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CIÊNCIAS SOCIAIS
SEMINÁRIO TEMÁTICO 14 - CIÊNCIA, TECNOLOGIA, INOVAÇÃO E SOCIEDADE
Felipe Vargas2
Jalcione Almeida3
Águas de Lindóia/SP
23 a 27 de Setembro de 2013
Introdução
1 Salientamos que este texto se apresenta em sua versão preliminar, propício a incorporação de contribuições futuras.
2 Mestre em Sociologia (PPGS/UFRGS) e doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do grupo de pesquisa em Tecnologia, Meio Ambiente
e Sociedade (TEMAS - www.ufrgs.br/pgdr/temas). Email: fvargas85@gmail.com.
3Professor e pesquisador dos programas de pós-graduação em Sociologia (PPGS) e Desenvolvimento Rural (PGDR),
ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordenador do grupo de pesquisa em Tecnologia,
Meio Ambiente e Sociedade (TEMAS – www.ufrgs.br/pgdr/temas). Pesquisador CNPq. E-mail: jal@ufrgs.br.
Os Organismos Geneticamente Modificados (OGMs) adentraram de maneira clandestina no
Brasil há mais de duas décadas pela fronteira entre o Rio Grande do Sul e a Argentina, mediante a
introdução de novas cultivares de soja resistentes ao herbicida glifosato. Esse artefato
biotecnológico passou com isso a ocupar uma série de locais da vida cotidiana, como as lavouras,
os centros de pesquisa, o Congresso Nacional, as instâncias judiciárias e as mesas dos
consumidores. À medida em que esses locais passam a compor o grande espaço de discussão sobre
transgênicos4, novos cenários se desenham e novas questões emergem, modificando não só a
composição dos grupos que se engajam no tema como o próprio estatuto ontológico do artefato
transgênico.
Nesse sentido, não se pretendeu analisar a presença desses organismos por meio de seus
impactos ou suas alterações nesses mesmos locais em um tipo de interação contexto-conteúdo. Não
se buscou, igualmente, considerar a existência de domínios totalizantes como o econômico, o
político e o social, e estabelecer com os OGMs uma relação do tipo causa-consequência. O olhar foi
direcionado ao feixe de relações que fizeram dos transgênicos um objeto em disputa, cujos efeitos
se apresentam visíveis por meio da construção de definições sobre o mesmo, as quais se encontram
imbricadas a transformações das práticas científicas, agriculturais, jurídicas etc. Essa grade de
relações permite identificar as passagens entre cenários de entrada, de difusão e de permanência,
transformando os transgênicos em “assunto de soberania nacional”. Esse percurso pode ser seguido
pelas cadeias de associação (LATOUR, 2005) entre uma gama variada de agentes, contemplando
pesquisadores em universidades, agricultores, técnicos de empresas privadas, canais da mídia,
condições climáticas, mutações genéticas, leis e decisões judiciais, e movimentos sociais, as quais
produzem os diferentes modos de existência das plantas transgênicas. Tais modos foram analisados
por intermédio do conceito de caixa-preta (LATOUR, [1989] 2005).
A fim de situar mais precisamente os marcos temporais e espaciais dos quais a pesquisa
trata, pode-se localizar o cenário de descoberta/produção entre as décadas de 1960 e 1980, mais
especificamente em 1983, no laboratório de genética vegetal de Rijks, na Bélgica, por ocasião da
construção bem sucedida de um tumor-indutor (Ti plasmid), cujas repercussões percorrem o Brasil e
4 O discurso científico sobre transgênicos pontua, sob essa categoria, uma série de organismos diferentes, tais como
plantas, insetos, bactérias e vírus que, apesar de passarem pelo mesmo processo de transformação genética, por meio da
técnica do DNA recombinante, guardam entre si uma série de particularidades. No escopo deste artigo, o termo
transgênico, usualmente utilizado para se referir de maneira geral a qualquer desses organismos se dirige unicamente às
plantas, ainda que algumas questões possam atravessar a discussão mais amplamente.
o mundo por meio da discursividade e da própria prática científica5. O cenário de entrada/difusão
fez-se no momento em que a soja transgênica adentrava o país, sendo cultivada ilegalmente nas
lavouras do interior do Rio Grande do Sul. Seminários, palestras e debates perpassam desde os
centros de pesquisa, instituições governamentais e salões universitários em praticamente todo o
Brasil entre os anos de 1999 a 2002. Porém, o debate mais acirrado se deu precisamente no sul do
país em decorrência da forte presença da soja nas lavouras do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná, motivo que dá os contornos geopolíticos da pesquisa.
Com a aprovação das medidas provisórias (MPs nos 113/2003 e 131/2003), que concediam a
liberação temporária da colheita da soja, entre os anos de 2001 a 2003, até o momento de aprovação
da Lei Nacional de Biossegurança (Lei n. 11.105/05) e constituição da Comissão Técnica Nacional
de Biossegurança (CTNBio) com poderes de decisão sobre qualquer empreendimento a ser
realizado no país que envolva a técnica do DNA recombinante, em 2005, adentra-se, por fim, no
cenário de permanência. A partir de então se torna possível - sobretudo para um grupo em particular
- afirmar que “o transgênico veio para ficar”.
A utilização do conceito de controvérsia (CALLON, 1981; LATOUR, [1989] 2005;
LATOUR, 2005) fornece, então, as possibilidades de rastrear os movimentos de formação de
cadeias de associações heterogêneas, instáveis e assimétricas e situa essas disputas sobre as plantas
GM em meio à uma sucessão de acontecimentos que, progressivamente, conformam os cenários em
questão. Acontecimentos, por sua vez, são entendidos não como situações comuns, mas como um
estado de coisas singular pré-subjetivo e situado por uma dupla relação com o tempo, visto que é
“sempre qualquer coisa que acabou de passar ou que vai se passar, simultaneamente, jamais
qualquer coisa que se passa” (DELEUZE, 1969, p. 176-177).
Filtrar o acontecimento por meio da categoria de controvérsia é entendê-lo como modos de
disposição, ordenamento e ação nos quais entidades distintas entre si se fazem presentes na tentativa
de permanecerem “vivas”, ou seja, de se fazerem contabilizáveis no decorrer do tempo.
Controvérsias são, portanto, o meio pelo qual se pode captar tanto a dinâmica das interações,
entendidas como deslocamentos nos quais um agente se coloca entre outros, quanto as
transformações que esses mesmos passam a provocar ao realizarem esses deslocamentos. Dito de
outra forma, as controvérsias são analisadas como um modus operandi na produção de novas
existências.
5 Alude-se, nesse momento, a Foucault (1969) a fim de assegurar a impossibilidade de tratamento do discurso e da
prática como dimensões distintas, uma remetendo às construções linguísticas ou lógicas e outra aos modos de fazer. As
formações discursivas são práticas singulares que igualmente provocam modos de agir específicos. Nesse sentido, a
linguagem entra não como condutor da análise, mas como ferramenta que possibilita a tradução do discurso em visíveis
e dizíveis.
Como contexto empírico tem-se as controvérsias suscitadas com a descoberta/produção, a
entrada/difusão e a permanência de organismos transgênicos no sul do Brasil, as quais se voltam
para uma série de questões técnicas, econômicas, ambientais, jurídicas e políticas. Dentre essas, no
presente artigo optou-se pelas discussões em torno da precisão do método científico, dos índices de
produtividade da soja transgênica e do papel da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança -
CTNBio. A constante formação de grupos em torno dessas questões permite captar as cadeias de
associações mediante a entrada ou substituição de determinados e variados elementos, bem como
mapear algumas assimetrias que se estabeleceram nesses cenários.
Por meio de uma análise conversacional buscou-se descrever os elementos que compõem
essas cadeias. Esta foi orientada por dois eixos: a) a formação de grupos; e b) a composição das
definições de “transgênico”. Para tanto, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, priorizando
uma incursão dessa técnica como momentos particulares de observações em alguns locais como
laboratórios e lavouras, seguindo-se um percurso de inspiração etnográfica. Esse trajeto
metodológico/analítico denominado de “seguir os mediadores” possibilitou, primeiramente, traçar
as relações e associações entre os agentes que se inscrevem em cada cenário, se utilizando, para
tanto, do conceito de rede (LATOUR, [1991] 2010). Em um segundo momento permitiu visualizar
as assimetrias as quais essas relações se encontram em dada conformação, devolvendo, assim, ao
marco referencial da Teoria Ator-Rede (ANT na sigla em inglês) o problema posto pelas relações de
força.
Portanto, uma série de parcerias entre governos, empresas e centros de pesquisa modificou a
descoberta do vetor genético de transformação para um “produto biotecnológico” que se formou, no
laboratório, mediante uma longa cadeia de associações. Essa é a primeira caixa-preta a partir da
qual as controvérsias se instalaram.
Hoje, passados quase 30 anos, esse processo é identificado como “um método original para
produção de plantas transgênicas usando um sistema que existe na natureza”, definindo os
transgênicos como “um instrumento biotecnológico” (PP1, UFRGS/CB). Não fossem cada um
desses elos, tais como o Instituto Max Planck, a homologia entre as bordas do plasmídeo da
nopalina e o DNA vegetal, os testes de resistência, a fundação, em 1982, da Plant Genetic System7
etc., o produto seria outro.
Esse enunciado percorreu os Estados Unidos e a Bélgica de 1983, chegando ao Brasil ao
longo das décadas seguintes, firmando-se nos centros de pesquisa do país. Não há quem deixe de
reconhecer a potencialidade dessa ferramenta. Nem mesmo aqueles “do contra”, definidos assim
por um grupo de especialistas (genéticos, melhoristas e biólogos moleculares), tais como os
6No seguimento do artigo os autores explicam, tecnicamente, quais as outras condições necessárias para a realização
desse objetivo.
7 Companhia fundada por Marc Von Montagu e Jeff Schell, hoje pertencente a Bayer CropScience.
entrevistados PT1 (Instituto Nacional de Reforma Agrária - INCRA/Área de Planejamento - AP);
PP1 (UFRGS/Botânica) e PP3 (Universidade Federal de Santa Catarina - USFC/Centro de Ciências
Biológicas - CCA) desconsideram que “a tecnologia é muito poderosa”.
É a partir desse pressuposto que a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária -
EMBRAPA, o Instituto Agronômico do Paraná - IAPAR), os Laboratório de Genética Vegetal e
Biotecnologia, da UFRGS e da Universidade de Passo Fundo, respectivamente, trabalham em
conjunto com empresas como Monsanto, Bayer e Syngenta para produzir novos produtos
biotecnológicos.
O rigor do método parece garantir não só o controle de mutações indesejadas como sua
eficiência e precisão:
Então a célula agora regenera e em cada plaquinha separada você tem uma
linhagem diferente. Por quê? Porque pode ser que na linhagem numero 10 o gene
caia dentro de um gene importante e aquela planta vai gerar um mutante esquisito.
Não por causa do gene que você introduziu, mas por causa do gene que você
interrompeu sem querer. Aquela você descarta porque é um mutante que você não
sabe onde caiu e você não está interessado em estudar aquele gene, você está
interessado em estudar o gene que você introduziu. As outras nove tem o mesmo
fenótipo. Significa que o quê? Que os fragmentos de DNA caíram em um pedaço
do genoma que não altera a fisiologia. Agora tudo que acontecer com o fenótipo é
decorrente do gene que você introduziu e não do gene que você interrompeu.
Porque as nove são iguais. Se as nove têm um problema na folha você deduz o
quê? Que esse problema na folha é por causa do gene que você silenciou porque
nas nove você tem o mesmo fenótipo. É aleatório, por princípio. Mas se eu quiser
saber eu tenho como saber onde o gene caiu. Existem técnicas moleculares que me
facilitam mas vai me dar um trabalho imenso. (PP5, UFRGS/Genética Vegetal).
Dessa maneira, voltar-se ao próprio método científico consistiu em um dos recursos mais
estratégicos a fim de abrir o “produto biotecnológico”. Essa caixa-preta, se mantida bem fechada,
impossibilita que: a) um número mais amplo de sujeitos e objetos seja contabilizado enquanto
participante ativo nos processos de tomada de decisão; e b) outros locais de enunciação emerjam.
Assim, uma problemática deve ser instaurada para que esses deslocamentos se tornem possíveis:
quais os critérios que possibilitam definir um método científico adequado?
Diante da necessidade de minimamente tangenciar alguns pontos que atravessam esse
problema a análise pretende dar conta de novas formações que possibilitaram que a eficiência e a
precisão do método científico sejam pontos de tensionamento para a abertura dessa caixa-preta. Se,
para executar essa tarefa é preciso submeter o método científico à prova, esses testes,
obrigatoriamente, passam por um contra-laboratório (LATOUR, [1989] 2005).
O contra-laboratório é descrito por Latour como o último reduto ao qual aquele que
permanece com um certo ceticismo em relação aos enunciados científicos deve adentrar. O contra-
laboratório é tratado, aqui, à semelhança do laboratório, porém com uma distinção fundamental. Ele
visa não estender para fora de seu alcance as normas de objetividade que lhe dão funcionalidade.
O deslocamento ao contra-laboratório sobressaiu durante observações de uma mesa
realizada ao longo do Fórum da Igualdade, ocorrido em Porto Alegre, no período de 16 a 17 de abril
de 2012, na oficina Contaminação Genética do Milho. Por diversas vezes mencionou-se que,
“agora que há dados e estudos científicos suficientes, não se pode abandonar a discussão”. Ao
contrário, “é preciso sair na frente. Necessitamos discutir em termos genéticos”.
Eu acho que o fecho que é relevante é que nós temos hoje mais argumentos
técnicos para sustentar uma discussão técnica quanto aos riscos dos transgênicos do
que nós tínhamos lá no governo Olívio por exemplo. (PT1, INCRA/AP).
A maior parte deles usa bombardeamento. E quando você faz por essa técnica, o
gene vai ser inserido no tecido vegetal em uma parte do genoma que é aleatória.
Isso você não tem como controlar. E hoje nós sabemos que dependendo do local
que ele caia, que aliás é uma das linhas que estamos pesquisando, a proteômica, ele
pode produzir uma proteína além da proteína do próprio evento, que é outra que
não é milho. (...) Pode ser a proteína do evento, mas pode ser outra proteína que
nunca um milho ou nenhum outro organismo produziu. Você entendeu? É, qualquer
outra coisa que você não sabe. (PP3, UFSC/CCA).
Por que que eu temo? Por questões técnicas. Porque se tu conseguires me provar
que não há a menor possibilidade de causar o menor problema, tu vais me ganhar.
Por exemplo, me prova que não vai ter mudança nenhuma lá na proteína tal,
gerando alguma toxina? (PT2, IAPAR/ Melhoramento Genético).
O plantio direto na palha substituiu o antigo sistema de cultivo. O glifosato, cujo nome
comercial é Roundup Ready®, substituiu a aplicação conjunta de outros herbicidas específicos (um
para folha larga, outro para folha estreita; um para plantas em fase de crescimento, outro para fase
de maturação etc.), engendrando a exclusão das “ervas invasoras” dessa nova cadeia em formação.
A soja transgênica, por sua vez, substituiu a soja convencional e inicia, nas palavras do entrevistado
A1 uma revolução no modelo de agicultura:
Era fácil identificar isso, choveu logo após o plantio, choveu na época de
enchimento do grão e não choveu na época da colheita. Então as condições da
lavoura foram excepcionalmente boas. E fazendo uma correlação entre esses dados
do clima e os dados do rendimento, se percebeu que esses dados do clima foram
muito atípicos. (PT1, INCRA/AP).
Uma controvérsia, então, se instala. Os grupos se rearticulam. A CTNBio, alguns canais da
mídia e os agricultores - por meio de cooperativas, instituições como a FARSUL e a Associação de
Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (APROSOJA/RS) - se somam ao conjunto já formado da
“facilidade de manejo” redefinindo a produtividade como um de seus efeitos, tendo em seu cerne a
própria modificação genética. A EMATER/RS, os dados do IBGE e as condições climáticas são
definidos como insuficientes ou incapazes de explicar esse aumento.
O choque provocado entre esse grupo de facilitadores e os pessimistas aponta uma forte
assimetria, o que um entrevistado define como “acirramento político” (PP3, UFSC/CCA). Em meio
a essa disputa a lavoura aparece como local por meio do qual os agricultores (especialmente aqueles
com propriedades de até quatro módulos rurais), pesquisadores e movimentos sociais podem aliar-
se a outras possibilidades.
Quando uma grande empresa, como a Monsanto, Cargill e outras, vai desenvolver
uma cultivar ela vai trabalhar com uma genética de material que chamamos de
híbrido. Esse tipo de material é constituído geneticamente de uma forma que o
agricultor não possa multiplicar; quer dizer, ele até pode multiplicar a semente, isso
é possível, mas a genética dele já não vai ser mais a mesma daquela semente que
ele comprou na agropecuária. Ele perde em termos de qualidade genética se ele é
reproduzido. Mas muitos fazem isso. Um híbrido normalmente quando ele é feito,
ele é selecionado em uma situação de agricultura que chamamos alta consumidora
de energia externa. Então, ele é selecionado para responder e produzir bem desde
que você use as altas tecnologias que estejam disponíveis. Ou seja, condições onde
você fertiliza adequadamente, você dá água, você cuida para controlar a praga e a
doença quando eles atacam. Então a energia dele é selecionada para o grão. Ou
seja, ele produz muito desde que você controle todos os fatores de risco. (PP2,
UFSC/CCA)
(...) nós fomos ali e nós levamos uma carta aberta à população. Não queriam deixar
nós lermos, mas teve um embate muito forte e nós conseguimos ler. Quando nós
lemos, a imprensa pediu para publicar. Nós deixamos. Entregamos essa carta aberta
aos deputados e, então começamos a trabalhar para criar uma lei aqui no Estado.
Nós sabíamos que era inconstitucional, mas nós transformaríamos a discussão da
biotecnologia... tornando-a pública e provocando o debate. E aí nós aprovamos a
lei no Rio Grande do Sul, mas o governador revogou porque era inconstitucional.
Nós, depois, derrubamos o veto dele. Foi bonito isso. Tudo construiu um ambiente
para nós chegarmos em Brasília, um tempo depois e acabarmos aprovando a lei de
biossegurança. Nós participávamos de uma forma muito forte junto com cientistas,
nós produtores, inclusive do lado dos políticos; e trabalhava a mídia. (A1 + filiação
institucional)
8 Tendo sido o Rio Grande do Sul o estado no qual esse acontecimento se desenrolou e seus efeitos puderam ser
visualizados de maneira mais acentuada, vale mencionar que uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4a região, no
ano de 2000 (Agravo de Instrumento n0 200004010320623) determinou a competência da União para legislar sobre a
liberação de transgênicos no país, em contrapartida ao que já dispunha o Decreto Estadual n0. 016/99 que proibia o
cultivo.
9Para uma série de dados gerais sobre transgênicos no país, desde áreas plantadas até índices de colheita e exportação
ver <http://www.isaaa.org>. Esse dados, todavia, não são de fontes oficiais.
outro?” (A1, Clube dos Amigos da Terra/Agricultor). O Congresso Nacional e os agentes
governamentais dividiam-se: uns criticando a legitimidade de organismos internacionais como o
Greenpeace em defesa dos assuntos de soberania, outros denunciando o lobby no qual “as empresas,
essas grandes do agrobusiness, estão sentadas dentro das cadeiras que tomam decisões no
governo” (PP3, UFSC/CCA).
A mídia direcionava suas matérias na tentativa assimétrica de cobrir as muitas
manifestações, seminários e audiências 10. Cientistas de universidades e instituições como a
Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência - SBPC, a Sociedade Brasileira de Genética -
SBG e as diversas unidades da EMBRAPA manifestavam-se publicamente se autodenominando
como o “lado científico” face aos defensores de “ideologias tendenciosas”, como a Articulação
Nacional da Agroecologia - ANA, o Instituto de Defesa do Consumidor – IDEC e o Sindicato das
Empregadas Domésticas.
A Campanha Permanente contra os Transgênicos, agora somada à ANA e à Associação
Brasileira de Agroecologia - ABA, esta última criada em 2004, sofre uma tradução de seus antigos
objetivos e passa a propor alterações no Projeto de Lei. Um dos pontos centrais trazido ao debate
público foi a manutenção da CTNBio 11 como órgão consultivo, sem poderes de decisão sobre os
pedidos de liberação de OGM’s para fins, especialmente, de comercialização.
A proposta que nós defendemos dizia que a CTNBio continuaria sendo uma
Comissão consultiva e que ela emitiria pareceres técnicos, e que esses pareceres
iriam submediar o IBAMA, a ANVISA e os outros órgãos de Estado para tomar a
decisão. Então, a CTNBio não seria um órgão de decisão, mas sim um órgão de
que daria uma orientação. E então, em 2003, 2004 e 2005, a Campanha se dedicou
quase que exclusivamente a participar do processo legislativo. (MS1, ASP-TA)
Agora com as leis nós sabemos o que tem que se fazer, como se deve fazer, mas a
política ajudou com as leis. Leis, na minha opinião são corretas. Protegem e
beneficiam tanto a sociedade, pois, antes de se vender tem que analisar se é seguro,
etc., tudo aquilo que eu te falei [...] e a empresa por um lado também porque, todo
esse dinheiro que se investe tem que ter um retorno. (PT4, Monsanto).
O agenciamento tecido engendra novas linhas pelas quais se torna possível adentrar no
cenário. Biotecnologias, biossegurança e biorrisco passam a ser termos cujo conteúdo é, então,
rearticulado, recomposto e ressignificado em meio ao laboratório, à CTNBio, o Congresso Nacional
e a nova lei. Se antes já não eram novidade, argumentos econômicos, jurídicos, éticos e sociais se
misturam aos genes, bactérias, plasmídeos, lavouras e ministérios em formatações e organizações
completamente distintas.
Então em 2005 o congresso viu que a situação não podia perdurar e fez então as
alterações na lei de biossegurança antiga. Se criou então segurança jurídica e aí sim
se observaram os avanços dos institutos públicos de pesquisa, das empresas
agrícolas de interesse na questão etc. Uma vez que eles tinham um terreno com leis
claras foi solta essa demanda reprimida que tinha na área agrícola, pois com as
regras bem estabelecidas você tem um caminho seguro. (PT3, CTNBio).
A “questão política”, nesse momento, passa a ser direcionada aos OGM’s enquanto
“organismos seguros” e seu porta-voz, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança. Nesse
sentido, um dos efeitos desse acontecimento que ganhou existência foi um número considerável de
ações judiciais 12, agora articuladas aos estudos que apontam para as falhas da CTNBio enquanto um
órgão decisório.
Instituições como a ONG Terra de Direitos, sediada em Curitiba/PR, o Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Passo Fundo/RS, o Instituto de Defesa do Consumidor - IDEC passam a se
colocar entre as entidades que compõe a entidade “organismo isento de risco” e os tribunais de
justiça, interessando-os a definir o próprio conteúdo do substantivo “segurança”.
Desde o início destes embates, o significado desse termo se encontra articulado ao método
científico e à existência de um instrumento legal que confere um rito, uma ordem na conformação
de seu modo de existência. Segurança para quem? Quem a define e fala em seu nome?
A justiça foi instada a se manifestar em vários momentos ao longo do histórico dos
transgênicos no sul do país, envolvendo desde a composição da Comissão e a necessidade de uma
postura ética até o conteúdo de suas decisões.
Segundo a lei, 14 votos é o suficiente para liberar qualquer coisa. Só o MCT indica
12. Não há obrigação, por exemplo, do geneticista da SBPC em dar um retorno, em
Congressos, oficinais abertas, etc. sobre como ele vota nos processos. Os
especialistas são indicados porque pesquisam na área, mas não têm nenhum
compromisso com a sociedade e sim com suas linhas de trabalho. Nós não vemos a
sociedade brasileira de diferentes áreas participando do processo. Então nós
achamos que tem um problema de baixa representatividade, de baixa legitimidade
das pessoas que estão tomando as decisões. Isso faz da Lei de Biossegurança um
texto com sérias lacunas (MS1, ASP-TA).
12Até o presente momento não há um estudo sociológico ou até mesmo jurídico que sistematize e reúna as informações
completas sobre os processos judiciais findos e em curso onde os transgênicos são o alvo da demanda.
13 Para informações sobre muitas das ações em curso, ver www.terradedireitos.org.br
A produção de linhas de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 1980) que buscam abrir as caixas-
pretas fabricadas pela história dos organismos geneticamente modificados acompanhou,
simultaneamente, no Brasil, a consolidação destes cenários. Essa fuga se constrói mediante um
movimento de expansão em direção a outros arranjos que redefinem os laços entre cientistas e seus
métodos, agricultores, instituições governamentais, genética e ecologia, bem como os processos de
tomada de decisão oficiais e a composição do que pode se entender por sociedade (STRUM;
LATOUR, 1987). No entanto, traçar essas cadeias e registrar a maneira com a qual algumas
entidades permanecem e outras são excluídas desta história recoloca a questão da simetrização do
tratamento analítico proposto pela ANT.
Essa perspectiva busca se afastar tanto da “posição racionalista” (a qual entende que a
ciência não é influenciada pelos interesses sociais) quanto da “posição construtivista” (para a qual o
conhecimento é um simples constructo social). Dessa forma, não seria possível separar ciência e
política, isto é, natureza e sociedade seriam coproduzidas (JASANOFF, 2004).
Em termos epistemológicos, o que se impõe como questão é, portanto, as saídas produzidas
por essa simetrização – tais como os conceitos de mediação e de tradução –, mas também as novas
entradas – ou retornos – que ela possibilita no momento em que outras assimetrias emergem.
A exclusão das questões que colocavam em suspenso a precisão e eficácia do método
científico de transformação de plantas, a impossibilidade de definir a produtividade da soja GM por
meio das condições climáticas da lavoura e exclusividade da CTNBio no que toca a análise da
segurança dos OGM’s não foram, ao que parece, simples resultados de uma cadeia de associações
bem articulada. Nesse sentido, Michel Callon, um dos representantes da ANT, aponta a existência
de uma diferença entre o que pode ser negociado e o que é negociável:
Quais as relações que fazem do transgênico um objeto negociável e o que está realmente em
processo de negociação? Não se pretende, neste artigo, responder a tais indagações, mas alertar para
possíveis caminhos que a partir dela se abrem. Se um tratamento simétrico se faz imperioso para
escapar de substancializações e não cair em um relativismo forçado, ganha relevância a análise de
assimetrias de escala. Cadeias de associações engendram-se em graus ontológicos distintos em
decorrência dos vínculos que se estabelecem e, por conseguinte, produzem agenciamentos que têm
certo alcance em rede. Nem tudo, com isso, aparece negociável.
A vinculação da prática científica nos laboratórios às empresas públicas e privadas facilitam,
por exemplo, o acesso a difusão da informação. As trocas entre grandes produtores, como é o caso
de A1 do Clube dos Amigos da Terra, que abrem suas terras às experimentações científicas
igualmente conduzem a novos laços e modos de fazer agricultura que levam a questão da facilidade
do manejo a outros lugares.
O grupo majoritário da CTNBio, composto de biólogos moleculares, confere a primazia doa
unidade do gene face a ecologia genética, que considera a totalidade da cadeia em relação à
particularidade das condições regionais da lavoura. Há posições assimétricas implícitas nessas
conformações.
A sociologia das associações se vê de frente com um antigo dilema: as relações de força ou
poder. Se por um lado não é essa especificidade que explica as assimetrias, por outro não é ela que
deve ser explicada. Esse falso problema apenas inverteria a relação causa e efeito. Quão mais longa
a cadeia e mais bem articulada, maior sua capacidade de definição daquilo que é “sujeito” ou
“objeto” e, por conseguinte, do direcionamento da controvérsia
Colocar-se no eixo tempo espaço da simetria generalizada, como mencionado, permite ao
pesquisador situar-se em uma “zona livre” onde ainda não se é possível medir intensidades, mas
sim registrar seu percurso. Todavia, é seguindo esses fluxos que, inevitavelmente, se chega a “zonas
estanques” onde tais elementos ganham sua substância (ainda que temporária). Para, portanto,
registrar assimetrias deve-se recolocar a relação de poder como condição de necessidade das
cadeias de associação, ou seja, como um recurso constantemente refeito pelos seus próprios laços
onde um determinado estado das coisas se formata à medida em que se expande a novos locais
(STENGERS, 1997).
É nesses termos que a discursividade científica atua como uma espécie de atrator da
segurança jurídica dos OGM’s, localizada no poder de decisão da CTNBio. A especialidade do
saber - ou seja, quem mais poderia falar sobre um organismo geneticamente modificado senão
geneticistas - que se alia a segurança jurídica para definir o que é arriscado ou não. A necessidade
das empresas em expandir suas relações de comércio alia-se aos grandes produtores na procura de
uma “revolução na agricultura” que estabilize seus produtos.
Transgênicos vieram para ficar enquanto produção de um agenciamento maquínico
(DELEUZE; GUATTARI, 1972) da diferença traduzida do laboratório às lavouras e ao Congresso
Nacional, excluindo a possibilidade concreta destes organismos como vetor de risco.
Assim é que, se por um lado, organismos geneticamente modificados se impuseram e se
difundiram tão expressivamente por meio de porta-vozes mais bem associados, é mediante a própria
composição e o alcance desses vínculos que sua condição de existência pode contestada. Nesse
sentido, qualquer tentativa de sobreposição de um agenciamento pelo outro, de uma definição pela
outra, faz-se mediante a busca de novas condições de poder às associações pela heterogeneidade de
seus laços.
Considerações finais
O que aqui se pretende é contribuir com novas questões as quais foram possíveis mediante
o desenho das cadeias de associações envolvidas nas controvérsias sobre biotecnologias
transgênicas no sul do país em seus diversos cenários. Essas questões passam por diversos pontos,
dentre os quais, a assimetria de força dessas relações.
Nesse sentido, o primeiro item a ser destacado é a pertinência do tema. Os transgênicos não
se encontram estabelecidos ou assegurados em definitivo, mas somente enquanto exercem um
agenciamento técnico-jurídico que exclui outros modos de existência deste organismo. Existem
alguns locais que se apresentam como possíveis linhas de fuga das estratégias de controle do
laboratório e da definição extensiva dos textos legais.
A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) pode ser situada como o espaço
no qual os laboratórios estendem suas técnicas e definições, sendo o lugar mais propício para
analisar a maneira pela qual as ciências se traduzem por modos políticos de se viver em conjunto. O
contra-laboratório aparece como o novo lugar que a atividade científica pode ocupar em meio as
controvérsias sobre OGMs, visto que ele mantém esses organismos sob suspeita.
A seu turno, as ações judiciais formam o último reduto em que se pode igualmente visualizar
processos de tradução do percurso que o “produto biotecnólogico” toma posteriormente a sua saída
da CTNBio. Todavia, em razão de sua estreita vinculação com os demais locais abre-se a
possibilidade de problematizar como esse tipo de interação ocorre, por exemplo, em meio às
audiências públicas e os testemunhos de agricultores, técnicos de cooperativas, funcionários de
empresas privadas e cientistas no curso de uma ação judicial.
Tomando como ponto de partida essa relação entre esses locais (laboratório e CTNBio) e
seus “opostos” (contra-laboratório, lavoura e tribunais de apelação) a análise das condições
assimétricas que entre eles se estabelecem pode recolocar os conceitos oferecidos pela Teoria Ator-
Rede em meio a outras opções teórico-epistemológicas que lancem novos olhares sobre essas
questões.
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