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A morte como uma grande estrategista

por Hugo Harris*

"- O senhor - respondi - falou da vontade. Nos contos de Mabinogion, dois reis
jogam xadrez no alto de uma colina, enquanto embaixo seus guerreiros
combatem. Um dos reis ganha a partida; um cavaleiro chega com a notícia de
que o exército do outro foi vencido. A batalha de homens era o reflexo da
batalha do tabuleiro.
- Ah, uma operação mágica - disse Zimmermann.
Respondi-lhe:
- Ou a manifestação de uma vontade em dois campos diferentes."

Guayaquil, de Jorge Luis Borges, in Obras Completas, volume 02, pág 475

A tela negra ocupando nossa visão e, logo, um clarão acompanhado por um


coro. Em seguida, outro clarão que vai definindo o tenebroso céu claro-escuro.
Uma águia paira no céu, como se flutuasse numa maré calma de fim de tarde.
A introdução de "O sétimo selo" (Det Sjunde Inseglet, 1956), de Ingmar
Bergman, nos aterroriza e deslumbra ao mesmo tempo, preparando o terreno
para a história que está para ser contada.

A parábola do cavaleiro medieval que, no momento em que está voltando para


casa, após um grande período de ausência, no qual estivera lutando nas
cruzadas, recebe a visita da Morte, que quer levá-lo, considerando que seu
tempo na Terra acabou. Uma figura lúgubre, com seu manto negro, fala
ríspida e tranqüila, acaba desafiada por este cavaleiro a um jogo de xadrez,
concedendo o adiamento da sentença.

No livro do Apocalipse de João, o sétimo selo revela sete anjos que receberão
sete trombetas que, quando sopradas, uma por vez, iniciarão cataclismas que
prenunciarão a derrocada da humanidade.

"Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia
hora.
Então vi os sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram
dadas sete trombetas.

Veio outro anjo e ficou de pé junto ao altar, com um incensário de ouro, e foi-
lhe dado muito incenso para oferecê-lo com as orações de todos os santos
sobre o altar de ouro que se acha diante do trono;

e da mão do anjo subiu à presença de Deus o fumo do incenso, com as


orações dos santos.

E o anjo tomou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E


houve trovões, vozes, relâmpagos e terremoto.

Então os sete anjos que tinham as sete trombetas prepararam-se para tocar."
(Apocalipse 8, 1-6)

Ingmar Bergman é o diretor mais famoso da Suécia. Realizou muitos filmes


conhecidos, dentre eles "Morangos silvestres" (1957), "A fonte da donzela"
(1959), "Através de um espelho" (1961), "Persona - quando duas mulheres
pecam" (1966), "Gritos e sussurros" (1973), "Sonata de outono" (1978) e
"Fanny e Alexander" (1982). Acabou consagrado como diretor (já era
reconhecido como excelente roteirista) exatamente por "O sétimo selo",
quando ganhou o Prêmio especial do Juri do Festival de Cannes de 1957.

A escolha para narrar a saga do cavaleiro Antonius Block e seus companheiros,


perseguidos pelo espectro da Morte, numa Europa medieval assolada pela
peste bubônica, foi na contracorrente daquilo que estava sendo realizado na
década de 50 pelos cineastas do mundo todo. Ao invés de dispor da fotografia
Tecnicolor e de uma direção de arte e figurinos suntuosos, Bergman escolheu
retratar o período de uma maneira mais árida, fotografando em preto e branco
e percorrendo vastos campos vazios, onde se encontram, perdidos neste
ambiente, algumas moradias castigadas por aquele período terrível, regado
pela fome, doença, guerra e fervor religioso que amedrontavam a população,
tomando conta de seus sentidos e da razão, criando um aspecto de loucura
generalizada. A escolha do sétimo selo como situação aparente daquela
realidade toma-se exatamente por aquela terra já estar sendo assolada pelos
outros "selos" abertos anteriormente, onde haviam se revelado, em meio a
terremotos, os quatro cavaleiros do Apocalipse, exatamente os agentes da
guerra e destruição, doença e peste, fome e desespero, além da Morte,
sempre presente e criadora do paradoxo entre certeza e incerteza quanto ao
futuro de todos nós.

Enquadramentos clássicos, tipicamente renascentistas, utilizando


demasiadamente o centro de tela ou, ao menos, uma triangulação simétrica,
dão um tom quase religioso à peça que, na realidade, torna-se uma discussão
sobre a existência, o divino, a religião e os desígnios do Homem.

Chamo atenção ao belo plano em que sentam, frente a frente, de perfil para o
espectador, o cavaleiro e a Morte, iniciando a disputa estratégica, tendo no
centro o tabuleiro com as peças pretas e brancas, e no fundo aquele céu
tenebroso e escuro.

A partir deste momento em que Antonius encontra-se face a face com a Morte,
iniciam nele questionamentos a respeito de sua própria existência e, na
verdade, sobre Deus. Percebendo a dificuldade que seria o encontro com o
Senhor, há momentos em que procura o contato com o Demônio, achando que
este seria o maior possuidor de informações sobre o primeiro, devido à
proximidade entre eles. O temor da morte e as incertezas causadas pela sua
presença estão atuantes durante todo o filme, seja em Antonius, seja no
saltimbanco que acaba morrendo na floresta de maneira curiosa, ou na
população que está encarando a Peste, sendo acusada pelos sacerdotes de ser
a culpada por sua sina, graças à sua descrença e mundanismo.

A religião é um alento, uma castração ou uma realidade? Bergman discute


através de diversas situações, retratando a suposta bruxa que deve ser
sacrificada num auto-de-fé, fazendo os cavaleiros se questionarem sobre
quem cuidará de sua alma: Deus, o Demônio, os Anjos ou o Vazio? Há os
momentos em que a Morte encontra-se presente no plano físico, sempre numa
figura eclesiástica, como um padre que escuta as confissões do cavaleiro e
acaba induzindo-o a contar-lhe a estratégia de jogo para derrotá-la sobre o
tabuleiro. Também há o saltimbanco que seduz uma mulher casada, após vê-
la através de um pequeno espelho, imagem esta que podemos vislumbrar,
mesmo a grande distância, num belíssimo plano. É exatamente aquele que
acaba como cadáver na floresta pelas mãos da Morte.

A montagem, apesar de sutil, tem função primordial. Além de escolher certas


fusões em determinados momentos, no intuito de dilatar o tempo e nos passar
a sensação de solidão do período, também constrói seqüências que manipulam
nossos sentidos, como, por exemplo, quando coloca sucessivamente vários
rostos na tela, testemunhas da procissão, em meio ao incenso que vai
cobrindo a paisagem, reagindo de maneiras similares ao terror da religião,
culminando no plano próximo do Cristo crucificado, carregado pelos penitentes
de joelhos lacerados.

Os questionamentos religiosos e existencialistas estão sempre presentes. O


cavaleiro está perturbado com a possibilidade de morrer, chegando ao ponto
de considerar que aquele vazio que sente dentro de si é causado pela falta de
significado da própria vida e sua religiosidade. Antonius considera que sua vida
fora em vão mas espera, com esse tempo que conquistara ao desafiar a Morte,
adquirir a maior quantidade de conhecimento possível, desejo expresso
também na lenda do Fausto, que vende a alma ao Diabo em troca desta
realização - a coincidência entre o caso destas duas personagens é algo que
merece certa reflexão. O Cristo que aparece alternadamente aos planos feitos
do cavaleiro, nos dão a idéia da menção de uma plena discussão sobre o real
estado de espírito de Jesus quando descobriu que seu sacrifício era eminente.
Será que absorvera sereno, ou discutiu sua sanidade, destino e o futuro que
lhe era desenhado e que estaria sendo usurpado por seus juízes?

Como última amostra, poderia citar inúmeros planos belos e funcionais


contidos nesta obra-prima, dentre eles um de um crânio seguro por mãos,
cobrindo a tela, tendo em segundo plano os braços entrelaçados dos
suplicantes religiosos. Também a chama que brota por trás do cavaleiro e seu
escudeiro, iluminando o fundo como um fogo do inferno, pronto para acender
as lascas que queimarão a jovem sacrificada. Outro que merece atenção,
principalmente pela quebra do simbolismo seguido dentro do filme, é o do
homem desesperado por estar morrendo por causa da peste e que agoniza
ocupando somente um canto de tela, deixando o resto preenchido pela floresta
e o negrume da noite.

comentários para: clockworkhugo@hotmail.com / assunto: O SÉTIMO SELO


*Hugo Harris é cineasta formado pela FAAP.

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