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OS PCN E A AULA DE PORTUGUÊS
Pablo Picasso Feliciano de Faria
Campinas, 2006
INTRODUÇÃO
É lugar comum, nos dias de hoje, enfatizar a importância do papel da Educação numa sociedade.
Portanto, furtarnosemos de encaminhar aqui tal discussão e passaremos a apontar os objetivos do presente
trabalho. A educação é um grande desafio, tanto no âmbito das políticas e programas nacionais, quanto no
âmbito restrito de uma sala de aula.
Diante deste desafio, o governo brasileiro tem adotado, no decorrer de nossa recente história
educacional, diversas estratégias que visam a melhorar e a universalizar o ensino, em função de objetivos
específicos relacionados às demandas da sociedade de cada tempo e às posições ideológicas de cada
governo. A proposta em voga, hoje, é a dos Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCN.
Concomitantemente às diversas iniciativas, ocorreu o desenvolvimento do mercado editorial ligado ao
livro didático (LD), sendo que este passou a assumir, sempre com maior importância, boa parte da
responsabilidade pela organização dos conteúdos e das formas de administração dos mesmos em sala de aula.
Esta importância chegou a tal ponto, que existe uma comissão criada pelo governo, que analisa e classifica os
diversos LDs disponíveis no mercado, verificando em que medida eles respondem às necessidades apontadas
pelos PCN, em suas orientações com relação ao ensino de Língua Portuguesa.
Porém, a realidade ainda é dura e complexa. Os problemas estruturais, operacionais e sociais que
influenciam no processo educacional são ainda muito acentuados. É aí que se encontram os grandes desafios.
Aproximar a prática pedagógica das teorias atualmente em voga – sob as quais os próprios PCN foram
elaborados – requer muito esforço e em diversas frentes, tais como a formação dos professores, a melhoria das
condições de trabalho dos profissionais ligados à educação e das condições sociais dos alunos e suas famílias.
Antes de tudo isso, porém, é preciso voltar nosso olhar para o cenário atual e buscar meios de
compreender e diagnosticar as práticas pedagógicas atuais, para que seja possível conceber meios de
transformálas e adequálas aos paradigmas que ora os PCN colocam.
O trabalho presente tem como objetivo principal discorrer sobre os PCN e suas relações com as teorias
de ensinoaprendizagem de Vygotsky e as teorias de enunciação e gêneros do discurso de Bahktin. Como
objetivo secundário, a análise de uma aula de português, com relação aos pontos considerados. Nesta análise,
tentaremos contribuir com a discussão em torno das práticas de ensino, no sentido de apontar possíveis
problemas atuais e quais seriam suas eventuais causas.
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OS PCN, O ENUNCIADO, OS GÊNEROS E A ZDP
Segundo Vygotsky (1935), aprendizado e desenvolvimento se relacionam de maneira complexa e
dinâmica. Isso se dá de tal forma, que a aprendizagem convertese em desenvolvimento no decorrer da vida
social da criança. É como se o desenvolvimento estivesse sempre correndo atrás da aprendizagem e, ao
mesmo tempo, encorpandose através da mesma. Neste contexto, Vygotsky (1935) apresenta o conceito de
ZDP – Zona de Desenvolvimento Proximal – que designa, apropriadamente, a distância entre o nível de
desenvolvimento já atingido pela criança (desenvolvimento real) e o nível de desenvolvimento potencial, ou
seja, as aprendizagens em curso que, num percurso natural, serão o desenvolvimento real de amanhã.
Vygotsky (1935) está preocupado com a questão da educação. Lembremos de alguns problemas que
afligem os educadores, por exemplo. Como educar, obtendo o máximo de aproveitamento da capacidade dos
alunos? Como reter a atenção dos alunos, nas atividades propostas? Para Vygotsky (1935) há apenas um meio:
planejar as atividades didáticas levando em conta e buscando incidir sobre a ZDP. Para tal, seria imprescindível
que o educador conhecesse tanto o desenvolvimento real quanto o potencial de seus alunos, ou seja, as
atividades que estes conseguem realizar autonomamente e aquelas que são possíveis apenas com a
colaboração de outrem.
A despeito das dificuldades decorrentes de tal abordagem – entre elas a questão de como avaliar
confiavelmente tais níveis (real e potencial) e acompanhar estes níveis para vários alunos, no decorrer da vida
escolar –, a idéia, ainda assim, parecenos muito interessante e abre um novo horizonte de perspectivas e
desafios para a educação. Curiosamente, estas idéias não são novas. Porém, somente na última década, no
Brasil, é que têm sido feitas tentativas de aplicação das mesmas nas instituições de educação do país, através
dos PCN.
Os PCN têm, portanto, uma forte ligação com as idéias de Vygotsky. Porém, antes de seguir para a
análise dos PCN sob a perspectiva vygotskyana, é importante considerar, rapidamente, as idéias introduzidas
por Bahktin (195253/1979), sobre o enunciado e os gêneros discursivos – já que os últimos são apontados
pelos PCN como objetos de ensino de língua (PCN, 1998, p. 23).
Bahktin (195253/1979) traz para a lingüística um conceito mais sofisticado do que seria a comunicação
verbal. Até então, consideravase que a comunicação se dava entre um emissor (ativo) e um receptor (passivo),
estando o emissor livre para formular suas construções verbais e transmitir o conteúdo da forma que bem
entendesse. Bahktin não aceita tal cenário, exceto se tomado como representação de certos aspectos da
comunicação, mas nunca para a comunicação como um todo.
Para ele, na comunicação, há uma interação entre o emissor e o receptor, de tal forma que a fala do
emissor está sempre sendo influenciada pela atitude responsiva ativa do receptor. Até mesmo num contexto de
composição literária em que, para o escritor, o receptor é um ente fisicamente não presente e idealizado, este
interfere em função de sua reação e expectativas esperadas ou imaginadas.
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Nesta nova representação da comunicação, a unidade básica é o enunciado. Seus limites, definidos pela
alternância dos sujeitos falantes, permitemlhe assumir formas as mais variadas, provavelmente ilimitadas.
Assim, uma simples réplica do diálogo, como “Vou!” ou um romance, podem ser considerados, cada um, como
um enunciado distinto. É aqui, então, que Bahktin (195253/1979) introduz o conceito de gênero discursivo. As
diferentes realizações dos enunciados configuram os diferentes gêneros discursivos, escolhidos em função da
esfera de comunicação, das necessidades de expressividade do enunciador e do contexto em que se dá a
comunicação.
Agora que temos uma idéia razoável destes dois referenciais teóricos, podemos fazer uma análise dos
PCN para terceiro e quarto ciclos do Ensino Fundamental de Língua Portuguesa. Criado em 1998, pelo MEC,
este documento tem a intenção de disponibilizar orientações que possam facilitar a aplicação de pontos
importantes das discussões teóricas mais recentes na área da educação – incluídas a Pedagogia, a Psicologia
e a Lingüística Aplicada, entre outras áreas. Sendo, portanto, uma orientação, os PCN não atuam como normas
para a educação e, assim, podem ou não ser adotados pelas instituições educacionais.
Este já é um primeiro ponto no mínimo desconfortável, se não problemático, desta iniciativa. Se, por um
lado, os PCN não criam problemas operacionais graves para instituições que não possuem condições
estruturais e de recursos humanos, por outro, as Secretarias de Educação pelo país afora se sentem pouco
pressionadas a se afinarem com suas orientações, tomando as providências cabíveis e necessárias para a
melhoria na educação. Afinal, embora sempre haja espaço para discussão e melhorias, os PCN parecem gozar
de uma considerável unanimidade entre os pesquisadores e pensadores da educação no país, já que foram
criados como uma síntese dos mais recentes desenvolvimentos na área, bem como de orientações de
organismos internacionais para este campo, como a Unesco.
A idéia aqui, é que possamos perceber como os PCN se relacionam aos dois referenciais teóricos
apresentados acima. Comecemos primeiramente pela ZDP.
Na seção “A Mediação do Professor no Trabalho com a Linguagem” podemos ver uma ligação muito clara
do PCN com o conceito de ZDP em Vygotsky. Aqui, os PCN tecem diversas considerações sobre a importância
da mediação do professor no ensino de língua, por exemplo, mostrando a importância de se valorizar a palavra
do outro na interlocução; ou tornando o ambiente da sala de aula em espaço de reflexão e de contato crítico e
respeitoso com o diferente, enfim, um espaço de alteridade saudável.
Mas a preocupação com a incidência do ensino sobre a ZDP fica ainda mais clara na seguinte
passagem:
Ao organizar o ensino, é fundamental que o professor tenha instrumentos para
descrever a competência discursiva de seus alunos, [...] sob pena de ensinar o
que os alunos já sabem ou apresentar situações muito aquém de suas
possibilidades e, dessa forma, não contribuir para o avanço necessário. (PCN,
1998, p. 48, ênfase adicionada)
Na seção “Objetivos de ensino”, são listadas as várias capacidades que deveriam ser desenvolvidas nos
alunos, para cada uma das atividades globais de escuta de textos orais, leitura de textos escritos, produção de
textos orais/escritos e análise lingüística. Como um exemplo da preocupação constante com a ZDP, temos o
seguinte fragmento:
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[...] esperase que o aluno: [...]
seja receptivo a textos que rompam com seu universo de expectativas, por
meio de leituras desafiadoras para sua condição atual, apoiandose em
marcas formais do próprio texto ou em orientações oferecidas pelo
professor; (PCN, 1998, pp.. 4950, ênfase adicionada)
Na seção sobre o “Tratamento didático dos conteúdos”, os PCN enfatizam a necessidade de constante
(re)avaliação dos procedimentos educacionais, no sentido de buscar uma melhoria constante e de verificar se
os objetivos de ensino estão sendo atingidos. Vejamos o fragmento:
[...] é preciso avaliar sistematicamente seus efeitos [do tratamento didático] no
processo de ensino, verificando se está contribuindo para as aprendizagens que se
espera alcançar. [...] os conteúdos selecionados podem não corresponder às
necessidades dos alunos – ou porque se referem a aspectos que já fazem parte
de seu repertório, ou porque pressupõem o domínio de procedimentos ou de
outros conteúdos que não tenham, ainda, se constituído para o aprendiz –, de
modo que a realização das atividades pouco contribuirá para o desenvolvimento das
capacidades pretendidas. (PCN, 1998, pp. 6566, ênfase adicionada)
Enfim, um último fragmento que nos parece dar um arremate final à conclusão de que a ZDP é um
conceito essencial aos PCN:
Nessas situações, o aluno deve pôr em jogo tudo o que sabe para descobrir o
que não sabe. Essa atividade só poderá ocorrer com a intervenção do professor,
que deverá colocarse na situação de principal parceiro, favorecendo a
circulação de informações. (PCN, 1998, p. 70, ênfase adicionada)
Estabelecida esta primeira relação, passemos agora a analisar a relação dos PCN com os conceitos
bahktinianos de enunciado e de gênero discursivo.
O primeiro aspecto que notamos é que os PCN enfatizam sobremaneira a importância do estudo dos
gêneros. Além disso, os PCN sugerem, ainda, uma espécie de núcleo central, um conjunto essencial de
gêneros considerados relevantes para a vida cotidiana e pública do estudante no mundo contemporâneo, tanto
em atividades orais quanto escritas.
Embora as noções bahktinianas estejam um tanto “diluídas” nos PCN, podemos buscar alguns paralelos
entre certas passagens dos PCN e as considerações de Bahktin (195253/1979). Um primeiro exemplo disso é
no que tange ao objetivo de desenvolvimento, no aluno, da capacidade de lidar com os enunciados, descrito nos
PCN como o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem (PCN, 1998, p. 49).
Bahktin separa a elaboração de um enunciado em duas etapas: a escolha do gênero e dos recursos
lingüísticos e a determinação da composição e do estilo. A primeira etapa depende exatamente das “situações
de uso público da linguagem”. Cada esfera do discurso público – e mesmo o privado – determina as opções de
gêneros possíveis e os recursos lingüísticos apropriados à sua realização.
Os PCN apontam uma série de variáveis com que o aluno tem de lidar, no papel de enunciador, tais
como: lugar social do locutor em relação ao destinatário; o lugar social do destinatário; intenção do autor; tempo
e lugar da produção e do suporte. Aqui, sucintamente, cabem parênteses, ressaltando o termo suporte utilizado
pelos PCN.
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Este conceito não é bahktiniano e se refere ao meio de transmissão do enunciado, por exemplo, um livro
didático (LD). É um termo controverso, na medida em que ele se cruza com o conceito de gênero bahktiniano.
Para Bahktin (195253/1979), um gênero secundário (complexo) absorve e transmuta vários gêneros primários
(simples). Nesta perspectiva, o LD pode ser considerado um gênero secundário. Os PCN, aparentemente,
tentam trabalhar com as duas noções.
Retornando ao ponto em que estávamos, todas estas variáveis apontam para, em Bahktin, a segunda
fase do enunciado, visto que esta fase tem como objetivo, responder às necessidades expressivas do locutor.
Aqui, ele vai decidir entre um estilo formal ou informal; irônico ou satírico; etc. Inclusive a composição
texto/enunciado no gênero, será definida em função da intenção.
Um pouco acima, foi utilizado o termo esfera. Concluímos que este termo se refere ao que, nos PCN, é
chamado de universo temático. Outra noção bahktiniana que aparece diluída nos PCN, é a de enunciado. Esta é
alternada com a noção de texto, durante todo o documento. É assim que, freqüentemente, encontramse
passagens que tratam de relações de um determinado texto com outros textos. Parecenos perfeitamente
possível admitir uma identidade entre os dois termos.
Tudo o que os PCN enumeram como sendo habilidades importantes a desenvolver no aluno, como
inferência, reconhecimento de intenções do enunciador, reconhecimento de gênero, atitude responsiva crítica,
uso de recursos figurativos, entre tantas outras, podem ser resumidas na idéia bahktiniana de domínio dos
gêneros, que nos permitem interagir com o parceiro da comunicação, prevendo a forma e o conteúdo do que
provavelmente será dito. Sem este conhecimento, Bahktin considera a comunicação impossível.
Um último ponto importante a considerar. Se concordarmos com Bahktin, que muitos gêneros já vêm
sendo adquiridos pela criança junto com a língua materna é de se supor e esperar que ela chegue à escola com
um préconhecimento prático fundamental. Portanto, seria muito importante desenvolver o conhecimento em
nível (meta)lingüístico desses gêneros que ela já domina, visando a facilitar sobremaneira sua aquisição de
novos gêneros. Isto fica ainda mais evidente se considerarmos, segundo Bahktin, que muitos dos novos
gêneros que a criança irá aprender na escola sejam secundários e complexos, muitas vezes incluindo gêneros
já conhecidos por ela. Os PCN enfatizam tal necessidade, como podemos verificar no trecho seguinte:
[...]
desenvolvendo sua capacidade de construir um conjunto de expectativas
(pressuposições antecipadoras dos sentidos, da forma e da função do texto),
apoiandose em seus conhecimentos prévios sobre gênero, suporte e
universo temático [...] (PCN, 1998, p. 50, ênfase adicionada)
Antes dos apontamentos finais, há um elemento bem interessante a ressaltar, dentre os objetivos dos
PCN. É uma surpresa muito positiva constatar como aparece de forma marcante a preocupação com o
desenvolvimento do conhecimento sociolingüístico dos alunos. Os PCN parecem apontar – e de certa forma
isto está também relacionado à questão dos gêneros – para o desenvolvimento do que tem sido chamado de
competência comunicativa sociolingüística.
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Há uma constante preocupação em ressaltar a necessidade de se preparar o aluno para as diversas
situações de uso da língua, no diaadia. Além disso, enfatizase bastante a necessidade de ensinar o aluno a
compreender como semelhantes e de igual valor, as diversas variedades do português falado no Brasil, a refletir
sobre seu próprio modo de falar e, assim, a refletir sobre sua própria cultura local. Enfim, a aceitar a diferença
como algo positivo e a dirimir esta visão equivocada da uniformidade do português brasileiro.
Finalmente, podemos apontar algumas questões que surgem, face às propostas dos PCN. São propostas
desafiadoras e que exigirão de todos os envolvidos grandes esforços para sua aplicação. Mas parecem apontar
para o caminho certo. Dentre estes desafios, como os próprios PCN ressaltam, é mister desconstruir os
modelos cristalizados de educação, dos quais muitos dos atuais professores são herdeiros, construindo novos.
Os cursos de formação continuada oferecem uma bela oportunidade para isto.
Além disto, seria muito interessante se, pelo menos, a nova geração de professores fosse formada como
agente desta nova visão, deste novo paradigma. Teríamos, assim, a garantia de que uma renovação se daria na
passagem de uma geração de professores para outra. A relação do professor com a linguagem deve ser uma
preocupação fundamental dos cursos de licenciatura.
Outro aspecto importante: o professor formado deve vivenciar o que irá ensinar, sob a pena de não
contagiar os alunos com o que diz e faz. O gosto pela leitura, pelo conhecimento, o respeito à diversidade
lingüística, entre outros, devem ser requisitos indispensáveis ao professor. Como enfatizam os PCN, é uma
responsabilidade coletiva de educadores – e onde acrescentamos também os alunos – fazer da escola um
espaço de crescimento, de respeito, de cidadania. Aqui, certamente nos vem à mente um dos problemas mais
críticos de nosso sistema educacional, que é a valorização do professor, tanto na questão salarial, quanto na
questão de formação. Portanto, temse um desafio concomitante ao de aplicar os PCN: o de melhorar as
condições de trabalho para os profissionais da educação, para que estes tenham a oportunidade, assim, de
buscar sua constante atualização e crescimento como profissionais e como cidadãos.
Os PCN sintetizam, em nossa opinião, muito do que pode ser considerado o ideal na educação. Eles
podem e deverão ser revisados e melhorados, na medida em que sua aplicação aponte os problemas e ou
aspectos positivos de suas orientações. Mas muito do que fará a diferença será, como sempre, a atitude
pessoal de cada educador. É preciso que cada educador se sinta, também, um eterno educando.
É da perspectiva do que foi comentado até aqui, que iremos analisar uma aula de gramática, para 7ª série
de escola pública, realizada em 1999, e apontar os aspectos que se aproximam ou se distanciam tanto dos
objetivos propostos pelos PCN, como das teorias de Bahktin e Vygotsky.
UM OLHAR SOBRE A PRÁTICA
A análise que faremos nesta parte se baseia nos aspectos apontados por Batista (1997), envolvendo
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Exercícios do LD
LD Gramática: correção de
1 Turnos 1129 exercícios do LD e explicação Poema
Dicionário de novos conteúdos.
Explicação
Objeto de ensino: flexões
1.1 Turnos 12 LD LD
verbais
Poema
1.2 Turnos 314 LD Verbos: pessoa
Exercícios do LD
1.3* Turnos 1523 Dicionário Uso do dicionário Dicionário
Poema
1.4 Turnos 2433 LD Verbos: pessoa
Exercícios do LD
Uso do dicionário e Dicionário
1.5* Turnos 3448 Dicionário
“interpretação” do verso Poema
Poema
1.6 Turnos 4969 LD Verbos: número
Exercícios do LD
Poema
1.7 Turnos 7078 LD Sujeito e predicado
Exercícios do LD
Poema
1.8 Turnos 7995 LD Locução verbal
Exercícios do LD
Explicação
1.9 Turnos 96116 LD Tempos verbais
Exercícios do LD
Repreensão
1.11 Turno 129 LD Exercícios do LD
Exercícios para a próxima aula
Quadro 1 Sinopse da aula
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Como poder ser verificado no Quadro 1 acima, a aula em questão era uma aula de correção de exercícios
do LD. Além do mais, já era a segunda aula seguida da mesma professora e havia muito barulho na sala. A
turma era de 7ª série, como informado anteriormente e a aula era de Português, mais especificamente de
gramática.
O nível 1 do quadro acima diz respeito à organização global (Batista, 1997) da instância da aula. O objeto
de ensino desta aula é a correção de exercícios de gramática intercalados com explicações de novos
conteúdos. Assim, a voz privilegiada nesta aula é a do LD e a professora faz, basicamente, o papel de porta
voz do mesmo.
Os níveis 1.1 a 1.11 representam os níveis intermediários (Batista, 1997), que giram em torno de temas
propostos pela professora e que perfazem a seqüência de atividades que organizam o transcorrer da aula. Com
relação aos níveis 1.3 e 1.5, especificamente, inserimos um “*” para sinalizar uma diferença em relação aos
demais: estes são propostas dos alunos de mudanças no objetivo global da aula, as quais a professora não
atende senão muito superficialmente, com implicações diretas na questão da ZDP, como será comentado na
conclusão.
Embora tenham sido inseridas como atividades dentro da mesma seqüência global, elas poderiam ser
consideradas como atividades de uma outra seqüência global, visto que seu foco é muito diferente do objetivo
da aula exposto pela professora.
O nível 1.1 indica o momento em que a professora inicia a aula, enfatizando a retomada de temas já
estudados que serão atualizados (Batista, 1997) através dos exercícios. Aqui temos um ponto importante a
ressaltar: a professora, ao seguir o LD, usa o texto – no caso um poema – como artifício para ensinar a
gramática, como vemos logo na primeira vez em que ela se dirige aos alunos:
Pr.: [SI] nós estamos estudando, aplicando a gramática ao texto que, que nós estamos vendo!?
Tempos verbais, modos, reconhecer bem os verbos.// O que mais nós estamos vendo aqui? Regência,
radical [SI] (Alunos falam algo) Ah!.. Já fizemos isso! [SI] (ênfase adicionada)
Esta é uma prática cristalizada que os PCN vêm substituir por novas orientações, visto que a gramática
não é mais vista como um fim em si, mas como um meio para o desenvolvimento das competências
lingüísticas do aluno (PCN, 1998, pp. 18, 23, 2731).
Apesar de utilizar bastante as estratégias de interlocução que são comuns em salas de aula e foram
apontadas por Batista (1997), tais como a constituição dos pólos de interlocução e as seqüências triádicas
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locais para correção e avaliação, a aula prossegue com grande dificuldade na manutenção da atenção dos
alunos. Isto leva a crer em um desencontro quase total entre a agenda proposta pela professora (ou pelo LD) e a
dos alunos. Uma das conseqüências imediatas disto é a necessidade de afirmação da autoridade do professor,
como estratégia de organização da interlocução.
Na última atividade, 1.11, foi colocada, dentre os objetivos, a repreensão. Admitimos que esta poderia ser
entendida também como um outro objetivo global, mas optamos por colocar assim, visto que ela ocorre apenas
no último turno, paralelamente à atividade de indicar os exercícios para a próxima aula.
Aliás, este ponto é importante como indicador do modo de trabalho adotado nesta aula e que,
acreditamos, seja algo muito comum nas escolas em geral. Ao iniciar a aula corrigindo exercícios do LD e
finalizála indicando novos exercícios para casa, a professora parece trabalhar na estrutura exercícios do LD
para casa correção em sala de aula → explicação da professora. Isto certamente tem, também, impacto na
questão da ZDP e retomaremos este ponto na conclusão a seguir.
DISCUSSÃO DOS DADOS
Cremos que as discussões explicitadas a seguir não são diretamente, embora estejam relacionadas,
aplicáveis a outros tipos de aula, como as de leitura, de seminários, etc. Essas possuem características
peculiares que mereceriam outras considerações.
Nossa resposta é não. Primeiramente, que fique claro que não se trata de condenar a professora como
incapaz e culpada pelo insucesso da aula. Na verdade, acreditamos que as dificuldades desta professora sejam
um exemplo e um sintoma da fragilidade de nosso sistema educacional. Ela é também uma vítima e só deixará
esta condição na medida em que lhe fornecerem meios de repensar sua atividade profissional, a educação
como um todo e seu papel pessoal dentro dela. Ela e muitos outros vêm de uma formação deficitária e não
encontram, no contexto atual, possibilidades de mudarem drasticamente sua forma de trabalho.
Além disto, o LD utilizado na aula foi o de um autor da tradição, com uma visão ultrapassada do ensino
para os padrões atuais. Se, como ressaltamos na introdução, o LD é um suporte essencial no contexto atual da
sala de aula, sendo o professor quase que apenas um gerenciador do tempo para que as atividades propostas
pelo LD sejam levadas a cabo, posição esta questionável, não é de se estranhar que quanto mais distante do
ideal estiver o LD, assim também estará a aula.
E por que é que acreditamos que a aula não atingiu os objetivos de ensino? Dois motivos nos parecem
pertinentes. Em primeiro lugar, pelo próprio objetivo da aula: ensinar gramática. Os PCN orientam a considerar a
gramática não como um fim, mas como um meio. Ou seja, a gramática deve ser ensinada nos momentos em
que ela vá servir a outros fins de maior alcance, como a compreensão e manuseio de gêneros, por exemplo.
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Fica muito explícito na aula que nem os alunos e nem a professora parecem compreender o poema
utilizado como artifício para o ensino da gramática. O que se verifica, na verdade, é uma distorção deste
gênero, em que suas características de sentido metafórico não são abordadas, sendo o poema tratado como
um conjunto de frases soltas.
Mesmo aceitando o fato de que um gênero que circula fora do ambiente de sala de aula nunca será o
mesmo quando utilizado em atividades didáticas, é preciso que haja um esforço consciente para que esta
alteração seja mínima, respeitando as várias facetas do gênero, como a esfera, as condições de produção e
recepção, etc. Esta abordagem de ensino com valorização do gênero parece estar tão distante deste modelo de
aula que mesmo com relação ao gênero dicionário os alunos parecem carecer de maior domínio.
Este problema está intimamente ligado ao segundo motivo para o insucesso desta aula: a nãoincidência
sobre a ZDP.
Não nos parece possível dizer se os alunos efetivamente aprenderam ou não. Se fosse preciso dar um
parecer, diríamos mesmo que não houve aprendizado, em função da grande dispersão que vigorou durante toda
a aula. Apenas alguns poucos alunos interessados mantiveram interlocuções diretas com a professora e
demonstraram algum conhecimento prévio, sendo que a aula não parece ter contribuído em nada para ampliálo,
mas, na melhor das hipóteses, apenas fixálo.
A aula analisada, no geral, perde praticamente todas as oportunidades de atuar na ZDP. Seja nos
momentos em que os próprios alunos propõem a compreensão do poema ou quando eles demonstram não ter
compreendido bem algum tópico, a professora deixa claro que incidir sobre o desenvolvimento potencial dos
alunos não é sua intenção, já que ela ignora todas estas ocorrências.
Novamente insistimos num ponto: ela está seguindo o LD. A meta de cada aula é desenvolver a “lição”,
garantindo a realização das atividades propostas. Isto nos leva de volta ao esquema de aula apontado no final
da análise.
Quando se pensa na importância de incidir sobre a ZDP, este esquema parece estar fadado ao fracasso.
Um esquema de aula que tenta apenas retomar conteúdos de aulas anteriores e exercícios feitos em casa, sem
que estes estejam a serviço de novos aprendizados, tende facilmente a levar à dispersão dos alunos.
Afinal, um efeito imediato deste tipo de aula é polarizar os alunos entre aqueles que já sabem e/ou se
interessam e os outros que estão com dificuldades e/ou não se interessam. Partindo deste ponto, já fica muito
difícil conduzir toda a turma de forma homogênea. Principalmente, porque a professora está, por sua vez,
interessada em concluir a “lição” e não se propõem, portanto, a dedicar especial atenção aos “defasados”.
Este tipo de aula poderia ser visto como um sorteio de cartas: jogase uma enorme quantidade de cartas
para cima enquanto tentase agarrar uma. Esta parece ser a situação dos alunos: o professor despeja muito
conteúdo e eles que se virem para agarrar o que puder, de acordo com sua capacidade e “interesse”.
E se, além disso, o objeto do ensino está também equivocado – como o ensino da gramática em si, a
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atividade didática e o aproveitamento dos alunos ficam extremamente comprometidos.
Enfim, parecenos que os problemas fundamentais desta aula foram:
Uma visão ultrapassada do que seja o ensino por parte de todos os envolvidos (professor, escola, LD e
alunos);
O esquema de aula de retomada de conteúdos já vistos sem que estes sejam ferramentas para novas
aprendizagens e sem considerar os desníveis entre as apropriações dos alunos para os referidos
conteúdos.
Para o primeiro problema, acreditamos que os PCN estão aí para combatêlo. Ele discorre
satisfatoriamente sobre esta questão, permitindo que os educadores que tinham pouco ou nenhum contato com
estas perspectivas educacionais possam, enfim, dar um salto qualitativo e rever sua atuação profissional.
Para o segundo problema, serão necessárias muitas pesquisas e análises “de campo”, ou seja,
acompanhar a rotina da sala de aula, buscando identificar os pontos positivos e negativos nos esquemas das
aulas. A partir disto, elaborar novas propostas de atividades tanto no âmbito da aula real, a cargo do professor,
como no âmbito do LD, para que ele já chegue até a sala de aula com uma abordagem mais próxima do ideal.
Esta é uma necessidade constante e que certamente trará diferentes conclusões para diferentes
contextos sóciohistóricos e regiões geográficas. Este é o lado dinâmico da educação, para o qual os PCN ou
quaisquer outros dispositivos semelhantes não podem fornecer uma solução. Este é o lado da educação em
que o que vale é a atitude crítica e propositiva de cada um, dentro do seu raio de ação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1] Proposta de sinopse baseada em Batista (1997). O Quadro não foi detalhado até ao nível local – das
seqüências de turnos – por este não ser fundamental para esta análise. Os exemplos específicos de turnos,
quando necessários, serão citados no decorrer do texto.
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