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Jean Claude Bernardet define Cabra Marcado para Morrer como uma ruptura no cinema brasileiro
em BERNARDET, Jean Claude. Cineastas e Imagens do Povo. Companhia das Letras. São Paulo,
2003.
se interessa pelas narrativas sobre o vivido e sobre estes lugares da memórias nestas narrativas
e nos gestos. Coutinho de 84 se concentra no tema que vai passar a ser aspecto da sua
filmografia e do seu interesse, que é a narrativa e o lugares do contar.
A palavra esperança não deve ser deixada de lado aqui, até porque é uma recorrência
nas falas de Coutinho, e dos personagens. Entender a necessidade (e o desejo) de voltar ao
projeto no Cabra, e do reencontro, é assinalar um lugar de esperança diante da derrota e da
morte. Isso vai ficando bastante claro ainda no início, quando vão se dando os encontros, e
mesmo diante do dolorido do passado, há algo alegre em rever as cenas do material filmado,
em saber que se tratava de um novo registro, e da chance das memórias sobre aqueles tempos
difíceis serem ouvidas e vistas.
Mesmo que Coutinho afirme que este segundo é um filme de fora pra dentro, no
Cabra/84 temos suas memórias daquela primeira experiência agora misturadas às memórias
dos camponeses. Este Coutinho que reconhece os estranhamentos e distanciamentos é
também um Coutinho de dentro daquelas memórias, porque aquela altura partilha a primeira
feitura do filme e seu brusco encerramento. Aquilo também é um fantasma, e algo a ser
reescrito com a volta as filmagens, junto às tantas vivências dos camponeses reinventadas
através das narrativas no segundo Cabra. É aquilo que Henri Gervaiseau define como sendo
uma “comunidade de memória”3.
2
COUTINHO, Eduardo. Encontros. Org. Felipe Bragança. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008. p.
28
3
GERVAISEAU, Henri. P. A 2000: O abrigo do tempo. Tese de Doutorado em comunicação – ECO –
UFRJ. p. 197
formas de invenção muito socializadas, está um indivíduo mais ou menos
sozinho, movido pela sua fidelidade a pessoas e a um projeto, só contando
com seus próprios recursos. É evidentemente outro sujeito. (...) Nem os
camponeses, enfim, são os mesmos. As cenas em que apreciam e comentam
o próprio desempenho – situação sempre privilegiada, que faz intuir o que
Walter Benjamin denominava o direito do trabalhador à sua imagem – são
esplêndidas. Não deixam de mostrar contudo as modificações operadas pelo
medo e por conveniências novas, sem falar no tempo. O reencontro é
caloroso, mas o momento é outro.4
Estas duas temporalidades vão dizer sobre a relação que Coutinho estabelece com o
material de arquivo e com o Cabra/84. O fato de se tratar de uma experiência partilhada deixa
bastante clara a relação que Coutinho tem com o passado e com o discurso feito sobre o
passado. A forma que ele se lança sobre as imagens do primeiro filme mostram um trabalho
da memória, como fazem com os camponeses através das palavras e dos silêncios que
Coutinho faz questão de filmar. Cabra já sinaliza e consolida o que Coutinho vai desenvolver
brilhantemente a partir dali no seu cinema, do tempo do seu cinema, das palavras, dos
silêncios e dos gestos. E é preciso dizer isso porque a forma que Coutinho se relaciona com os
modos de dizer é fundamental para entender o que Cabra representa não só como cinema,
mas como a postura de um diretor que se constitui.
Os depoimentos e as imagens de Coutinho são os lugares de memória, de lidar com a
história derrotada, com a experiência com a morte (com as mortes) mas que na retomada, a
memória tratada como contra-escrita se torna sinal de esperança, como na cena em que os
atores do primeiro filme vêem as imagens que sobraram da interrupção das filmagens, como
uma celebração da resistência do que ficou diante da violência, mesmo que, como diz
Coutinho na narração do filme, as imagens tenham sido mostradas inacabadas, como quando
filmadas, repetidas, cortadas...
4
SCHWARZ, Roberto. O Fio da Meada In: Que Horas São? São Paulo, Cia das Letras, 1989. p.33
5
BERNARDET, Jean Claude. Cineastas e Imagens do Povo. Companhia das Letras. São Paulo, 2003.
p. 232-233
Coutinho sempre assumiu uma admiração pela concepção de Walter Benjamin sobre a
memória e a história, a partir da imagem que o autor faz do anjo da história, que diz sobre este
voltar-se sobre os fragmentos, sobre criar e reconstruir sobre as ruínas. Uma excelente
metáfora para tratar do trabalho feito em Cabra Marcado para Morrer. Ou como se referiu
Jean Claude Bernardet sobre esta relação com os vestígios, sem que se perca a noção de
fragmento, sem que se perca o que na memória, e no processo narrativo da memória, é
trabalho e criação. Ou como afirmou o próprio Benjamin: Articular historicamente o passado
não significa conhecê-lo “como ele de fato foi” . Significa apropriar-se de uma
reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. 6 Exatamente o trabalho
feito por Coutinho e pelos camponeses no Cabra, de lembrar e de filmar.
6
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política. São Paulo. Brasiliense,
1985.
7
COUTINHO, Eduardo. Encontros. Org. Felipe Bragança. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008. p.
28.
8
RANGEL, Maria do Socorro. Medo da Morte, Esperança de Vida; Uma História das Ligas
Camponesas na Paraíba. Dissertação de Mestrado. Departamento de História - UNICAMP. Campinas,
Agosto de 2000. p. 19.
O filme é constituído destes encontros, e destas convivências entre dor e esperança.
Na primeira parte encontramos os camponeses e sabemos como viviam em 64 e como vivem
aquela altura em 84, até chegarmos à São Rafael, no Rio Grande do Norte, onde está
Elisabeth, que tem sua imagem ligada às das cenas do primeiro filme ao ser reconhecida pelos
companheiros. Esta cena do encontro é das mais discutidas pelos que se dedicaram a obra de
Coutinho, por todas as camadas do discurso inicial de Elisabeth, pela volta a fala sobre um
período difícil de significar, diante da intervenção do filho Abraão, a fala que aos poucos se
afasta do que ele lhe recomendava. São estas camadas discursivas, narrativas, gestuais e
imagéticas da presença e do contar que Coutinho deseja trazer à tona.
Esta fala, junto a sua filmografia, indicam a forma com Coutinho lida com a cultura
oral e a narrativa. Daí claro, o vínculo declarado com Walter Benjamin, e o interesse pela
riqueza das experiências contadas. Tudo lhe interessa no que diz respeito ao discurso sobre o
vivido, até a radicalização disso em Jogo de Cena (2007). Diante da barbárie, anunciada por
Benjamin, e da catástrofe percebida por Coutinho, resta a busca aos confins da experiência
oral, onde a narrativa ainda é lugar de constituição da experiência, onde a narrativa ainda quer
dizer esperança e continuidade.
Através da percepção do poder das narrativas dos sujeitos diante da câmera, Coutinho
constitui seu tão reconhecido método, ou seu processo: do encontro, da conversa, da
paciência, e da integridade que quer dizer, nem elevar, nem menosprezar os entrevistados a
serviço de um discurso já pronto a ser confirmado. Para Coutinho a relação com o passado se
dá com o encontro com as narrativas. Esta é a sua ponte, e daí filmá-la, e daí trazer estas
narrativas à tona.
9
COUTINHO, Eduardo. Encontros. Org. Felipe Bragança. Rio de Janeiro, Beco do Azougue, 2008.
p.20.
Cabra Marcado para Morrer é um filme sobre o tempo que passa e sobre a forma
como as pessoas lidam com o tempo que passou, e que na verdade, não passa, as mortes e as
derrotas não passam. E as marcas disto estão presentes nas narrativas e nos gestos de quem
conta. Cabra e seus dois tempos possibilitam perceber esse voltar-se de Coutinho, é o
encontro do que significou a passagem de tempo para ele com o que significou para os
camponeses.
Referências Bibliográficas
11
RANGEL, Maria do Socorro. Medo da Morte, Esperança de Vida; Uma História das Ligas
Camponesas na Paraíba. Dissertação de Mestrado. Departamento de História - UNICAMP. Campinas,
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