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Todas as coisas já foram ditas; mas como ninguém escuta

é preciso sempre recomeçar.


André Paul Guillaume Gide foi um escritor francês. Recebeu o Nobel de Literatura de 1947

“É melhor ser odiado pelo que você é do que ser amado pelo que você não é.”

“Tudo quanto nós próprios descobrimos ou voltamos a descobrir são verdades


vivas; a tradição convida-nos a aceitar somente os cadáveres da verdade.”

André Gide
André Gide

André Gide, em 1920


Nome completo André Paul Guillaume
Gide
Data de 22 de novembro de
nascimento 1869
Local de Paris
nascimento
Nacionalidade Francês
Data de morte 19 de fevereiro de
1951 (81 anos)
Local de morte Paris
Magnum opus Sinfonia pastoral
Prêmios Nobel de Literatura
(1947)

André Paul Guillaume Gide (Paris, 22 de novembro de 1869 — Paris, 19 de fevereiro de 1951) foi
um escritor francês.

Recebeu o Nobel de Literatura de 1947. Oriundo de uma família da alta burguesia, foi o fundador da
Editora Gallimard e da revista Nouvelle Revue Française. Gide não somente era homossexual
assumido, como também falava abertamente em favor dos direitos dos homossexuais, tendo escrito e
publicado, entre 1910 e 1924, um livro destinado a combater os preconceitos homofóbicos da
sociedade de seu tempo, Corydon.

Liberdade e libertação recusando restrições morais e puritanas, a sua obra articula-se ao redor da busca
permanente da honestidade intelectual: como ser igual a si mesmo, ao ponto de assumir a sua
pederastia e a sua homossexualidade. Entre as suas obras mais importantes estão Os Frutos da Terra, a
já mencionada Corydon, A Sinfonia Pastoral, O Imoralista e Os Moedeiros Falsos.

Índice
 1 Biografia
o 1.1 Infância
o 1.2 As vocações
o 1.3 A "tentação de viver"
o 1.4 O casamento
o 1.5 Teatro e crónicas
o 1.6 De L'immoraliste a Porte étroite
o 1.7 Corydon
o 1.8 A glória e o seu preço
o 1.9 Paternidade
o 1.10 A questão colonial
o 1.11 Combate e desilusão
o 1.12 A Segunda Guerra Mundial
o 1.13 O fim
 2 Obras
 3 Obra publicada em português (lista parcial)
 4 Ver também
 5 Referências
 6 Bibliografia
 7 Ligações externas

Biografia
Infância

André Gide nasceu no dia 22 de Novembro de 1869 em Paris, filho de Paul Gide, um professor de
direito na Universidade de Paris, e de Juliette Rondeaux. O pai, natural de Uzés, descendia de uma
austera família protestante. A mãe era filha de burgueses ricos de Rouen, originalmente católicos, mas
convertidos ao protestantismo. A infância de Gide foi marcada por uma alternância de residência entre
a Normandia (em Rouen) e La Roque, junto da família materna, e Uzés, na casa da sua avó paterna,
onde se apaixona fortemente pela paisagem campestre. Gide atribuirá grande importância a estas
influências contraditórias, exagerando o seu carácter de antitético.

Em Paris, os Gide residiram sucessivamente na rue de Médicis e, posteriormente, na rue de Tournon (a


partir de 1875), junto ao Jardim do Luxemburgo. Não muito longe, instalou-se Anna Shackleton, uma
devota escocesa, que seria governanta e professora de Juliette, que acabaria por lhe dedicar uma
amizade indefectível. Anna, pela sua delicadeza, jovialidade e inteligência, tem um papel importante
na infância do jovem Gide. Evocada em Porte Étroite e em Si le grain ne meurt, a sua morte em 1884
marcará André profunda e dolorosamente.

O jovem André inicia a sua aprendizagem do piano, que será a companhia de toda a sua vida. Pianista
nato, Gide lamentará nunca ter tido professores que o tivessem transformado num verdadeiro músico.
Em 1877, é admitido na École alsacienne, um internato, iniciando uma escolaridade irregular e
descontínua. Com efeito, é rapidamente suspenso por três meses por se ter deixado levar pelos seus
"maus hábitos" durante o período escolar. Pouco depois do seu regresso à escola - "curado" pelas
ameaças de castração de um médico e pela tristeza dos seus pais - a "doença" reincide: a masturbação,
a que ele chama "vice"[1] e que pratica sem deixar de se sentir pecador e tristemente defeituoso,
rapidamente retomará o seu lugar entre os seus hábitos levando-o a escrever, aos 23 anos, que viveu
até essa idade "completamente virgem e depravado".[2]

A morte do seu pai, em 28 de Outubro de 1880, afasta-o um pouco mais da escolaridade normal. Já
marcado pela morte de uma jovem prima, Émile Widmer, que lhe provoca profunda crise de angústia,
André perde, com a morte do seu pai, um relacionamento feliz e terno que o deixa só face à sua mãe
"E senti-me de repente todo envolvido por esse amor, que infelizmente se encerrou em mim".[1] Juliette
Gide, muitas vezes descrita como uma mãe rigorosa e castradora, não deixa de amar profundamente o
seu filho, amor que este retribui. Acompanhá-lo-á constantemente no seu caminho de desenvolvimento
intelectual - pronta a prestar-se ao contraditório - e revelará uma agilidade espiritual bem superior á
que seria de esperar de uma jovem Rondeaux.

Durante o ano de 1881, Juliette Gide leva-o para a Normandia onde o entrega aos cuidados de um
professor pouco inspirado. André conhece um segundo período de grande depressão (Schaudern):
"Não sou igual aos outros! Não sou igual aos outros!".[1] Vai depois para Montpellier, para junto do
seu tio Charles Gide. Perseguido pelos seus colegas, Gide escapa do liceu graças a uma doença
nervosa mais ou menos simulada. Depois de uma sequência de curas, é reintegrado na École
alsacienne em 1882, onde é assolado por violentas enxaquecas, seguindo-se uma alternância entre
Paris e Rouen e entre um conjunto de professores particulares de eficácia variável.

As vocações

Portrait d'André Gide par Théo van Rysselberghe


Détail de La Lecture par Emile Verhaeren.

Durante uma das suas estadas em Rouen, no Outono de 1882, descobre a mágoa secreta da sua prima
Madeleine em relação às relações adúlteras da sua mãe. Afundado em emoção, Gide descobre "um
novo oriente para a (sua) vida".[1] Nasce então uma relação longa e tortuosa. Gide deixa-se fascinar
por esta rapariga, pela sua consciência do mal, pelo seu feito rígido e conformista; um conjunto de
diferenças que o fascina. Constrói da sua prima, pouco a pouco, uma imagem de perfeição pela qual se
apaixona, de forma puramente intelectual, mas não menos ardente.

A partir de 1883, tem aulas particulares com Madame Bauer, com quem descobre, entre outros, o
Journal d'Amiel, que o incentiva a escrever o seu próprio diário intímo. O seu primo, Albert Démarest,
pela sua atenção bondosa e aberta, tem também um papel importante junto de Gide, conseguindo que a
a sua mãe reticente lhe conceda acesso à biblioteca paternal.

Entre 1885 e 1888, o jovem André vive um período de exaltação religiosa - qualificada de "estado
seráfico"[1] - que ele partilha com a sua prima graças a uma correspondência alimentada por leituras
comuns. Consulta abundamentemente a Bíblia, os autores gregos e pratica o ascetismo. Em 1885, trava
conhecimento em La Roque com François Witt-Guizot, que associa durante algum tempo ao seu
misticismo. No ano seguinte, é o pastor Élie Allégret, seu professor de Verão, que se torna seu amigo.

Em 1887, regressa à École alsacienne para aprender retórica e conhece Pierre Louys, com quem se
envolve numa amizade apaixonada, que gravita em redor da literatura e do seu desejo comum de
escrever. No ano seguinte, enquanto prepara o exame de filosofia no liceu Henri-IV, Gide descobre
Schopenhauer. Passa a frequentar os salões literários de Paris, onde conhece numerosos escritores. O
seu primeiro trabalho, Les Cahiers d'André Walter, com o qual espera obter o primeiro sucesso
literário e a mão da sua prima, obtem críticas favoráveis e atrai a atenção do público.

Os Cahiers proporcionam-lhe conhecer Maurice Barrès (de o Culte du moi, não o de Déracinés, a
quem se oporá) e Mallarmé, que catalisará a transformação do misticismo religioso de Gide em
misticismo ético. O despontar de uma amizade duradoura com Paul Valéry é acompanhada da
deterioração das relações com Pierre Louys, que o acusa, tal como a sua prima, de egocentrismo.
Madeleine, entretanto, recusa o casamento e afasta-se inquietamente dele. Inicia-se então uma longa
luta para vencer a sua resistência e convencer a família, que também se opõe à união. No seu conjunto,
Gide classifica este período de frequência assídua e vã dos salões como uma "selva obscura"[1] que o
deprime.

A "tentação de viver"

En 1891, pouco depois de ter escrito o Traité du Narcisse, conhece Oscar Wilde, personalidade que
tanto o assusta como o fascina. Para Gide, que começa a afastar-se de André Walter, do seu ideal
ascético, da rejeição da vida, Wilde é o exemplo vivo de uma alternativa.

Na Primavera de 1892, uma viagem pela Alemanha, sem a sua mãe, é a ocasião para aprofundar o seu
conhecimento sobre Goethe. Gide começa então a pensar que "é um dever ser feliz".[3] Nas Élégies
romaines, Gide descobre a legitimidade do prazer - em oposição ao puritanismo que sempre havia
conhecido - que resulta para ele numa "tentação de viver". É então que começam as tensões com a sua
mãe, que continua decidida em defender as pretensões do filho em relação a Madeleine, contra o resto
da família Rondeaux e da própria, determinados em não permitir o casamento entre os primos.

Durante o Verão de 1892, escreve a Voyage d'Urien. Após a publicação, o livro é ignorado pela crítica
e os encorajamentos dos amigos próximos são pouco convincentes. No Outono, depois de uma breve
passagem pelas casernas e cinco juntas, Gide é considerado inapto para o serviço militar. O ano
seguinte é marcado pelo nascimento de uma nova amizade, inicialmente apenas epistolar, com Francis
James, que o apresentou a Eugène Rouart.

É, contudo, uma outra amizade, com Paul Laurens, que terá um papel decisivo na sua vida. O jovem
pintor, aproveitando uma bolsa de estudo, irá fazer uma viagem de um ano e convida Gide a
acompanhá-lo. O périplo, descrito em Si le grain ne meurt,[1] será para Gide a ocasião para a libertação
moral e sexual que ele sempre ansiara. Partem em Outubro de 1893 para uma viagem de nove meses,
passando pela Tunísia, Argélia e Itália. Gide adoece logo à partida, e vai piorando à medida que vão na
direcção do sul da Tunísia. É neste contexto, em Sousse, que descobre o prazer com um jovem rapaz,
Ali. Paul e André instalam-se depois em Biskra, na Argélia, onde a sua iniciação continua nos braços
da jovem Mériem. A intrusão súbita de Juliette Gide, inquieta pela saúde so seu filho, vem romper a
sua intimidade, até que a viagem prossiga sem ela, em Abril de 1894. Depois de uma passagem rápida
por Siracusa, descobrem Roma que Gide, ainda adoentado, aprecia pouco, e Florença.

Enquanto Paul Laurens regressa a França, Gide ruma à Suíça para consultar o Doutor Andreae, que lhe
diagnostica uma doença essencialmente nervosa e lhe dá esperança na cura. Depois de uma passagem
por La Roque, Gide regressa à Suíça e instala-se em La Brévine, que servirá de cenário a La
Symphonie pastorale. Aí escreve Paludes e planeia Les nourritures terrestres.
O casamento

Portrait d'André Gide


por Félix Valloton
em Le Livre des masques
de Remy de Gourmont (1898).

O ano de 1895 inicia-se para André Gide com uma segunda viagem à Argélia, onde encontra de novo
Wilde acompanhado de Lord Alfred Douglas ("Bosie") e onde acontece uma outra noite decisiva na
companhia de um jovem músico. A correspondência com a sua mãe regista uma oposição entre ambos
cada vez mais veemente. No entanto, no seu regresso a França, a situação está tranquila. Madeleine,
que revê nessa altura, reaproxima-se finalmente dele e a morte da sua mãe, Juliette, em 31 de Maio de
1895 - que marca simultaneamente um momento de grande dor mas também de libertação - precipita
os acontecimentos. O noivado é anunciado em Junho e o casamento, que nunca será consumado, é
marcado para Outubro. Durante a viagem de núpcias de sete meses, André, apesar de bem de saúde,
sente-se incessantemente travado pela uma esposa doentia. Na Suíça, trabalha em Nourritures
terrestres, que havia começado em Biskra. Escreve também um pósfacio para Paludes, declarando
encerrado, de forma satírica, o período simbolista e considerando as Nourritures a nova via. Gide
manterá futuramente o hábito de imaginar as suas obras como balizas no seu caminho, escritas em
reacção umas às outras e impossíveis de compreender completamente senão através de uma leitura
conjunta.

A viagem dos recém-casados prossegue em Itália e, novamente, na Argélia onde, em Biskra, os Gide
recebem a visita de Francis James e de Rouart. De regresso a França, na Primavera de 1896, Gide
descobre que foi eleito presidente da municipalidade de La Roque. Exerce o seu mandato recusando-se
a filiar-se politicamente, tal como recusará sempre pertencer a uma determinada escola literária. No
Verão, escreve El Hadj (publicado na revista Centaure) e termina Les Nourritures. Publicado em 1897,
este livro recebe um acolhimento elogioso, embora tanto no que respeita aos temas de fundo (Francis
James e outros censuram o seu individualismo e a sua alegria indecente) quanto à forma, a crítica tenha
tido dificuldade de compreender a estrutura da obra, com a notável excepção de Henri Ghéon.[4] Os
dois homens acabam por criar uma amizade profunda que durará até à conversão ao catolicismo de
Ghéon, em 1916.

Teatro e crónicas

Durante o Inverno de 1898, Gide começa a interessar-se pelo caso Dreyfus. Subscreve a petição de
apoio a Zola, mas recusa romper o diálogo com os que, de entre os que o rodeiam, tomam o partido
contrário. Sem transigir, esforça-se por compreender, senão mesmo convencer, os seus adversários.
Uma estadia de dez semanas em Roma - de que ele finalmente começa a gostar - é marcado pela
descoberta de Nietzsche, onde revê os seus pensamentos mais secretos: "O grande reconhecimento
que lhe devoto é o de ter aberto uma estrada real onde eu não ousei, talvez, traçar mais que uma
vereda".[5]
Trabalha na peça de teatro Saül. Contraponto de Nourritures, esta obra deve revelar o perigo de uma
disposição exagerada à abertura, o risco da dissolução da personalidade. Uma vez terminada a peça,
Gide tenta obstinadamente, mas em vão, levá-la à cena, o que explica a sua publicação tardia em 1903.

O ano de 1898 traduz-se igualmente numa actividade cada vez mais sustentada de crítico e cronista,
especialmente na L'Ermitage, revista em que desempenha um papel proeminente, embora não seja o
seu director. Escreve sobre Nietzsche, faz o elogio fúnebre de Mallarmé e responde aos Déracinés de
Barrès. É, no entanto, na revista Revue Blanche que publica Philoctète. Pouco depois, a publicação de
Prométhée mal enchaîné, mal compreendido pela crítica, passa depercebido.

Na Primavera de 1899, Gide aproxima-se do casal van Rysselberghe. Os Cahiers de la Petite Dame
(Maria van Rysselberghe), iniciados em 1918, e que Gide desconhecia, prosseguiram até à sua morte, e
constituem um testemunho precioso para os seus biógrafos. No ano seguinte, Gide inicia uma
colaboração regular com a La Revue Blanche. Finalmente, em 1901, consegue encenar uma das suas
peças de teatro, mas a estreia de Roi Caudaule (escrita em 1899) é um desastre. A peça é demolida pela
crítica e Gide passa, a partir daí, a desdenhar o grande público e o teatro.

De L'immoraliste a Porte étroite

Em 1902, L'immoraliste obtem maior sucesso mas o autor, rapidamente asociado pela crítica ao
personagem Michel, sente-se incompreendido. Segundo ele, Michel não passa de uma virtualização
dele próprio, de que ele se purga escrevendo. Depois de L'Immoraliste, segue-se um período vazio que
se prolonga até à publicação de La Porte étroite en 1909. Nesse período, tem dificuldade em escrever,
publicando apenas Prétextes (colectânea de críticas, em 1903), 'Amyntas (em 1906, sem nenhum
impacto na crítica) e o Retour de l'enfant prodigue (1907). Publica igualmente uma homenagem a
Oscar Wilde em 1902: a batalha assim iniciada para preservar a memória do romancista contra as
críticas hipócritas de Bosie prosseguirá com Si le grain ne meurt.

Durante estes anos novas amizades se criam ou se aprofundam (com Jacques Copeau, Jean
Schlumberger, Charles du Bos). Outras diluem-se progressivamente, como com James, após a
conversão por Paul Claudel, mesmo se as dissensões entre os dois amigos já precediam a conversão.
Gide é também abordado por Claudel, que se apelida a si próprio de "zelota" e de "fanático".[6] A
tentativa de Claudel é mal sucedida uma vez que Gide parece preferir apenas viver a experiência da fé
através de Claudel, por empatia,ao invés de se converter. É também durante este período, depois de ter
vendido La Roque em 1900, que Gide manda construir a sua mansão em Auteuil, que classifica de
inabitável, pela qual Madeleine se apaixona imediatamente, e na qual Gide viverá vinte e dois anos (de
1906 a 1928).

O fim do decénio é marcado por um regresso à escrita, com La Porte étroite, e pela criação da NRF
(Nouvelle Revue Française). La Porte étroite é o primeiro livro de Gide que lhe traz alguns proveitos
financeiros. A crítica não o elogia e Gide sente-se, uma vez mais, incompreendido. Tal como já o
haviam associado antes a Michel, associam-no agora a Alissa, embora o seu esforço de empatia para
com a sua heroína não constitua uma aprovação. A dimensão irónica e crítica da obra passa
generalizadamente despercebida.

No que respeita à NRF, se Gide não é oficialmente o director, é na prática o chefe, rodeado por Jean
Schlumberger e Jacques Copeau. Em 1911, o grupo associa-se à Gaston Gallimard para obter o apoio
de uma editora para a revista. Isabelle será um dos primeiros títulos do catálogo.
Corydon

Retrato por Henry Bataille.

É neste período que Gide começa a escrever Corydon, um ensaio socrático que tem por objectivo
combater os preconceitos sobre a homossexualidade e a pederastia. A sua decisão de escrever este
ensaio é subsequente ao processo Renard, em que um homem é acusado de morte, menos pelos factos
existentes contra si que pelos seus "costumes inenarráveis". Os amigos a quem Gide submete o
rascunho do tratado assustam-se com o possível escândalo e advertem-no em relação ao impacto que
poderá ter tanto na sua vida pública como privada, de tal forma que Gide apenas manda imprimir os
dois primeiros capítulos anonimamente e discretamente, em 1910. Completará a sua obra em 1917-18,
mas apenas a publicará no seu nome em 1924.

O ano de 1913 é marcado pelo nascimento de uma nova e profunda amizade, unindo Gide a Roger
Martin du Gard, após a publicação de Jean Barois pela Gallimard. Amigo fiel e crítico desprovido de
indulgência, Roger Martin du Gard manter-se-á no círculo de relações próxima de Gide até à morte
deste.

No ano seguinte, a publicação de Les Caves du Vatican, concebido como um "livro surpreendente,
cheio de falhas, de buracos, mas também de divertimento, de bizarrias e de sucessos parciais",[7] é um
insucesso. O livro aborrece em particular Paul Claudel, que aí descobre tons pederastas. Depois de
exigir a Gide que se explique, passa a recusar qualquer colaboração com ele. Progressivamente
afastado da direcção efectiva da NRF, abandonado a Jacques Rivière e Gaston Gallimard, Gide fica
sem trabalho nos inícios da Primeira Guerra Mundial. Depois de um primeiro instinto nacionalista,
desenvolve uma reflexão sobre a complementaridade possível entre a França e a Alemanha, visão do
futuro de uma Europa cultural que defenderá a partir do fim da guerra[8] (encontros com Walter
Rathenau[9][10]).

O ano de 1916 assiste a uma nova tentativa de conversão ao catolicismo, após crise provocada pela
conversão de Henri Ghéon. Para Gide, o problema é mais moral que religioso: Gide hesita entre um
paganismo que lhe permite afirmar-se na alegria e uma religião que lhe proporciona as ferramentas
para combater o seu pecado. Esta sua reflexão resulta na escrita de Numquid et tu. No final, a
conversão falha, pela rejeição da instituição eclesiástica, pela recusa de substituir uma verdade pessoal
por uma verdade institucional e de abandonar a sua liberdade de pensar. O dogmatismo dos católicos
que o rodeiam, como Paul Claudel, afasta-o também dessa via. Para seguir o seu caminho, começa a
redacção de Si le grain ne meurt.

O ano seguinte é bem diferente. Em Maio (de 1917), Gide inicia uma relação como o jovem Marc
Allégret. O amor e o desejo, que até então haviam seguido vias separadas, vibram desta vez em
uníssono no coração e no corpo. Ao mesmo tempo que retoma a escrita de Corydon, Henri Ghéon
afasta-se definitivamente. Em 1918, é Madalena que se desliga dele. Enquanto viaja na Inglaterra com
Marc, um problema confirma as dúvidas que ela conseguia ainda calar. Queima as cartas do marido e
recolhe-se na sua casa de Cuverville. Gide, a quem a destruição da sua correspondência deixara
inconsolável ("Sofro como se ela tivesse assassinado o nosso filho"[11]), torna-se o espectador
impotente do lento estiolar da mulher que ainda era o suporte da sua vida. Este drama dá-lhe, no
entanto, uma nova liberdade: a de publicar Corydon e as suas memórias.
A glória e o seu preço

No seio de uma NRF dividida (a editora que suportava a revista passou a ser a Librairie Gallimard),
Gide mantém a função simbólica de figura tutelar. Para além de autor, é também responsável pela
descoberta de novos talentos e por facilitar a colaboração entre escritores já estabelecidos e jovens
promessas (Louis Aragon, André Breton, Henry de Montherlant). Na década de 1920, a sua reputação
não pára de aumentar: a sua voz, que fala de mudança dos espíritos sem invocar a palavra revolução, é
escutada com grande respeito. O seu papel de guia da juventude é-lhe reconhecido, ora com
entusiasmo, ora com consternação. Gide conserva a impressão de que atingiu a celebridade sem nunca
ter sido lido nem compreendido.

A sua influência traz-lhe ataques virulentos da direita católica (Henri Massis, Henri Béraud), que lhe
censura os seus valores morais, o seu intelectualismo, a hegemonia da NRF sobre a literatura e, até,
sobre a língua francesa. Gide, firmemente apoiado por Roger Martin du Gard, defende-se pouco
pessoalmente mas defende tenazmente a NRF. Vários intelectuais de direita (Léon Daudet, François
Mauriac), que o admiram apesar das divergências mútuas, recusam-se a participar nessa campanha
contra Gide, embora não saiam a defendê-lo. Com a publicação de Corydon, que apenas havia sido
objecto de uma edição limitada para amigos, Gide fornecerá argumentos aos seus inimigos. Mas Gide
prefere encarar de frente a sua situação e deixar cair a máscara, recordando-se do caso doloroso de
Oscar Wilde. No entanto, o livro é recebido com indiferença, por ser demasiado explícito,[12] porque a
opinião pública, sempre pronta a levantar novos tabus, ainda não está capaz de afrontar este. O
escândalo chegará apenas dois anos mais tarde com Si le grain ne meurt.

Paternidade

No entanto, a vida de Gide foi perturbada por um outro acontecimento: o nascimento de Catherine
Gide (Abril de 1923) faz dele um pai, com a cumplicidade de Elisabeth van Rysselberghe, filha de
Maria, a quem tinha escrito: "Não me resigno a ver-te sem filhos e a não ter, eu mesmo, um".[13]
Catherine apenas será reconhecida oficialmente pelo seu pai depois da morte de Madeleine, de quem
este nascimento havia sido cuidadosamente escondido.

Gide ocupa-se igualmente da instalação de Marc Allégret, criando assim uma família alargada, à
margem dos costumes e normas, que reside com ele na rue Vaneau, após a venda da villa
Montmorency, em 1928. Na nova residência, um quarto é dedicado a Madeleine e à sua ausência
presente, que muito lhe pesa. Les Faux-Monnayeurs, publicado em 1925, é o primeiro livro que não se
centra em Madeleine. Pese embora a modernidade da única obra que ele próprio classificou de
romance, Gide teme que esta seja antiquada e sofre de apatia, de que recupera apenas na sua viagem ao
Congo com Marc Allégret.

A questão colonial

Durante esse périplo de onze meses, Gide reencontra o prazer do exotismo e do gosto pela história
natural. Mas o que deveria constituir apenas uma viagem de esteta, ganha outro pendor face à realidade
do colonialismo. Gide revolta-se contra a prática do ideal colonial, denunciando erros administrativos
e inexperiência. A sua curiosidade leva-o a compreender a perversidade de todo o sistema colonial,
incluindo o recuo voluntário da administração pública para abrir caminho ao livre arbítrio das
companhias coloniais. Apercebe-se igualmente que os dirigentes parisienses não só não desconhecem
essas práticas, mas que as chegam a caucionar. Gide envia o seu testemunho a Blum, que o publica no
Le Populaire (Voyage au Congo será publicado pela NRF em 1927). A direita e as companhias
acusadas reagem acusando o escritor de não ter competência para julgar o colonialismo, o que é
corroborado por alguns inquéritos administrativos de averiguação. Um debate na Assembleia Nacional
termina com diversas promessas do Governo. Gide teme que a opinião pública esqueça rapidamente o
assunto, mas recusa-se a tomar uma posição de princípio sobre a questão colonial: o tempo do combate
político ainda não havia chegado.
Combate e desilusão

As conversões ao catolicismo multiplicam-se em redor de Gide (Jacques Copeau, Charles Du Bos).


Muitos esperam com impaciência a sua capitulação. O desejo de ver tombar a cidadela inexpugnável é
reforçado por Gide ter inegáveis raízes cristãs e por se movimentar nos mesmos terrenos que eles: os
terrenos da moralidade e da espiritualidade. Cansado destes ataques e tentativas de sedução, Gide
replica publicando Nouvelles Nourritures terrestres (1935).

Pese embora a composição deste evangelho à alegria, Gide sofre, na década de 1930, um certo sufoco
que afecta a sua escrita, os seus amores e as suas viagens, que ele sente agora mais como curiosidade
do que como paixão. O contacto com Pierre Herbart – futuro general Le Vigan, que desposa Élisabeth
van Rysselberghe em 1931 -– e Bernard Groethuysen, desperta-lhe o interesse pelo comunismo,
entusiasmando-o pela experiência russa na qual vê uma esperança, um laboratório para o homem novo,
nos planos moral, psicológico e espiritual.[14]

Ao comprometer-se com esta solução, Gide cede também à tentação de deixar o purismo estético e de
utilizar a influência que ganhou. A sua tomada de posição não é compreendida pelos que lhe estão
próximos. Roger Martin du Gard aceita mal que uma vida ocupada no combate aos dogmas
desemboque num "acto de fé".[15] Embora Gide coloque em risco a fama alcançada, não traz à causa
nada mais que o seu nome, uma vez que nunca se sentirá confortável em reuniões políticas. Mas
também é só o seu nome que Gide - muito consciente de ser instrumentalizado - compromete,
recusando-se a comprometer a sua autonomia no campo literário, como por exemplo, quando não
aceita aderir à Associação dos Escritores e Artistas Revolucionários.

Muitos dos seus novos companheiros encaram com desdém esse grande burguês que se junta à sua
luta, considerando, a exemplo de Jean Guéhenno, que "o pensamento do Sr. Gide parece
frequentemente não ter para ele nenhum custo associado. O Sr. Gide não sofreu o suficiente".[16]
Rapidamente, embora aceite presidir a tudo o que se lhe pede para presidir, o seu espírito debate-se
contra a ortodoxia comunista. Gide acaba por desenvolver a sua própria visão de um comunismo que
concilia equalitarismo com individualismo, evocando nos seus diários "uma religião comunista" que o
intimida.[17] Gide participa activamente em diversas acções de luta antifascista.[18] Em 1936, as
autoridades soviéticas convidam-no a visitar a União Soviética. Acompanhado de alguns amigos
próximos (Jef Last, Pierre Herbart, Louis Guilloux, Eugène Dabit), aceita o convite. As suas ilusões
desfazem-se: em vez do homem novo, Gide encontra apenas uma outra forma de totalitarismo. Aceita
progressivamente a amarga decepção que partilha com a dos seus companheiros, e decide publicar o
seu testemunho, Retour de l’URSS. O Partido Comunista Francês, com Louis Aragon à cabeça, e as
autoridades soviéticas tentam impedir a publicação e asfixiar a questão em silêncio. Gide reage com
Retouches à mon retour d’URSS, onde não se limita a relatar as suas observações mas escreve um
discurso inflamatório contra o estalinismo. "Que o povo dos trabalhadores compreenda que se deixou
enganar pelos comunistas, como os que pelos dias de hoje estão em Moscovo". Gera-se então nova
onde de ataques contra si: apelidam-no de fascista, empurram-no para a direita. A hora do abandono
soou: o homem novo não nasceu na URSS, a política não lhe trouxe o que ambicionava. Mantendo o
seu apoio à causa dos republicanos espanhóis (defende, em particular, os militantes caluniados do
Partido Operário de Unificação Marxista), depressa se concilia com a sua desilusão (sem cair no
anticomunismo odioso ou numa consciência pesada) e tenta voltar a mergulhar na literatura. Afirma
estar arrependido de ter "desaprendido a viver", ele que o "sabia tão bem" fazer.[19]

A esse luto político sucede um outro mais pessoal, com a morte de Madeleine, em 17 de Abril de 1938.
Depois de haver amaldiçoado o seu esposo, tinha acabado por aceitar o papel distante mas essencial
que tinha para ele, bem como o amor tão especial que Gide lhe dedicava. Amor de que ele confessa a
estranheza e as dificuldades em Et nunc manet in te, publicado inicialmente em tiragem reservada aos
mais íntimos.

Gide parte à descoberta da serenidade perdida. O contexto histórico é, no entanto, pouco favorável. O
fim da Guerra de Espanha - "heroísmo ridicularizado, fé traída e vileza triunfante" - enchem o seu
"coração de desgosto, de indignação, de rancor e de desespero".[20] A velhice retira-lhe igualmente
alguns prazeres: o piano que as suas mãos já não conseguem percorrer suavemente; as viagens pelas
quais perde o entusiasmo que ele sabia tão bem partilhar; o desejo que se extingue.

A Segunda Guerra Mundial

Bastam alguns dias para que Gide passe do apoio à condenação do Marechal Pétain.[21] Rapidamente é
acusado pelos jornais colaboracionistas de haver contribuído para a derrota devido à sua má influência
sobre a juventude. Os alemães retomam a NRF, agora dirigida por Drieu la Rochelle. Gide recusa-se a
ser associado ao comité de direcção. Escreve um texto para o primeiro número mas, apercebendo-se da
orientação tomada pela revista, abstém-se de qualquer outra colaboração, tal como François Mauriac.
Independentemente das pressões, amigáveis ou não, anuncia no Le Figaro a sua vontade de abandonar
a NRF e recusa também um lugar como académico.

Ao ambiente de Paris, prefere um exílio dourado e sereno na Côte d’Azur, publicando apenas
ocasionalmente alguns artigos de crítica literária no Le Figaro. A partir de 1942, os ataques que lhe são
dirigidos (e também a outros) intensificam-se, sem que ele se possa defender, devido à censura. Só,
embarca para Tunis. Durante a ocupação alemã da cidade, constata com profundo desgosto os efeitos
do antisemitismo. Mais que outras privações, sofre com o isolamento em que se encontra. Acaba por
trocar a Tunis libertada por Argel, onde se encontra com o General de Gaulle. Aceita a direcção
(honorária) do l'Arche, uma revista literária criada para fazer frente à NRF.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, decide não regressar directamente a Paris. Teme a
"épuration" (a depuração dos colaboracionistas do regime deposto), não tanto por si próprio ou pelos
seus amigos próximos, que não se sentiam comprometidos, mas pela perigosa unanimidade criada
nessa altura, e que ele considera totalitária. As suas diferenças de atitude e as suas dúvidas, valem-lhe
novos ataque de Louis Aragon. Gide permite que Jean Paulhan, Mauriac e Pierre Herbart o defendam
publicamente. Quando finalmente decide regressar, em Maio de 1946, tem dificuldade em encontrar o
seu lugar num mundo literário super-politizado, ele que sempre desejou uma literatura autónoma.
Enquanto Sartre utiliza de bom grado a sua notoriedade para suportar os seus desígnios políticos, Gide
recusa assumir a sua, procurando escapar às solicitações. Para se exprimir, prefere a publicação de
Thésée às tribunas.

O fim

A partir de 1947, cessa quase completamente de escrever. Continuando a afirmar alto e forte que não
renega nada do seu passado - incluindo 'Corydon, o seu livro mais engajado e menos conseguido - o
escritor anteriormente escandaloso, aceita agora as homenagens de instituições conservadoras
(Universidade de Oxford, Nobel de Literatura de 1947). Provas, segundo ele, que tinha razão quando
acreditava na "virtude da minoria"[22] que acaba mais cedo ou mais tarde por vencer. Reafirma
igualmente o papel do intelectual distante da actualidade.[23] Foi através da literatura que se opôs aos
preconceitos da sua época, e a sua influência deve menos às suas opções políticas que à sua arte.
Sartre decide seguir outra via: sem deixar de ser literário, não deixa de colocar a literatura no centro
da sua actividade política.

A sua principal preocupação é a publicação das duas últimas obras, em especial o seu Journal
("Diário"), que não pretende deixar ao cuidado da sua descendência familiar ou espiritual. Em Julho de
1950, inicia um último caderno, Ainsi soit-il ou Les jeux sont faits ("Assim seja ou Os dados estão
lançados"), no qual se esforça por deixar correr a pena. "Creio mesmo que, no momento da morte,
diria a mim mesmo: ai está! morreu". Doente déspota rodeado dos seus fiéis admiradores, encaminha-
se para uma morte calma, desprovida de angústia e sem os sobressaltos religiosos que afectavam
ainda alguns. Morre no dia 19 de Fevereiro de 1951, e é enterrado alguns dias mais tarde em
Cuverville, ao lado de Madeleine. A sua obra foi incluída no Index de livros proibidos pelo Vaticano
em 1952.

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