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Adolescência: um esforço de enunciação

Cristina Drummond

João, que perdeu o pai ainda criança, relata um sonho em que está dentro de um trem,
muito angustiado, porque deixou uma criança na plataforma de embarque. Ele a vê
enquanto o trem se afasta.

Maria, com inúmeros relatos de ter sido durante toda a vida devastada por sua mãe,
relata um sonho em que está no quarto da mãe. Há roupas lindas de mulher no armário,
roupas que ela não pode vestir e uma boneca sobre a cama.

João pensa inicialmente que aquela criança poderia ser sua filha, para depois afirmar
que era ele próprio, uma criança mortificada pela ideia de não ter nem poder contar com
um pai.

Maria fala de nunca ter podido se sentir feminina e de que aquela boneca na cama da
mãe era ela, mesmo já morando há muitos anos fora de casa e tendo uma vida
profissional bem orientada.

Esses dois pequenos fragmentos de sonho nos ensinam que se separar da criança que se
foi não é uma tarefa simples e requer, na maioria dos casos, muitos anos de análise.

De fato, separar-se da posição de criança mortificada e da posição de boneca da mãe


exige muita elaboração. Freud já dizia que as neuroses são infantis, maneiras
encontradas pela criança encontrou de tratar de seus impasses diante do real. Assim,
seria simplificar as coisas afirmar apenas que entrar na adolescência seria equivalente a
sair da infância, ou ainda, que a adolescência seria uma passagem para a vida adulta.

A palavra “adolescência” vem do latim adolescens, particípio presente do verbo


adolescere, que significa “crescer”. Já a palavra adultus é o particípio passado do
mesmo verbo, e significa “crescido”.

Para a psicanálise é fundamental pensar a adolescência não como um efeito das


mudanças hormonais, como uma consequência natural do crescimento, da puberdade,
mas como uma construção, um semblante que mascara um encontro com um furo no
real provocado pela sexualidade1. Há um encontro com o gozo opaco que demanda uma
nova resposta por parte dos falasseres. Minha proposta, a partir das indicações de
Lacan, é tomar a adolescência como um esforço de enunciação. Mas vamos aqui fazer
um percurso que possa dar as razões dessa formulação.

Novas configurações da adolescência

Antes de acompanharmos os conceitos que nos permitem pensar a adolescência a partir


da psicanálise, vamos tomar o que encontramos na clínica como índices desse real que
nos propomos ler.

O que observamos na clínica atual com adolescentes e que nos permite chamar, com
Damasia Freda, de “uma rebeldia dentro da desorientação”2, uma rebeldia fora do
Outro, funda-se na ideia de que eles buscam existir sem o Outro, sem o corpo do Outro,
tendo como parceiros os gadgets, os produtos da ciência que são parceiros sem corpo.

Se os adolescentes rebelavam-se contra o Outro paterno, agora presenciamos


adolescentes que se rebelam sem o Outro. Isso implica em muito mais do que se separar
da autoridade dos pais. Ou ainda, como formula Daniel Roy, o adolescente
contemporâneo tem uma relação com o Outro sob a forma da efração 3. Os adolescentes
são adeptos das tecnologias e se apresentam como autodidatas nesse campo, navegando
na internet e tendo acesso a uma rede de informações sem autoria. A relação com o
saber, para eles, dispensa a tradição do mestre e este se apresenta como um objeto a ser
consumido. O saber está no bolso, como diz Miller, ele “não é mais o objeto do Outro”4,
que demandava ser extraído passando por uma estratégia com o desejo do Outro,
constituindo-se na atualidade como uma autoerótica. Esse é um dos efeitos da
intervenção do discurso da ciência em nosso mundo, visto provocar um deslocamento
da autoridade do sujeito que enuncia para a autoridade dos enunciados considerados
científicos. O saber científico prescinde dos mestres e apoia sua legitimidade nos
pressupostos da coerência científica. Atualmente essa questão ainda se apaga mais e a
legitimidade dos saberes nem parece ter importância.
Solitário, sem Outro, sem poder contar seu corpo no meio dos corpos dos outros na
escola, o adolescente retira-se dos laços e vagueia no espaço virtual, numa extensão do
universo de mundos possíveis. Curioso é o novo jogo Pokémon, que leva os
adolescentes a caminhar por suas cidades para capturar os bichinhos. Eles vão para as
ruas, mas permanecem de fora, num espaço que continua coordenado pelo imaginário.

Encontramos também traços de uma desorientação sexual na facilidade que os


adolescentes apresentam de mudar de posição sexual. Não se trata para eles tanto da
divisão heterossexualidade ou homossexualidade, mas de buscar um lugar onde o
falasser se sinta bem ou mal. Há aqui um ideal de satisfação que não é análogo às
identificações possibilitadas antigamente, como no tempo de Freud. Isso nos permite
pensar que a partilha sexual orientada pela bipolaridade homem/mulher e veiculada
pelos discursos estabelecidos já não serve ao adolescente para regular o gozo sexual. Na
verdade, encontramos vários sujeitos que decidem ter uma sexualidade que não cabe
nessa partilha, ou ainda que se declaram homossexuais, sendo que na verdade são mais
assexuados ou vivem sua sexualidade de modo solitário, sem relação com um outro
corpo. Muitos adolescentes invocam uma identidade sexual flutuante, arbitrária, móvel,
plástica - muitas vezes propiciada por um dos pais tendo como fundamento uma
liberdade de escolha -, ou ainda um gosto por permanecer andrógino, ambíguo diante da
diferença dos sexos. Há como que a reivindicação do direito de autodeterminação de seu
próprio gênero.

Estamos no tempo, tal como afirma François Ansermet, do gênero fluido. Segundo ele,
“não é fácil situar a diferença de sexos, ela não é nem cromossômica, nem genômica,
nem endócrina, nem morfológica, nem cerebral, assim como também não é apropriada
pelo gênero ou pelas atribuições sociais”5. Além disso, os adolescentes se agrupam em
novas configurações da luta pelo feminismo, em acusações a posturas rígidas e
homofóbicas, maneiras que indicam uma dificuldade para responder ao sexual a partir
de uma orientação pelo falo. Certamente isso não deixa de ser uma consequência da
mudança do simbólico em nossa contemporaneidade, assim como da intromissão do
discurso da ciência no real, e mais do que nunca presenciamos o que Lacan pode
afirmar em seu último ensino, ou seja, que o gozo é rebelde a toda normativização.

O adolescente apresenta-se hoje como uma espécie de antena captadora das mudanças
nos discursos estabelecidos e na ordem simbólica, por falta de sustentação do ideal
paterno e pelos efeitos do discurso da ciência e, então, busca seus apoios, sobretudo, em
seus semelhantes, em identificações recíprocas que fundam modos de vida. Assistimos à
utilização dos recursos de identificação de maneira intensa que funcionam como uma
insígnia do sujeito, insígnia que Miller definiu, em seu curso Signos del goce, como
uma modalidade de gozo elevada à dignidade de um significante mestre, permitindo, a
partir dessa promoção, constituir um laço social. Assim, os sintomas tomam uma nova
forma, articulada ao laço social, ou ainda, a socialização pode se fazer sob o modo
sintomático que muitas vezes se converte em epidemia: alcoolismo, toxicomania,
bulimia, anorexia, delinquência, suicídio, modos de vestir e novos modos de se
comportar e falar, cortes no corpo, que mostram uma recusa dos adultos e acentuam um
processo de marginalização. A sexualidade ao fazer furo no real na adolescência
introduz a necessidade do sintoma para fazer-lhe borda. E quando essa sintomatização é
difícil, o sintoma social ou, como enfatiza Miller6, uma “socialização dos sintomas dos
adolescentes” pode ser a maneira encontrada para tratar esse furo.

Éric Laurent7 assinala a importância que Miller aponta da substituição do corpo do


Outro pela noção freudiana de sociedade de irmãos. Enquanto Freud parte da proibição
paterna, Lacan nos diz que não é possível gozar do corpo do Outro. Só gozamos do
fantasma ou do corpo próprio, e isso quer dizer que não há transição de um gozo
autoerótico para a satisfação copulatória. Laurent pergunta se o corpo do Outro se
encarnaria no grupo e, caso essa hipótese fosse plausível, se poderíamos pensar numa
aliança entre identificação e pulsão. Lacan disse que o desejo do Outro determina as
identificações, mas que estas não satisfazem a pulsão. Laurent quer nos fazer pensar que
algo dessa junção seria possível nos grupos de adolescentes que se juntam a partir da
violência e do gozo sádico. As figuras “ideais” para os jovens de hoje colocam-se, de
modo cada vez mais frequente, não do lado da herança paterna, mas do lado do duplo,
muitas vezes mortífero. Essas soluções nos mostram o desafio que a clínica com jovens
nos traz no sentido de darmos lugar à palavra e ao desejo num universo onde o que se
apresenta é um empuxo ao gozo e uma ausência de sintomas.

O adolescente muitas vezes não se situa como um sujeito que tenha perguntas a resolver
e se coloca numa posição de não ter que se situar na partilha sexual. As distintas
respostas do adolescente contemporâneo diante da angústia do desejo do Outro, que
visam apagá-lo ou desviar-se dele, trazem muitas vezes a articulação com um objeto não
de desejo, mas de gozo e que tem em comum com a pulsão o caráter imperativo e de
anulação do Outro. As drogas, os videogames, a adição à internet, são modos de acesso
a um gozo que não passa pelo Outro e, mais particularmente, pelo corpo do Outro como
sexual. São usos que concernem menos ao sujeito da palavra que ao sujeito do gozo.
Estamos numa relação muito mais com a iteração do que com a repetição, que implica
uma relação com o desejo.

Podemos pensar que é a partir de uma experiência de gozo que a inscrição se faz sobre o
corpo, em termos do que Freud chamava fixação, e não a partir de um Outro prévio que
não existe e que determinaria o sujeito numa relação com a castração e com a norma do
pai. De qualquer forma, a identificação do adolescente com um grupo é distinta da
identificação como operação permitida pela função do Pai como S1.

Se as fórmulas da sexuação de Lacan se orientam pelo falo e seu mais além, essas
fórmulas estão longe de dar conta da proliferação de gêneros que assistimos atualmente.
Assim, a medida do Édipo, ou ainda, a referência fálica, já não serve para nos orientar
nessa seara.

A adolescência pode ser vista, portanto, como o paradigma de um desencadeamento, na


medida em que algo não se insere na cadeia discursiva, marcando para o sujeito um
descompasso entre seu ser de criança e seu lugar de homem ou de mulher na lógica
sexuada. Os semblantes, que costumavam abrigar um modelo identificatório calcado no
Ideal, tornaram-se vacilantes. Se o Ideal do eu freudiano era o suporte de uma separação
marcada pela renúncia ao gozo infantil, uma espécie de ponto de basta que abriria as
vias de acesso a uma posição sexuada por meio da apreensão das insígnias do pai, como
pensá-lo diante da crise dos representantes da autoridade?

O que vem depois da infância?

Na psicanálise supomos que a adolescência traga para o sujeito uma operação lógica
nova. A “adolescência é uma construção” social, isto é, discursiva, “um artifício
significante”8, ou ainda, um semblante que mascara um real de uma natureza distinta
daquela que se reduz à puberdade. Freud fala dos efeitos das transformações da
puberdade, em parte ligadas às mudanças hormonais que transformam o corpo, mas ele
também fala do despertar da libido, da energia psíquica propriamente sexual. É com o
surgimento da puberdade que a questão da escolha de objeto é reatualizada.
Lacan, introduzindo sua maneira própria de ler Freud, nos fala que na puberdade há um
despertar dos sonhos9 e que sempre se é mal sucedido na busca de fazer amor com as
mocinhas. Ele diz ainda que autores da pedagogia consideraram que só haveria um
acesso aos conceitos na puberdade, num “momento-limite complexual”10, e que se
deveria pensar esse momento de um modo bastante diverso em função de um vínculo a
ser estabelecido entre a maturação do objeto a e a idade da puberdade. Haveria para
Lacan uma relação entre a maturação do objeto a e o acesso ao pensamento em
conceitos. O próprio termo de maturação é aqui deslocado por ele do âmbito biológico
para o âmbito lógico. O adolescente não ocupa mais seu lugar de criança no Outro e o
recurso ao falo, sobretudo, ao falo imaginário, que tamponaria a falta do Outro, não
basta para articulá-lo ao desejo.

Podemos dizer que o adolescente testemunha o encontro com um gozo mais ou menos
opaco, vindo de fora e que tem efeitos sobre seu corpo e seu pensamento. Esse encontro
vai demandar dele uma nova construção lógica.

Tal como nos diz Alexandre Stevens11, não é a mesma coisa considerar que os
adolescentes têm de refazer sua relação com o corpo em decorrência de uma mudança
biológica ou porque eles são levados a sonhar de uma outra maneira. E ele continua
dizendo que “o despertar de seus sonhos, o despertar de seus pensamentos, é também o
pensamento do Outro corpo”. Se os adolescentes despertam dos seus sonhos, é para
avançar em direção a uma sexualidade que passa pelo outro, e isso é distinto da
sexualidade infantil, que é essencialmente autoerótica.

Trata-se do momento de atualização da fantasia e de maturação do objeto a – tempo em


que o sujeito se defronta com a impossibilidade de conjunção entre os sexos, com a
inexistência da relação sexual. É um novo passo na elaboração do sujeito diante do que
o real lhe propõe. Assim, há uma distância entre as respostas evidenciadas na
sexualidade polimorfa infantil, significando a diferença sexual como alternativa entre
ter e não ter o pênis, e as identificações sexuais pubertárias. Tal como nos propõe
Jacqueline Dhéret, a criança inventa o inconsciente diante do que escapa ao simbólico,
ao passo que “o adolescente nos ensina que o sexual, para o ser falante deve ser
sintomatizado”12. Essa observação preciosa nos diz que a infância é o tempo do
sintoma, índice do sujeito articulado ao inconsciente e que um sinthoma implica um
trabalho de construção de uma borda à falta estrutural de relação sexual. Basta na
infância a distinção significante entre o masculino e o feminino articulada a uma radical
identidade, já que ambos são o falo.

Podemos dizer que a criança tem que responder ao enigma do desejo da mãe e que a
construção da metáfora paterna é um modelo dessa resposta orientada pelo falo. Temos
outras. Já o adolescente se defronta com o enigma do gozo da mulher, da diferença
sexual e, diante desse, sempre faltam palavras e saber. A expressão maturação do objeto
indica que algo da relação do sujeito com o desejo e da articulação do objeto a com o
falo, pode ser interrogado.

Freud já formulara isso em seus Três ensaios da seguinte forma:


Agora eu já não me daria por satisfeito com a afirmação de que
o primado dos genitais não se realiza, ou o faz muito
imperfeitamente, no período da primeira infância. A
aproximação da vida sexual infantil àquela dos adultos vai muito
adiante, e não se limita ao surgimento da escolha de objeto.
Mesmo não chegando a uma autêntica reunião dos instintos
parciais sob o primado dos genitais, no auge do
desenvolvimento da sexualidade infantil o interesse nos genitais
e sua atividade adquirem uma significação preponderante, que
pouco fica a dever àquela da maturidade. A principal
característica dessa “organização genital infantil” constitui, ao
mesmo tempo, o que a diferencia da definitiva organização
genital dos adultos. Consiste no fato de que, para ambos os
sexos, apenas um genital, o masculino, entra em consideração.
Não há, portanto, uma primazia genital, mas uma primazia do
falo13.

No âmbito da “nuance fóbica da infância”14, segundo a bela expressão de Daniel Roy, o


sujeito quer a promessa da temperança do gozo. O encontro perturbador com o gozo
hetero que Hans encontra é tratado pelo sintoma fóbico e pelo endereçamento ao pai.
Assim o que é sem sentido e fora do campo do saber parece encontrar um alojamento.
Índices desses impasses provocados pelo encontro com o real na puberdade são os
inúmeros sintomas e respostas que os sujeitos adolescentes apresentam. Muitos são os
desencadeamentos nesse tempo da vida, os suicídios, os narcisismos exacerbados, as
depressões, os atos de violência, as dificuldades na escola, nos laços sociais, com o
corpo, com a sexualidade, inclusive com a identidade de gênero.

Índices também desse despertar dos sonhos são reflexões que encontramos em sujeitos
adolescentes que dizem de uma mudança em sua maneira de pensar. “Nunca mais
poderei esquecer o que vivi”, “nunca mais poderei amar na vida”, “agora posso entender
que minha mãe abusava de mim”. Mudança em relação ao recalque, em relação à
interpretação, em relação à sua posição diante do outro.

Serge Cottet15, contrapondo-se à tese freudiana de apostar numa continuidade entre as


duas ondas da sexualidade, a corrente terna e a corrente sensual na puberdade, assinala
que nessa fase observamos novos eventos importantes, como a escolha de um objeto
amoroso ou o nascimento de uma perversão, que não são a simples réplica das pulsões
infantis. Essas novidades impedem que a puberdade constitua um tempo de síntese, de
resolução das questões supostamente passadas referentes à sexualidade. Há muito mais
em jogo e as sínteses que Freud esperava para a puberdade mostraram ser impossíveis.

Foi em termos de maturação do objeto a, com a promoção do falo na relação entre os


sexos, que Lacan traduziu o que Freud chamou de reencontro com o objeto na
puberdade. É preciso que entre em jogo a função essencial do vazio de sentido para que
se possa entrar no universo dos semblantes – isto é, dos papéis sexuais em jogo na
encenação da vida amorosa – por uma via diferente do imaginário. É a uma resposta
para além do édipo e do ter ou não ter que o sujeito é convocado, ou seja, a articular
uma outra lógica para a sexuação. Trata-se para o sujeito, agora, de afirmar-se homem
ou mulher, sem que esses significantes possam tirar sua consistência da anatomia ou da
escolha do objeto sexual e amoroso.

Acho muito importante tomarmos essa referência de Lacan no Seminário 10 a respeito


da relação do sujeito adolescente com o pensamento, o saber e a maturação do objeto a,
articulando-a com outra referência mais antiga que se encontra no Seminário 6 e que diz
respeito à criança. Trata-se de uma frase para a qual Miller16 nos chama a atenção e que
diz: “a criança está, em suma, inteiramente capturada no jogo entre as duas linhas”17,
isto é, entre os dois andares do grafo do desejo. E Miller precisa que Lacan se refere à
criança tomada no jogo entre enunciado e enunciação, entre o eu do enunciado e o eu da
enunciação. Tal como Lacan afirma mais à frente no seminário, falando da distinção do
desejo do sonho na criança do desejo do sonho no adulto, “na criança, algo ainda não
está terminado, precipitado pela estrutura, ainda não se distinguiu na estrutura” 18.
Esse ponto faz Miller dizer que “há algo na criança que não precipitou, no sentido de
Lacan, na relação do sujeito do enunciado com aquele da enunciação” 19. Quando esse
algo se precipitou, podemos considerar que o Ideal do eu foi introjetado. Na criança, diz
ainda ele, “o Ideal do eu, por vezes, foge para fora, o que pode explicar que se leve em
conta o seu entorno”, e, por isso mesmo, escutamos as falas que apontam o mal estar
vindo dos pais, dos vizinhos, da escola, etc.

Nessa questão da falta de distinção do eu do enunciado e do eu da enunciação, Miller


evoca o exemplo que Lacan toma algumas vezes no Seminário 6 e retoma no Seminário
11: “Tenho três irmãos: Paul, Ernst e eu, donde se conclui que o sujeito ainda não sabe
se descontar”20. Lacan toma esse exemplo para dizer que antes de haver um sujeito que
pensa, ele é contado. Só depois é que o sujeito se reconhece como contador. Se por um
lado o sujeito se conta como um na série dos irmãos, ele não consegue, diz Miller,
distinguir o que ele é como um sozinho. Esse um sozinho, que Lacan conceitualiza em
seu último ensino, diz respeito à relação do falasser com seu corpo e com o gozo do
corpo.

Miller nos lembra ainda que Lacan isola no Seminário 6 o momento do recalcamento.
Ele opõe o momento em que o sujeito pensa que o Outro sabe todos os seus
pensamentos, na medida em que eles estão no lugar do Outro, e o momento em que ele
descobre que o Outro não sabe e é quando o conteúdo do recalcamento entra no
inconsciente.

Temos então em mente que essa operação que diz respeito à enunciação e sua relação
com aquele que fala e se conta é o passo lógico que diz respeito à construção feita na
adolescência. Se essa operação implica no conceito, algo do que escapa ao saber vai ter
de se alojar em outro campo, para além do inconsciente e do édipo. Esse passo lógico é
o que podemos chamar de esforço de enunciação, esforço de dizer algo sobre o
indizível, esforço de se contar como um.

Soluções adolescentes
Temos nessas formulações o fundamento do que Miller chamou de bases psicanalíticas
para tratarmos da adolescência. Ele diz que na psicanálise nos ocupamos de três
aspectos quando tratamos da adolescência21. Em primeiro lugar, a saída da infância, isto
é, o momento da puberdade com suas transformações. Em segundo lugar, a diferença
dos sexos, sendo a puberdade uma escansão no desenvolvimento da sexualidade, que
leva a uma resposta distinta da resposta infantil em relação a essa diferença. E, em
terceiro lugar, o desenvolvimento da personalidade, ou seja, os moldes da articulação do
eu ideal e do Ideal do eu, que já se apresentavam em Para introduzir o narcisismo², de
Freud.

Eu me interessei particularmente pelo terceiro aspecto, o da imiscuição, que me pareceu


difícil de apreender, mas que pode lançar luz à questão de como fazer aparecer, na
experiência de análise, o estatuto clínico do adolescente como sujeito da palavra. Um
psicanalista propõe a esses corpos, que sofrem de metamorfoses, passar pela palavra
para buscar se dizer. Essa é a indicação do termo falasser, novo nome lacaniano para o
que vem no lugar do inconsciente freudiano.

A leitura de Lacan sobre Gide mostra que sua solução adolescente é desencadeada pela
imiscuição do adulto nele quando criança. Gide, que conclui seu processo adolescente
aos 25 anos, é um paradigma das chances que um sujeito adolescente pode ter de dar
lugar à palavra que humaniza o desejo, quando sua história infantil não lhe abriu essas
portas, e de sair de uma posição mortificada onde o desejo ficava, para ele, “confinado
no clandestino”22. Lacan aponta em Gide um problema quanto a sua relação com o Ideal
do eu, e nos diz que “no mesmo ponto em que se produz o Ideal do eu [...] Gide ensina
que se produz, em seu caso, a perversão”23. Ele nos fala de dois encontros de Gide com
o desejo do Outro que poderiam ser chamados de imiscuição: o encontro com a sedução
da tia e o encontro com o texto de Goethe. Sua solução singular nos permite pensar a
imiscuição como o efeito de um encontro com o real sob a forma da contingência, que
abre uma nova orientação para o desejo e para o amor. Seu exemplo fala a favor do
encontro de um adolescente com um analista como a oportunidade de reorientação de
um destino.

O adolescente busca maneiras de lidar com os novos modos de satisfação que emergem
em seu corpo e muitas vezes o recurso que conta são suas fantasias, já que sua
experiência indica uma falta no saber. Sem essa elaboração de saber o sujeito fica
exposto a uma exigência pulsional que o leva muitas vezes a atuar. Na busca de dizer
esse gozo sem nome, muitas vezes o adolescente se apoia na língua para nela introduzir
algo de novo como a invenção de neologismos ou novas formas de dizer. Tal como
Clara, fanática por fanfics, que sempre me introduz na escrita desse novo vocabulário
amoroso onde as parcerias “chipam”. Ela lança mão da escrita e da leitura ininterruptas,
buscando palavras para o que não se escreve, mas pode se inventar no seu esforço de
enunciação.

O caso singular de Gide nos ensina que nem sempre o sujeito dispõe dos recursos
fálicos e terá que inventar outras soluções. Seu caso aponta uma saída diante do que
encontramos em nossa contemporaneidade: uma ausência dos Ideais do eu, promovidos
pela presença do pai, e da presença, em seu lugar, do Eu ideal, promovido pela
sociedade dos irmãos todos iguais e pelas soluções apresentadas pelos sintomas sociais.
Ele nos diz que, se houve para Gide imiscuição do gozo do outro, essa experiência com
Goethe o conduziu a poder completar sua personalidade, e o encontro com esse real foi
uma chance nada traumática para o falasser, que pode responder a ele com um ganho de
desejo vivo.

Entretanto, não é esse tipo de saída que mais comumente encontramos na clínica no
encontro traumático com o gozo do outro. Os sujeitos, em suas singularidades, podem
encontrar saídas diante desse encontro real, dando lugar a seus sinthomas como um
esforço de enunciação e de invenção de seus corpos.

1
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. In: Outros Escritos. RJ: Jorge Zahar Ed., 2003, p.
558.
2
FREDA, D.A. El adolescente actual. San Martin: UNSAM Ed., 2015.
3
Entrevista com Daniel Roy em #qqpega, Boletim nº 14 da XX Jornada da EBP-MG, 2016.
4
MILLER, J.-A., “Em direção à adolescência”. In Opção Lacaniana nº 72. São Paulo: março 2016, p. 24.
5
ANSERMET, F. “Identidade sexual”. In Scilicet - O corpo falante - sobre o inconsciente no século XX.
RJ: EBP, 2016.
6
MILLER, J.-A. “Em direção à adolescência”. Op. cit.
7
LAURENT, È. “De la folie de la horde aux triomples des religions”. In L’Hebdo-blog.fr, 17 de janeiro
de 2016.
8
MILLER, J.-A. “Em direção à adolescência”. Op. cit.
9
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. Op. cit., p. 557.
10
LACAN, J. (2005 [1962-63]). O Seminário, livro 10: a angústia. RJ: Jorge Zahar, 2005, p. 282.
11
STEVENS, A. “Se faire un corps à l’adolescence”. In Courtil en lignes, nº 20, junho de 2016.
12
DHÉRET, J. “L’adolescence est traumatique”. In La petite girafe, nº 20, dezembro 2004. Paris: Institut
du Champ Freudien, p.112.
13
FREUD, S. (1905a). “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Obras Completas de Sigmund Freud
(vol. 7). RJ: Imago, 1996. pp. 170-171.
14
ROY, D. “Proteção da adolescência”. In Opção Lacaniana, nº 72. São Paulo: março 2016, p. 52.
15
COTTET, S. “Puberdade catástrofe”. Estudos clínicos. Transcrição 4. Publicação da clínica freudiana.
Salvador: Fator, 1988. pp.103-104.
16
MILLER, J-A. “Interpréter l’enfant”. In Le savoir de l’enfant. Paris: Navarin, 2013, p. 22 (Tradução em
Opcão lacaniana nº 72). São Paulo: março 2016, p. 15.
17
LACAN, J. O Seminário, livro 6: o desejo e sua interpretação. RJ: Zahar, 2016, p.89.
18
LACAN, J. Op. Cit., p. 94.
19
MILLER, J-A. Op. Cit., p. 24.
20
LACAN, J. Op. Cit., p. 94.
21
MILLER, J-A. “Em direção à adolescência”. Op. Cit.
22
LACAN, J. “Prefácio a O despertar da primavera”. Op. Cit.
23
LACAN, J. O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente. RJ: Jorge Zahar Ed., 1999, p. 271.

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