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Racismo institucional e saúde da população negra


Institutional racism and black population health

Jurema Werneck Resumo


Universidade Federal do Rio de Janeiro. Escola de Comunicação.
A saúde da mulher negra não é uma área de conheci-
Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
E-mail: juremawerneck@criola.org.br mento ou um campo relevante nas Ciências da Saú-
de. É inexpressiva a produção de conhecimento cien-
tifico nessa área e o tema não participa do currículo
dos diferentes cursos de graduação e pós-graduação
em saúde, com raríssimas exceções. Trata-se de as-
sunto vago que, na maior parte dos casos, é ignorado
pela maioria de pesquisadoras e pesquisadores,
estudantes e profissionais de saúde no Brasil. Este
trabalho pretende apresentar algumas informações
acerca dos processos de formulação desse campo
conceitual a partir das demandas dos movimentos
sociais organizados e das formulações de especia-
listas. Tais informações serão apresentadas com o
objetivo de subsidiar pesquisas e contribuir para a
formulação e gestão de políticas públicas adequadas
às necessidades expressas nos indicadores sociais e
de saúde das mulheres negras brasileiras.
Palavras-chave: Saúde da Mulher Negra; Racismo;
Racismo Institucional; Políticas Públicas.

Correspondência
Avenida Presidente Vargas, 482, sobreloja 203, Centro.
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. CEP 20071-000

DOI 10.1590/S0104-129020162610 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.535-549, 2016 535
Abstract Introdução
The health of black women is not an area of knowl- A revisão da literatura especializada publicada no
edge or a relevant field in Health Sciences. The Brasil expõe a baixa presença que a saúde da mulher
scientific knowledge production in this area is negra tem nos periódicos nacionais dedicados às Ci-
inexpressive and the theme is not part of the cur- ências da Saúde. De fato, uma breve revisão entre os
riculum of different undergraduate and graduation periódicos disponíveis na biblioteca virtual SciELO
programs in health, with very rare exceptions. It permite verificar essa escassez: a busca simples com
is a vague matter, which, in most cases, is ignored descritores “saúde mulher negra” oferece 24 artigos
by most researchers, students, and health profes- nacionais publicados a partir de 2008. Ao restringir
sionals in Brazil. This study intends to present a busca para artigos da área de saúde pública, a dis-
some information on formulation processes of this ponibilidade reduz-se a apenas seis textos completos
conceptual field from the demands of organized publicados. Não é possível auferir aqui, com exatidão,
social movements and experts’ formulations. Such a extensão dessa lacuna ou distinguir sua origem. Ou
information will be presented with the aim of subsi- seja, não há como saber as razões do baixo índice de
dizing research and contributing to the formulation publicações sobre o tema: se por desinteresse, falta
and management of public policies suitable to the de estímulos ou existência de restrições explícitas
needs expressed in the social and health indicators nas instituições de pesquisa; se devido a barreiras
of Brazilian black women. interpostas pelos conselhos editoriais dos diferentes
Keywords: Black Women’s Health; Racism; Institu- periódicos; ou, ainda, se devido a combinações entre
tional Racism; Public Policies. os variados elementos. Tais ausências ou insuficiên-
cias podem indicar a não consolidação da saúde da
população negra e da saúde da mulher negra como
campos temáticos e de pesquisa, relacionada ao baixo
grau de penetração nas instituições de pesquisa dos
debates sobre o racismo, seus impactos na saúde e
suas formas de enfrentamento.
As reivindicações da população negra e de mo-
vimentos sociais − especialmente o Movimento de
Mulheres Negras e do Movimento Negro − por mais
e melhor acesso ao sistema de saúde participaram
da esfera pública ao longo dos vários períodos da
história das mobilizações negras, principalmente
no período pós-abolição, e se intensificaram na
segunda metade do século XX, com forte expressão
nos movimentos populares de saúde, chegando a
participar dos processos que geraram a Reforma
Sanitária e a criação do Sistema Único de Saúde.
No entanto, é possível verificar que essa presença,
apesar de ter contribuído para a concepção de um
sistema universal de saúde com integralidade, equi-
dade e participação social, não foi suficiente para
inserir, no novo Sistema, mecanismos explícitos de
superação das barreiras enfrentadas pela população
negra no acesso à saúde, particularmente aquelas
interpostas pelo racismo.

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A vinculação entre racismo e vulnerabilidades Note-se que, naquele momento, já se demonstrava
em saúde chegou à agenda da gestão pública com certo grau de compreensão dos vários aspectos
mais força após a realização da Marcha Nacional envolvidos na saúde da população negra, ainda que
Zumbi dos Palmares em 1995. Essa marcha, que as medidas propostas tenham sido insuficientes
levou a Brasília milhares de ativistas de todas as para abordar com profundidade suas consequências.
regiões do país, provocou a criação do Grupo de Tais informações fizeram parte dos informes leva-
Trabalho Interministerial para a Valorização da dos pelo governo do Brasil à III Conferência Mundial
População Negra (GTI), reunindo ativistas, pes- contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
quisadores e representantes do governo para a e Intolerâncias Correlatas, realizada na África do
formulação de propostas de ação governamental. No Sul em 2001 e convocada pela Organização das
âmbito da saúde, o qual contava com a participação Nações Unidas (ONU).
de representação do respectivo Ministério, o GTI A realização dessa Conferência (na qual a saúde
realizou uma Mesa Redonda sobre Saúde da Popu- da população negra recebeu formulações interes-
lação Negra (1996), resultando na proposição de um santes, especialmente durante seu componente
conjunto de medidas. Entre elas, estavam: a inser- regional, ou seja, na Conferência das Américas
ção do quesito raça/cor na Declaração de Nascidos realizada em Santiago, Chile) e sua Declaração e
Plano de Ação criaram as condições para que se
Vivos e de Óbitos; a criação do Programa de Anemia
desse mais um passo em direção à construção de pro-
Falciforme (PAF) e a detecção precoce da doença via
postas para a atenção à saúde da população negra
triagem neonatal a partir do Programa Nacional a
no Brasil. O principal exemplo foi a elaboração do
ser criado; a restruturação da atenção à hipertensão
documento “Subsídios para o debate sobre a Política
arterial e ao diabetes mellitus; o fortalecimento e
Nacional de Saúde da População Negra: uma ques-
extensão do então Programa de Saúde da Família até
tão de equidade”, resultado do trabalho conjunto
as comunidades quilombolas; além de o Ministério
de especialistas reunidos pelas Nações Unidas no
da Saúde publicar, em 1998, o documento “A Saúde
Brasil em dezembro de 2001. Esse documento propôs
da População Negra, realizações e perspectivas” e, uma definição do campo abarcado pela saúde da
em 2001, o “Manual de doenças mais importantes, população negra, que incluiria “as doenças, agravos
por razões étnicas, na população brasileira afrodes- e condições mais freqüentes na população negra”,
cendente”. Este voltava-se para doenças de origem classificando-os como:
genética comprovada, como doença falciforme,
deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase, hi-
(i) Geneticamente determinadas – anemia falcifor-
pertensão arterial, diabetes mellitus e as síndromes
me e deficiência de glicose 6-fosfato desidrogenase;
hipertensivas na gravidez, deixando de fora aquelas
ou dependentes de elevada frequência de genes
cuja origem genética não foi estabelecida, como no
responsáveis pela doença ou a ela associadas – hi-
caso dos miomas uterinos e da síndrome leucopê-
pertensão arterial e diabete melito. […] (ii) Adqui-
nica, e aquelas sob determinação social evidente,
ridas, derivadas de condições socioeconômicas
como desnutrição, verminoses, gastroenterites, desfavoráveis – desnutrição, mortes violentas,
tuberculose e outras infecções, alcoolismo e outras mortalidade infantil elevada, abortos sépticos,
que, segundo os autores: anemia ferropriva, DST/AIDS, doenças do trabalho,
transtornos mentais resultantes da exposição ao
são mais incidentes na população negra, e não por racismo e ainda transtornos derivados do abuso
razões étnicas. O acesso a serviços de saúde é mais de substâncias psicoativas, como o alcoolismo e
difícil e o uso de meios diagnósticos e terapêuticos a toxicomania. […] (iii) De evolução agravada ou
é mais precário produzindo, em geral, evolução e de tratamento dificultado – hipertensão arterial,
prognóstico piores para as doenças que afetam diabete melito, coronariopatias, insuficiência renal
negros no Brasil (Brasil, 2001, p. 9-10). crônica, câncer e mioma. […] (iv) Condições fisio-

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lógicas alteradas por condições socioeconômicas em 2004 através da Portaria nº 2.632/2004), ins-
– crescimento, gravidez, parto e envelhecimento tância consultiva vinculada à Secretaria Executiva
(Sistema das Nações Unidas, 2001, p. 5-6, grifos do Ministério da Saúde com papel de assessorá-lo;
no original). a organização do I e II Seminários Nacionais de
Saúde da População Negra (2004 e 2006); a inser-
ção da temática nas proposições das Conferências
A partir daí, propunha-se uma Política Nacional Nacionais de Saúde (especialmente a partir da 11º
baseada nos seguintes componentes: Conferência realizada em 2000 e as subsequentes);
e a criação de uma vaga para o Movimento Negro no
• Produção do conhecimento científico – or- Conselho Nacional de Saúde (CNS), em 2005, após
ganização do saber disponível e produção de 68 anos de existência desse conselho. A participa-
conhecimentos novos, de modo a responder ção da representação negra no CNS permitiu as
a dúvidas persistentes e dar consequência articulações e ações necessárias para instituição
à tomada de decisões no campo da saúde da da Política Nacional de Saúde Integral da População
população negra. Negra (PNSIPN), aprovada pelo CNS em novembro
• Capacitação dos profissionais de saúde – de 2006. A PNSIPN reitera a relação entre racismo
promoção de mudanças de comportamento e vulnerabilidade em saúde, tendo como objetivos:
de todos os profissionais da área de saúde,
através da formação e treinamento adequa- I – garantir e ampliar o acesso da população
dos para lidar com a diversidade da socie- negra residente em áreas urbanas, em par-
dade brasileira e com as peculiaridades do ticular nas regiões periféricas dos grandes
processo saúde/doença da população negra. centros, às ações e aos serviços de saúde.
• Informação da população – disseminação de II – garantir e ampliar o acesso da população
informação e conhecimento sobre potencia- negra do campo e da floresta, em particular
lidades e suscetibilidades em termos de saú- as populações quilombolas, às ações e aos
de, de modo a capacitar os afrodescendentes serviços de saúde.
a conhecer seus riscos de adoecer e morrer, III – incluir o tema Combate às Discriminações
e facilitar a adoção de hábitos de vida sau- de Gênero e Orientação Sexual, com des-
dável e a prevenção de doenças. taque para as interseções com a saúde da
• Atenção à saúde – inclusão de práticas de população negra, nos processos de formação
promoção e educação em saúde da população e educação permanente dos trabalhadores
negra nas rotinas assistenciais e facilitação da saúde e no exercício do controle social.
do acesso em todos os níveis do sistema de IV – identificar, combater e prevenir situações
saúde (Sistema das Nações Unidas, 2001, p. 8). de abuso, exploração e violência, incluindo
assédio moral, no ambiente de trabalho.
Um aspecto fundamental desse documento está V – aprimorar a qualidade dos sistemas de infor-
em apontar o racismo e a discriminação como de- mação em saúde, por meio da inclusão do que-
terminantes associados ao adoecimento e à morte sito cor em todos os instrumentos de coleta
precoce de mulheres e homens negros. Oferece, de dados adotados pelos serviços públicos,
assim, ferramentas avançadas para a mobilização os conveniados ou contratados com o SUS.
social e para as iniciativas necessárias a fim de dar VI – melhorar a qualidade dos sistemas de
maior amplitude às ações para incorporação da informação do SUS no que tange à coleta,
temática no SUS. processamento e wwanálise dos dados de-
A partir daí, novos passos foram dados, que sagregados por raça, cor e etnia.
culminaram com: a criação do Comitê Técnico de VII – identificar as necessidades de saúde da
Saúde da População Negra em 2003 (formalizado população negra do campo e da floresta e

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das áreas urbanas e utilizá-las como critério estratégias necessárias, que explicam o porquê da
de planejamento e definição de prioridades. PNSIPN não ter sido adequadamente implementada
VIII – definir e pactuar, junto às três esferas de go- após esses anos.
verno, indicadores e metas para a promoção A seguir, serão apresentadas algumas informa-
da equidade étnico-racial na saúde. ções sobre os diferentes elementos envolvidos na
IX – monitorar e avaliar os indicadores e as me- saúde da população negra e na saúde da mulher
tas pactuados para a promoção da saúde da negra como forma de subsidiar novas formulações,
população negra visando reduzir as iniqui- pesquisas e ações, e, principalmente, no desejo de
dades macrorregionais, regionais, estaduais contribuir para a efetiva implementação da PNSIPN
e municipais. no SUS.
X – incluir as demandas específicas da população
negra nos processos de regulação do sistema Racismo e saúde da população
de saúde suplementar. negra
XI – monitorar e avaliar as mudanças na cultura
institucional, visando à garantia dos princí- Como visto acima, grande parte das formulações
pios antirracistas e não-discriminatório; e conceituais de diretrizes e estratégias e da atuação
XII – fomentar a realização de estudos e pesquisas em saúde da população negra teve origem fora do
sobre racismo e saúde da população negra sistema de saúde, a partir da atuação dos sujeitos ne-
(Brasil, 2009). gros organizados, de suas análises, conhecimentos e
valores. Nesse processo de formulação, as mulheres
Destaque-se que a PNSIPN, através de seu objeti- negras tiveram especial destaque, não apenas por
vo específico III, busca inserir a interseccionalidade sua experiência histórica e cultural nas ações de
de gênero e raça como aspecto importante da saúde cuidado, mas também por serem as mulheres negras
da população negra, permitindo apontar para um a parte expressiva de trabalhadoras de saúde das
campo de ação específico na área de saúde da mu- diferentes profissões. As instituições de pesquisa,
lher, entre outros. os órgãos de fomento e as instâncias de gestão do
Apesar de ter cumprido todo o processo de Sistema Único de Saúde permaneceram ausentes na
formalização requerido pelo SUS – aprovação pelo maior parte desse processo e ainda necessitam de
CNS (2006); publicação no diário oficial (2008); atuação mais consistente e capaz de responder ade-
elaboração de Plano operativo; pactuação na Co- quadamente às demandas largamente expressas.
missão Intergestores Tripartite com atribuição Cabe reconhecer que, como campo de pesquisa,
de responsabilidades para cada um dos entes fe- formulação e ação, a saúde da população negra se
derativos (2009) – a PNSIPN não angariou adesão justifica: pela participação expressiva da população
suficiente à gestão do SUS. Como resposta, as mobi- negra no conjunto da população brasileira; por sua
lizações inseriram seus objetivos no corpo da Lei nº presença majoritária entre usuários do Sistema Úni-
12.288/2010 (Brasil, 2010) aprovada pelo Congresso co de Saúde; por apresentarem os piores indicadores
Nacional em 2011. A partir de então, a atenção à saú- sociais e de saúde, verificáveis a partir da desagre-
de da população negra em seus diferentes aspectos gação de dados segundo raça/cor; pela necessidade
passou a ser regulamentada via lei federal, como de consolidação do compromisso do sistema com a
estratégia de provocar respostas necessárias. No universalidade, integralidade e equidade, apesar
entanto, além do rechaço mais ou menos explícito deste último ter sido longamente negligenciado,
por parte de muitos, verificou-se, também, uma pro- especialmente do ponto de vista da justiça social;
funda ignorância acerca dos diferentes elementos pela existência de obrigação amparada em instru-
envolvidos nos processos de realização de ações e mentos legais1.

1 Convenção Internacional para Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial/1965; Lei nº 7.437/1985; Lei nº 12.288/2011;
portaria do Ministério da Saúde nº 992/2009.

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Como visto, o principal elemento constituinte programas dirigidos a populações vulneráveis e o
desse campo é o reconhecimento do racismo com um desenvolvimento de ações para reduzir disparidades
dos fatores centrais na produção das iniquidades entre grupos, além de medidas de saúde, amplas
em saúde experimentadas por mulheres e homens para toda a população. Essa visão pressupõe a
negros, de todas as regiões do país, níveis educacio- geração de informações desagregadas, bem como
nais e de renda, em todas as fases de sua vida. Esse a tomada de decisão em oposição ao status quo
reconhecimento, conquistado no plano político, produtor ou mantenedor das desvantagens.
ainda não foi suficiente para ocupar o vazio deixado Nota-se que esse modelo surge ao menos dez
pela quebra da hegemonia das teorias eugênicas nas anos após as formulações decorrentes da ação do
pesquisas do campo das ciências da saúde2. GTI e das medidas de saúde da população negra por
Em 2005, a Comissão de Determinantes Sociais ele propostas. Caso tivesse havido decisão consis-
em Saúde (CDS) da Organização Mundial de Saúde tente nessa direção, os dois aportes poderiam ter
apresentou o conceito de determinantes sociais de ampliado o rol de medidas propostas e favorecido
saúde como um processo complexo no qual parti- a atuação do SUS em relação à população negra.
cipam fatores estruturais e fatores intermediários No entanto, as decisões de política e gestão de
da produção de iniquidades em saúde (ver Figura 1). saúde têm sido tomadas como se os dados não indi-
Nele, o racismo e o sexismo estão incluídos como cassem a ampla disparidade e o tratamento desigual
fatores estruturais produtores da hierarquização que a sociedade e o Sistema Único de Saúde pro-
social associada a vulnerabilidades em saúde. Esse duzem ou sustentam, com enormes prejuízos para
conceito, ainda, apontava que, para se enfrentar negros e indígenas, principalmente, diferentemente
adequadamente as iniquidades em saúde, seriam dos brancos. Os dados epidemiológicos desagregados
necessárias medidas que incluiriam a criação de segundo raça/cor são consistentes o suficiente para
Figura 1 – Modelos de Determinantes da Equidade em Saúde, 2005

Extraído de: OMS, Comissão de Determinantes Sociais de Saúde (2005)

2 Para maiores informações sobre a eugenia no Brasil e América Latina ver Nancy L. Stepan “The Hour of Eugenics”: Race, Gender, and
Nation in Latin America Ithaca and London: Cornell University Press, 1991.

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indicar o profundo impacto que o racismo e as ini- A partir daí, a autora delineia um dispositivo de
quidades raciais têm na condição de saúde, na carga racialidade, ferramenta conceitual para explicitar
de doenças e nas taxas de mortalidade de negras e as formas como o racismo penetra os diferentes
negros de diferentes faixas etárias, níveis de renda campos da vida social e produz seus resultados, o que
e locais de residência. Eles indicam, também, a in- nos permite compreender como o racismo estrutura
suficiência ou ineficiência das respostas oferecidas profundamente o escopo de democracia no Brasil,
para eliminar o gap e contribuir para e redução das reduzindo a abrangência da cidadania por estar na
vulnerabilidades e para melhores condições de vida base da criação e manutenção de preconceitos, ou
da população negra. seja, ideias e imagens estereotipadas e inferiorizan-
Para enfrentar tais limitações, é preciso compre- tes acerca da diferença do outro e do outro diferente,
ender um pouco mais o racismo, reconhecido em sua justificando o tratamento desigual (discriminação).
dimensão ideológica que conforma as relações de po- Em sua expressão na vida de indivíduos e grupos,
der na sociedade, participando, portanto, das políticas o racismo assume três dimensões principais, segun-
públicas, uma vez que estas estão entre os mecanismos do o modelo proposto por Jones (2002), resumido
de redistribuição de poder e riqueza existentes. Uma na Figura 2.
aproximação interessante foi posta por Sueli Carneiro
(2005), que propôs a utilização do conceito de disposi- A partir daí, o racismo pode ser visto também
tivo desenvolvido por Foucault, uma vez que, como um sistema, dada sua ampla e complexa atu-
ação, seu modo de organização e desenvolvimento
oferece recursos teóricos capazes de apreender através de estruturas, políticas, práticas e normas
a heterogeneidade de práticas que o racismo e capazes de definir oportunidades e valores para pes-
a discriminação racial engendram na sociedade soas e populações a partir de sua aparência (Jones,
brasileira, a natureza dessas práticas, a maneira 2002), atuando em diferentes níveis.
como elas se articulam e se realimentam ou se As três dimensões do racismo apontadas acima
realinham para cumprir um determinado objetivo atuam de modo concomitante, produzindo efeitos
estratégico (Carneiro, 2005, p. 39). sobre os indivíduos e grupos (não apenas de suas
vítimas), gerando sentimentos, pensamentos, con-
dutas pessoais e interpessoais, atuando também
O dispositivo instaura um ordenamento ampa- sobre processos e políticas institucionais. Apesar
rado na racionalidade, que permite hierarquizar e da intensidade e profundidade de seus efeitos
estruturar o poder de determinação das formas de deletérios, o racismo produz a naturalização das
relações sociais como privilégio de um grupo parti- iniquidades produzidas, o que ajuda a explicar a
cular de seres humanos. Permite, ainda, a validação forma como muitos o descrevem, como sutil ou
da raça como atributo sociológico e político. É um invisível.
dispositivo de poder, pois, segundo Foucault (apud Segundo Jones (2002), o racismo internalizado
Carneiro, 2005, p. 36), trata-se de: traduz a “aceitação” dos padrões racistas pelos indi-
víduos, incorporando visões e estigmas. O racismo
um conjunto decididamente heterogêneo que interpessoal se expressa em preconceito e discrimi-
engloba discursos, instituições, organizações nação, condutas intencionais ou não entre pessoas.
arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, Já o racismo institucional (RI), que possivelmente
medidas administrativas, enunciados científicos, é a dimensão mais negligenciada do racismo, deslo-
proposições filosóficas, morais, filantrópicas. ca-se da dimensão individual e instaura a dimensão
Em suma, o dito e o não-dito são os elementos estrutural, correspondendo a formas organizativas,
do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode políticas, práticas e normas que resultam em trata-
estabelecer entre estes elementos (apud Carneiro, mentos e resultados desiguais. É também denomina-
2005, p. 36). do racismo sistêmico e garante a exclusão seletiva

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Figura 2 – Dimensões do racismo, 2013

Fonte: Baseado no modelo proposto por Jones (2002)

dos grupos racialmente subordinados, atuando como O conceito de “racismo institucional” guarda
alavanca importante da exclusão diferenciada de relação com o conceito de “vulnerabilidade progra-
diferentes sujeitos nesses grupos. O conceito foi mática”, desenvolvido por Mann e Tarantola (1992)
cunhado pelos ativistas do grupo Panteras Negras, para analisar aspectos da epidemia de HIV/Aids.
Stokely Carmichael e Charles Hamilton, em 1967, Para Ayres (2003, p. 125), o conceito de “vulnerabi-
como capaz de produzir: “A falha coletiva de uma lidade” abrange
organização em prover um serviço apropriado e
profissional às pessoas por causa de sua cor, cultura O conjunto de aspectos individuais e coletivos
ou origem étnica” (Carmichael; Hamilton, 1967, p. 4); relacionados ao grau e modo de exposição a
Desse ponto de vista, ele atua de forma a induzir, uma dada situação e, de modo indissociável, ao
manter e condicionar a organização e a ação do Esta- menor ou maior acesso a recursos adequados
do, suas instituições e políticas públicas – atuando para se proteger tanto do agravo quanto de suas
também nas instituições privadas – produzindo e consequências indesejáveis.
reproduzindo a hierarquia racial.
Atualmente, já é possível compreender que,
mais do que uma insuficiência ou inadequação, Três diferentes dimensões interligadas atuam
o RI é um mecanismo performativo ou produtivo, na produção de maior ou menor vulnerabilidade de
capaz de gerar e legitimar condutas excludentes, pessoas e populações a determinadas condições.
tanto no que se refere a formas de governo quanto São elas:
de accountability.
Para que seja efetivo, o RI deve dispor de plas- • dimensão individual – na qual estão inseri-
ticidade suficiente para oferecer barreiras amplas dos comportamentos que desprotegem.
– ou precisamente singulares – de modo a permitir • dimensão social – destaca as condições polí-
a realização de privilégio para uns, em detrimento ticas, culturais, econômicas etc., a partir do
de outros, em toda sua ampla diversidade. que produz e/ou legitima a vulnerabilidade.

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• dimensão política ou programática – refere- de diversidade, diferença e discriminação. A inter-
-se à ação institucional voltada para a gera- seccionalidade permite visibilizar as diferenças
ção da proteção e/ou redução da vulnerabili- intragrupo, inclusive entre aqueles vitimados pelo
dade de indivíduos e grupos, na perspectiva racismo, favorecendo a elaboração de ferramentas
de seus direitos humanos. conceituais e metodológicas mais adequadas às
diferentes singularidades existentes. Permite,
Dessa perspectiva, “racismo institucional” equi- ainda, maior consistência na compreensão dos
valeria a ações e políticas institucionais capazes de modos de aproximação e realização dos princípios
produzir e/ou manter a vulnerabilidade de indivídu- de universalidade, integralidade e equidade na
os e grupos sociais vitimados pelo racismo. política pública.
Ainda que o papel do racismo na determinação
das condições de vida e saúde seja reconhecido, é Modos, momentos e oportunidades
importante reconhecer, também, a existência de
codeterminantes, ou seja, outros fatores que atuam A partir da constatação da presença do racismo
concomitantemente, aprofundando ou reduzindo e seus efeitos deletérios sobre a saúde e a prestação
seu impacto sobre pessoas e grupos. Como ferra- de serviços, Cooper, Hill e Powe (2002) desenhou
menta útil para a compreensão desse fenômeno, um modelo voltado para apoiar a reflexão concei-
Crenshaw (2002) cunhou o conceito de “intersec- tual e a intervenção (ver Figura 3). Esse modelo,
cionalidade”: uma adaptação e ampliação de modelos anteriores
criados por autores do Reino Unido e dos Estados
A associação de sistemas múltiplos de subordina- Unidos3, aborda a promoção da equidade racial em
ção tem sido descrita de vários modos: discrimina- saúde a partir da visibilidade e intervenção sobre os
ção composta, cargas múltiplas, ou como dupla ou fatores que interferem em seu acesso e utilização
tripla discriminação. A interseccionalidade é uma dos serviços de saúde. Entre estes estão barreiras
conceituação do problema que busca capturar as pessoais e familiares, capazes de influenciar o grau
consequências estruturais e dinâmicas da intera- de aproximação ou afastamento de usuários em
ção entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela relação ao modelo de saúde em uso; os paradigmas
trata especificamente da forma pela qual o racismo, referendados por eles, o que inclui o grau de infor-
o patriarcalismo, a opressão de classe e outros mação e compreensão das linguagens e perspecti-
sistemas discriminatórios criam desigualdades vas utilizadas; além da adoção ou não de hábitos
básicas que estruturam as posições relativas de saudáveis de vida e do nível educacional e de renda
mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além (frequentemente mais baixo para integrantes dos
disso, a interseccionalidade trata da forma como grupos raciais discriminados). Entre as barreiras
ações e políticas específicas geram opressões que estruturais, está, também, o montante de financia-
fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspec- mento da saúde, que nos permite apontar processos
tos dinâmicos ou ativos do desempoderamento de priorização e redistribuição, bem como, no caso
(Crenshaw, 2002, p. 177). dos serviços privados e planos de saúde, destaca o
grau de cobertura e garantias incluídas. É preciso
recordar que a qualidade e cobertura dos seguros
Assim, ao destacar a intersecção, a conexão, a saúde estão vinculadas diretamente à capacidade
interdependência das diferentes “variáveis” presen- financeira dos usuários, que, por sua vez, vincula-se
tes nas relações sociais e políticas, essa ferramenta a seu nível de renda. Já no sistema público, há forte
permite dar um sentido mais complexo a noções correlação entre as regiões habitadas por popula-

3 Como Tackling inequalities in health: an agenda for action, editado por Michaela Benzeval, Ken Judge e Margaret Whitehead (London:
Kings Fund: 1995); e Access to Health Care in America, do Institute of Medicine, editado por Michael Millman (Washington, DC: National
Academy Press: 1993).

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Figura 3 – Barreiras e mediadores da atenção em saúde para equidade racial e étnica, 2002
UTILIZAÇÃO DOS
BARREIRAS SERVIÇOS MEDIADORES RESULTADOS

Pessoal/familiar Visitas Qualidade dos servidores/ Condição de saúde


• Aceitabilidade • Alteração básica prestadores de serviço • Mortalidade
• Cultura • Especialidades • Competência • Morbidade
• Idioma/informação para saúde • Emergência cultural • Bem-estar
• Atitudes, crenças Procedimentos • Capacidade de • Funcionalidade
• Preferências • Prevenção comunicação
• Envolvimento no cuidado • Diagnóstico • Conhecimento Equidade nos serviços
• Hábitos saudáveis (ou não) médico
• Tratamento
• Educação/nível de renda • Competência
Visões do paciente
Estrutural técnica
sobre o cuidado
• Disponibilidade • Preconceito/
• Experiências
• Agendamento estereótipo
• Satisfação
• Grau de organização Adequaçào do cuidado • Parceria efetiva
• Transporte Adesão da/do paciente
Financimanto

Extraido de: Cooper, Hill e Powe (2002, tradução nossa)

ções de renda mais baixa e precariedade da oferta que favorece homens brancos em detrimento dos
de recursos pelo Sistema Único de Saúde. Como demais grupos (Marinho; Cardoso; Almeida, 2011).
diferentes estudos apontam, há forte correlação Outro nível de análise e atuação foi classificado
no Brasil entre raça, racismo, discriminação racial pelos autores como mediadores, que fazem referên-
(incluindo suas interseccionalidades) e renda, ca- cia ao fator humano e destacam, além da qualidade
bendo aos grupos racialmente discriminados ocupar de sua atuação, suas possibilidades de favorecer ou
patamares inferiores e estando sujeitos a ofertas de limitar o acesso de usuários aos diferentes recursos
ações de saúde pública ou privada precárias. necessários. Nesse grupo, incluem-se habilidades
O modelo destaca, também, a necessidade de in- técnicas e pessoais, considerando, também, a capa-
tervenção sobre o modo de organização dos serviços cidade de aceitação e respeito à diversidade racial e
de saúde disponíveis, facilitando a disponibilidade cultural existente, bem como recomenda um olhar
de acesso integral, ou seja, aos diferentes níveis de sobre a forma como gestores e profissionais de saú-
atendimento. O conhecimento da existência e da de atuam, incluindo a análise de sua capacidade de
intensidade de limitações nesse nível pode favore- comunicação; sua competência cultural, ou seja, sua
cer a adoção de medidas singulares e adequadas a capacidade de reconhecer e dialogar com a diferença
cada caso para sua superação e aproximação entre cultural que se apresenta; e seu comportamento (se
usuários e o serviço de saúde. é preconceituoso, se produz ou reforça estereótipos).
O nível da utilização dos serviços aponta para Nesse grupo estão incluídos, também, a adequação
a perspectiva da integralidade, ou seja, questiona do cuidado oferecido, a eficácia do tratamento e o
as possibilidades de acesso e utilização por parte grau de adesão de usuários. É importante recordar
de usuários de grupos raciais discriminados aos que o racismo e a longa trajetória de discriminações,
diferentes níveis de atenção, da primária à de alta combinados à persistência da precariedade e baixa
complexidade, no tempo necessário. Está incluído qualidade dos serviços destinados a determinadas
nesse nível, também, o acesso adequado a medidas camadas da população, interpõem-se entre profis-
preventivas, de diagnóstico e tratamento. No Bra- sionais e usuários, influenciando visões preconcei-
sil, um estudo do IPEA sobre acesso a transplantes tuosas e estereotipadas por parte de profissionais
demonstrou a importância dos diferenciais raciais em relação a integrantes de grupos subordinados
e de gênero no acesso a transplantes em nosso país, e dificultando o estabelecimento de relações de

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confiança, seja entre profissionais e usuários, ou políticas institucionais, perpetuando a exclusão ra-
entre estes e os serviços e todo o sistema de saúde. cial. Por outro lado, produz ou perpetua privilégios.
Nesse modelo, os resultados da ação, que in- Um aspecto importante assinalado por King
cluem dados epidemiológicos, a visão de usuários (1996), que justifica a adoção de medidas específicas
e a constituição ou não de efetiva parceria entre e afirmativas para se eliminar privilégios e exclu-
usuários e sistema, também podem funcionar como sões, refere-se ao fato de que “Pessoas e organiza-
indicadores das disparidades e tratamento desigual, ções que se beneficiam do racismo institucional são
atuando, ainda, como indicadores da eficiência das refratárias a mudanças voluntárias do status quo”
ações para a equidade, o que expõe a necessidade da (King, 1996, p. 33).
produção de informações desagregadas por raça/ Através delas, instaura-se oportunidade para
cor e o desenvolvimentos de mecanismos de diálo- a criação de medidas e mecanismos capazes de
go e participação que garantam a inserção desses quebrar a invisibilidade do RI e de romper a cul-
grupos e de sujeitos nos processos de formulação, tura institucional, estabelecendo novas proposi-
monitoramento e avaliação das políticas e ações. ções e condutas que impeçam a perpetuação das
O aspecto fundamental que esse modelo oferece iniquidades.
é a possibilidade de analisar o racismo e seus efeitos
na saúde, além de visibilizar modos, momentos e Ações afirmativas e outras medidas
oportunidades de ação.
Como dito aqui, com o racismo, outros eixos de A eliminação das disparidades raciais na saúde e
subordinação atuam para a produção de quadros a produção de respostas adequadas para a promoção
de destituição e vulnerabilidades. Essa codeter- de saúde das mulheres negras requerem o desenvol-
minação possivelmente está associada aos graves vimento de ações afirmativas em diferentes níveis,
indicadores sociais e de saúde das mulheres ne- o que implica o estabelecimento de medidas singu-
gras que certamente participam das altas taxas de larizadas, baseadas em diagnósticos aprofundados
morbidade e de mortalidade precoce ou por causas e igualmente singularizados, os quais devem funda-
evitáveis. mentar o desenho de processos, protocolos, ações
Em cada um dos momentos apontados no mo- e políticas específicos segundo as necessidades e
delo, mecanismos seletivos de privilegiamento e singularidades de cada grupo populacional. Assim,
barreiras – por exemplo, linguagens, procedimentos, é preciso estabelecer medidas facilitadoras da apro-
documentos necessários, distâncias, custos, eti- ximação e acesso, de modo a superar as barreiras
quetas, atitudes etc. – poderão ser interpostos sem interpostas ao exercício do direito à saúde pelas
qualquer mecanismo de controle ou barreira, difi- mulheres negras. É necessário, também, utilizar
cultando ou impedindo a plena realização do direito métodos e linguagens inteligíveis, que respeitem
e o atendimento às necessidades expressas. Assim, e dialoguem com os diferentes valores, crenças e
instaura-se em cada um deles, e em todo o percurso, visões de mundo, os quais devem ser produzidos com
lógicas, processos, procedimentos, condutas, que a participação dos sujeitos a que se quer beneficiar;
vão impregnar a cultura institucional – o que, se não além de priorizar ou incluir diferentes grupos de
os torna invisíveis, faz parte da ordem “natural” das mulheres negras – que vivenciam condições seme-
coisas. Por essa razão, são referidos como inexis- lhantes de idade, de local de moradia, de geração, de
tentes na visão daqueles ainda não adequadamente orientação sexual, de condição física e mental etc. –,
preparados – ou interessados – para efetuar diagnós- de vendo ser adequadamente informados em cada
ticos mais precisos a partir de visões mais amplas uma das fases da tomada de decisões terapêuticas,
do que aquelas oferecidas pelo modelo biomédico. de processos e de políticas.
Essa incapacidade é um dos fatores subjacente às Um aspecto importante das ações afirmativas
dificuldades ou impedimentos ao alcance pleno das refere-se à criação de estímulos à formação de su-
possibilidades e resultados das ações, programas e jeitos pertencentes aos grupos discriminados nas

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profissões da área de saúde − o que inclui a carreira ou oportunidades, que são: acesso e utilização;
médica, mas não apenas ela − e de medidas que per- processos institucionais internos; resultados das
mitam sua ascensão funcional aos mais altos cargos ações e políticas públicas. As ações relativas a cada
de tomada de decisão, além de requisitar a adoção um dos níveis estão descritas a seguir.
de atitudes que estimulem, reforcem e garantam a
permanência desses profissionais nos territórios Acesso e utilização
de origem ou naqueles com maior necessidade,
incluindo modelos apropriados e sustentáveis de São ações para ampliação do acesso e utilização
gestão pública dos serviços e do sistema. das políticas públicas de saúde, incluindo ações de
Não se pode negligenciar a importância da cons- promoção pelas mulheres negras, e devem permitir
tituição de processos de monitoramento e avaliação a aproximação física e cultural entre instituições
consistentes, que privilegiem indicadores sensí- públicas e as mulheres negras. Tais iniciativas de
veis, capazes de serem manejados pelos diferentes aproximação implicam não apenas eliminação de
sujeitos envolvidos e adequados à mensuração das entraves, que impedem o agente público de alcançar
disparidades raciais na saúde e seus processos de as mulheres negras e cada uma entre elas, como
eliminação. Esses processos, que precisam incluir a também em maior disponibilização de infraestru-
participação das mulheres negras, devem se apoiar tura acessível a elas. Ou seja, deverão envolver
em ampla divulgação de informações acerca dos esforços institucionais em deslocar-se – fisicamente
benefícios e das necessidades de utilização de indi- e em relação à cultura institucional – em direção a
cadores de monitoramento e avaliação apoiados na esse grupo excluído ou sub-representado. Alguns
informação sobre raça/cor – um modo de diminuir exemplos de ações possíveis nesse nível envolvem:
resistência e estabelecer confiança.
Por outro lado, é preciso intensificar a agenda de (1) diagnóstico das características da popula-
pesquisas em saúde da população negra e das mu- ção segundo raça/cor e sexo/identidade de
lheres negras com a realização de editais de fomento gênero;
com financiamento adequado, capazes de estimular, (2) ação integrada a outras políticas setoriais
inclusive, inovações conceituais e metodológicas como educação, emprego, previdência e
necessárias à melhor aproximação e análise da assistência social;
complexidade envolvida nas iniquidades raciais (3) treinamento de equipes para abordagem
em saúde, especialmente aquelas que atingem as singularizada e para enfrentamento do ra-
mulheres negras. cismo;
Uma das contribuições fundamentais para a eli- (4) estabelecimento de metas de cobertura para
minação das disparidades raciais em saúde e para a grupos populacionais excluídos;
promoção da saúde das mulheres negras refere-se à (5) inserção da promoção da equidade racial e de
eliminação do RI, que impregna o Sistema Único de gênero como dimensão estratégica e objetivo
Saúde em todos seus níveis e esferas. dos ciclos de planejamentos e orçamento
Além de reconhecer a determinação legal esta- públicos, especialmente da saúde, nas três
belecida por meio de diferentes instrumentos, é esferas de gestão;
preciso reconhecer que a qualificação de gestores (6) ampliação da representação negra, com
e profissionais, além de usuários e população em equidade de gênero (de modo proporcional
geral, é fundamental para a produção de mudanças a sua participação na população geral);
consistentes na cultura institucional. (7) estabelecimento de metas de eliminação do
Essas mudanças devem ser capazes de alterar RI e das disparidades raciais e de gênero nas
as formas de atuação cotidiana tanto quanto os políticas;
processos de planejamento, monitoramento e ava- (8) ampliação da participação negra, com
liação, e de envolver ações em três diferentes níveis equidade de gênero, e das informações para

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a promoção da equidade na comunicação sexo, e explicitação da realização de metas
pública e privada; diferenciadas para as mulheres;
(9) ampliação do investimento público dirigido à (6) estabelecimento de protocolos e pactuações
eliminação do racismo e à iniquidade de gêne- para atuação intersetorial e interinstitucio-
ro; nal;
(10) ampliação das redes do Sistema Único de (7) inserção de mulheres negras nos processos
Saúde, especialmente aquelas sob ges- de planejamento institucional;
tão pública estatal, nas regiões de maior (8) inserção de objetivos de eliminação do RI
presença de população negra. e das disparidades raciais e de gênero nas
diferentes ações e políticas institucionais;
Processos institucionais internos (9) inserção de indicadores de melhoria da quali-
dade da prestação de serviços para mulheres
Envolvem aqueles processos voltados para os negras nos critérios de avaliação de sucesso
modos e movimentos organizativos internos, de e qualidade das políticas públicas;
modo a habilitá-los a responder às necessidades (10) divulgação ampla de processos e resultados
expressas ou coletadas referentes às mulheres das medidas adotadas e seus resultados;
negras, implicando, também, disponibilizar ações (11) participação de mulheres negras na defini-
e serviços capazes de atender de modo adequado ção de indicadores de avaliação;
as diferentes mulheres negras, diminuindo e eli- (12) utilização das informações originadas nos
minando as diferenças na prestação de serviços e processos de monitoramento e avaliação no
em seus resultados. São exemplos de ações nesse novo ciclo de planejamento;
nível: (13) incorporação de indicadores de enfrenta-
mento do RI e de eliminação das dispari-
(1) estabelecimento de normas e protocolos dades raciais aos critérios de avaliação de
institucionais dirigidos ao enfrentamento diferentes políticas de saúde;
do RI; (14) ampliação da disponibilidade de treina-
(2) criação e funcionamento articulado de me- mentos para a capacidade institucional de
canismos institucionais de enfrentamento diálogo e acolhimento da diversidade e para
do RI, com montante adequado e fonte o enfrentamento do RI;
estável de financiamento, transparência, (15) desenvolvimento de processos de avaliação
prestação de contas; periódica da competência institucional para
(3) comunicação pública de compromisso com enfrentamento do RI;
a diversidade e com o enfrentamento do (16) posicionamento dos mecanismos de enfren-
racismo; tamento do RI e eliminação das disparidades
(4) estabelecimento de ações afirmativas para raciais e de gênero nos estratos superiores
ampliação da participação de mulheres da hierarquia administrativa;
negras e para ampliação da diversidade (17) definição de estratégias de acolhimento às
cultural, racial e de identidade de gênero mulheres negras e à população;
na gestão e nas equipes de trabalho, nos (18) adequação da infraestrutura de serviços
diferentes níveis de gestão: programas de às necessidades das mulheres negras e da
qualificação, cotas, treinamento das equipes população negra.
para maior aceitabilidade etc.;
(5) ampla divulgação de estratégias, ações Resultados das ações e políticas públicas
e resultados das ações institucionais de
acordo com o impacto sobre os diferentes Nesse nível, as ações empreendidas devem ser
grupos populacionais segundo raça/cor e capazes de realçar a mudança institucional, vista

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como adoção de práticas capazes de aproximar É nessa perspectiva conceitual que as atrizes e
os objetivos institucionais das necessidades das atores da rede de pesquisador@s, gestor@s e líderes
mulheres negras. Assim, as ações envolvem os do movimento social vêm construindo o campo
esforços institucionais de eliminação do RI a “saúde da mulher negra”.
partir da atuação sobre os resultados das políticas
públicas, sendo: Referências
AYRES, J. C. R. M. et al. O conceito de
(1) pactuação de metas sanitárias de redução vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas
da morbimortalidade segundo raça/cor, com perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D.;
ênfase na morbimortalidade de mulheres FREITAS, C. M. de. Promoção da saúde: conceitos,
negras de diferentes idades, orientações reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz,
sexuais, condição física e mental, território, 2003. p. 117-140.
entre outros, visando abarcar a totalidade
dos grupos diferenciados de mulheres ne- BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.632,
gras; de 15 de dezembro de 2004. Aprova o Regimento
(2) adoção de planificação intersetorial que Interno do Comitê Técnico de Saúde da População
permita a ampliação da cobertura das polí- Negra, e dá outras providências. Brasília, DF, 2004.
ticas de seguridade social segundo raça/cor BRASIL. Secretaria Especial de Políticas de
e grupos específicos – usuários e usuárias de Promoção da Igualdade Racial. Política Nacional
saúde mental população de rua, entre outros de Saúde Integral da População Negra. Brasília,
– articulando-se, também, com políticas de DF: Seppir, 2007.
moradia, transporte e emprego;
BRASIL. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009.
(3) ampliação das noções de direito pelas mu-
Institui a Política Nacional de Saúde Integral da
lheres negras;
População Negra. Brasília, DF, 2009.
(4) ampliação da participação de gestores e
profissionais nas ações e políticas de elimi- BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui
nação do RI e das disparidades raciais e de o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos
gênero na saúde. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de
1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de
Cabe ressaltar que o monitoramento e a avalia- novembro de 2003. Brasília, DF, 2010.
ção dos processos necessários à eliminação do RI BRAVEMAN, P. Health disparities and health
nos três níveis apontados aqui requerem a consti- equity: concepts and measurement. Annual
tuição de sistemas intra e interinstitucionais com Review of Public Health, v. 27, p.167-94, 2006.
autonomia, capacidade operacional e competência BRAVEMAN, P.; GRUSKIN, S. Defining equity in
gerencial, adequadas ao desenvolvimento contínuo health. Journal of Epidemiology & Community
e sustentável das ações necessárias ao cumprimento Health, v. 57, p. 254-258, 2003.
de seu mandato. Tais atribuições requerem, tam-
BUSS, P. Determinantes sociais de saúde.
bém, transparência de diálogo permanente com a
In: AULA INAUGURAL DO CURSO DE
sociedade civil, especialmente com as diferentes
ESPECIALIZAÇÃO DE GESTÃO DE SISTEMAS
mulheres negras e suas representações.
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Por outro lado, é fundamental que, no lado da so-
de Saúde Pública. Disponível em: <http://bit.
ciedade civil, se constituam múltiplos observatórios,
ly/2a1jYTS>. Acesso em: 11 jul. 2016.
articulados entre si, de modo a garantir a replica-
bilidade e a sustentabilidade das ações ao longo CARMICHAEL, S.; HAMILTON, C. Black power:
do tempo, permitindo, então, que aprofundem seu the politics of liberation in America. New York:
alcance de mudança do Estado e suas relações. Vintage, 1967.

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Acesso em: 22 jul. 2016.

Recebido: 08/04/2014
Aprovado: 03/07/2014

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