
uma declaração formal de heresia — a
rejeição intencional de uma doutrina
estabelecida da Igreja, pecado punível com
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a excomunhão. Em Setembro, 62 católicos


descontentes, nos quais se incluem um
bispo já retirado e um antigo director do
Banco do Vaticano, publicaram uma carta
aberta em que apontam a Francisco sete
acusações específicas de ensinamentos
heréticos.

62
católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo e
um antigo director do Banco do Vaticano, publicaram
uma carta aberta em que apontam a Francisco sete
acusações específicas de ensinamentos heréticos

Acusar um Papa em funções de heresia é o


equivalente católico à opção nuclear. A
doutrina afirma que o Papa não pode estar
errado quando se pronuncia sobre questões
centrais da fé; portanto, se está errado, não
pode ser Papa. Por outro lado, se este Papa
está certo, todos os seus antecessores têm
de ter estado errados.

A discussão está particularmente


envenenada porque assenta quase na
totalidade em bases teóricas. Na prática,
em quase todo o mundo, os casais que se
divorciam e voltam a casar têm acesso à
comunhão. O Papa Francisco não está a
propor numa revolução, apenas o
reconhecimento institucional de um
sistema que já existe e que pode até ser
essencial para a sobrevivência da Igreja. Se
as regras fossem aplicadas à letra,
nenhuma pessoa cujo casamento tivesse
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falhado poderia voltar a ter relações


sexuais. Essa não é uma boa maneira de
assegurar a existência de gerações futuras
de católicos.

Mas, para os seus detractores, as reformas


cautelosas de Francisco põem em causa a
crença de que as verdades da Igreja são
intemporais. Porque se não são, perguntam
os conservadores, então qual o seu valor? A
batalha sobre o divórcio e os novos
casamentos põe em confronto duas ideias
profundamente opostas sobre o papel da
Igreja. A insígnia do Papa são duas chaves
cruzadas, que representam as que Jesus
terá supostamente dado a S. Pedro, e que
simbolizam os poderes de unir e separar,
ou seja, proclamar o que é pecado e o que é
permitido. Mas qual dos poderes é hoje
mais importante e mais urgente?

A sua primeira visita oficial fora de Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o
ponto de chegada de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África
TULLIO M. PUGLIA /GETTY IMAGES

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A hipótese de um cisma
A crise actual é a mais séria desde que as
reformas liberais dos anos 1960 fizeram
com que um grupo dissidente de
conservadores da “linha dura”
abandonasse a Igreja (o seu líder, o
arcebispo francês Marcel Lefebvre, viria
mais tarde a ser excomungado). Nos
últimos anos, escritores conservadores têm
repetidamente levantado a hipótese de um
cisma. Em 2015, o jornalista americano
Ross Douhat, um convertido ao
catolicismo, escreveu um artigo para a
revista Atlantic intitulado “Irá o Papa
Francisco destruir a Igreja?”; num blogue
na Spectator, o tradicionalista inglês
Damian Thompson afirmou
peremptoriamente que “o Papa Francisco
está em guerra com o Vaticano. Se sair
vencedor, a Igreja poderá desmoronar-se”.
Segundo um arcebispo do Cazaquistão, as
posições do Papa relativamente ao divórcio
e à homossexualidade permitiram que o
“fumo de Satã” envolvesse a Igreja.

A Igreja Católica passou grande parte do


último século a lutar contra a revolução
sexual, tal como havia lutado antes contra
as revoluções democráticas do século XIX,
e essa luta levou-a a ter de defender uma
doutrina insustentável, pela qual toda a
contracepção artificial é proibida, bem
como qualquer relação sexual fora de um
casamento eterno. Como o Papa Francisco
reconhece, não é assim que as pessoas
agem normalmente. E o clero também o

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sabe, mas é esperado que finja que não. Ou


seja, a doutrina oficial não pode ser
questionada, mas também não pode ser
cumprida. Um dos lados terá de ceder e,
quando tal acontecer, a explosão resultante
poderá fracturar a Igreja.

“O Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se


sair vencedor, a Igreja poderá desmoronar-se”
Damian Thompson

Não deixa de ser curioso que os frequentes


choques e ódios dentro da Igreja —
resultantes das posições sobre as alterações
climáticas, as migrações ou o capitalismo
— tenham chegado a um ponto de não
retorno numa enorme batalha sobre as
implicações de uma única nota de rodapé
de um texto intitulado “A Alegria do Amor”
(ou, no original latim, Amoris Laetitia). A
exortação, escrita por Francisco, é um
sumário do debate corrente sobre a
questão do divórcio e numa nota de rodapé
o autor faz aparentemente uma leve
afirmação de que os casais divorciados e
que voltem a casar poderão eventualmente
receber a comunhão.

Com mais de mil milhões de fiéis, a Igreja


Católica é a maior organização global que o
mundo alguma vez viu, e muitos dos seus
seguidores são divorciados ou pais
solteiros. Para realizar o seu trabalho por
todo o mundo, a Igreja depende de
trabalho voluntário, ou seja, se os comuns
fiéis deixarem de acreditar no que estão a

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fazer, todo o sistema colapsa. Francisco


sabe disso. Se não for capaz de conciliar
teoria e prática, a Igreja pode assistir a uma
debandada. Os seus oponentes também
defendem que a Igreja enfrenta uma crise,
mas a sua solução é a contrária. Para eles, a
distância ente teoria e prática é
exactamente o que dá valor e sentido à
Igreja. Se tudo o que a Igreja tiver para
oferecer for algo de que as pessoas não
sentem necessidade de procurar, dizem os
que se opõem a Francisco, então irá
seguramente colapsar.

Liberais e conservadores:
uma definição falaciosa
Ninguém previu este confronto quando
Francisco foi eleito em 2013. Uma das
razões da sua escolha foi precisamente o
objectivo de solucionar a rígida burocracia
do Vaticano, tarefa há muito adiada. O
cardeal Bergoglio, de Buenos Aires, foi
eleito como um relativo outsider, o que à
partida facilitaria a eliminação de algumas
das forças de bloqueio comuns ao âmago
da Igreja. Mas essa missão entrou
rapidamente em rota de colisão com uma
fractura ainda mais acrimoniosa dentro da
Igreja, que é geralmente descrita como a
batalha entre os “liberais”, como Francisco,
e os “conservadores”, dos quais fazem parte
os seus adversários. Contudo, essa é uma
definição equívoca e falaciosa.

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A disputa central põe em confronto os


católicos que acreditam que a Igreja deve
liderar a agenda do mundo e os que, por
outro lado, defendem que são as
circunstâncias mundiais que devem definir
as posições da Igreja. Essas são, porém, as
posições idealistas: no mundo real,
qualquer católico será uma mistura dessas
duas orientações, tendo, na maior parte
dos casos, a predominância de uma delas.

Francisco é um puro exemplo de um


católico extrovertido, ou “virado para fora”,
especialmente se comparado com os seus
antecessores imediatos. Os seus oponentes
são os introvertidos. Para muitos, a
primeira coisa que os atraiu na Igreja foi
exactamente a sua distância relativamente
às preocupações mundanas. Um número
surpreendente dos mais proeminentes
introvertidos são protestantes americanos
convertidos, alguns impulsionados pela
superficialidade dos recursos intelectuais
com que foram educados, mas muito mais
por um sentimento de que o
enfraquecimento do protestantismo liberal
se deve precisamente ao facto de ter
deixado de ser uma alternativa à sociedade
que o rodeia. Querem mistério e fervor,
não senso comum estéril e sabedoria
convencional. Nenhuma religião pode
florescer sem tal impulso.

O Segundo Concílio, ou Vaticano II, renunciou ao anti-


semitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos
humanos universais e aboliu a missa em latim
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Mas também nenhuma religião global se


pode contrapor totalmente ao mundo em
que se encontra inserida. No início dos
anos 1960, um encontro que durou três
anos entre bispos de todos os quadrantes
da Igreja, que ficou conhecido como o
Segundo Concílio do Vaticano, ou Vaticano
II, “abriu as janelas para o mundo”, nas
palavras do Papa João XXIII, que o
convocou, mas que morreu antes da sua
conclusão.

O concílio renunciou ao anti-semitismo,


abraçou a democracia, proclamou direitos
humanos universais e aboliu, em larga
escala, a missa em latim. Esta última
medida, em particular, chocou os
introvertidos. O escritor Evelyn Waugh,
por exemplo, recusou-se a partir desse
momento a participar numa missa em
inglês. Para homens como ele, os rituais
solenes de um serviço religioso realizado
por um padre de costas para a
congregação, falando inteiramente em
latim e encarando Deus no altar, eram o
próprio coração da Igreja — uma janela
para a eternidade reencenada a cada
representação. O ritual tinha uma posição
central na Igreja, de uma forma ou de
outra, desde a sua fundação.

Simbolicamente, a mudança provocada


pela nova liturgia — a troca do padre
introvertido que encarava Deus no altar
pela figura extrovertida virada para a
congregação — foi imensa. Alguns
conservadores ainda hoje não se
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reconciliaram com a reorientação, entre os


quais, o cardeal guineense Robert Sarah,
que tem sido apontado pelos introvertidos
como possível sucessor de Francisco, e o
cardeal americano Raymond Burke, que
tem emergido como o mais veemente
opositor público de Francisco. Nas palavras
da jornalista católica inglesa Margaret
Hebblethwaite, uma fervorosa apoiante do
Papa Francisco, a crise actual é nada
menos que “o regresso do Vaticano II”.

“Devemos ser inclusivos e acolher tudo o


que é humano”, afirmou Sarah num
encontro no Vaticano no ano passado,
numa condenação das propostas de
Francisco, “mas o que vem do inimigo não
pode nem deve ser assimilado. Não
podemos seguir Cristo e Belial! As
ideologias ocidentais da homossexualidade
e do aborto e o extremismo islâmico
representam nos dias de hoje o que o
nazismo, o fascismo e o comunismo
representaram no século XX”.

Campanha 'Share the Journey' (numa tradução literal, Partilhem o Caminho) com a Caritas
Internacional. O objectivo é aproximação entre comunidades de imigrantes e refugiados com as
populações locais GIUSEPPE CICCIA / GETTY IMAGES

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Ressurgimento
pentecostal
Nos anos imediatamente a seguir ao
concílio, freiras deitaram fora os seus
hábitos, padres descobriram as mulheres
(mais de cem mil deixaram o sacerdócio
para se casarem) e teólogos livraram-se das
correntes da ortodoxia introvertida. Após
150 anos de resistência e de rejeição do
mundo exterior, a Igreja deu por si
completamente envolvida por esse mundo,
até ao ponto em que os introvertidos
temeram que o edifício estivesse em risco
de se desmoronar.

A afluência às igrejas caiu a pique no


mundo ocidental, tal como aconteceu
noutras denominações. Nos Estados
Unidos, 55% dos católicos iam
regularmente à missa em 1965; em 2000,
esse número era de apenas 22% [em
Portugal, segundo dados do Vaticano, em
2015, existiam 9,183 milhões de católicos
numa população de 10,34 milhões de
pessoas, correspondendo a uma
percentagem de 88,7%, mais quatro
décimas do que em 2010]. Em 1965, foram
baptizados um milhão e trezentos mil
bebés nos EUA; em 2016, apenas 670 mil.
Se esta tendência é ou não fruto de uma
relação causa/efeito, é algo que continua a
ser ferozmente discutido. Os introvertidos

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põem a culpa no abandono das verdades


universais e das práticas tradicionais; os
extrovertidos acham que as mudanças na
Igreja não foram suficientes ou
suficientemente rápidas.

Em 1966, um comité papal de 69 membros,


no qual se incluíam sete cardeais e 13
médicos, bem como laicos e até algumas
mulheres, votou esmagadoramente a favor
do levantamento da proibição do uso de
contracepção artificial, mas o Papa Paulo
VI revogou a votação em 1968. Não podia
admitir que os seus predecessores
estivessem errados e os protestantes certos.
Para uma inteira geração de católicos, esta
disputa passou a simbolizar a resistência
da Igreja à mudança. Nos países em
desenvolvimento, a Igreja Católica foi em
grande parte ultrapassada por um
ressurgimento pentecostal, que oferecia
tanto a encenação como estatuto para os
laicos e para as mulheres.

“A Igreja pode ser uma barafunda, mas o importante é


que o centro seja sólido e tudo pode ser reconstruído a
partir do centro"
Ross Douthat, jornalista católico

Os introvertidos tiveram a sua vingança


aquando da eleição do Papa (agora Santo
Papa) João Paulo II, em 1978. A sua Igreja
polaca era caracterizada pela oposição ao
mundo exterior e aos seus líderes desde
que os nazis e os comunistas dividiram o
país em 1939. João Paulo II era um homem

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impressionante, dotado de uma tremenda


energia e força de vontade. Era também
profundamente conservador em questões
de moralidade sexual e, enquanto cardeal,
tinha apresentado a justificação intelectual
para a proibição do controlo de natalidade.
Desde o momento da sua eleição que
começou a moldar a Igreja à sua imagem.
Mesmo que não conseguisse imprimir-lhe
o seu dinamismo e vontade, parecia que
iria conseguir purgá-la da extroversão e
uma vez mais estancar as correntes do
mundo secular.

Ross Douthat, jornalista católico, foi das


poucas pessoas do lado dos introvertidos a
disponibilizarem-se a falar abertamente
sobre o conflito actual. Na sua juventude
foi um dos convertidos atraídos para a
Igreja de João Paulo II. Afirma hoje que “a
Igreja pode ser uma barafunda, mas o
importante é que o centro seja sólido e
tudo pode ser reconstruído a partir do
centro. Ser católico é ter a garantia da
continuidade no centro e com isso a
esperança do restabelecimento da ordem
católica”.

João Paulo II teve o cuidado de nunca


repudiar as palavras do Vaticano II, mas
fez o possível para as esvaziar do seu
espírito extrovertido. Começou por impor
uma disciplina férrea ao clero e aos
teólogos. Tentou também tornar o mais
difícil possível a renúncia dos padres para
poderem casar. A sua aliada nesse
objectivo foi a Congregação para a
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Doutrina da Fé, ou CDF, antes conhecida


como o Santo Ofício. Institucionalmente, a
CDF é a mais introvertida de todos os
“ministérios” do Vaticano (ou “dicastérios”,
como são conhecidos desde o tempo do
Império Romano; é um detalhe que sugere
o peso da inércia e da experiência
institucional — se o nome era bom para
Constantino, porquê mudá-lo?).

Para a CDF, é axiomático que o papel da


Igreja é ensinar o mundo, não aprender
com ele. Tem uma longa tradição de punir
teólogos que discordam: houve casos de
proibição de publicações e de
despedimentos de universidades.

Ainda no início do pontificado de João


Paulo II, a CDF publicou Donum Veritatis
(“O Dom da Verdade”), documento que
explica que todos os católicos devem
praticar a “submissão da vontade e do
intelecto” aos ensinamentos do Papa,
mesmo que não sejam infalíveis; e que os
teólogos, mesmo que possam estar em
desacordo e manifestá-lo aos seus
superiores, nunca o devem fazer em
público. Estas palavras foram usadas como
ameaça, às vezes até como arma, contra
qualquer pessoa suspeita de dissidência
liberal. Francisco, contudo, virou estes
poderes contra os que tinham sido os seus
maiores defensores. Os padres, os bispos e
até os cardeais estão ao serviço do Papa e
podem ser demitidos a qualquer momento.
Sob Francisco, os conservadores

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aprenderam essa lição: pelo menos três


teólogos foram demitidos da CDF. Os
jesuítas exigem disciplina.

Cardeal Burke & Steve


Bannon
Em 2013, pouco tempo após a sua eleição e
quando estava ainda num estado de quase
universal aclamação pela ousadia e
simplicidade dos seus gestos — tinha-se
mudado para um par de singelos quartos
no Vaticano, por oposição aos sumptuosos
apartamentos do Estado usado pelos seus
antecessores —, Francisco expurgou uma
pequena ordem religiosa que se devotava à
prática da missa tridentina, dita em latim.

Os Frades Franciscanos da Imaculada,


grupo com cerca de 600 membros, homens
e mulheres, já tinham sido colocados sob
investigação por uma comissão em Junho
de 2012, no papado de Bento XVI. Eram
acusados de combinar uma cada vez mais
extremista política de direita com a
devoção à missa tridentina. (Esta
combinação, que surge frequentemente
associada a declarações de ódio ao
“liberalismo”, tinha vindo também a
espalhar-se online nos EUA e no Reino
Unido, como é exemplo o blogue do Daily
Telegraph Holy Smoke, editado por
Damian Thompson.)

Quando a comissão apresentou as suas


descobertas em 2013, a reacção de
Francisco chocou os conservadores.
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Proibiu os frades de usarem a missa


tridentina em público e fechou o seu
seminário. Continuaram a poder formar
novos padres, mas não segregados do resto
da igreja. Mais, tomou estas decisões
directamente, sem passar pelo sistema
judicial interno do Vaticano, à altura
dirigido pelo cardeal Burke. No ano
seguinte, Francisco demitiu Burke do seu
poderoso cargo no sistema judicial do
Vaticano. Nesse momento, ganhou um
inimigo implacável.

Burke, um americano robusto dado a


vestes bordadas a renda e, em ocasiões
formais, a uma capa de cerimónias
escarlate tão comprida que precisa de ser
carregada por pajens, era um dos mais
conspícuos reaccionários do Vaticano. Em
modos e em doutrina, representa uma
longa tradição de pesos-pesados
americanos do poder do catolicismo de
etnia branca. A hierática, patriarcal e
conflituosa igreja da missa tridentina é o
seu ideal, e ao qual parecia que a Igreja
estava lentamente a voltar sob o comando
de João Paulo II e Bento VXI — até que
Francisco começou o seu trabalho.

A combinação de anticomunismo, orgulho étnico e ódio


ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma série de
proeminentes figuras laicas de direita nos Estados
Unidos

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A combinação de anticomunismo, orgulho


étnico e ódio ao feminismo do cardeal
Burke inspirou uma série de proeminentes
figuras laicas de direita nos Estados
Unidos, de Pat Buchanan a Bill O’Reilly e a
Steve Bannon, bem como outros
intelectuais católicos menos famosos, como
Michael Novak, que têm batalhado
incansavelmente a favor das guerras
americanas no Médio Oriente e da
perspectiva republicana sobre os mercados
livres.

Foi o cardeal Burke quem em 2014


convidou Bannon, já na altura a mente por
trás do Breitbart News, a dirigir-se a uma
conferência no Vaticano via vídeo emitido
na Califórnia. O discurso de Bannon foi
apocalíptico, incoerente e historicamente
excêntrico. Mas não foi inocente o seu
chamamento para uma guerra santa: a
Segunda Guerra Mundial, afirmou, foi na
realidade “o Ocidente judeu-cristão contra
os ateus” e agora a civilização está “nas
etapas iniciais de uma guerra global contra
o fascismo islâmico… um conflito brutal e
sangrento… que irá erradicar
completamente tudo o que nos foi legado
nos últimos 2000, 2500 anos… se as
pessoas nesta sala, as pessoas da Igreja,
não… lutarem pelas nossas crenças, contra
esta nova barbaridade que está a surgir”.

Tudo nesse discurso é um anátema para


Francisco. A sua primeira visita oficial fora
de Roma, em 2013, foi à ilha de
Lampedusa, que se tinha tornado o ponto
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de chegada de dezenas de milhares de


desesperados migrantes vindos do Norte
de África. Como ambos os seus
antecessores, opõe-se firmemente às
guerras no Médio Oriente, embora o
Vaticano tenha apoiado relutantemente a
extirpação do califado do Estado Islâmico.
Opõe-se à pena de morte e despreza e
condena o capitalismo americano: depois
de marcar o seu apoio aos migrantes e aos
homossexuais, a primeira grande
declaração política do seu pontificado foi
uma encíclica, dirigida a toda a Igreja, que
condenava ferozmente o funcionamento
dos mercados globais.

“Algumas pessoas continuam a defender


teorias ‘conta-gotas’ [trickle-down, no
original], que assumem que o crescimento
económico, encorajado por um mercado
livre, irá inevitavelmente resultar em maior
justiça e inclusividade pelo mundo. Tal
crença, que nunca foi sustentada pelos
factos, exprime uma confiança arrogante e
ingénua na bondade dos que exercem o
poder económico e no funcionamento
sacralizado do sistema económico
prevalente. Entretanto, os excluídos
continuam à espera.”

Acima de tudo, Francisco está do lado dos


imigrantes — ou emigrantes, como ele os
vê — expulsos de suas casas por um
capitalismo infinitamente voraz e
destrutivo, que pôs em marcha mudanças
climáticas catastróficas. Nos Estados
Unidos, esta é uma questão racializada e
https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 19/31
25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

profundamente politizada. Os evangélicos


que votaram em Donald Trump e no seu
muro são esmagadoramente brancos, tal
como as lideranças da Igreja Católica
americana. Mas cerca de um terço dos
laicos são hispânicos, proporção que está a
aumentar. Em Setembro, Bannon afirmou,
em entrevista ao 60 Minutes da CBS, que
os bispos americanos eram favoráveis à
imigração em massa apenas porque isso
ajuda as suas congregações — embora isso
vá mais longe do que até os bispos mais à
direita seriam capazes de dizer
publicamente.

Quando Trump anunciou pela primeira vez


que iria construir um muro para impedir a
entrada de imigrantes, Francisco esteve
muito perto de negar que o então
candidato pudesse ser cristão. Na visão de
Francisco sobre as ameaças à família, os
lavabos transgéneros não são o problema
mais urgente, como alguns activistas
“guerreiros” culturais querem fazer crer. O
que destrói as famílias, escreveu, é um
sistema económico que força milhões de
famílias pobres a separarem-se na sua
busca por trabalho.

Uma “torrente de
corrupção”
Além de lidar com os praticantes da velha
escola da missa tridentina em latim,
Francisco deu início a uma ampla ofensiva
contra a velha guarda no interior do
Vaticano. Cinco dias após a sua eleição em
https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 20/31
25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

2013, convocou o cardeal hondurenho


Óscar Rodríguez Maradiaga e comunicou-
lhe que iria ser coordenador de um grupo
de nove cardeais espalhados pelo globo
cuja missão era limpar a casa. Foram todos
escolhidos pela sua energia e pelo facto de
terem estado, no passado, em conflito com
o Vaticano. Foi uma medida popular em
todo o lado, menos em Roma.

João Paulo II passou a última década da


sua vida cada vez mais incapacitado pela
doença de Parkinson, e a energia que lhe
restava não era gasta em querelas
burocráticas. A Cúria, nome por que é
conhecida a organização burocrática do
Vaticano, foi ganhando cada vez mais
poder, estagnada e corrupta. Muito poucas
medidas foram tomadas contra os bispos
que protegeram os clérigos que abusaram
de crianças. O Banco do Vaticano era
tristemente célebre pelos serviços que
oferecia para lavagem de dinheiro. Os
processos de canonização — algo que João
Paulo II fez a um ritmo sem precedentes —
tinham-se tornado uma fraude
extremamente cara: o jornalista italiano
Gianluigi Nuzzi estimou que o preço de
tabela de uma canonização andaria à volta
dos 500 mil euros por auréola. As finanças
do próprio Vaticano estavam uma desgraça
e até Francisco fez referência a “uma
torrente de corrupção” na Cúria.

O estado pútrido da Cúria era bem


conhecido, mas nunca discutido em
público. Ao fim de nove meses no cargo,
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Francisco disse a um grupo de freiras que


“na Cúria também há pessoas virtuosas, a
sério, há lá pessoas santas” — de tal
maneira assumia que a sua audiência de
freiras ficaria surpreendida por saber disso.

"A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa


volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que
estiver ao meu alcance para a mudar"
Papa Francisco

Afirmou que a Cúria “toma conta e cuida


dos interesses do Vaticano, que são, na sua
maior parte, interesses temporais. A visão
‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à
nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e
farei tudo o que estiver ao meu alcance
para a mudar”. Declarou ainda ao jornal
italiano La Repubblica: “Várias vezes os
chefes da Igreja foram narcisistas,
lisonjeados e empolgados pelos seus
cortesãos. A corte é a lepra do papado.”

“O Papa nunca falou bem dos padres”, diz o


padre que mal pode esperar que ele morra.
“É um jesuíta anticlerical. Lembro-me bem
dessas ideias nos anos 70. Costumavam
dizer: ‘Não me chames padre, chama-me
Manuel’ — esse tipo de parvoíces — e nós, o
oprimido clero paroquial, sentimos que nos
tiraram o chão.”

Em Dezembro de 2015, Francisco fez o seu


tradicional discurso de Natal à Cúria e não
poupou nas palavras: acusou-a de
arrogância, de “Alzheimer espiritual”, de
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25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

“hipocrisia típica dos medíocres e


progressivo vazio espiritual que não pode
ser preenchido com diplomas académicos”,
bem como de vão materialismo e gosto pela
bisbilhotice e maldizer — não é o tipo de
coisa que se quer ouvir do chefe na festa de
Natal da empresa.

Contudo, quatro anos decorridos sobre o


início do seu papado, a resistência passiva
do Vaticano parece estar a levar a melhor
sobre a energia de Francisco. Em Fevereiro
deste ano, apareceram da noite para o dia,
nas ruas de Roma, posters que
perguntavam: “Francisco, onde está a tua
misericórdia?”, atacando-o pela maneira
como tratou o cardeal Burke. Este episódio
só pode ter sido obra de elementos
descontentes do Vaticano, e é um sinal
inequívoco de uma teimosa recusa em
entregar poderes ou privilégios aos
reformistas.

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A batalha sobre o divórcio e os novos casamentos põe em confronto duas ideias profundamente
opostas sobre o papel da Igreja. Na fotografia, celebração de matrimónio na Praça de São Pedro,
no Vaticano GETTY IMAGES

As igrejas do mundo
ocidental estão cheias de
divorciados
Esta batalha, porém, tem sido ofuscada, tal
como todas as outras, pelas lutas internas
relativamente à moralidade sexual. A
disputa sobre o divórcio e os novos
casamentos centra-se em dois factos.
Primeiro, que a doutrina da Igreja Católica
não mudou em quase dois milénios — o
casamento é eterno e indissolúvel; isso é
claro como água. Mas também o é o
segundo facto: que os católicos se
divorciam e voltam a casar
aproximadamente ao mesmo ritmo que o
resto da população e, quando o fazem, não
vêem nada de imperdoável nisso. Portanto,
as igrejas do mundo ocidental estão cheias
de divorciados e de casais em segundas
núpcias, que comungam com todos os
outros, muito embora tanto eles como os
seus padres saibam que tal não é
permitido.

Os ricos e os poderosos têm desde sempre


sabido explorar lacunas. Quando querem
deixar uma esposa e voltar a casar, um bom
advogado consegue sempre arranjar
maneira de provar que o primeiro
casamento foi um erro e não algo
consumado no espírito que a Igreja exige, e
assim haver razão para que seja apagado
https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 24/31
25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

dos registos — ou, em jargão, anulado. Isto


aplica-se especialmente a conservadores:
Steve Bannon conseguiu divorciar-se de
todas as três mulheres que teve, mas o
exemplo contemporâneo mais escandaloso
talvez seja o de Newt Gingrich, que liderou
a conquista republicana do Congresso nos
anos 1990 e que desde então se reinventou
como aliado de Trump. Gingrich deixou a
primeira mulher quando esta estava a ser
tratada a um cancro e, enquanto estava
casado com a segunda mulher, teve uma
relação extraconjugal de oito anos com
Callista Bisek, uma católica devota, antes
de casar com ela pela Igreja — Callista foi a
pessoa indicada para o cargo de nova
embaixadora de Donald Trump no
Vaticano.

A doutrina sobre o casamento após o


divórcio não é a única maneira pela qual a
doutrina sexual católica nega a realidade
em que os laicos vivem, mas é a que causa
mais danos. A proibição da contracepção é
simplesmente ignorada por todos, em
todos os sítios onde é legal. A hostilidade
relativamente aos homossexuais é mitigada
pelo facto geralmente reconhecido de que
grande parte dos clérigos do mundo
ocidental é gay e que alguns deles são
bem-sucedidos celibatários. A rejeição do
aborto não é um problema onde o aborto é
legal e, de qualquer forma, não é uma
questão particular da Igreja Católica. Mas a
recusa em reconhecer segundos
casamentos, a não ser que o casal faça
votos de nunca ter relações sexuais, faz
https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 25/31
25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

ressalvar o absurdo que é ter uma casta de


homens celibatários a regulamentar a vida
das mulheres.

A doutrina sobre o casamento após o divórcio não é a


única maneira pela qual a doutrina sexual católica nega
a realidade em que os laicos vivem, mas é a que causa
mais danos.

Em 2015 e 2016, Francisco convocou duas


grandes conferências (ou sínodos) de
bispos de todo o mundo para discutir estes
assuntos. Sabia que não conseguiria
avançar sem um consenso alargado.
Manteve-se em silêncio e encorajou os
bispos a debaterem, mas rapidamente se
tornou notório que era a favor de um
considerável afrouxamento da disciplina à
volta da comunhão após um segundo
casamento. Dado que, de qualquer
maneira, é isso que acontece na prática,
torna-se difícil para quem está de fora
entender o ardor que o assunto desperta.

“O que me interessa é a teoria”, diz o


pároco inglês que confessa o seu ódio por
Francisco. “Na minha paróquia há imensos
divorciados e casais que voltaram a casar,
mas muito deles, se soubessem que o
primeiro cônjuge tinha morrido, iam a
correr fazer um casamento na igreja.
Conheço muitos homossexuais que fazem
todo o tipo de coisas que são erradas, mas
sabem que não deviam ser assim. Somos
todos pecadores, mas temos de manter a
integridade intelectual da fé católica.”
https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 26/31
25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

Com esta mentalidade, o facto de que o


mundo rejeita a doutrina serve apenas para
provar como está certa. “A Igreja Católica
deve ser contracultura na ressaca da
revolução sexual”, afirma Ross Douthat. “A
Igreja Católica é o último lugar restante do
mundo ocidental que defende que o
divórcio é uma coisa má.”

Igreja como posto de


primeiros socorros
Para Francisco e os seus apoiantes, tudo
isso é irrelevante. Francisco diz que a
Igreja deve ser um hospital ou um posto de
primeiros socorros. As pessoas que se
divorciaram não precisam que lhes digam
que o divórcio é mau, precisam de
recuperar e de refazer as suas vidas. A
Igreja deve apoiá-las e mostrar
misericórdia.

No primeiro sínodo, em 2015, esta era


ainda uma visão minoritária. Foi
preparado um documento liberal, que foi
rejeitado pela maioria. Um ano depois, os
conservadores estavam em clara minoria,
mas a sua determinação era grande. O
próprio Francisco escreveu um sumário
das deliberações em “A Alegria do Amor”.
É um documento longo, reflectivo e
cuidadosamente ambíguo. A dinamite está
escondida na nota 351 do capítulo 8 e
assumiu uma imensa importância nas
convulsões subsequentes.

https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 27/31
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A nota encontra-se anexada a uma


passagem que vale a pena citar, tanto pelo
que diz como pela maneira como o diz. O
que diz é claro: algumas pessoas que vivem
em segundos casamentos (ou em uniões de
facto) “podem viver na graça de Deus,
podem amar e podem também crescer na
vida da graça e da caridade, e para tal
podem receber a ajuda da Igreja”.

Mesmo a nota de rodapé, onde se lê que


tais casais podem receber a comunhão se
tiverem confessado os seus pecados,
aborda o assunto com circunspecção: “Em
certos casos, isto poderá incluir a ajuda dos
sacramentos.” Consequentemente, “quero
lembrar aos padres que o confessionário
não deve ser uma câmara de tortura, mas
antes um ponto de encontro com a
misericórdia do Senhor”. E ainda: “Quero
também salientar que a eucaristia não é um
prémio para os perfeitos, mas um poderoso
medicamento e alimento para os mais
fracos.”

“Ao vermos tudo a preto e branco”,


acrescenta Francisco, “às vezes fechamos o
caminho da graça e do crescimento.”

Entre os bispos, entre um quarto e um terço estão a


resistir passivamente à mudança, e uma pequena
minoria está a fazê-lo activamente.

Foi esta pequena passagem que teve o


condão de unir todas as revoltas contra a
sua autoridade. Ninguém consultou os
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25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

laicos para saber o que pensam sobre o


assunto e, de qualquer forma, as suas
opiniões não são do interesse do partido
dos introvertidos. Mas, entre os bispos,
entre um quarto e um terço estão a resistir
passivamente à mudança, e uma pequena
minoria está a fazê-lo activamente.

O líder dessa facção é o grande inimigo de


Francisco, o cardeal Burke. Primeiro
demitido do seu cargo no tribunal do
Vaticano e depois da comissão litúrgica,
acabou no conselho de supervisão da
Ordem de Malta — um organismo de
caridade administrado pelas antigas
aristocracias católicas da Europa. No
Outono de 2016, demitiu o director da
Ordem por supostamente ter permitido
que freiras distribuíssem preservativos na
Birmânia, algo que as freiras fazem
regularmente nos países em
desenvolvimento para ajudar a proteger as
mulheres vulneráveis. O director demitido
apelou para o Papa.

O resultado foi que Francisco readmitiu a


pessoa que havia sido demitida e designou
outro responsável para assumir a maior
parte dos deveres de Burke. A decisão foi
um castigo por Burke ter falsamente
afirmado que o Papa tinha estado do seu
lado na querela original.

Entretanto, Burke tinha aberto uma nova


frente de batalha, que chegou o mais perto
possível de acusar o Papa de heresia.
Juntamente com três outros cardeais, dois
https://www.publico.pt/2017/12/24/sociedade/noticia/a-guerra-contra-o-papa-francisco-1796423 29/31
25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

dos quais morreram desde então, Burke


elaborou uma lista de quatro perguntas
destinadas a estabelecer se Amoris Laetitia
violava a doutrina anterior. A lista foi
formalmente enviada a Francisco, que a
ignorou. Após a sua demissão, Burke
tornou as questões públicas e afirmou estar
preparado para emitir uma declaração
formal de que o Papa era herege se as
respostas não fossem do seu agrado.

É óbvio que Amoris Laetitia representa um


corte com a doutrina passada. É um
exemplo da Igreja a aprender com a
experiência. Mas isso é difícil de assimilar
para os conservadores: historicamente,
estas rupturas doutrinárias só aconteceram
em períodos de convulsão e separadas por
séculos. Esta chega 60 anos apenas após a
última irrupção de extroversão, com o
Vaticano II, e 16 anos depois de João Paulo
II ter reiterado a velha linha dura.

“O que significa que um Papa contradiga


um Papa anterior?”, pergunta Douthat. “É
incrível o quão perto está Francisco de
entrar em conflito com os seus
antecessores imediatos. Foi só há 30 anos
que João Paulo II estabeleceu em Veritatis
Splendor a linha que Amoris Laetitia
parece contradizer.”

O Papa Francisco está deliberadamente a


contradizer um homem que ele próprio
proclamou como santo. Isso não é um
problema para ele. Mas o facto de ser
mortal pode vir a ser. Quanto mais
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25/01/2018 Igreja Católica. A guerra contra o Papa Francisco

Francisco se afastar da linha dos seus


antecessores, mais fácil será para o seu
sucessor reverter a sua. Embora a doutrina
católica vá naturalmente mudando, a sua
força depende da ilusão de que tal não
acontece. Os pés podem tremer sob a
batina, mas a túnica nunca deve oscilar.
Contudo, isso também significa que as
mudanças que ocorreram podem ser
revertidas sem nenhum movimento oficial.
Foi assim que João Paulo II respondeu ao
Vaticano II. Para garantir que as mudanças
de Francisco perdurarão, a Igreja tem de as
aceitar. E isso é uma questão que não será
respondida no seu tempo de vida. Tem hoje
81 anos e apenas um pulmão. Os seus
oponentes podem estar a rezar pela sua
morte, mas ninguém pode saber se o seu
sucessor tentará contradizê-lo — e o futuro
da Igreja Católica paira agora sobre essa
dúvida.

Exclusivo The Guardian/ PÚBLICO.


Tradução de António Domingos

Este artigo encontra-se publicado no P2,


caderno de domingo do PÚBLICO

O SEU PÚBLICO EM 43 SEGUNDOS  APOIADO


1/1 POR MAIS RECOMENDAÇÕES

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