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NITERÓI
2015
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Introdução
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como o 13º Governador e 4º Vice-Rei do Estado Português da Índia. Acrescenta-se ainda
o seu viés militar e de homem do mar, tendo participado de inúmeras expedições
marítimas com os objetivos de reconhecimento territorial e acima de tudo, de descercar
armadas inimigas pelo Mediterrâneo e pela costa das Índias portuguesas. Vale assinalar
que fora nessas viagens que Castro tratou de produzir seus três roteiros de navegação,
textos estes de caráter técnico e de suma importância para o esclarecimento de problemas
que incomodavam a marinharia quinhentista, dentre eles, o do próprio magnetismo
terrestre.
Filho não primogênito de D. Álvaro de Castro, fidalgo que ocupava um alto cargo
na corte de D. Manuel I, e de Leonor de Noronha, nasceu em 1500.1 Iniciou sua carreira
militar ao completar 18 anos de idade, indo prestar serviço como guerreiro em Tânger,
cidade localizada ao norte de Marrocos, entre 1518 a 1527. Neste último ano retorna a
Portugal, permanecendo no reino até 1538. Durante esse período não se sabe muito a
respeito de sua vida e quais atividades teria se dedicado. Entretanto, temos conhecimento
da sua participação na expedição promovida pelo imperador Carlos V contra o corsário
Kheir-ed-Din, que se apossara de Tunes, tornando-se um obstáculo à navegação europeia
pela região do Mediterrâneo. Além disso, supõe-se que teria sido nesse período que o
próprio escrevera sua grande obra de cunho científico, o Tratado da Sphaera, por
perguntas e respostas a modo de dialogo.
Sobre o Tratado da Sphaera, diferentemente dos roteiros de cunho totalmente
prático e técnico, este seria seu grande trabalho de natureza científica, utilizando como
referência a obra homônima de João de Sacrobosco publicada no século XIII e
amplamente divulgada pela Europa em pleno século XVI. Todavia, como nos afirma o
historiador Luís de Albuquerque, que juntamente com Armando Cortesão elaboraram
uma edição crítica dos textos de D. João de Castro, o presente autor teria enriquecido seu
texto com comentários pessoais, além de ter-lhe dado a forma de diálogo entre um mestre
1
Embora carecemos de fontes que confirmem essa data, ela nos é aceita por meio de inferências, na medida
em que o seu biógrafo, Jacinto Freire de Andrade diz que Castro, ao completar 18 anos, fora servir no
Tânger sob as ordens de D. Duarte de Meneses e que manteve-se na praça africana por mais 9 anos, tendo
retornado apenas em 1527. Além disso, sabe-se que em Outubro desse mesmo ano ele já se encontrava no
reino, fato verificável por meio de uma carta que o rei lhe dirigiu em 25 desse mesmo mês. Chega-se,
portanto, de modo indireto ao ano de 1500 como o de seu nascimento. Ver: ANDRADA, Jacinto Freire de.
Vida de Dom João de Castro. Lisboa: Agência-Geral do Ultramar, 1968 & ALBUQUERQUE, Luís de.
Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses – séculos XV e XVI. Lisboa: Círculo de Leitores, 1987,
Vol 2.
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e um discípulo, estrutura então muito corrente em vários tipos de obras, em especial as de
caráter didático.2
O Tratado da Sphaera é apenas um dos muitos exemplares que destacam o
impacto exercido pela experiência nos tempos modernos, possibilitando, por sua vez,
novas perspectivas de conhecimento acerca da realidade. Assim sendo, o que propomos
a seguir é discutir o papel exercido pela prática experiencial na atmosfera intelectual
europeia dos séculos XV e XVI.
Para isso, iniciaremos com uma breve análise das técnicas de navegação
praticadas por navegantes e marinheiros no limiar da modernidade. O objetivo é
demonstrar que a náutica exercida por esse homens em nada se relacionava com o campo
mais teórico, não podendo portanto, ser classificada como um saber cientifico, mas sim
como uma arte, no sentido exato da palavra. E um dos instrumentos utilizados nesse tipo
de navegação era o uso da experiência, enquanto sinônimo de prática cotidiana e
cumulativa por meio das funções sensitivas, sobretudo a da visão.
Dessa forma, demonstraremos como a noção de experiência já vinha sendo
aplicada por esses homens do mar, e que até o século XV, tal instrumento bastava para se
alcançar o objetivo, a saber, o de navegar entre grandes distâncias.
Em um segundo momento, discutiremos de que modo a prática experiencial fora
revalorizada pelo meio intelectual europeu, chegando a produzir novas formas de
conhecimento muito bem delimitadas, e que passaram, inclusive, a dialogar com o saber
mais acadêmico e erudito. Nesse ponto tentaremos descontruir algumas interpretações,
um tanto quanto equivocadas, acerca da falta de critérios científicos do período
renascentista e do papel exercido pela experiência, que segundo alguns autores, teria sido
mínimo e prejudicial ao desenvolvimento da Ciência Moderna. Para tanto, utilizaremos,
na medida do possível, o Tratado da Sphaera de D. João de Castro afim de demonstrar
as inconsistências existentes nesses tipos de argumentos.
2
ALBUQUERQUE, Luís de. Navegadores, viajantes e aventureiros portugueses – séculos XV e XVI.
Lisboa: Círculo de Leitores, 1987, V 2, p. 118.
4
Breves Considerações sobre a Cartografia e a Náutica Europeia.
3
Idem. A Náutica e a Ciência em Portugal: Notas sobre as navegações. Lisboa: Gradiva Publicações, 1989,
p. 44.
4
Idem. Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1983, p. 06 - 07.
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com o nome de periplus. A estes textos, já chamados pela designação italiana de
portulano, acrescentou-se o rumo magnético que o piloto devia adotar para navega entre
os pontos registrados no documento.5
Para Luís de Albuquerque, a carta-portulano ou carta de navegar como também
é conhecida, surgiu unicamente como o desejo de dar expressão gráfica aos portulanos,
sendo consequência de uma repetida experiência de navegação. Em outras palavras, a
carta-portulano nada mais seria que a transcrição gráfica daquilo que se encontrava escrito
nos portulanos, ou seja, a representação da costa e dos lugares ao longo dela visitados e
localizados pelos marinheiros de acordo com a prática de uma navegação baseada em
distâncias estimadas (tempo aproximado) e no rumo magnético (medido por meio da
bússola).
Soma-se ainda o fato da sua utilidade ser exclusivamente prática, isto é, não seguia
qualquer sistema de representação teórica e matemática. Caracteriza-se também pela
utilização de uma linguagem simples e direta, justamente pelo seu objetivo ser o de
transmitir com clareza a homens de pouca instrução os dados e informações necessárias
à navegação. Averígua-se também a sua origem náutica, visto que, comparando os
aspectos topográficos do interior da África ou da Europa com as representações das costas
marítimas, verificamos uma certa diferença em estilo e precisão, sendo aquelas
geralmente assinaladas sem suficiente conhecimento da sua posição correta, além de
estarem retratadas ou de forma fantasiosa, ou imprecisa, enquanto que, por outro lado,
percebemos uma representação bastante rigorosa de todo o Mediterrâneo, da costa do
ocidental europeia até a Inglaterra e de uma pequena faixa da África ocidental.
Em síntese, essa náutica praticada pelo Mediterrâneo, e ao longo das costas
atlânticas até o Canal da Mancha era construída por meio de regras resultantes de
repetidas observações durante uma série de incontáveis viagens, ao longo de muitos anos,
acumulando-se de maneira gradual e progressiva, sempre atenta ao meio e às condições
em que se navegava.
5
Ao estudarmos as cartas-portulanos, verificamos que elas foram se aperfeiçoando ao longo do tempo. Tais
melhoramentos foram o resultado de terem passado a ser mais frequentes as viagens em áreas marítimas
que nas cartas mais antigas se encontravam desenhadas de forma defeituosa. Sendo assim, a atribuição de
uma origem italiana a estes documentos é defendida mediante o fato da área navegada por genoveses e
venezianos estar representada com uma maior exatidão e ter sido levada rapidamente à perfeição pelos mais
antigos portulanos conhecidos em comparação com as demais regiões marítimas. Ver: ALBUQUERQUE,
Luis de. A Náutica e a Ciência em Portugal: Notas sobre as navegações. Lisboa: Gradiva Publicações,
1989, p. 52 – 54.
6
E quanto a Portugal? De que forma estava organizada a marinharia lusa no período
anterior a grande aventura dos Descobrimentos? Por meio de fontes e tratados estatais,
podemos verificar a existência de uma organização ainda embrionária da marinharia
portuguesa até o início do século XIV, período este em que a atividade náutica praticada
no Mediterrâneo, em contrapartida, já apresentava significativos avanços.
Podemos, inclusive afirmar que a náutica com que os portugueses tiveram contato
até a grande arrancada na aventura dos Descobrimentos Marítimos não teve o mínimo
relacionamento com qualquer tipo de conhecimento teórico e científico, seja a
Matemática, seja até mesmo a Astronomia, visto que a navegação astronômica ainda não
era praticada pelo menos até meados do século XV. Talvez, a única disciplina que se
recorria, e isso em uma escala bem rudimentar e básica, era a Geometria, cuja intenção
era facilitar o traçado das cartas e dos gráficos.
Foi somente na segunda metade do século XV que os marinheiros começaram a
determinar latitudes. Um pouco mais tarde, os cartógrafos passaram a introduzir
abusivamente uma escala de latitudes nas cartas-portulanos, gerando, a partir daí, um
desajustamento entre a prática da navegação e a carta. Tal defasagem teria como causa
um fenômenos conhecido como desvio da agulha ou declinação magnética. Tal
fenômeno só passou a ser conhecido no século XV, sendo que os meios para obter seu
valor só fora calculado no século imediato, graças a autores como João de Lisboa, Pedro
Nunes e D. João de Castro.
Portanto, podemos concluir que a arte de navegar praticada pelos portugueses, e
obviamente por todo o continente europeu, era no verdadeiro sentido da palavra uma arte,
uma vez que se traduzia em procedimentos práticos fundamentados em utensílios bem
simples como a carta-portulano, a bússola, um par de compassos para marcar o ponto na
carta, e algumas outras regras que o assíduo contato com o mar tinha levado a um estado
de satisfatório e frequente aperfeiçoamento.6
E o instrumento metodológico utilizado para sustentar esse tipo de navegação era
a experiência, no sentido mais qualitativo e rudimentar possível, isto é, na sua forma de
observação direta e vivência repetida e acumulada ao longo do tempo. Não é de se
estranhar que o seu conceito passará por um forte processo de valorização nos séculos
XV e sobretudo, XVI, visto a relevância adquirida como elemento indispensável para a
construção de conhecimento e crítica das verdades acadêmicas.
6
Idem. Ciência e Experiência nos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1983, p. 12
7
A Revalorização da Experiência no Discurso Renascentista.
8
renascentista, devemos ter o cuidado para não antecipar determinados conceitos e
classificações que não são comuns aos homens da época afim de evitar qualquer tipo de
anacronismo. Estamos nos referindo à diferença existente entre os conceitos de
experiência e experimento. Sobre esse assunto, a figura do historiador português Luís
Filipe Barreto deve ser enfatizada, pois com a devida prudência de não confundir essas
duas palavras, o autor chegou a postular o termo Experiencialismo para se referir ao
movimento de valorização da experiência presenciado em Portugal nos séculos XV e
XVI.
Dessa forma, havemos de considerar a existência de duas correntes antagônicas:
o Experimentalismo e o Experiencialismo. No caso do Experimentalismo, método comum
à ciência moderna, o cientista visa reproduzir em condições artificiais os fenômenos da
Natureza, atuando sempre como um agente externo e observador. Já a Natureza se
apresenta como quantitativa, mensurável em dados matemáticos, pertencente a um
universo mecanicista, ausente de vida e separada do homem.
Quanto ao Experiencialismo, tal corrente advoga uma Natureza qualitativa, isto é,
detentora de um conjunto de qualidades perfeitas e harmônicas, cujo universo se apresenta
como organicista, dotado de vida e sentido, no qual o homem participa ativamente e não
como um mero observador. E é sob este paradigma que vive o homem da Renascença.
Ainda no interior do Experiencialismo, Luís Filipe Barreto distingue duas
diferentes vertentes epistemológicas: o “Empirismo Sensorial” representado por homens
como Duarte Pacheco Pereira e Garcia de Orta e o “Racionalismo Crítico-Experiencial”
cujos maiores expoentes seriam Pedro Nunes e D. João de Castro:
Diante disso, cabe expor nesse momento uma questão de fundamental importância
no que diz respeito à História da Ciência no período moderno. A noção e concepção de
experiência renascentista teria contribuído, de alguma forma, para o nascimento da
7
BARRETO, Luís Filipe. Portugal, mensageiro do mundo renascentista. Problemas da cultura dos
descobrimentos portugueses. Lisboa: Quetzal Editores, 1989, p. 33-4.
9
Ciência Moderna? Para muitos estudiosos, a resposta seria negativa por duas razões.
Primeiramente, porque em se tratando de conhecimento científico, comumente se nega
qualquer importância que a cultura prática, isto é, aquela advinda de homens de pouca
instrução, viria a desempenhar, acreditando não ter tido interferência alguma, quando
muito interferido de maneira positiva, no desenvolvimento da ciência moderna. E em
segundo lugar, porque a própria Renascença é vista como um período marcado pela
ausência de critérios rígidos de cientificidade, sendo para alguns estudiosos um período
de retrocesso científico. Acreditamos que tais posições devam ser descontruídas, ao
menos em parte, pois cremos que a experiência tão preconizada por pilotos e marinheiros
viria a beneficiar de maneira significativa o novo modelo de ciência que surgiria por volta
do século XVII. Analisaremos a seguir os fatores que nos levam a tamanha conclusão.
Comecemos retomando algumas palavras de um dos maiores nomes em História
da Ciência, o filósofo e historiador francês Alexandre Koyré:
[...] a época da Renascença foi uma das épocas menos dotadas de espírito
crítico que o mundo conheceu. Trata-se da época da mais grosseira e mais
profunda superstição, da época em que a crença na magia e na feitiçaria se
expandiu de modo prodigioso, infinitamente mais do que na Idade Média. E
bem se sabe que, nessa época, a astrologia desempenha um papel muito maior
do que a astronomia [...] e que os astrólogos desfrutam de posições oficiais nas
cidades e junto aos potentados. E se examinarmos a produção literária dessa
época, tornar-se-á evidente que não são os belos volumes das traduções dos
clássicos produzidos nas tipografias venezianas que constituem os grandes
sucessos de livraria; são as demonologias e os livros de magia...8
Fica claro que para o autor, o Renascimento não foi um período de inspiração
científica. O “espírito da Renascença” seria o do artista, o do poeta, o do homem das
letras e o seu ideal repousaria na arte e na retórica. E o que explica tal fato seria a
destruição da ontologia aristotélica medieval. Segundo Koyré, essa ontologia
representava, do ponto de vista filosófico e científico, a grande inimiga da Renascença e,
portanto, o seu grande feito foi tê-la posto abaixo. Contudo, após a sua destruição, o
período acabou se confinando em um estado de ausência de critérios físicos e metafísicos
para decidir se alguma coisa era possível ou não.
Dessa forma, vivia-se uma “credulidade ilimitada”. Até o surgimento de uma
nova ontologia, elaborada somente no século XVII, não se dispunha de critérios que
permitissem decidir se uma informação que se recebesse acerca de um determinado fato
8
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1991, p. 47.
10
era verdadeira ou não. E foi graças a essa credulidade sem limites que a Renascença
acabou se vendo entregue à crença na magia, até porque, a partir do momento em que se
perdia qualquer critério de comprovação e, na medida em que não se sabia que a ação da
feitiçaria e da magia era uma coisa absurda, não se tinha, portanto, motivo algum para
desacreditar nesses fatos.9
Sendo assim, Koyré definiria a Renascença como o período onde “tudo é
possível”, seja pela intervenção direta de forças sobrenaturais na realidade física, seja
pela própria naturalização da magia, isto é, de que os fatos mágicos se explicariam por
uma ação da natureza.10
É importante assinalar que de forma alguma o autor nega a existência de avanços,
ainda que limitados, e de vultos científicos no período renascentista. Basta citar a
retomada de Ptolomeu no século XV e os respectivos avanços na Geografia, na
Cartografia e na Astronomia, além das traduções de grandes matemáticos gregos no
decorrer do século XVI, como Arquimedes, Apolônio, Papos, Héron, entre outros. Logo,
fica claro que teria ocorrido um desenvolvimento científico, contudo tal feito se deu
paralelamente ao espírito da Renascença, e este teria representado, na realidade, um
grande obstáculo ao progresso da ciência devido ao seu paradigma organicista, fato
evidenciado, por exemplo, em Kepler que, por ainda estar preso em um universo animista
e bem ordenado, tal como um bom aristotélico, inicialmente explicava a movimentação
dos planetas pela força das almas que os impeliam e os guiavam, muito embora já
admitisse a importância da Matemática e fosse adepto de métodos precisos de observação.
Por conseguinte, para o autor, se os grandes cientistas do Renascimento não puderam
avançar em seus estudos e contribuições, foi porque o próprio período não permitiu.
Acreditamos haver um certo exagero ao afirmar na destruição do paradigma
aristotélico de conhecimento, tal como Koyré admite. Sabe-se que Aristóteles, grande
filósofo da antiguidade, foi retomado pelo ocidente no século XII e transformado,
principalmente pela síntese Tomista, na grande Autoridade em termos de conhecimento
científico e filosófico durante toda a Baixa Idade Média. A Escolástica se fazia aos moldes
aristotélicos, e todo o universo, assim como as leis da Natureza que o regia eram definidas
e explicadas de acordo com os ensinamentos e obras desse grande filósofo.
De fato, a partir do século XV, a Escolástica, e consequentemente a síntese
aristotélica, passaram por fortes críticas principalmente por aqueles que se utilizavam da
9
Idem, ibidem, p. 47 – 48.
10
Idem, ibidem, p. 48.
11
experiência, enquanto método, para questionar o conhecimento até então existente.
Havemos de concordar também com a explosão da magia e do misticismo na sociedade
europeia, bastando citar como exemplo a forte difusão que a Alquimia teve nos meios
eruditos. Entretanto, a ontologia aristotélica nunca deixou de ser a base explicativa da
realidade física.
Um exemplo elucidativo pode ser visto no Tratado da Sphaera de D. João de
Castro, escrito em início do século XVI na forma de diálogo entre mestre e discípulo. O
texto toma como base o famoso Tratado da Sphaera de Sacrobosco publicado no século
XIII buscando, por meio de comentários e citações, atualizar os assuntos com os temas
mais em voga do período, como os Descobrimentos Marítimos.
Ao falar sobre o oitavo céu, o das estrelas fixas, o mestre atenta a seu discípulo
para a impossibilidade dessas estrelas possuírem qualquer tipo de movimento. O fato
delas serem fixas é justamente por estarem sempre no mesmo lugar, além de pertencerem
ao mesmo céu, este sim detentor de um movimento, ainda que lentíssimo:
Prosopomos ser falsa a opinião de Platão, que cuidou as estrelas eram cousas
viuas, e andauão soltas dançando pellos ceos, como aues polo ar, e nadando
como peixes pollo mar. Aristoteles proua muy bem nos liuros dos ceos que as
estrelas são partes dos mesmos ceos, e estão fixas e pregadas nelles como noos
em taboas, sem se poder alguma delas mouer senão com o mouimento de todo
o ceo em que ella está pregada.11
E prossegue o raciocínio:
[...] tanto que per isso alguns negarão totalmente o mouimento dos ceos,
dizendo que soos as estrelas se mouião, e os ceos estalão quedos; este foi Platão
com toda sua academia, e o qual, metendose na sua dança das estrelas, se
escondia desta dificuldade; a qual dança nos deixamos como galantaria
platonica sem fundamento da verdade, pois esta muy bem refutada por
Aristoteles, como já acima dissemos. 12
Percebe-se que Aristóteles é utilizado como referência para criticar Platão. O fato
de um homem como Castro, defensor da experiência, se embasar naquela Autoridade
demonstra que o aristotelismo estava longe de ser superado, mesmo com o processo de
críticas por qual passaram os autores antigos.
11
CORTESÃO, Armando; ALBUQUERQUE, Luís de; Obras Completas de D. João de Castro, Coimbra,
Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1968-1982, v 1, p. 27.
12
Idem, ibidem, p. 28 – 29.
12
Por mais questionamentos que recebessem, de forma alguma podemos afirmar no
abandono das bases peripatéticas, mas sim na sua “atualização” aos novos temas surgidos.
Em Portugal, tal fato se torna ainda mais evidente, na medida em que conseguimos
presenciar aquilo que José Sebastião da Silva Dias chama de “Segunda Escolástica” ao
se referir ao processo de reestruturação que a mesma viria a passar, diante da nova
realidade europeia.13
E vamos mais além, pois acreditamos que a Escolástica continuava a ser a
pedagogia e metodologia hegemônica de ensino nas universidades europeias até a
primeira metade do século XVII, período em que ocorre a famosa querela entre os antigos
e modernos, pondo abaixo o paradigma qualitativo e organicista propostos pelo
aristotelismo, e dando espaço ao mecanicismo e a matematização da natureza, processos
estes advogados pela ciência moderna já triunfante.
Sobre a questão da possível contribuição da experiência renascentista para a
eclosão da ciência moderna, tomemos novamente as considerações de Alexandre Koyré,
que tece alguns comentários a respeito. Eis seu ponto de vista:
13
SILVA DIAS, José Sebastião da. Influencia de los Descubrimientos em la Vida Cultural del Siglo XVI.
México, Fondo de Cultura Económica, 1986.
14
KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1991, p. 272.
13
anunciadas pelo ‘Racionalismo Crítico-Experiencial’, estavam presentes na
‘Filosofia Experimental’ do século XVII.15
Para D. João de Castro, por exemplo, o saber prático não bastava para a construção
de um conhecimento acerca da realidade. Era fundamental, sem dúvida, mas consistia
apenas na primeira etapa do que se podia chamar de “método científico”. A seguir temos
uma passagem bem esclarecedora a esse respeito, onde o autor tenta definir o diálogo
existente entre prática (sentido) e teoria (entendimento):
Assi também os homens, se nestas linhas que caem a prumo crerem a primeira
aprenção da uista, sem mais o examinarem com o entendimento, cayrão em
erros intoleraues, por que he tam delgado e entra tão sotil o erro nesta parte,
que não há uista humana, por mais aguda que seia, que o possa enxergar. 17
15
SOARES, Luiz Carlos. “O Nascimento da Ciência Moderna: os Diversos Caminhos da Revolução
Científica nos Séculos XVI e XVII”, In: SOARES, Luiz Carlos (Org.). Da Revolução Científica à Big
(Business) Science: Cinco Ensaios de História da Ciência e da Tecnologia. São Paulo: Editora HUCITEC,
2001, p.45.
16
CORTESÃO, Armando; ALBUQUERQUE, Luís de; Obras Completas de D. João de Castro, Coimbra,
Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1968-1982, v 1, p. 55.
17
Idem, ibidem, p. 55.
14
ser realizado naquele momento, uma vez que isso exigiria uma ruptura integral com a
ideia de Natureza qualitativa e organicista prevalecente na Renascença dos séculos XV e
XVI. Tal ruptura só se mostrou possível no início do século seguinte com a emergência
da Filosofia Mecanicista, esta sim, proclamando a Matematização e Quantificação da
Natureza.
Epistemologicamente falando, os Descobrimentos possibilitaram um grande feito
que foi o de questionar as verdades científicas da Escolástica. Tal como afirma Luís Filipe
Barreto, além de possibilitar o conhecimento de novas regiões do planeta e de novos
povos, promovendo pela primeira vez uma imagem e comunicação global do mundo, a
cultura prática foi também:
18
BARRETO, Luís Filipe. Portugal, mensageiro do mundo renascentista. Problemas da cultura dos
descobrimentos portugueses. Lisboa: Quetzal Editores, 1989, p. 23.
15
redondeza do mar se achão nouas ilhas e terras firmes, em contrario sitio das
antigas. De maneira que, nas costas deste nosso hemisfério antigo, esta
descuberto dagoa outro de nouo.19
19
CORTESÃO, Armando; ALBUQUERQUE, Luís de; Obras Completas de D. João de Castro, Coimbra,
Academia Internacional da Cultura Portuguesa, 1968-1982, v 1, p. 50.
16
Contudo, as mudanças provocadas pelos Descobrimentos teriam se constituído
em:
20
HOOYKAAS, Reyer. “Contexto e razões do surgimento da Ciência Moderna”. In: BARRETO, Luis
Filipe & DOMINGUES, Francisco Contente (Org.). A abertura do mundo: estudos de história dos
descobrimentos europeus em homenagem a Luís de Albuquerque. Lisboa: Presença, 1986, p. 182.
21
Idem, ibidem, p. 177.
22
Idem, ibidem, p. 182.
17
Considerações Finais.
18
Referências Bibliográficas
ANDRADA, Jacinto Freire de. Vida de Dom João de Castro. Lisboa: Agência-
Geral do Ultramar, 1968.
19