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27 HUMANISMO E O DIREITO CIVIL

Os humanistas italianos do século XV eram conscientes de que os textos do Digesto


que estavam disponíveis a eles eram incompletos. Os glosadores e comentadores
haviam estado satisfeitos com a ​litera boloniensis​, o texto tradicional que havia sido
utilizado em Bolonha desde o século XI e que era a base para as primeiras edições
impressas do Digesto. Os humanistas reconheceram que o manuscrito da ​Biblioteca
Medicea Laurenziana em Florença era mais antigo e mais próximo do original, mas não
era fácil consultá-lo, já que a permissão de manuseá-lo era raramente concedida.

O humanista Politiano, embora não fosse jurista, estava convencido da necessidade de


se empreender um estudo deste manuscrito, o qual ele acreditava ser o que Justiniano
havia enviado ao Papa Virgílio em 550 (como é de fato possível). Ele obteve a
permissão de Lorenzo, o Magnífico para comparar esse manuscrito a uma edição
impressa. Trabalhou intensamente, anotando ao final do ​Digestum Vetus que finalizava
seu cotejo às 12:30 do dia 19 de julho de 1490; seis semanas mais tarde completava
todo o trabalho. Ainda que Politiano tenha publicado apenas algumas de seus leituras
do manuscrito, ele estabeleceu a ideia de que o texto florentino era o arquétipo da
tradição do Digesto e que a melhor versão teria de se basear necessariamente nele.

Os primeiros juristas humanistas, que surgiram na primeira metade do século XVI,


concentraram seus esforços em eliminar dos textos as camadas de glosas e
comentários que os solapavam. O francês Guillaume Budé (Budeus), em suas
Annotationes in Pandectas de 1508, embora fosse jurista, demonstrou maior interesse
nos termos pouco usuais encontrados no Digesto e no que ele podia ensinar sobre a
vida na Antiguidade, do que no direito em si. Ele descreveu os comentários, que não
demonstravam qualquer interesse em tais questões, como um câncer maligno nos
textos, o qual deveria ser, assim, extirpado. Seu contemporâneo, o alemão Ulrich Zazi
(Zazius), funcionário do conselho da cidade de Freiburg im Breisgau e professor na
universidade, referiu-se aos comentários como uma gigantesca trepadeira que se havia
enraizado em torno dos textos. Zazius se preocupava com seu significado jurídico.
Como expressou a nova abordagem em suas ​Lucubrationes (1518), “se antes os juristas
haviam aderido sempre cegamente à autoridade da Glosa e de Bartolo, o verdadeiro
significado do direito agora seria compreendido mais claramente e em maior pureza, e
a maioria dos comentários odiosos, cheios de erros como estavam, desapareceriam.
Os únicos intérpretes genuínos são aqueles que explicam as fontes mesmas.” A ênfase
não era mais em encontrar uma regra utilizável em um problema contemporâneo, mas
sim em revelar o sentido original dos textos justinianeus.

O mais influente jurista desta primeira fase do humanismo foi o italiano Andrea Alciato
(Alciatus). Ele era trinta anos mais jovem do que Zazius mas publicou três pequenas
obras, que fizeram seu nome, no mesmo ano da obra deste. Foi a ​Paradoxa (que
expunha objeções a opiniões recebidas) que teve o maior impacto. Nascido em Milão,
Alciatus estudou direito em Pavia sob os mestres do método bartolista, Jason de
Mayno e Filippus Decius, mas ao mesmo tempo foi tomado de entusiasmo pela
atraente doutrina humanista. Ele propôs a si mesmo a tarefa de combinar estudos
jurídicos e humanistas, começando pela reconstrução das instituições políticas
romanas, não apenas sob um ponto de vista histórico, mas também jurídico.
Alciatus ensinou em Avignon de 1518 a 1522 e introduziu a nova abordagem na
França, onde foi aceita com entusiasmo e ficou conhecida como ​mos gallicus​, em
contraste com a tradicional abordagem bartolista, agora denominada ​mos itallicus​. A
partir de 1529 Alciatus ensinou em Bourges, que se tornou o principal centro do
humanismo. Bourges era um baluarte huguenote e quase todos os humanistas
franceses proeminentes eram protestantes. De fato o movimento se enfraqueceu
seriamente após o massacre de São Bartolomeu em 1573, quando muitas de suas
figuras proeminentes foram assassinadas. Há um claro paralelo entre seu pensamento
jurídico e teológico. Da mesma maneira que os reformadores da Igreja contestavam a
autoridade dos clérigos e propunham um retorno à palavra pura das sagradas
escrituras, também os juristas humanistas queriam fazer reviver o verdadeiro direito
de Justiniano, recorrendo à pureza das palavras de seus textos.

Os primeiros juristas humanistas preocuparam-se em melhorar a qualidade de seus


textos mas, ao invés de seguir o exemplo de Politiano e sistematicamente comparar
seus textos com o manuscrito florentino, eles se apoiaram largamente em conjecturas,
utilizando seu conhecimento sobre a Antiguidade para inferir como o texto deveria ser.
Apenas em 1553, quase sessenta anos após a morte de Politiano, Lelio Torelli, em
colaboração com o erudito espanhol Antonio Agustín, produziu uma edição do Digesto
baseada no manuscrito florentino.

O maior humanista crítico dos textos foi Jacques Cujas (Cujacius). Ele reconheceu a
importância do manuscrito florentino, mas percebeu que não se devia simplesmente
seguir a interpretação do melhor manuscrito disponível; diversamente, devia-se ter em
conta a conclusão à qual essa interpretação levava e considerar se, em todas as
circunstâncias, o jurista romano em questão provavelmente teria escrito isso. Para
Cujacius isso significava contrastar a leitura do manuscrito com a ​ratio iuris​, ou o
princípio por trás da norma. Para lograr fazer isto, era necessário ter tanto um
conhecimento jurídico enciclopédico dos textos do Corpus Iuris, quanto dos estudos
humanísticos sobre a literatura antiga. Cujacius foi insuperável neste sentido e seus
trabalhos são ainda citados na interpretação dos textos justinianeus. Ele e seus colegas
iniciaram o estudo de interpolações nos textos do Digesto.

Em sua tarefa de recuperar o verdadeiro direito romano do ofuscamento promovido


pelos glosadores e comentadores, os humanistas perceberam que os textos de
Justiniano revelavam não somente o direito bizantino do século VI mas também o
direito do segundo e terceiro séculos, o período dos grandes juristas cujos trabalhos
estavam fragmentados no Digesto. Isso eles identificaram como o período clássico do
direito romano. Por meio de um cuidadoso trabalho de investigação eles puderam até
mesmo reconstruir a Lei das XII Tábuas de princípios da República. Já em 1515 o
francês Aymar du Rivail, que havia estudado em Pavia com os mesmos mestres de
Alciatus, publicara sua ​Historia Iuris Civilis et Pontificii​. Ele concentrou seu relato
principal sobre a “origem do direito” no Digesto, o longo fragmento D.2,2,2, de
Pompônio, e o suplementou com a referência ao relato de Lívio sobre os primeiros
tempos da República. Du Rivail tratou de reconstruir o conteúdo das XII Tábuas e, uma
vez que essa legislação era tida como inspirada nas leis atenienses de Sólon, ele incluiu
todo o conhecimento disponível sobre estas.
Quando distinguiram entre os diversos extratos de direito representados no Digesto,
os humanistas observaram que o estado do direito romano estava relacionado ao
estado da sociedade romana e que, quando essa sociedade mudou, o mesmo
aconteceu ao direito. Em particular, eles notaram que o direito de um período em
particular era afetado pela situação política à época. Ao esboçar o desenvolvimento do
direito romano, eles traçaram paralelos com as mudanças políticas que ocorriam na
França neste período. Alguns pensaram que o estudo do direito antigo poderia
oferecer respostas a seus próprios problemas constitucionais. Mas quanto mais eles
relacionavam o direito romano ao que eles descobriam sobre a sociedade romana,
mais eles percebiam o quão diferente sua sociedade do século XVI era da sociedade da
Roma antiga. Tal compreensão os levou a questionar se era apropriado procurar
utilizar o direito romano como modelo para a França contemporânea.

Ao insistir na conexão entre o direito romano e a sociedade da antiga Roma, os


humanistas estavam afinal questionando a pretensão de validade universal do direito
romano. O maior expoente desta linha de argumentação foi François Hotman. Ele
realçou a distinção entre direito público e direito privado, arguindo que o direito
público de cada país estava necessariamente relacionado à sua forma de governo. Mas
mesmo em direto privado, o direito romano mudara à medida em que a sociedade
romana se modificara, e muitas normas haviam se tornado obsoletas. No seu
Francogallia (1573), ele sustentou que a França de seu tempo era o produto das
instituições francas, e não romanas, e que os francos eram um povo de origem
germânica, não afetado pelo direito romano. Hotman argumentou que a propriedade
da terra francesa era regida essencialmente pelo direito feudal e que, a despeito da
incorporação do ​Libri Feudorum ao ​Corpus Iuris​, o direito feudal era um tanto estranho
ao verdadeiro direito romano. Tal como defendeu em seu ​Antitribonianus​, escrito em
1552 mas publicado postumamente em 1603, um advogado francês que adentrasse
uma corte francesa munido apenas das leis romanas sobre propriedade e sucessão,
seria tão bem qualificado como se ele tivesse chegado entre os selvagens americanos.
O direito civil romano era simplesmente inadequado para a França do século XVI.

Tanto a crítica humanista aos textos de direito romano quanto sua ênfase no
relacionamento entre o direito romano e a sociedade romana antiga minaram a
veneração a que ​Corpus Iuris Civilis estivera sujeito. A maioria dos humanistas
reconheceu que, para se chegar a soluções racionais e equitativas sobre problemas
perenes, o trabalho dos juristas romanos não tem rival. Eles se sentiam livres, porém,
pela primeira vez, para criticar a forma como essas disposições eram transmitidas. As
dificuldades para se descobrir o que era o antigo direito romano haviam se agravado
pela forma obscura na qual os textos do ​Corpus Iuris estavam organizados. Nem o
Digesto nem o Codex possuíam uma ordem racional e eles continham muitas
repetições e antinomias. O resultado era que havia muito espaço para interpretações
contraditórias e, na mente dos simples cidadãos, os juristas do direito civil adquiriram
uma reputação derivada dos complexos argumentos que utilizava, os quais serviam
como um convite à chicania.

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