Você está na página 1de 8

DEBATE DEBATE 1141

A necessária frugalidade dos idosos

The necessary frugality of the elderly

Carlos Dimas Martins Ribeiro 1

Fermin Roland Schramm 2

Abstract Introdução

1 Centro de Ciências da The purpose of this article is to reflect on the Os principais conflitos morais da atualidade
Saúde, Universidade Severino
pertinence and moral legitimacy of basing the decorrentes das modalidades de alocação dos
Sombra, Vassouras, Brasil.
2 Escola Nacional allocation of public resources for health on the recursos públicos para a saúde podem ser defi-
de Saúde Pública, age variable, considered from the perspective of nidos fazendo referência a três características
Fundação Oswaldo Cruz,
the theory of “justice as equity” as formulated by dos sistemas de saúde: (1) o progresso biomé-
Rio de Janeiro, Brasil.
John Rawls. After characterizing the problem of dico, que tem contribuído para proporcionar
Correspondência public resource allocation for health – confront- um significativo aumento da duração da espe-
C. D. M. Ribeiro
ed with the challenge posed by population ag- rança de vida, dos anos de vida efetivamente
Rua Cândido Mendes 76/304,
Rio de Janeiro, RJ ing – and briefly presenting the concept of equi- vividos e de sua qualidade, mas que tem acar-
20241-220, Brasil. ty adopted in this study, as well as discussing the retado um acréscimo dos custos econômicos
dimasribeiro@cremerj.com.br
approach by Norman Daniels and Daniel Calla- necessários para satisfazer tais expectativas
han to resource allocation among different age para todos 1; (2) a concepção contemporânea
groups, we conclude that basing resource allo- de saúde, ao mesmo tempo entendida como
cation on the age variable may be considered qualidade de vida 2, cuja principal conseqüên-
ethically adequate if we conceive the individ- cia foi a de ampliar os direitos das pessoas, o
ual’s life as a limited cycle of existence formed que exige, praticamente e de modo progressi-
by different stages (childhood, adolescence, ma- vo, mais recursos do Estado (ou de outras insti-
turity, old age, and death), during which the tuições sociais que venham a substituí-lo) para
needs vary, such that the distribution of re- satisfazê-los, trazendo, no entanto, preocupa-
sources among different age groups should be ções relativas à possibilidade, ou não, de mobi-
based on an ethics of protection. lizar os recursos necessários para satisfazer to-
das as demandas qualificadas da população 1;
Resource Allocation; Demographic Aging; Equi- (3) a vigência de uma diversidade moral difusa
ty; Bioethics nas sociedades democráticas e complexas con-
temporâneas – como é o caso da sociedade bra-
sileira –, caracterizáveis pela secularização e o
pluralismo moral de suas instituições, nas qua-
is encontramos uma diversidade de comunida-
des morais, com diferentes doutrinas, valores e
princípios morais capazes de fornecer uma ori-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


1142 Ribeiro CDM, Schramm FR

entação normativa concreta aos cidadãos, as- Entre os idosos, embora existam aqueles
sim como várias éticas capazes de justificar tais que são saudáveis, muitos outros apresentam
valores e princípios, que, em muitas situações, alguma doença crônica e/ou deficiência, ob-
são incompatíveis entre si 3,4. Neste artigo, dis- servando-se um aumento das demandas por
cutiremos a pertinência e a legitimidade de se atenção à saúde, em particular de assistência
basear a alocação de recursos públicos para a médica 6,10. Constata-se, assim, um incremen-
saúde na idade, e mostraremos algumas das to nos custos dessa assistência, em parte por
controvérsias que cercam esta questão. um aumento no uso de tecnologias avançadas
que estendem a vida, tais como diálise, trans-
plante, terapia intensiva, dentre outras. Portan-
Pertinência da “cultura dos limites” to, a atenção à saúde do idoso torna-se, lógica
e significativamente, mais custosa do que aque-
A percepção da complexidade e conflituosida- la dispensada aos grupos mais jovens. No Bra-
de do contexto social caracterizado pelos com- sil, entre os idosos, predominam as doenças
ponentes do progresso biomédico, do bem-es- crônico-degenerativas, incidindo, freqüente-
tar ampliado e do pluralismo moral, tem con- mente, sobre um mesmo indivíduo, múltiplos
tribuído para fazer florescer uma consciência problemas médicos 8. Assim, verifica-se tam-
sobre a necessidade de uma “cultura dos limi- bém um aumento das demandas por assistên-
tes”, entendida como o conjunto de questiona- cia à saúde, refletido no incremento dos custos
mentos sobre a crença num progresso infinito com atenção médica 8,9. Além disso, esta situa-
da sociedade humana, em relação com o pro- ção tem gerado um impacto significativo sobre
gresso tecnocientífico e, em particular, ao au- a qualidade de vida do idoso e sobre a família,
mento da capacidade da medicina de satisfa- sobretudo se considerarmos que uma das ca-
zer os nossos desejos e necessidades de saúde, racterísticas da população que envelhece no
seja em relação à ampliação progressiva dos Brasil é a pobreza e a falta de acesso ao sistema
direitos humanos e do conceito de saúde 1. De de saúde e outros serviços financiados pelo Es-
acordo com esta tomada de consciência, su- tado 8,9.
põe-se que os recursos são finitos e escassos, Finalmente, é importante ressaltar que es-
frente às crescentes demandas de serviços por sas demandas de atenção à saúde recaem não
parte da população, o que implicaria inevita- somente sobre o Estado (ou formações institu-
velmente formas de priorização para a sua uti- cionais substitutivas) e suas políticas públicas
lização correta, isto é, ao mesmo tempo eficaz, de atenção ao idoso, quando elas existem, mas
eficiente e efetiva, mas também moralmente também sobre seus familiares 10,11,12,13.
legítima 5.
Nesse contexto, um dos desafios morais a
ser enfrentado decorre da assim chamada tran- Justiça sanitária e direito à saúde
sição demográfica, caracterizada, entre outros
aspectos, pelo envelhecimento populacional, Uma das expressões do pluralismo moral das
que vem sendo observado, faz alguns anos, em sociedades complexas contemporâneas é o
vários países do mundo, nos quais verifica-se conflito entre uma concepção de justiça enten-
um incremento substancial do número e pro- dida como igualdade de oportunidades para
porção dos idosos junto com um declínio do todos, que defende a saúde como um direito
número e proporção dos jovens 6,7. Com efeito, humano universal, e o ideal de justiça como
a população brasileira vem passando por um eqüidade, que sustenta que, em casos de con-
processo de transição demográfica caracteriza- flitos, se devem privilegiar as exigências dos
da por uma queda da taxa de mortalidade e um menos favorecidos. A primeira implica “políti-
aumento da esperança de vida ao nascer, ocor- cas de ‘universalização’” – que “deve[m] forne-
rido entre as décadas de 40 e 70, e o declínio da cer todos os serviços disponíveis a todos que pre-
taxa de fertilidade, observado a partir da déca- cisam deles”, e a segunda implica “políticas de
da de 60 8. Na década de 90, os habitantes com ‘focalização’” – que “deve[m] decidir o que for-
sessenta anos ou mais aumentou 35,0%, en- necer e para quem” 14 (p. 41-2). Assim sendo,
quanto o restante da população brasileira cres- numa ponderação crítica, a justiça como igual-
ceu 14,0% 9. Estima-se que entre 2000 e 2020, dade “tem o defeito de desconsiderar as diferen-
quando a esperança de vida ao nascer possivel- ças de condições entre indivíduos e classes soci-
mente atingirá 75,5 anos, a proporção dos ido- ais”, enquanto a justiça como eqüidade “tem o
sos na população passará de 5,1% para 7,7% ou defeito de introduzir um fator de ‘discrimina-
16,2 milhões de idosos, alcançando, em 2050, ção’, que contradiz o direito universal à assistên-
14,2% da população 8. cia” 14 (p. 42). E isso caracteriza-se como um au-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


A NECESSÁRIA FRUGALIDADE DOS IDOSOS 1143

têntico dilema moral para qualquer sistema sa- plenamente cooperativos da sociedade. Por is-
nitário que pretenda ser justo. so, a estratégia desse autor para realizar a “jus-
Com efeito, no Brasil, segundo o artigo 196 tiça como eqüidade”, incluindo-se aí as institu-
da Constituição, a saúde é compreendida co- ições de atenção à saúde, seria a de fazer com
mo “um direito de todos e um dever do Estado”, que estas fossem reguladas pelo princípio da
sendo que este deveria garantir o “acesso uni- justa igualdade de oportunidade. Em outros
versal igualitário às ações e serviços” de saúde. termos, o objetivo do sistema de atenção à saú-
Dessa forma, nos sistemas de saúde fundados de seria o de permitir que os cidadãos manti-
em princípios universalistas, como o brasilei- vessem o funcionamento normal da espécie,
ro, os gestores da política de saúde encontram- visto que, nos processos de adoecimento ocor-
se frente a um dilema porque devem respeitar rem impedimentos deste funcionamento, re-
a lei (universalista) e, ao mesmo tempo, tendo duzindo-se, portanto, a gama de oportunida-
em vista a escassez dos recursos efetivamente des que os indivíduos têm para construir pla-
disponíveis, proceder a alguma forma de prio- nos de vida e revisá-los através do tempo.
rização dos mesmos (focalização), ou seja, de- Por sua vez, Callahan 20 (p. 268) sustenta
vem respeitar, ao mesmo tempo, o princípio de que a alocação de recursos na saúde deve estar
justiça entendido como igualdade entre todos baseada na “necessidade de ter cidadãos saudá-
e aquele da eqüidade, que, necessariamente, veis para que as instituições e grupos da socie-
deve privilegiar os mais desprovidos ou des- dade possam funcionar bem” e para que pos-
protegidos 15. sam exercer um conjunto normal de funções
sociais e relações interpessoais, dentro de um
ciclo de duração da vida considerado normal.
A justiça com eqüidade de Jobn Rawls Nessa perspectiva, a assim chamada “saúde
perfeita” 21 e a saúde perfeita para todos 20 se-
Embora a concepção de justiça como eqüida- riam objetivos impossíveis, além de serem, de
de, entendida como meio de compensar a abs- fato, fonte de iniqüidade. Impossível, seja por-
tração da justiça como igualdade, tenha sido que a natureza produziria moléstias sucessi-
formulada por Aristóteles em suas obras A Po- vas, que substituem aquelas que são curadas,
lítica e Ética a Nicômaco 16,17, a principal teoria seja porque não importaria o quanto se alar-
da justiça como eqüidade da atualidade foi de- guem as fronteiras do progresso médico, pois
senvolvida a partir da década dos anos 70 do sempre haverá aquela zona precária em que se
século XX, por John Rawls 18. Rawls queria ela- situam os casos mais difíceis de curar e os pio-
borar os princípios de justiça que deveriam re- res resultados. Fonte de iniqüidade porque “não
gular o conjunto de instituições políticas, soci- existe modo de assegurar que o progresso será
ais e econômica que formam a estrutura básica economicamente acessível pela sociedade ou
das sociedades democráticas, pluralistas e li- que seus frutos beneficiarão a população como
berais. Esses princípios são: o princípio de li- um todo” 20 (p. 251).
berdades básicas iguais para todos (universalis-
ta), o princípio de igualdade de oportunidades Dialética entre “universalismo”
para todos (também universalista) e o princí- e “focalização”
pio da diferença (focalizado).
De acordo com este último, as desigualda- Se compararmos tais abordagens com as duas
des geradas pela estrutura básica apenas seri- vertentes de políticas públicas, caracterizadas
am justificáveis moralmente se beneficiassem como “universalistas” e “focalizadas”, pode-se
os membros menos favorecidos da sociedade, dizer que tais perspectivas não precisam ser
justamente para compensar a abstração da vistas como opostas, podendo-se integrá-las
igualdade formal pela eqüidade de fato. numa concepção “dialética” de justiça, enten-
dida como “igualdade” de princípio e “focaliza-
ção” de fato, o que corresponde ao sentido de
As críticas construtivas de Norman justiça como eqüidade. Com efeito, o princípio
Daniels e Daniels Callahan de universalização parece mais adequado no
que se refere às ações de saúde pública e suas
Como observa Daniels 19, um rawlsiano crítico medidas de prevenção de doenças e promoção
preocupado em adaptar a teoria de Rawls ao da saúde para todos, visto que o objetivo de pro-
campo da saúde, não existiria uma teoria da teger as populações necessitadas de um siste-
atenção à saúde implícita na “justiça como ma de saúde exige, freqüentemente, a univer-
eqüidade” de Rawls, porque esta só se aplicaria salização para ser efetiva. Por exemplo, para se
a indivíduos que são membros reconhecidos e obter a proteção populacional por meio da va-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


1144 Ribeiro CDM, Schramm FR

cinação, é necessário que, pelo menos, a gran- mido pelo cenário anterior; nesta perspectiva,
de maioria dos indivíduos seja vacinada, caso recursos deveriam ser investidos em pesquisa
contrário tal ação preventiva seria, além de básica referida ao processo de envelhecimento,
ineficaz, questionável do ponto de vista da per- como, por exemplo, a terapia gênica, que nos
tinência e legitimidade dos recursos investidos. permitisse aumentar a duração da vida máxi-
Por outro lado, as tecnologias médicas avança- ma. Assim, “o envelhecimento poderia ser pro-
das (diálise renal, transplante de órgão, medi- gressivamente postergado e eventualmente eli-
cina intensiva etc.) podem ser distribuídas com minado” 23 (p. 33).
base na focalização, devido a seu alto custo e, (d) Recuperação da idéia dos estágios de vida,
sobretudo, “porque elas provêem mais benefíci- pressupondo que o significado do envelheci-
os para os indivíduos do que para a sociedade mento encontra-se na finitude da vida humana
como um todo” 20 (p. 270-1) não contribuindo, como uma condição existencial natural e a ve-
principalmente, para manter a saúde pública lhice como um momento, também existencial,
em padrão alto. Assim sendo, este tipo de foca- de um ciclo de vida. Nesta perspectiva, a longe-
lização deve ser implementado considerando vidade poderia ser razoavelmente limitada por
qual população vai requerer apoio total (os mais razões de justiça entre as gerações, restringindo
desamparados), parcial ou nenhum suporte do o uso de tecnologias médicas custosas, que pro-
Estado (que podem suprir, parcial ou totalmen- vêem um incremento da longevidade daqueles
te suas necessidades de saúde), priorizando que têm usufruído um ciclo de vida longo. Em
aqueles grupos em piores condições 22. Em sín- particular, na atenção ao idoso, deveriam ser
tese, numa sociedade eqüitativa, o Estado de- priorizadas outras modalidades de assistência,
veria oferecer uma gama razoável de serviços tais como a medicina paliativa, atenção diária
médicos que seriam priorizados com base nu- institucional e a atenção à saúde domiciliar 1,24.
ma focalização que consideraria as condições Callahan 6, aproximando-se deste último
socioeconômicas dos grupos sociais, conforme cenário, contrapõe-se à visão baseada no pro-
estabelece o princípio da diferença, e priori- gresso ilimitado da medicina, na inexistência
zando os interesses dos cidadãos mais desam- de limites biológicos intrínsecos para o enve-
parados. lhecimento e de que se poderia estender inde-
finidamente a expectativa de vida média e a
compreensão da morbidade, focalizando-se nas
A alocação de recursos possibilidades do desenvolvimento individual
baseada na idade e não nos limites pré-fixados do processo de
envelhecimento. Esse autor não nega que esses
Moody 23 caracteriza quatros cenários sobre o avanços na obtenção da longevidade possam
idoso e a alocação dos recursos, cada um dos existir, mas questiona o beneficio humano to-
quais incorporando diferentes visões sobre o tal desse progresso, em particular, se valeria a
envelhecimento e a atenção à saúde. pena investir muitos recursos para alcançar es-
(a) Prolongamento da morbidade, baseada na te objetivo, mesmo que fosse para satisfazer
avaliação pessimista de que um incremento da um desejo prima facie legítimo de alguns indi-
expectativa de vida do idoso seria acompanha- víduos. Em suma, na avaliação de Callahan, os
do por um aumento dos períodos de saúde, mas custos de se estender, cada vez mais, a vida do
também de doença, havendo, assim, uma ex- idoso, será altamente cara e não produzirá uma
tensão da sobrevida para idades avançadas às grande extensão da vida com uma qualidade
custas de uma qualidade de vida muito baixa. razoável dos beneficiários. Além disso, em vir-
(b) Compressão da morbidade, fundada na su- tude da escassez dos recursos, um incremento
posição biológica de que o limite de duração nas chances de alguns indivíduos alcançarem
da vida humana estaria ao redor de 120 anos e uma duração da vida mais longa – digamos 100
que nós deveríamos fazer todo o possível para ou 120 anos – poderia acarretar uma diminui-
adiar o aparecimento das doenças para os pe- ção das chances de outros indivíduos alcança-
ríodos mais tardios da vida por meio da pro- rem uma duração da vida normal – digamos 80
moção da saúde e pesquisas médicas que favo- ou 90 anos 25.
recessem este objetivo.
(c) Prolongamento da longevidade, assentada
na suposição mais otimista de que o curso da A hipótese da medicina eqüitativa
vida humana pode ser permanentemente re- e sustentável de Callahan
visto pelos avanços da biologia do envelheci-
mento, especialmente a genética da longevida- Já um objetivo mais apropriado para a medici-
de, podendo-se mudar o limite natural presu- na eqüitativa e sustentável seria a de manter e

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


A NECESSÁRIA FRUGALIDADE DOS IDOSOS 1145

restaurar a saúde dentro de um ciclo limitado autonomia pessoal, se os idosos demandassem


de existência (a ser estabelecido de acordo com atenção médica ilimitada, sem levar em consi-
algum padrão razoável de probabilidade de es- deração as necessidades e os interesses dos jo-
perança de vida num momento determinado), vens, sobre os quais – devido à transição demo-
considerado este moralmente mais defensável gráfica anteriormente referida – recai progres-
do que tentar melhorar substancialmente, e de sivamente parte significativa do custeio da de-
maneira abstrata, a condição humana. Assim, manda de atenção à saúde do idoso. Como ar-
dever-se-iam restringir as fronteiras ao longo gumenta Callahan 6, a vida nas comunidades
do “eixo temporal do envelhecimento” 1 (p. 152), humanas requer que limitemos nossas própri-
tratando esse estágio de envelhecimento, não as necessidades e nosso exercício da autono-
como uma condição a ser superada, mas a ser mia, para que as necessidades e a autonomia
aliviada. Nesta perspectiva, aceitar-se-ia que o das outras pessoas, pertencentes a diferentes
idoso está mais próximo do fim de seu ciclo de faixas etárias, possam florescer, devendo-se,
vida e, conseqüentemente, mais sujeito à do- portanto, focalizar o bem comum e não exclu-
ença e à morte, do que o indivíduo mais jovem, sivamente o bem-estar dos indivíduos, toma-
não existindo, portanto, correlação necessária dos caso a caso.
entre satisfação na vida e longevidade, e consi- A segunda crítica sustenta que o idoso de-
derando, então, a morte na velhice como um veria ser considerado “igual a qualquer outra
processo natural e prima facie inevitável. As- pessoa na sociedade” 26 (p. 37), não devendo ter
sim sendo, de acordo com esta perspectiva, nenhum status especial vinculado à idade. Com
uma sociedade que garantisse, por meio de po- efeito, justiça requereria que os indivíduos fos-
líticas públicas, que o conjunto de seus cidadãos sem “tratados de acordo com a igual satisfação
vivessem em tomo de 80 ou 90 anos (o autor se das suas necessidades e interesses” 28 (p. 21), in-
refere a padrões norte-americanos), seria uma dependente de características tais como o se-
sociedade razoavelmente justa. xo, a raça e a idade. Assim, seria injusto sacrifi-
car os idosos, limitando os recursos destinados
a este grupo, para realocá-los para os jovens, de
Críticas dos modelos apresentados modo a realizar um maior beneficio para um
maior número de pessoas, como no cálculo
Duas críticas podem ser endereçadas à pers- utilitarista 29.
pectiva de Callahan de usar a idade como um No entanto, Daniels 25,30, adotando o enfo-
critério para a alocação de recursos. De acordo que dos estágios de vida, propõe uma maneira
com a primeira, não existe razão para “supor de basear a alocação dos recursos para a saúde
que uma pessoa idosa valoriza menos sua vida de acordo com a idade, promovendo uma justa
do que uma pessoa jovem” 26 (p. 37), e ninguém, distribuição de recursos entre os diferentes gru-
a não ser a própria pessoa, poderia, portanto, pos de idade, que não implica, necessariamen-
determinar se sua vida tem valor ou se sua du- te, alguma forma de discriminação. Para isso, o
ração foi atingida. Com efeito, de acordo com autor reduz a questão mais complexa da distri-
esta visão, “a vida [seria] um bem incomensu- buição de recursos entre pessoas de diferentes
rável, não sendo possível trocar a vida de um pa- idades – o jovem e o idoso, por exemplo – para
ciente” 27 (p. 870) por outro – por exemplo, um uma mais simples: a da alocação intrapessoal
idoso por um jovem. Em suma, nessa perspec- de recursos, considerando toda a vida de uma
tiva, vigoraria o “princípio do único juiz”, pelo pessoa. Utilizando-se dessa estratégia, o autor
qual ninguém poderia julgar o valor da vida de aplica o princípio da prudência para guiar a
outrem, a não ser o próprio indivíduo que a vi- alocação dos recursos entre os vários estágios
ve, já que apenas ele teria acesso aos seus esta- de vida, supondo que as necessidades variam
dos mentais, emocionais e existenciais. nesses diferentes estágios, no sentido de um
No entanto, mesmo admitindo o acesso pri- incremento de necessidades em saúde de acor-
vilegiado do paciente aos seus estados mentais, do com a idade. Conforme com esta estratégia
disso não decorre que apenas o interesse do in- argumentativa, um indivíduo “prudente” deve-
divíduo deva ser levado em consideração, in- ria poupar recursos em um estágio em que se
dependentemente da razoabilidade deste que- gasta menos com atenção à saúde – a juventu-
rer, isto é, sem ponderar a carga que a satisfa- de –, para poder, em seguida, se investir em ou-
ção deste interesse acarretaria para outros in- tro estágio – a velhice –, na qual em princípio
divíduos, devendo-se, portanto, trazer argu- se gasta mais. Da mesma maneira, uma socie-
mentos morais adicionais. Com efeito, pode-se dade prudente seria aquela que priorizasse as
argumentar que, numa situação de escassez de ações de saúde pública em relação às tecnolo-
recursos, seria um exercício injusto do direito à gias médicas avançadas que objetivassem res-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


1146 Ribeiro CDM, Schramm FR

taurar o funcionamento normal, sendo que, em Como afirmam esses autores, essas necessida-
relação aos serviços para doentes crônicos e des “são aquelas que devem ser satisfeitas para
incapacitados, gastasse menos recursos, desde que o afetado possa atender a outras necessida-
o início da vida ao estágio adulto, para que to- des” 15 (p. 953) e escolher entre projetos de vida
dos pudessem deles usufruir na velhice, quan- alternativos. Afinal, um Estado moderno (ou
do se tomarem mais necessários. Assim, os jo- suas instituições substitutas e legítimas), que
vens deveriam poupar recursos para que fos- não tenha políticas protetoras dos cidadãos,
sem investidos nos idosos, e para que, quando dificilmente poderá ser considerado legítimo
eles próprios forem idosos, outros jovens fizes- pelos mesmos, a começar pelas pessoas e po-
sem o mesmo, de forma que uma transferência pulações mais necessitadas.
de recursos do jovem para o idoso beneficias- O segundo problema diz respeito ao justo
se, afinal, a todos. Nessa perspectiva, tratar os tratamento de diferentes coortes de nascimen-
indivíduos de acordo com a igual satisfação de to, envolvendo, por exemplo, a ponderação das
suas necessidades seria tratá-los, em cada um necessidades e interesses de coortes formadas
dos estágios da vida, “da mesma maneira”, en- por recém-nascidos que sobrevivem com qua-
tendendo-se que, nos diversos estágios da vi- lidade de vida normal ou razoável, e que sobre-
da, as necessidades são diferentes e que, em vivem com qualidade de vida pobre ou muito
cada um deles, os indivíduos devem ser trata- reduzida. Na primeira coorte existiria uma si-
dos diferentemente, de acordo com o princípio tuação-padrão em que, nos primeiros estágios
da justiça como eqüidade. da vida, o gasto com tecnologias médicas – que
No entanto, vale a pena reiterar que o obje- visam restaurar o funcionamento normal – e
tivo dessa concepção não é utilizar o idoso pa- serviços para doentes crônicos e incapacita-
ra maximizar o bem comum, de maneira abstra- dos, seria menor do que o gasto nos últimos es-
ta, mas, sim, distribuir os recursos nos vários tágios da vida; na segunda coorte, esses gastos
estágios de vida do indivíduo, considerando o seriam grandes desde o início da vida. Em ou-
ciclo limitado de existência de cada um, con- tros termos, nesta última coorte, o gasto com
cebendo que, em cada um dos estágios da exis- essas tecnologias e serviços durante toda a vi-
tência haveria um modo justo de ser tratado, da do indivíduo seria significativo, podendo ser
de acordo com a pertinência relativa atribuída, necessário transferir recursos da coorte de nas-
de maneira consensual, a cada faixa etária. cimento dos que sobrevivem com qualidade de
Dois problemas podem ser identificados vida normal para os que sobrevivem com qua-
em relação a este modelo de alocação de recur- lidade de vida muito reduzida.
sos baseado na idade. O primeiro é que, se não Dessa forma, em um contexto de escassez
existirem recursos suficientes em ações de saú- de recursos, um possível efeito dessa transfe-
de pública, muitos indivíduos jovens poderão rência seria que um aumento dos recursos des-
ser acometidos de agravos à saúde que poderi- tinados a segunda coorte – ampliando suas
am ser evitados, necessitando, desde os está- chances de estender sua vida até, digamos, uns
gios iniciais da vida, de recursos sanitários que 40 ou 50 anos – apenas poderia ocorrer às cus-
deveriam ser poupados para as fases finais da tas da diminuição dos recursos distribuídos pa-
vida. Assim, por exemplo, se não se prevenir a ra a primeira coorte e, portanto, de suas chan-
hipertensão arterial ou não acompanhar, ade- ces de alcançar um ciclo de duração da vida
quadamente, o paciente hipertenso, teremos normal (digamos, em tomo de 80 ou 90 anos).
muitos pacientes necessitando de diálise ou Este problema nos parece um desafio para a
transplante renais 31. Neste caso, cometeríamos própria ética de proteção, na medida em que
urna dupla injustiça ao negarmos a esses indi- esta envolve a difícil questão de como ponde-
víduos a diálise ou o transplante, já que uma in- rar as diferentes necessidades de proteção das
justiça foi anteriormente cometida, quando lhe diversas coortes de nascimento e as respecti-
foram negados os serviços de saúde pública. vas cargas para a sociedade da satisfação des-
Assim sendo, pode-se dizer que, do ponto tas necessidades.
de vista da saúde pública, é mister admitir, co- No entanto, as reflexões desenvolvidas aqui
mo argumento cogente, que um Estado legíti- se situam no nível “macro” da formulação de
mo deve assumir a sua responsabilidade social políticas públicas de atenção à saúde e não no
relativa à saúde das populações que compõem âmbito “micro” da inter-relação médico-paci-
sua sociedade – e às respectivas medidas de ente. Lembramos que a teoria ética utilizada –
promoção da saúde e prevenção de doenças –, a justiça como eqüidade – objetiva fornecer as
como expressão de uma bioética de proteção, regras normativas da estrutura básica da socie-
entendida como atitude compulsória de cober- dade, incluindo um sistema de atenção à saú-
tura das necessidades essenciais dos outros 15. de, não sendo adequado aplicá-la inteiramente

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


A NECESSÁRIA FRUGALIDADE DOS IDOSOS 1147

à distribuição dos recursos na beira do leito. para reflexões futuras, deve-se lembrar que nos-
Assim sendo, a aplicação do princípio da dife- sa argumentação se baseia, muito razoavelmen-
rença – que busca privilegiar os menos favore- te, nas concepções científicas vigentes sobre os
cidos – não pode ser utilizado, sem mais, para limites biológicos da espécie humana atual, se-
regular as relações entre o médico e o paciente, gundo a qual um representante da espécie Ho-
subsumindo o critério das necessidades indivi- mo sapiens tem uma esperança de vida ideal
duais a meros critérios sócio-econômicos, caso máxima ao redor de 120 anos. Mas, devido aos
contrário, pode-se considerar justo, por exem- possíveis avanços da biotecnociência, nada im-
plo, que se deixe de salvar um paciente do gru- pede, a princípio, que tais limites se estendam
po mais favorecido, em risco iminente de vida, muito além do razoavelmente pensável atual-
para beneficiar um paciente do grupo dos me- mente, o que certamente pode reconfigurar ra-
nos favorecidos, que não se encontra na mes- dicalmente também nossas concepções atuais
ma condição crítica. De fato, isso desvirtuaria sobre o certo e o errado, inclusive no que diz
não só os alicerces morais, e imemoriais, da respeito a políticas públicas de saúde ao mes-
prática médica, mas seria, também, um claro mo tempo eficazes, eficientes e efetivas, e refe-
indício daquela que Michael Walzer qualificou ridas ao idoso. No entanto, mesmo admitindo
como “tirania”, ou seja, uma involução históri- esta possibilidade e preservando alguma forma
ca da criticável democracia liberal para um de justiça distributiva eqüitativa, só consegui-
execrável populismo totalitário 32. mos vislumbrar a seguinte alternativa: ou acre-
ditamos que os recursos cessem de ser finitos e
limitados – graças a alguma revolução biotec-
Conclusão nocientífica – ou então, dever-se-a pressupor a
redução dos desejos e necessidades, isto é, al-
Para concluir com uma observação de método guma forma de frugalidade consensualmente
e uma pergunta, que pretendem abrir espaço aceitável por todas as pessoas razoáveis.

Resumo Colaboradores

O artigo pretende refletir sobre a pertinência e a legiti- Ambos os autores participaram da elaboração do ar-
midade moral de basear na variável idade a alocação tigo, definindo sua estrutura e seu conteúdo. C. D. M.
de recursos públicos para a saúde, considerada do Ribeiro desenvolveu a primeira versão do artigo e F.
ponto de vista da teoria da justiça como eqüidade, R. Schramm contribuiu na revisão do mesmo, do pon-
formulada por John Rawls. Depois de caracterizar o to de vista da bioética de proteção. Ambos os autores
problema da alocação de recursos públicos para a saú- responderam às colocações pertinentes dos comen-
de, confrontada com o desafio representado pelo enve- taristas.
lhecimento populacional, e apresentar, brevemente, a
concepção de eqüidade adotada neste trabalho, assim
como discutir a abordagem de Norman Daniels e Da-
niel Callahan para a alocação de recursos entre os di-
ferentes grupos de idade, concluiremos que basear a
alocação de recursos na variável idade pode ser consi-
derado eticamente adequado se concebermos a vida
do indivíduo como um ciclo limitado de existência
formado por diferentes estágios (infância, adolescên-
cia, maturidade, velhice e morte), nos quais variam as
necessidades, devendo a distribuição de recursos entre
os diferentes grupos de idade estar baseada numa éti-
ca de proteção.

Alocação de Recursos; Envelhecimento da População;


Eqüidade; Bioética

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004


1148 Ribeiro CDM, Schramm FR

Referências

1. Callahan D. What kind of life: the limits of med- 19. Daniels N. Health-care needs and distributive
ical progress. New York: Simon & Schuster; 1990. justice. In: Daniels N, editor. Justice and justifica-
2. Mori M. A bioética: sua natureza e história. Hu- tion: reflective equilibrium in theory and prac-
manidades 1994; 9:333-41. tice. New York: Cambridge University Press; 1996.
3. Rawls J. O liberalismo político. 2a Ed. São Paulo: p. 179-207.
Editora Ática; 2000. 20. Callahan D. False hopes: why America’s quest for
4. Engelhardt Jr. HT. Fundamentos da bioética. São perfect health is a recipe for failure. New York: Si-
Paulo: Edições Loyola; 1998. mon & Schuster; 1998.
5. Schramm FR, Escosteguy CC. Bioética e avaliação 21. Sfez L. A saúde perfeita: crítica de uma nova uto-
tecnológica em saúde. Cad Saúde Pública 2000; pia. São Paulo: Unimarco Editora/Edições Loyola;
16:951-61. 1996.
6. Callahan D. Aging and the goals of medicine. 22. Kottow M. Sanitary justice in scarcity. Cad Saúde
Hastings Cent Rep 1994; 24:39-41. Pública 1999; 15 Suppl 1:43-50.
7. Shaw AB. In defence of ageism. J Med Ethics 1994; 23. Moody HR. Four scenarios for an aging society.
20:188-91. Hastings Cent Rep 1994; 24:32-5.
8. Chaimowicz F. A saúde dos idosos brasileiros às 24. Topinková E. Care for elders with chronic disease
vésperas do século XXI: problemas, projeções e and disability. Hastings Cent Rep 1994; 24:18-20.
alternativas. Rev Saúde Pública 1997; 31:148-200. 25. Daniels N. The prudentiallife-span account of
9. Lima-Costa MF, Barreto SM, Giatti L. Condições justice across generations. In: Daniels N, editor.
de saúde, capacidade funcional, uso de serviços Justice and justification: reflective equilibrium in
de saúde e gastos com medicamentos da popu- theory and practice. New York: Cambridge Uni-
lação idosa brasileira: um estudo descritivo base- versity Press; 1996. p. 257-83.
ado na Pesquisa Nacional por Amostra de Domi- 26. ter Meulen R. Are there limits to solidarity with
cílios. Cad Saúde Pública 2003; 19:735-43. elderly? Hastings Cent Rep 1994; 24:36-8.
10. Bergmark A, Parker MG, Thorslund M. Priorities 27. Shickle D. Resource allocation. In: Chadwick R,
in care and services for elderly people: a path editor. Encyclopedia of applied ethics. San Diego:
without guidelines? J Med Ethics 2000; 29:312-8. Academic Press; 1998. p. 861-74.
11. Caldas CP. Envelhecimento com dependência: 28. Hunt RW. A critique of using age to ration health
responsabilidades e demandas da família. Cad care. J Med Ethics 1993; 19:19-23.
Saúde Pública 2003; 19:733-81. 29. Cohen-Almagor R. A critique of Callahan’s utili-
12. Jecker NS. Taking care of one’s own: justice and tarian approach to resource allocation in health
family caregiving. Theor Med 2002; 23:117-33. care. Issues Law Med 2002; 17:247-61.
13. Brakman S-V. Adult daughter caregivers. Hastings 30. Daniels N. Justice between age groups: am I my
Cent Rep 1994; 24:26-8. parents’ keeper? Milbank Mem Fund Q 1983; 61:
14. Schramm FR. Bioética, economia e saúde: direito 489-522.
à assistência, justiça social, alocação de recursos. 31. Ribeiro CDM. “Quem vale a pena?” Valores éticos
Rev Bras Cancerol 2000; 46:41-7. e disponibilidade de recursos: representações
15. Schramm FR, Kottow M. Principios bioéticos en acerca de políticas públicas de atenção ao paci-
salud pública: limitaciones y propuestas. Cad ente renal crônico [Dissertação de Mestrado]. Rio
Saúde Pública 2001; 17:949-56. de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública,
16. Aristóteles. A política. 28a Ed. São Paulo: Martins Fundação Oswaldo Cruz; 1998.
Fontes; 2000. 32. Walzer M. Spheres of justice. A defense of plural-
17. Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova ism and equality. New York: Basic Book; 1983.
Cultural; 1997.
18. Rawls J. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Recebido em 12/Jan/2004
Fontes; 1997. Aprovado em 12/Mar/2004

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 20(5):1141-1159, set-out, 2004

Você também pode gostar