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Produção editorial
Debora Fleck
Isadora Travassos
Marília Garcia
Valeska de Aguirre
Editora-assistente
Larissa Salomé
Revisão
Cristina Parga
Foto de capa
Sergio Fonseca
Imagens internas
Marília Garcia
Produção grafica
lsabella Carvalho
C IP -B R A S IL . CA TA LO G A ÇÃ O-N A -FO N TE
SIN D IC A T O N A C IO N A L D O S ED ITO R ES D E LIV RO S, RJ
A986M
Azevedo, Carlito
Monodrama / Carlito Azevedo. Rio de Janeiro:
7Letras, 2009.
156p.
Cultural”
IS B N 9 7 8 - 85- 7 5 7 7 - 6 2 5-4
09-4729. c d d : 869.1
c d u : 8 2 1. 1 3 4 . 3( 8 1) - !
Em blem as 11
Um imigrante
Os rostos
Entre tantos
Uns olhos negros
Agora o empresário
Agora ele está lá
No saguão do banco
Ela tem um sanduíche
A gente podía
Sem desgrudar os olhos
M as agora quem
Um imigrante tomando
N inguém se chama Soviete
As balas
Subimos e subimos
O tubo 31
Paraíso
Purgatorio
Inferno
H. 135
H.
neijo
Beijt
Motores
R itual
Para M arília
U m im igrante
bate fotos trepado
no toldo de
um quiosque
a m ultidão grita
em frente ao Banco
aparece um m alabar
aparece um pastor
im agens da pura
desconexão
aparecem as m ontanhas
lilases do Cáucaso
mas na foto buscada só
aparece a im agem
da m enina
com seu coelho
de pelúcia
sua dobra
cor de ferrugem
contra a lum inosidade
O s rostos
se sucedem
nos m onitores
den tro da
sala de segurança
do Banco
com o projeção
de slides
um a pequena
vibração
em um dia cheio
de vibrações
Uns olhos negros
que vi na Turquia
reaparecem
no rosto
d o novo inqu ilin o
para água q uente
basta girar este
disco de cores até
o rubro
o incandescente
A economia já p revia
o desabar da chuva
no interstício de algum
cálculo diferencial?
pensa o jovem lírico
em frente à janela
Agora ele está lá
sentado sobre
a m áquina de lavar
do subsolo
m astigando pasteizinhos
e lendo D e Lillo,
digo, lendo M odiano
ele tem sem pre
cigarros 011 flores
e envia to d o o tem po
cartões-postais
“gostei de im ediato
do novo inquilino
do seu jeito de
segurar a caneta”
N o saguão do banco
as paredes estão
cobertas de tapeçarias
representando
bardos célebres
da Ásia central
U m a descoberta sexual:
aqui ninguém trepa
depojs das m an ifes tações
A gente podia
conversar mais vezes
não am igos certam ente
mas tam pouco inimigos
adorei aquela tarde
no hotel do C osm e Velho
o p o n to mágico
do m orro na janela
“O lírio gravado no
om bro de M ilady
perm itiu a D ’A rtagnan
reconhecer nela
um a envenenadora
já p u n id a no passado
pelos seus crim es”
C o m o a irm azinha
caçula de um co n to russo
você saltava da cama
com um cobertor
sobre os om bros
e rosnava im itando
um pinsher
para o ondu lar das cortinas
na p en u m b ra fluo
do q uarto de hotel:
N ós os vemos
(você segurando firme
em m inha asa)
eles não nos veem
Adorei aquela tarde
110 H otel da Lapa
eu nunca im aginei
que você tivesse
seios tão apóstolos
seu coração está aí atrás?
U m falso ator
no q uarto ao lado
decorava a peça russa
tentava dizer ao outro
com as pontas dos dedos
o que é a fidelidade
do hom em que
ele am a
N inguém se cham a Soviete
- Alguém se cham a Soviete
- Um soviete é um m am ífero
- Todo soviete é m ortal
Q ual a palavra
que escrevemos
no vidro do Banco
com as pontas dos dedos
sobre a poeira branca
das bom bas
e da espum a
no vidro do Banco?
U m a ordem m acabra chega
pelos fones de ouvido
do segurança
o lírico pensa
o am or não pode morrer
o am or está seriamente
ameaçado
en q u an to adm ira
um a adm irável irrupção
de herpes no espelho
(admirável m u n d o novo)
ele im agina que alguém
precisa fazer algum a
coisa o am or está querendo
respirar d en tro da câm ara
de oxigênio do saguão
sem oxigênio algum
para respirar
o segurança chega
ao saguão
e vê agora
p o r trás
das portas de vidro
e à frente
das lentes espelhadas
um grupo de
m anifestantes
As balas
são de borracha
o amor
está salvo
N em portuguesas
am antes de esquilos
trepam
depois das manifs
e meetings
ele diz desolé
Subim os e subim os
e subim os
mas no alto da escadaria
não havia T em plo do Sol
só um falso C ardenal
vendendo sortilégios,
digo, souvenirs
Então deseemos
e deseem os e deseemos
param os no quiosque
para urna Coca-cola
e perguntam os
ao im igrante
que batia fotos
qual o nom e de sua filha
com o coelho
ferrugem -dobra
de pelúcia
Ela?
Foi q u an d o a luz
voltou e vimos
o rosto da jovem
que se picava jun to
à m ureta do Aterro,
a cam iseta salpicada,
a seringa suja.
“N e n h u m poem a
é mais difícil
do que sua época”,
você disse
em m eu ouvido
sem que eu soubesse
se era a ela que se
referia ou se ao livro
que passava das mãos
para o bolso
da jaqueta.
D istinguim os
lá longe
a Ilha Rasa,
calçamos
os tênis
e seguimos
sem atropelo
sentido enseada.
PARTE 2 : PURGATÓRIO
(nas Paineiras)
eu disse: vo cê
pod ia p o r favor
responder m ais um a
vez àquela m in h a questão?
eu disse: vam os aproveitar
esse sol frio, belo,
que furou as nuvens,
essa boa cam in hada
até o estacion am ento,
e conversar mais um
p o u co sobre aquilo?
eu en ten d i bem
o que vo cê disse
mas depois acabei
m e distrain d o, m e
distraí co m algu m a
coisa, não sêi bem
o quê, talvez
a coragem daquelas
m ulheres sob a
queda da água
tão fria q u e exp lodia
roch ed o abaixo
ou o que gritavam
aquelas m ulheres sob
a q ued a da água
tão fria que explodia
rochedo abaixo,
talvez os lagartos
que, assustados,
disparavam espavoridos
rochedo acim a,
espessura a dentro,
eu disse: os lagartos
m udavam de cor.
o fato é que eu
queria que p o r
favor você me
repetisse aquilo
que m e disse,
será que você poderia
repeti-lo? eu disse:
às vezes
eu sonho com
um grande acidente,
e eu às vezes sonho
com átom os se reunindo
para gerar aquilo
que podem os cham ar de
o grande acidente,
the big one,
com que cada um
cedo ou tarde
vai ter que se
enfrentar e ver.
eu disse: e é sem pre
com o um país
se d ando conta
de que en tro u
em guerra, um dia
um país se dá conta
de que a guerra
de que todos falam é
a sua guerra, o
país é o seu
país, e o que cham am
de a guerra é a
sua vida, eu disse:
p o r exem plo,
abra os olhos e veja:
n u m zeptossegundo
não há mais lagartos
agora, nem rochedo
agora, o u queda
d ’água tão fria
agora, ou m ulheres
gritando agora
as coisas mais
singulares
e irrepresentáveis,
e tu d o se passa
em um a espécie
de videostream ou
“u m a lacuna na
vida ou na linguagem
p o r o n de penetram
nossos a n tagonistas”.
eu disse: viu?
é exatam ente assim
que ocorre
em m eus sonhados
acidentes
eu m e lem bro
que você falou
qualquer coisa que
tinha a ver com
presença e metafísica.
eu disse:
ah, ali está o carro
o 4x4 verm elho
bem debaixo
daquelas árvores,
debaíxo daquela chuva
de pétalas amarelas,
roxas, desm anteladas,
o u tro dia qualquer
antes de sua volta
aprenderei o nom e
de todas essas árvores
sobre as quais
você m e pediu
inform ações que
eu não estava
tam pouco
apto a fornecer,
está bem?
m e ocorreu agora
lhe perguntar se você
seguiu em frente
com os escritos?
você gostava m uito
dos escritos,
de escrever,
com o dizíam os,
e você tin h a um as
ideias verdadeiram ente
lum inosas sobre isso.
você não vai me
levar a mal e vai
m e fazer esse favor,
de repetir o que
respondeu à m in h a
questão, não é?
vai significar
m uito para m im , sabia?
bem , talvez
você não se lem bre
afinal tudo era meio
in terrom pido
pelas risadas que a
gente dava e pelo
espanto que a gente
sentia ao ver que
nuvens enorm es,
as mais gigantescas
da tem porada e, de fato,
da cor do chum bo,
da cor da cor do chum bo,
e nem que eu repetisse
isso m il vezes
daria u m a ideia de com o
eram da cor da cor do chum bo
aquelas nuvens
que cobriam com pletam ente
a paisagem que a gente
tin h a feito tanto esforço,
tin h a cam inhado tanto
tem po para ver,
para achar um a localização
mais alta possível
para ver e acabou
não d an d o certo
ou m elhor,
tudo deu certo se
com o você disse
o nosso plano secreto,
secreto até para
nós mesmos,
era procurar
o m elhor m irante
das Paineiras para ver
as nuvens mais colossais
e cor do chum bo
e cor da cor do chum bo
da tem porada cobrindo
o céu e a paisagem, não é?
o que não seria
de m odo algum
desprezível
do p o n to de vista
do m ístico que dizia
fum ar para pôr
u m pouco de névoa
entre ele e o m undo.
eu disse: eu preciso
lhe dizer o que gravei
com o sendo o que
aproxim adam ente
você disse,
m as é claro que
não vai ser o
que realmente você
disse, é apenas
um a adaptação
e que p o r isso
m esm o só pode existir
em baciando a
inform ação original,
só se dará com o pálida
som bra da coisa
em si brilhante e lum inosa:
o seu objeto singular.
e se lhe repito essas
palavras não é para que
você pense que eu
p o r um instante sequer
im aginei que você
fosse capaz de dizer
um a coisa óbvia,
por favor, não lhe passe
algo do gênero
pela cabeça,
é apenas para que
você saiba do que
estou falando e me
recorde e explique,
devolvendo ao tópico
toda a com plexidade
que
a contragosto
lhe subtraí
eu disse:
acho que você tinha
que pensar bem
naquilo dos escritos,
eu gostei dos seus
escritos desde sem pre,
você sabia?
eu sinceram ente não
sei com o você conseguiu
chegar de m odo tão rápido
e definitivo a algo
que p ara m im p erm anece
indefinível e
inesgotável
fonte de sobressaltos.
o q u e você escrevia
tin h a a capacidade
de p ro d u zir de im ediato
com tão poucas palavras
algo q ue estabelecia
um a com pleta relação
entre consciências
desencantadas
que m e deixava
absolutam ente encantado.
eu disse:
claro que vão deixar
você escrever p o r lá,
tem cabim ento um a dúvida
dessas? ei
para que tipo de lugar
você pensa que está
sendo levada?
Você a reconheceu
com o sendo a m enina
coreana da C entral
de Fotocopias do C atete
aquela com
cam iseta salpicada
presilhas fluo
m ureta
e hipodérm ica pendente
do braço
e me abraçou e
me olhou com um olhar
que me atravessava
e ia atingir
atrás de m im
bem lá na frente
no bazar futuro dos dias
110 m eio das bugigangas
espelhadas, espalhadas
um o u tro crepúsculo cinza
um a o u tra noite chuvosa
e sem luz
em que veríam os
o inferno refletido
nos olhos de um
vira-lata que cruzava
as pistas do aterro
varado pelos
feixes dos faróis
(relâmpagos de
nenhum céu)
dos 4x4
a toda velocidade.
G A R O TA C O M X IL O F O N E E FLO R ES
NA T E L E G R A P H AV.
(guando ela
tão incrivelm ente linda
com o você dizia
escrevia os poem as que escrevia
e cu entendo que não levássemos tão a sério os poemas que ela
lao incrivelm ente linda
escrevia
sacando de d en tro de um a bolsa ácida com pins coloridos
[e motivos op
os menores lápis de cor que vim os em toda a vida
para im provisar
,i qualquer h ora e sobre qualquer superfície
os poem as que ela escrevia
nós dizíamos que não havia m esm o nada ali
,ilém do pitoresco
n.ula mesm o
.to menos para dois rapazes passados dos trinta
bebericando café entre desespero e risos explosivos
indo e vindo de países diversam ente destruídos
c equilibrando entre os dedos
ii,s moedas contadas
r o lun do am or
f com vontades contrárias e confusas
de deslocam ento
i invisibilidade
tu.is refletidos no espelho de um café em Berkeley
i tendo sim provavelm ente toda a razão
ao dizer q u e não havia m esm o nada ali
quando ela escrevia os poem as
sem pre os m esm os
que ela escrevia com aqueles dedos que nos impressionavam
cheios de anéis de pedra b ru ta
e aqueles olhos
chapados
olhos verde-rã
não havia nada ali
a não ser talvez um hom em
sem pre o m esm o
que reencontrava enfim um a garota
sem pre a m esm a
e dizia sou eu
e sem pre um a revoada de tão incrivelm ente fantásticas
[flores repetia sim veja é ele
e no fim das contas u m a
sem pre a m esm a
garota concordava sim sim é você mesmo e todos os seus colares
só para depois tornarem a se perder um do outro
com o n u m a espécie de o u tra mágica revoada
e isso sim havia
em todos
em absolutam ente todos os poem as dela
tão incrivelm ente linda sim
e lá se vão dez
ou treze anos
e eu sim plesm ente n u nca
os/a
consegui esquecer
N u m dancing é mais difícil
pela chuva de ouro nos cabelos,
e a viagem circular absoluta pela
pista. M as o século 21 preservou
ainda as bibliotecas, sistem a de
sistem as que nos p erm ite pressupor
que em sua bolsa convivam ,
com o d ois faunos se encarando,
L ancôme e La Celestina.
Mas bibliotecas são tam bém
esforços infinitos, fluxos im paráveis,
lum inescentes, olhos em
ziguezague, vibração de mãos
pousando em páginas antigas,
com m andíbulas de bolor, e
todos os relâm pagos que há nisso.
U m derradeiro “m otivo” seria o da
Jovem E m U m C arro Veloz
Falando Ao C elular; clausura
móvel o nde soletrar palavras de
am or e perder tudo, manipulai-
as interm itencias do desejo (e
perder tu d o), im olar violetas
retardatárias. Q planeta tam bém
imola seus retardatários. E ntre
operários na calçada, no frio,
aguardando a sirene da m udança
de turno? Talvez, talvez. D e
certo m odo ela se parece cada
vez mais com o que escreveu
o seu poeta favorito:
“Piccolo, sem pre piú piccolo.
Pigm eo, sem pre piú pigm eo”.
Por isso nem dancings, nem
bibliotecas nos bastam . N em
a balada do autom óvel insone.
Isso, e nem a cam a alta onde
agora, co n tu d o , sorri
esse shakespeariano anim al
que logo existe.
C om o um filme q u e necessita de 24 q u ad ro s por segundo
para que a im agem apresentada se m antenha integra na
tela e à nossa vista, talvez o ser h u m an o seja um a acele
radíssim a repetição_de si m esm o que se sustenta em seu
espetáculo e visibilidade num a proporção de 100 quadros
por bilionésim o de segundo. D e m odo que, por exemplo,
aquele jovem que está entrando pelas portas da discoteca
to m um colete de explosivos sob o pulôver negro conti
nué pacificam ente a ser aquele jovem que está entrando
pelas portas da discoteca com um colete de explosivos sob
o pulôver negro, e aquela pálida garçonete atrás do balcão
de um café do aeroporto aguardando apreensiva a aproxi
mação da m ãe de seu nam orado que se atrapalha toda com
.1 bolsa de o nde retira urna pistola 9 m ilím etros continue
.1 ser nada mais do que aquela pálida garçonete atrás do
balcão de um café do aeroporto aguardando apreensiva a
.iproximação da m ãe de seu nam orado que se atrapalha
inda com a bolsa de o nde retira urna pistola 9 m ilím etros,
ludo de form a íntegra e ininterrupta. O u quase. Pois as-
mui com o a diferença ou sabotagem em um único foto-
l'.i.una entre os 24 que deslizam divertidos 011 solenes por
ioda a extensão de seu mísero segundo cinem atográfico
11.10 chegaria a alterar a im agem que vemos na tela, dada a
p u raried ad e do poder de percepção de diferenças de nos-
«1 hum ano olhar, a possível metamorfose daquele jovem de
pulôver negro explodindo dentro da discoteca, ou da pálida
garçonete atrás do balcão com o peito perfurado por um a
bala 9 m ilím etros, e m esm o considerando-se a possibili
dade de u m a m etam orfose extrem am ente esdrúxula com o
em boi, tapir ou bebê R adinbranath Tagore, desde que
lim itada a um único quadro entre os io o daquele bilio
nésim o de segundo, não seria captada p o r nosso precá
rio sistem a retiniano, e só lograríam os perceber de fato a
fenom enal e invejável con tin u id ad e do pulôver negro do
jovem entre os destroços de discoteca e gente recolhidos
pela polícia e transportados para a calçada cheia de vento
e do piercing sobre o lábio da pálida garçonete caída por
trás do balcão sobre u m a poçazinha de sangue. N u m con
certo em hom enagem a W itold Lutoslawski, co n tudo, o
anjo boxeador logrou perceber diversas m etam orfoses da
pianista M arth a A rgerich em cervo negro, dia de inverno,
borra de vinho, chuva de ouro e outros prodígios incontá
veis, m etam orfoses essas que, entretanto, não chegaram a
d u rar nem um bilionésim o de nanossegundo, o que per
m itiu que para os outros espectadores aquela bela criatura
de longos cabelos ao piano continuasse a ser du ran te todo
o transcorrer do concorrido espetáculo a renom ada pianis
ta argentina M arth a Argerich.
que não nos protege,
é antes cúm plice, ou m en to r
intelectual dessas ruínas,
de nossas m entes estropiadas.
Ao passar p o r certas casas e rúas
suburbanas, ocorre às vezes
de nos depararm os com algo
que brilha deslum brante e dissim étrico,
e nos com ove a p onto de nos
perguntarm os se de sua aparição
escandalosa, sua cauda
lum inosa de átom os e vazio,
poderão surgir algum día
moças asseadas em vestidos
de flores, conduzindo pela
mão crianças bem penteadas
para a Escola M unicipal,
o Sonho M unicipal.
Parei um dia em um a dessas
praças e, deitado sobre a
gram a, m e pus a escutar a
desconexão absoluta de
todas as falas do m u n d o , de
todos os sonhos do m undo.
Ao levantar-m e para buscar
um pouco de água no tanque
vazio vi (m e encarava)
um a ratazana que ainda
assim m e lem brou
D ebra W ingers
abandonada no deserto.
UM C O N F E IT E IR O D A C ID A D E D E X ...
O B SE R V A A F O T O D O A S T E R O ID E 4 3 3 ERO S
C O N T R A U M F U N D O D E E ST R ELA S N U M
Ú N IC O P IX E L IL U M IN A D O
Esta
—p o r exem plo —
abriu as asas,
pardas,
contra o fundo
alaran jado
de um m uro
em ruinas:
fincou-se 110
alto da pedra.
Ao vento, sua dança
imóvel
redefine um
céu oblíquo,
a n tro de nuvens
sim ultâneas,
assustadoras.
(M eu pai
a trouxe para
a casa
um dia
antes
de nos deixar,
talvez por
isso tenha
sobrevivido
tanto tem po
a tantas
intem péries.)
Em seus
raros m om entos
de elevação,
quan d o fica
n u m pé só,
imagina-se
a orquídea
da pedra.
Terráquea,
pisa a p rópria
bosta e
a alheia,
aceita as
nodosidades
e pronuncia
constrangida
seu lam ento
de im peratriz:
“ —Essas ervas
flutuantes,
caídas sabe-se lá
de que cúpula
radiosa, serão
o envenenam ento
de qual
paixão?”
Agora to rn a a
descer para ciscar,
bicar seus grãozinhos
de gordura
que se esfarelam
nas mãos
do m enino
que os
arremessa
quase se
m ijando de
m edo,
mas atendendo
aos gritos
dos tios
gordos e
desargentés
que o despedaçariam
com a pior
das ofensas.
A neblina que cai
pela m anhã
sobre o terreno
baldio, enlam eado,
surpreende-a
em sua túnica
asfixiante,
sem pre
florescendo e
sem pre
odiando
o sexo.
A transparencia
dessa hora
lem bra a
transparencia
da asa
de urna mosca,
a da pálpebra
de u m a galinha,
e deve m uito
às duas.
H okusai
não ignoraria
o sortilégio
am oroso
dessa
galinha,
o coração
de fogo
que a im pelia
às vezes a
correr pelo
quintal
em p uro desperdício
aerodinâm ico
Velha,
anda livre,
mas já viveu
atada p o r um
barbante
apodrecido
a um
lim oeiro
cintilante
de teias
de aranha.
Sabe que nada mais agora
poderá m over sua poesia.
N em o vestido de flores da
filha do tipógrafo, nem os
N em aquela vez,
q uan d o pensou ouvir
o ru m o r do m u n d o percutindo
as paredes do O uteiro
periferia, soltando no ar
grossos rolos de fum aça negra,
sobre p in tu ra
holandesa
e agora o repito
para m im m esm o
en q u an to observo o
desabar da chuva
do lado de fora do
hotel o nde trabalho
um a atividade espiritual
sem dúvida
Q u e m diz luz diz
esse baixar de pálpebras
da aplicação de ideias
esquem áticas e rígidas
e se u m a nuvem de m ateria
se chocasse
com outra
de antim atéria?
Você: por isso não existe am nésia
você: por isso o sol é um a tautologia
de um só lance m eu olhar
abraça os olhos da alpinista triste
e diagnostica
pánico de check-in
longe daqui
en q u an to olho para o relógio
longe daqui
no m u n do interm ediário da rua da Carioca
longe daqui
tenho amigos que me am am
um poem a de
seu poeta preferido
no dia do meu
aniversário
“Essa luz, você sabe, eu detesto essa luz”
Eu guiava mas olhei para onde
Ela estava apontando
A enseada
A água cinza chum bo
O céu cheio de prism as
Em silêncio pensei:
Pode acreditar!
Em vez disso
Perguntei se ela queria com er algo
A ntes de subirm os a serra
E sorriu
M as algo q u e envolve
U m a fronteira
O lh ar a m o rte de frente
E reconhecer seu poder
“E p o r Rafael”
C orrigiu rapidam ente
“E p o r esse m agnífico arroz de brócolis”
Disse depois de um a garfada
E sorriu
—o Cap’tain Z om bi —
dessincronizadas
e da m esm a banda sonora
do trava-línguas
e do senso com um
sim
“o único lugar do m u n d o
o nde um cônego e um delegado
discutem C. G. Jung de dedo em riste
até tom barem bêbados
abraçados
sobre um a travessa de
inoelas condim entadas”
D uas ou três vezes ao dia você
tainbém gostava de dirigir até à casa
d a estudante de cientologia e ficar olhando
de d entro do carro para as janelas cobertas de gelo
do prédio verm elho-tijolo
da estudante de cientologia
olhando
de d entro do carro para o céu azul
sangrado sobre o prédio verm elho-tijolo
da russa ilegal
sua fornecedora de sku n k
as palavras de que
tanto necessitaria
um papa-form igas
A foto do santuário de Delfos
no Edipo de Pasolini
colada no painel do seu carro
no espelho do banheiro
e na caixa de remédios
m e repete
que você não é m enos triste
do que qualquer pessoa
que eu conheça
nesta cidade
de im igrantes
fantasmas
à som bra do
obsessor
a)
O cheiro de algas
m e traz outro acesso de tosse,
dessa vez felizm ente n en h u m sinal
de sangue no lenço enrugado.
b)
Aqui é um ar esfaqueado, um (...)
c)
O cantor de frevo
era o m eu contato em Kuala Lum pur.
D aí vieram os estranhos acidentes,
a confiança se esvaindo.
A carta selvagem
falando nos “patos de Pequim ”.
d)
A qui é co n tu d o m elhor (...)
A qui...
Aqui o m elhor são os canais de áudio (...)
A qui...
e)
O s vizinhos não estranham
os envelopes diários, sedex.
C om o esse de hoje, de Barcelona:
“efeitos de realidade” diz, “sistem a de velocidade
e de co ntinuidade
relativas” diz, “turbulência” diz,
“aceleração” diz, “constelação” diz.
f)
F um ar piora. Algas,
g)
Abro a gaveta: um azul N ovo Testam ento
e a foto dela
em kl folheando
um núm ero de Sulfur.
h)
A tatuagem dela: dragão. Sím bolo
da solução dos contrários.
i)
C om Pola aprendi hoje a palavra quidditas.
V ontade de nadar, nadar.
H á tam bém
ao lado da cam a
a foto daquele
escritor que disse
na entrevista ter
tido um irm ão gêmeo
e quan d o bebês
chegaram a ser
tão idênticos
que para diferenciá-los
os pais am arravam
fitas coloridas em
seus p unhos
um dia foram
esquecidos na água
do banho, da banheira
um deles se afogou
e com o as fitas
se tin h am desatado
na água ensaboada
nun ca se soube qual
dos dois tinha m orrido
“se ele
011 eu”
M unida de com prim idos e volumes de historia natural
você passa horas ten tan d o im aginar o m undo
há trezentos m ilhões de anos
q uan d o por exemplo
as libélulas
m ediam trin ta centím etros
de extensão
Ela m e
m ostrava os barcos que
chegavam no cais
clandestino
m esm o em noites tempestuosas.
O s barqueiros pareciam
respeitar a essência
vertiginosa
das m ercadorias
q ue transportavam
sob água e trovão
em barcos que giravam
sob água e trovão,
em barcos que giravam
sobre ondas crespas,
“G iravam com o as chamas
giravam no fogo?”
Ela m e disse
“um a vez perguntei ao
barqueiro o que fazia
com o dinheiro
que ganhava
transportando
to d a aquela
gente
e ele:
que investia
em ações”
Pola colecionava
ninhos de m ontan h a,
reunira centenas
deles d u ran te
toda a sua vida.
O s hom ens da chalana
não paravam de
perguntar: “é verdade
isso? isso de fato
desencontradas com o
as vozes no rádio de um a
aeronave. O de óculos
um cobertor grosso e
resm ungava e fungava:
“você é a garota
«C* * ”
bim sim
se realm ente
se apaixonou
se pensou em
m orrer “Sim”
se eles cortaram
os seus lindos
cabelos.
O A N JO B O X E A D O R
E n q u an to a vida m icroscópica
se vira com o pode e
segundo as suas próprias leis
os dois jovens
seguem lendo e
fazendo círculos
com a fum aça
dos cigarros
o que de resto
mal dissim ula
o não pequeno esforço
de suster um a bicicleta
entre os joelhos
A inda mais que
m ontada na bicicleta
suspensa no ar
pedala
tom ada de entusiasm o
u m a m enina
de 8 anos
que está fugindo de casa
com to d a a sim plicidade
e todos os espasmos
está fugindo de casa
com todo o seu sexo
e todas as m anhãs
está fugindo de casa
com to d a a sua força
e todas as m ontanhas
Acrescentemos agora que
a sala o nde se passa
essa cena é to d a negra
do negrum e espesso e betum inoso
do alcatrão
o que dá aos círculos de fum aça
produzidos pelos dois jovens
deitados
um aspecto lum inoso
não tão lum inoso
contudo
quanto o rosto
dela
en quanto
tom ada de frenético
entusiasm o
pedala e
fala
sem parar
pedala
parada
e sem parar
N este instante
o anjo boxeador
para de descrever
a cena a que está
assistindo
e pensa que se algo de nós
sobrevive ao fim
do caniço
pensante
hipótese rem ota
sim
mas enfim hipótese
mas enfim rem ota
então o anjo boxeador
se prom ete
nessa improvável
hipótese
esgotar todas as
possibilidades
de contrabandear
na hora da m orte
e para d entro da m orte
burlando
a lavagem cerebral
do paraíso
algum a coisa
algum a
mais m ínim a
coisa
dessa m enina
o sorriso
a cor dos seus olhos
a form a de
suas botinas
O A N JO F O G E
Ele rodopiou
no ar e desenhou com u m a das extrem idades
vários círculos dourados, um a espécie de hélice.
Parecia seguir para o mar, mas um a lufada o
lançou para o o u tro lado: um a seta acesa e
maleável sobre o canteiro de geranios, na
direção das pistas de alta velocidade
do Aterro do Flam engo. Batem os um a foto
e prom etem os voltar am anhã. N ão à M arina,
mas ao M useu de A rte M oderna, e ver a
“Biblioteca sem nom e”, o M o n u m en to
do H olocausto da Judenplatz,
de Rachel W hiteread.
Por isso esse poem a não com eça com um m enino,
com um m enino can to r sobre urna barca,
com urna barca cortando a água e o nevoeiro,
com um nevoeiro adensado p o r árias d o folclore polonés
e refrões militares prussianos na voz de um m enino cantor.
“Q u an d o chegam os ao nosso acam pam ento,
com em os algum a coisa, e nossas garotas logo
foram se deitar. N ós ainda nos dem oram os um pouco
vendo tevê, fum ando, e pela janela não cessávamos
de ver o fantástico fundo de cham as
de todas as cores imagináveis:
verm elho, am arelo, verde, violeta,
e de repente...”
Vai ficar mais difícil estacionar carros
aqui na Judenplatz e não é um m o n u m en to b o n ito
e eu teria preferido que tivessem p o r fim se decidido
a utilizar aquela solução anti-spray pois ninguém tam bém
vai gostar de ver suásticas pintadas sobre ele, eu não
gosto dele, mas já que está aí eu e ninguém vai
querer ver suásticas pintadas sobre ele.
“Ele m e p ergunta se m in h a garota já foi casada
e eu: ‘N ão. Mas esteve m uito apaixonada antes.
Aquele que ela am ava foi ferido, gravem ente,
seus órgãos saíam -lhe do corpo. Ela os
recolocou com suas próprias mãos, levou-o
para o hospital. Ele m orreu. Puseram -no na
vala com um , ela o exum ou, deu-lhe um a
sepultura.’ Para ele, este simples
episódio é o cúm ulo da virtude.”
“Ele m e perguntou: ‘e se ela com eça a gritar
m uito alto você usa as m ãos para cobrir
sua boca ou deixa que ela grite o q u an to
tiver para gritar?’ D epois ele m e perguntou:
‘E o que ela faz da vida?’, e eu: ‘Trabalha n u m a
editora alpina’. E ele: ‘A h, sim?’, e eu: ‘Sim, sim.
Ela escreveu e publicou guias de m ontanha. Ela
editou um a revista alpina.’”
Rachel W hiteread
(ao ver seu m o n u m en to
finalm ente inaugurado):
- Foram cinco anos de inferno.
Estou falando de dias ensolarados,
estou falando de dias escuros, q u er dizer,
estou talando de flores, sim , de lom badas
de livros, p o rtan to de douraduras, isso quer
dizer, de crianças brincando e nadando na água
da inundação, de queim ar as cartas do escritor famoso,
da fum aça subindo e deixando aquela m ancha
no teto, eu não estou falando das colinas de Berkeley
mas dos entregadores de pizza p o rto-riquenhos de
Berkeley, dos entregadores de pizza húngaros de
Santiago, dir-se-iam livros que não se abrem , de
portas que não se abrem , de sonhos que não,
de um pesadelo recorrente, de um a resina,
um cavalo correndo, não são livros de areia.
Con frecuencia, en artículos publicados en la prensa o en los
mismos intercambios de la calle, los vienenses cuestionaban
tanto la “oportunidad”como la misma “necesidad”de recordar
el Holocausto. Tras el estudio de los distintos proyectos, eljurado
seleccionó la propuesta de la joven escultora británica Rachel
Whiteread. En el camino quedaban múltiples obstáculos: des
de la insistente oposición de la ultraderecha (ahora sumada a
la coalición gobernante), hasta las mismas organizaciones de
sobrevivientes (insatisfechos con el diseño de Whiteread por
su contenido excesivamente “abstracto”). Ellos argumentaban
que las víctimas del exterminio “no murieron en abstracto”.
12. (epílogo, à maneira do teatro de Gertrude Stein)
D ir-se-iam pétalas.
Aquelas?
Estas.
A ntes profusão.
D ir-se-iam m ontes de merda.
D ir-se-iam céus.
Cam uflagens.
O que é a Legião C ondor?
D ir-se-ia fixo? fúcsia?
D ir-se-ia farpado?
Figuração.
Troncos.
Cepos.
M inas terrestres
(mas aqui, aos teus pés,
crescem agora essas
florezinhas azuis e roxas).
D ir-se-iam maiúsculas.
T oda a tarde?
E ntre lobo e cão.
Dir-se-iam pescadores.
N ada assemelha.
U m cham ado à ordem ,
e no entanto trovões.
H em atom as no lago,
dir-se-ia entrever.
D ir-se-ia chuva de ouro?
Eram vagões?
Ali, hipoglicêm ico.
H.
H.
I.
140
I.
“Sim sim”
se realm ente
se apaixonou
se pensou em
m orrer “Sim”
se eles cortaram
os seus lindos
cabelos.
m PETROBRAS m B :¥SL