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Deborah Vogelsanger *
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Graduanda em Filosofia, IFCH, UNICAMP.
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KIERKEGAARD, S. A.; O Conceito de Ironia constantemente referido a Sócrates. Tradução
de Álvaro Vals. Editora Vozes, 1992.
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A tese de Kierkegaard está estruturada em duas partes: a primeira relativa a Sócrates e sua
ironia; nela, o autor justifica sua escolha pelos diálogos platônicos para o estudo da ironia. Em
Não faz parte das determinações iniciais deste artigo discutir as moti-
vações que impulsionaram Kierkegaard em direção a esta pergunta3, nem o
que ele fez com a resposta; o foco de interesse, no momento, diz respeito
ao tratamento que ele dá ao discurso socrático em busca da resposta.
A primeira coisa que Kierkegaard faz é, após justificar a escolha dos
diálogos platônicos4 com as quais trabalhará, em busca de expressões da
ironia no discurso de Sócrates - Apologia de Sócrates, Banquete, Fédon e
Livro I, da República -, comentar alguns trechos de cada diálogo, procuran-
do extrair deles as idéias que levarão à resposta para a pergunta que ele se
propôs como objetivo.
uma segunda parte, a partir da página 211 da obra já citada ( nota 1 ), o percurso segue o ro-
mantismo passando por Ficht, Friedrich Schelegel, Tieck e Solger, além de levemente por Ast.
É na segunda parte que Kierkegaard tornará claro o objetivo com a tese, formulando a per-
gunta transcrita.
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A ironia trabalha com o mal-entendido, com a dualidade entre conceito e fenômeno; Sócrates
encarna a pergunta sem resposta, e será a partir desta manifestação da idéia de ironia, fixada
na pergunta sem resposta, que produz o vazio e que Sócrates reproduz em sua vida, que serão
avaliadas as formas modernas, ou pós-fichteanas da ironia, pois para Kierkegaard, a ironia de
um artista que pretenda destruir e construir mundos terá de ser avaliada a partir do conceito
que foi dado por Sócrates.
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A preferência é dada a Platão após Kierkegaard ter avaliado as contribuições dadas por Xe-
nofonte e Aristófanes, à figura de Sócrates. Em Xenofonte, a imediatez: “Finalmente, no que
tange à ironia, aí não encontramos jamais qualquer vestígio no Sócrates de Xenofonte. No seu
lugar aparece a sofística.”(pág. 35). O irônico que aparece em Xenofonte é, antes de tudo, um
meio disciplinar como é claro nas Memoráveis, livro III e VI; Em Aristófanes, a imagem mais
perto do real: “No que tange à relação de Aristófanes com Xenofonte e Platão, encontram-se
em Aristófanes elementos destas duas concepções. O misterioso nada, que propriamente
constitui a “pointe” na vida de Sócrates, Platão procurou preenchê-lo dando-lhe a idéia, e Xe-
nofonte com as prolixidades do útil. Aristófanes, portanto, conseguiu captar este nada, não
como uma liberdade irônica, na qual Sócrates o gozava, mas sim de tal modo que ele cons-
tantemente mostra a vacuidade aí.” ( pág. 124 ); Em Platão, a expressão poética: “Pois onde se
deveria encontrar alívio senão na tranqüilidade infinita com a qual, na calma da noite a idéia
sem ruído, mas com poderosa e solene suavidade se desenvolve no ritmo do diálogo, onde
cada passo é refletido.”( pág. 36 ).
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“Nos primeiros diálogos, o mítico entra em cena em oposição ao dialético, na medida que o
dialético silencia e o mítico se faz ouvir ( ou melhor, ver ), nos últimos diálogos, ao contrário, o
mítico está numa relação mais cordial com o dialético, isto é, Platão se assenhorou dele, quer
dizer, o mítico se torna figurado.( p. 88 )
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O mítico é expresso por Kierkegaard como “o estado de exílio da idéia, sua exterioridade, i.é.,
sua temporalidade e espacialidade imediatamente como tal .”
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Op. cit., p. 42.
tre a divindade e o homem, na qual existe, sem dúvida uma relação recípro-
ca.”8
De uma maneira mais objetiva, pode-se considerar que o poético tem
consciência de si mesmo como um ideal e esta será a sua realidade, en-
quanto o mito, se tomado pela realidade não é propriamente um mito, ape-
nas tornando-se mito à partir do instante em que ele toca uma consciência
reflexiva. Se ele possui um conteúdo especulativo e se aplica à fantasia,
pode-se dizer que aparece uma exposição mítica. Ao menos é isto que nos
diz Kierkegaard.
Existem alguns fatores que deixam o discurso socrático preso, por
assim dizer, neste método platônico; um deles é o fato de Platão não ter
atingido, para Kierkegaard, o movimento do pensamento especulativo em
algum momento, o que justifica a permanência do mítico, ou do figurativo
em meio à exposição da idéia. Um outro fator, em Platão, digamos, limitante
é que, no perguntar e responder como um movimento dialético, falta o mo-
mento de síntese, de unidade, uma vez que cada resposta contém a possi-
bilidade de uma nova pergunta, o que deixa os diálogos sem um resultado,
em aberto portanto. É possível porém, argumentar, quanto a esta passagem
que, deixar o resultado em aberto apenas representa o objetivo de Sócrates
8
Para manter o domínio sobre o mito o que pode ser criado), é necessário que o expositor
construa sua criação de um modo minimamente sustentável. Esta possibilidade mínima se dá
através da dialética e, como um produto da tensão do relacionamento dialética/mito, aparece a
ironia que, em uma dupla função, é mantida positivamente por ela. Para Kierkegaard: “O dialé-
tico desembaraça o terreno de tudo o que lhe é estranho e se esforça então por escalar até a
idéia, e como não tem sucesso, a fantasia reage. Cansada do trabalho dialético, a fantasia se
deixa sonhar, e daí surge o mítico. Durante este sonho, a idéia flutua, transitando velozmente
numa sucessão infinita, ou estaciona e se expande infinitamente presente no espaço. Deste
modo, o mítico é o entusiasmo da fantasia ao serviço da especulação (...).” (...) “É assim que se
passam as coisas com as exposições míticas nos diálogos construtivos. Primeiramente o míti-
co é assimilado ao dialético, não mais está em conflito com este, não mais se fecha em si
mesmo de maneira sectária; ele alterna com o dialético, e deste modo, tanto a dialética quanto
o mítico são elevados a uma ordem de coisas superior.” ( p. 89).
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Para Kierkegaard, há a necessidade de duas formas de aparição do conceito de ironia, pela
condicional da ironia como determinação da subjetividade: a primeira forma é aquela em que a
subjetividade pela primeira vez fez valer seu direito na história universal, com Sócrates; uma
segunda forma diz que deve existir uma segunda potência da subjetividade, uma subjetividade
da subjetividade que corresponda a reflexão da reflexão, para que o limite da ironia nesta pri-
meira forma socrática possa ser ultrapassado.
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Op. Cit. Pág. 195, nota 8.
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HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie. Säntliche Werke; Glo-
ckner, F. Fromman. Verlag, 1965, p. 52.