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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Departamento de Ciência Política

Espaço e vida públicos:


reflexões teóricas e sobre o pensamento brasileiro

Adrián Gurza Lavalle

Tese apresentada ao Programa


de Pós-graduação em Ciência
Política como parte dos
quesitos para a obtenção do
título de doutor

Orientador:
Prof. Dr. Lúcio Kowarick

São Paulo
Julho de 2001
2

RESUMO

O espaço público moderno nasce sob o signo do privado ou, de


forma mais precisa, da cisão entre o político e o público
impulsionada por processos seculares que levaram à autonomização
do social. A notoriedade pública do mundo social remete à vida
pública como uma das dimensões constitutivas do espaço público
moderno, cuja configuração é complementada pelo arcabouço
institucional que define e organiza a vida política e pela
existência de canais de comunicação pública por intermédio dos
quais se torna possível e estável a relação entre as duas
primeiras. No Brasil, desvendar os empecilhos e “peculiaridades”
nacionais a emperrarem a construção de um espaço público
genuinamente moderno foi, nas primeiras décadas do século XX,
preocupação constante do pensamento político-social. O
diagnóstico emergido dessas interpretações tornara-se dominante
ao longo da centúria, e seu traço mais notável é a centralidade
outorgada a uma das três dimensões do espaço público: a vida
pública como veículo de um privatismo pertinaz, como expressão de
um ethos público pré-moderno. Nos últimos anos, o debate
acadêmico em torno à emergência de uma nova sociedade civil
reeditou o tema da vida pública, todavia, em registro
diametralmente oposto, a saber, enquanto manifestação de inédito
associativismo capaz de aprimorar a democracia e de ampliar o
próprio espaço público.

O presente trabalho foca a atenção na recorrência da vida


pública como problema posto pelos diagnósticos do pensamento
político-social: primeiro, no plano dos enquadramentos
conceituais possíveis; depois, na literatura responsável pela
montagem da concepção mais influente do espaço público no país;
3

por fim, como objeto de pesquisa conforme as abordagens e cânones


hoje vigentes.

Palavras-chave: espaço público, vida pública, ethos público,


sociedade civil, associativismo.

ABSTRACT

The modern public space emerges under the spell of the


private interests or, in a precise way from the division between
the political and the public world stimulated by secular
processes wich lead to the autonomization of the social. The
relevance of the social world takes the public life as one of the
constitutive dimensions of the modern public space whose
configuration is completed by the institutional framework that
defines and organizes the political life as well as by the
existence of public communications channels by which the relation
between the public life and the political life will be possible
and also be stable. In Brazil, disclosing the impediments and
national peculiarities that stop the construction of a modern
public space were part of the political-social thought, in the
first decades of the 20th century. The diagnostic of these
interpretations became dominant during the century and its most
salient feature is the centralism granted to one of the three
dimensions of the public space: the public life as a vehicle of
an obstinate privatism and as an expression of a public pre-
modern ethos.

In the last years, academic discussions about the emergence


of a new civil society have reissued the public life subject.
4

However, this happens on the other side, which means, as


manifestations of non-edited associativism that are able to
refine democracy and to enlarge the public space.

This Ph.D. dissertation focusses the attention in the


relevance of the public life as a problem suggested by the
diagnostics of the political-social thought: first, in the field
of possible conceptual framings; second, in the literature
responsible for the setting-up of the most influential conception
of the public space in the country; finally as an object of
research in conformity with the current issues and cannons
nowadays.

Key words: Public space, public life, public ethos, civil society
and associativism.
5

Espaço e vida públicos:


reflexões teóricas e sobre o pensamento brasileiro

Adrián Gurza Lavalle


6

Para Karin
pelo riso da luz
7

No caso do detetive o crime


existe, o problema está
formulado: quem matou? Mas
o cientista, pelo menos em
parte, comete seu próprio
crime...
Albert Einstein e
Leopold Infeld
8

PREFÁCIO

Tudo começou com uma intuição de contornos pouco nítidos,


suscitada pela leitura de um dos textos políticos mais notáveis
entre aqueles que vieram à luz no oitocentos: O Abolicionismo 
redigido na íntegra em Londres e editado em 1883. No intuito de
justificar publicamente a missão política do partido
abolicionista, e pautado pelo respeito aos princípios liberais,
Joaquim Nabuco colocou-se na difícil situação de identificar a
fonte genuína da autoridade que lhe permitia advogar em nome de
outrem: de um lado, os valores universais conferiam dignidade a
um discurso humanitário; mas, do outro, a atuação política
requeria, por parte dos “representados”, o conhecimento e a
aceitação expressa desses valores e dos direitos deles derivados,
assim como algum mecanismo de delegação  ainda que hipotético.
A resposta é espantosa: “O mandato abolicionista é uma dupla
delegação, inconsciente da parte dos que a fazem, mas, em ambos
os casos, interpretada pelos que a aceitam como um mandato a que
não se pode renunciar.”

A figura de uma “delegação inconsciente”, mediante a qual


os escravos e seus filhos  os ingênuos  investiam de poderes
irrenunciáveis os adeptos da causa abolicionista, sugeria a
difícil relação entre a vida social e o embate púbico das idéias
de um ângulo pouco comum; isto é, acusava não o “artificialismo”
ou a conformidade com uma “cultura ornamental”  para empregar
termos recriminatórios amplamente utilizados , mas as enormes
dificuldades da autenticidade. Mesmo para aqueles que, como
Nabuco, defenderam a realização dos imperativos práticos
inscritos nos ideais universalistas modernos no percurso do
9

século XIX, a tarefa de demonstrar a legitimidade de suas


propostas parecia obrigada a lançar mão de expedientes engenhosos
para contornar o perverso paradoxo de falarem em representação de
homens silenciados, sem opinião pública passível de mobilização
para alicerçar qualquer processo de delegação de interesses; uma
espécie de luta contra a banalização e esterilidade dos valores
igualitários, todavia, no plano do artifício e mediante a
conciliação das idéias. Tratava-se de expressão, por certo
irônica, dos obstáculos enfrentados por uma prática política
comprometida com a emancipação e, no entanto, necessariamente
desprovida de sustentação em uma vida pública ativa.

O enfezamento da vida pública foi amplamente destacado na


história do pensamento político-social, mas a intuição surgida na
leitura de Nabuco apontava para seus efeitos no plano da
construção das idéias. Retrospectivamente, após messes de
minuciosa revisão das grandes obras das primeiras décadas do
século XX, tornou-se claro, de súbito, quanto essa intuição tinha
permanecido latente no esforço da interpretação. Assim, o núcleo
desta análise foi-se especificando com vagar: a centralidade da
vida pública no pensamento político-social como chave heurística
para equacionar a configuração do espaço público no país. Não é o
propósito, aqui, avançar na explicitação dos conteúdos, pois o
leitor encontrará as explicações pertinentes nas aberturas a cada
uma das três partes que integram o corpo deste trabalho; contudo,
a estrutura do mesmo é pouco convencional e merece alguns
comentários pontuais.

A ambigüidade semântica é característica da noção


“público”, e inclusive no terreno teórico reinam a diversidade de
sentidos e a multiplicação de conceitos com delimitações por
vezes confusas e até conflitantes  espaço público, esfera
pública, publicidade, opinião pública, público, vida pública,
para mencionar apenas os termos mais freqüentes na literatura
10

especializada, reenviam a definições multívocas. Por isso, a


primeira parte objetivou montar um cenário em que pudessem ser
elaborados tanto a relação entre o espaço e a vida públicos
quanto o conjunto de determinações do próprio espaço público a
escapar dessa relação. Ainda na primeira parte, há uma seção de
transição entre as balizas teóricas mais gerais e os
condicionantes históricos que permitem compreender a recorrência
da vida pública no pensamento político-social. Uma vez preparado
o caminho, a segunda parte transcorre por inteiro no nível do
exame das idéias, dando tratamento pormenorizado ao surgimento e
à lógica interna da caracterização mais difundida do espaço no
Brasil ao longo do século XX. Nos últimos anos, a vida pública
reapareceu com renovado vigor nos estudos sociológicos, agora
tematizada de outra perspectiva: a emergência de uma nova
sociedade civil. A terceira parte desenvolve balanço amplo dessa
perspectiva e entabula um diálogo com ela a partir dos resultados
de pesquisa empírica; para tanto, pressupõem-se as balizas
conceituais assentadas no começo do trabalho.

Se a trajetória das três partes guarda como elo comum a


problemática da vida e do espaço públicos, em cada caso o
universo de referências bibliográficas preserva uma
especificidade irredutível, levantando o desafio de desenhar
estratégias de abordagem diferentes. As mudanças no registro da
discussão e no estilo argumentativo obedecem à escolha de evitar,
na medida do possível, as facilidades concedidas pelos recursos
da crítica externa. Afinal, se os problemas são uma criatura do
cientista que “comete seu próprio crime”, parece iniludível, no
processo da “investigação”, não se posicionar a partir da ótica
do modus faciendi. É claro que a arguta analogia policial de
Einstein e Infeld encerra um paradoxo para as ciências sociais:
nelas, a intenção de desvendar o “mistério”  os “crimes” de
outrem  pratica seu próprio “crime”. Mas a nova indagação
compete ao leitor.
11

A realização deste trabalho teria sido literalmente


impossível sem o apoio financeiro do CNPq, ao qual agradeço de
forma dupla, como membro de uma comunidade acadêmica e na minha
condição de estrangeiro. Também agradeço a receptividade e o
suporte do Departamento de Ciência Política, e a atenção sempre
solícita da equipe da Secretaria. À Fundação SEADE, e
particularmente à assistência de Olavo Costa, devo a oportunidade
de processar resultados estatísticos para a última parte desta
pesquisa. O amadurecimento das idéias costuma ser vagaroso e
incerto, e por isso cabe especial menção ao Programa de Formação
de Quadros do CEBRAP, do qual participei durante dois anos; nele,
longas conversas e discussões com colegas e pesquisadores me
permitiram afinar a reflexão dos problemas aqui abordados. Nas
diversas fases de sua realização, o trabalho também foi
beneficiado por leituras e comentários generosos: tive a fortuna
contar em duas ocasiões com as observações agudas de Gabriel
Cohn, a primeira vez como examinador do projeto no seminário de
avaliação do Departamento, e a segunda com membro da banca de
qualificação; o mesmo aconteceu com Maria Lígia Prado, que me
forneceu as primeiras referências acadêmicas quando da minha
chegada ao Brasil e quem também participou da banca de
qualificação; Maria Celia Paoli e Sérgio Costa foram argüidores
de uma versão preliminar da terceira parte da tese, apresentada
no CEBRAP como paper de finalização do programa acima mencionado;
essa versão ainda foi favorecida pelas orientações de Fernando
Limongi, meu tutor no CEBRAP. A todos eles sou muito grato. A
solidariedade e competência de amigos e colegas da FFLCH tornou o
caminho menos árduo e, em boa medida, abreviou o término deste
trabalho; igualmente lhes expresso meu agradecimento.

Houve amigos cujas contribuições decisivas viabilizaram e


enriqueceram a experiência que agora conclui com a apresentação
12

desta tese; gostaria de explicitar-lhes minha gratidão. O apoio e


estímulo constantes de Cristina Laurell fizeram possível meu
doutoramento no Brasil; minha compreensão de diferentes aspectos
deste país foi-se decantando ao sabor de longas conversas com
Joaci Pereira Furtado, inestimável companheiro cuja paciência e
sabedoria muito me ensinaram; a amizade também me obsequiou
muitas lições na mente vivaz e extraordinariamente diversificada
de Encarnación Moya Recio, leitora crítica a quem devo a correção
de ambigüidades e erros nas duas primeiras partes deste trabalho;
com Alexandre Tinoco cultivei a conspiração contra a renitência
das idéias que escapam aos esforços para “domesticá-las”; Márcia
Gattai sacrificou o tempo de sua dissertação, tão escasso quanto
o meu, e realizou uma primeira sistematização dos dados do IBGE
aqui utilizados; a calorosa solidariedade de Omar Ribeiro Thomaz
fez-se presente em sugestões que mostraram sua valia no andamento
da tese. Tive a valiosa oportunidade de trabalhar com Lúcio
Kowarick, não apenas como orientador, também como professor e
como pesquisador; os benefícios dessa oportunidade transcendem a
orientação formal: dele apreendi, na convivência dos últimos
anos, a prudência do raciocínio, a abertura ao diálogo com
posturas discrepantes, a perseverança acadêmica nas grandes
preocupações sociais que ultrapassam as fronteiras disciplinares,
e a importância de escutar e de incentivar as idéias de outrem.
Por sua generosidade, lhe sou especialmente grato. Além da
paciência, do apoio cotidiano e dos conselhos oportunos, muitas
foram as intervenções providenciais de Karin Matzkin; a ela, por
outras razões silentes, dediquei este esforço. Ocioso insistir na
minha total responsabilidade pelas insuficiências que o leitor
possa detectar no trabalho.
13

ÍNDICE

PRIMEIRA PARTE
O CENÁRIO: PARA TRABALHAR COM O ESPAÇO E COM A VIDA PÚBLICOS
ABERTURA
AS CARACTERÍSTICAS E O ESTATUTO DO ESPAÇO PÚBLICO COMO
PUBLICIDADE
1. A delimitação mediante um modelo canônico
2. As primeiras distinções conceituais
3. Os sentidos modernos de uma publicidade não garantida
4. A publicidade como fluxo comunicativo
5. A multiplicação dos problemas: consensos e dissensos

DO MODELO DA PUBLICIDADE ÀS TRÊS DIMENSÕES DO ESPAÇO


PÚBLICO
6. A identificação das dimensões
7. A vida política e a comunicação pública
8. A vida pública

AS DIFICULDADES DO ESPAÇO PÚBLICO NO BRASIL


9. Os públicos de auditores e a “razão romântica”
10.O “divórcio” entre a sociedade e o Estado
11.A “ausência de povo”

SEGUNDA PARTE
A IDENTIDADE NACIONAL PELO AVESSO E A “PECULIARIDADE” DA VIDA
PÚBLICA

ABERTURA
O ETHOS PÚBLICO: TEMAS E PROBLEMAS NO DISCURSO DA
IDENTIDADE NACIONAL
1. Para contornar a tentação do anacronismo
2. A reapropriação dos temas da identidade
3. A identidade como substrato natural e psicológico

A RAPSÓDIA DO ETHOS PÚBLICO


4. O núcleo e as variações dos argumentos
5. Os primeiros passos do itinerário
6. A racionalidade da açambarcagem
7. Os alcances da modernização
A REPRODUÇÃO DO ETHOS PÚBLICO
8. A função de hipótese ad hoc
14

9. Uma interpretação ainda afirmativa


10. Os flancos do conhecimento e da representação
11. As armadilhas: tautologia e “anomalização”

TERCEIRA PARTE
A NOVA SOCIEDADE CIVIL E AS PRÁTICAS DE CONSOCIAÇÃO NA VIDA
PÚBLICA DO FIM DE SÉCULO

ABERTURA
A DELIMITAÇÃO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL
1. A reconstrução perante as antigas linhagens
2. Pressupostos para abordar a literatura local
3. O contexto e o conceito

A CONSTRUÇÃO E OS LIMITES DOS DIAGNÓSTICOS


4. O associativismo e os novos atores
5. A função normativa e os “interesses gerais”
6. O argumento das associações
SUBSÍDIOS PARA PENSAR AS PRÁTICAS DE CONSOCIAÇÃO
7. A participação em associações
8. As clivagens socioeconômicas e a participação
9. Os padrões da consociação de interesses
15

PRIMEIRA PARTE

O CENÁRIO: PARA TRABALHAR COM O ESPAÇO E


COM A VIDA PÚBLICOS
16

ABERTURA

“Não dar novos nomes às coisas velhas nem dar nomes velhos
às coisas novas.” Com essa idéia surpreendente, porque singela e
profunda, Gaston Bachelard gostava de definir o desafio das
ciências humanas. Contudo, em se tratando de certos “objetos
difusos”, é difícil que as mais robustas intenções do observador
não empalideçam a especificidade daquilo que motiva seu ofício de
interrogar. Há nomes velhos indispensáveis, a despeito da
ambigüidade deixada neles por longa história de alargamentos de
seus sentidos originais  talvez apenas acessíveis mediante
esmerado esforço de reconstrução filológica ou de “arqueologia”
conceitual. 1 Esse é o caso da diversidade de campos semânticos e
problemas disciplinares perpassados pela categoria “público”,
cujo estabelecimento textual definitivo chegara ao pensamento
cristão ocidental cristalizado no corpus iuris da Antigüidade
clássica. Parece óbvio que a configuração histórica do público e
de sua contrapartida, o privado, difere de forma considerável na
Grécia e em Roma antigas com respeito a suas características
modernas; todavia, tal configuração fora estilizada e preservada
no legado da filosofia moderna e contemporânea enquanto modelo
canônico das feições desejáveis e “autênticas” da vida e do
espaço públicos  da idônea conciliação entre o privado e o
público , e ainda continua a orientar a reflexão de autores
contemporâneos de envergadura, como atestado com extraordinária
nitidez pelo pensamento normativo de Hannah Arendt. Também há
interpretações cada vez mais difundidas apontando para o
alastramento de certa “refeudalização” do espaço público, já
advertida por Jürgen Habermas em seu célebre diagnóstico sobre a

1
Não é fortuito, diga-se de passagem, que o trabalho de Jürgen Habermas sobre
as transformações estruturais da publicidade burguesa tenha sido intitulado, na
tradução francesa: L’espace public: Archéologie de la publicité comme dimension
constitutive de la société bourgeoise.
17

desmontagem das condições estruturais que fizeram possível e


emergência do espaço público burguês  por sinal, espaço
notabilizado, na teoria desse autor, por seus efeitos
democráticos de racionalização do poder. Em leitura
diametralmente oposta, Reinhart Koselleck firma a hipocrisia e
não as energias democratizadoras como verdadeiro atributo a
impregnar essa dimensão burguesa da vida social. Isso tudo, sem
esquecer as tendências históricas seculares responsáveis pela
entronização da “tirania da intimidade”  como desvendada no
belíssimo trabalho de Richard Sennett , cuja ação corrosiva no
esvaziamento da vida pública atuaria, precisamente, no momento em
que parte nada desprezível da literatura identifica a
consolidação do próprio espaço público moderno. Assim, não apenas
existem dificuldades inerentes à conceituação de toda categoria
fundamental na tradição da filosofia e do pensamento políticos de
ocidente, mas sequer os contornos mais gerais pressupostos na
denominação “espaço público moderno” são isentos de controvérsia.

Há outras dificuldades no plano da literatura internacional


de maior vulto. Não bastasse a espinhosa tarefa de entabular o
diálogo entre interpretações consolidadas tão dissonantes  num
terreno como o da configuração do espaço público moderno, que por
certo conta com centenária decantação histórica , no percurso
das últimas duas décadas tem-se multiplicado exponencialmente a
literatura voltada para a análise das recentes tendências de
redefinição dos lindes entre o público e o privado. Com efeito,
os trabalhos seminais na matéria foram desenvolvidos no contexto
da guerra fria e do auge do Estado de bem-estar, particularmente
no terceiro quartel do século, sem ter como pano de fundo
qualquer evidência empírica acerca dos processos de venda de
ativos públicos e de retração das responsabilidades diretas do
Estado impulsionados só a partir do começo da década de 80 pelos
programas de ajuste estrutural: Arendt publicou A condição humana
em 1958; o estudo das origens sociais ocultas da ilustração,
18

Crítica e crise, de Koselleck, veio à luz em 1959; poucos anos


depois, em 1962, apareceu a primeira edição de Mudança estrutural
da esfera pública  conhecida obra de Habermas ; e o trabalho
de psicologia social de Sennett, O declínio do homem público,
entrou em circulação em 1977. Hoje, as exigências do debate são
mais imediatas e, em certo sentido, mais ideológicas pela
atualidade política das transformações em curso: à compreensão e
crítica estrutural do espaço público moderno antepõe-se ora a
defesa de suas fronteiras diante da privatização, ora a
elucidação da caducidade de suas feições históricas adquiridas
após a segunda grande guerra, ora a elaboração de um programa
alternativo para a reapropriação do público por parte da
sociedade civil  tudo isso a partir de agendas políticas e
âmbitos disciplinares bastante diversos.

Encerra certa ironia o fato de a polêmica acerca dos traços


constitutivos do espaço público moderno ser relativamente recente
e, no entanto, se defrontar em tempo tão breve com tamanhas
mudanças; é como se o objeto de reflexão fosse declarado em “vias
de extinção” antes de se atingir seu cabal entendimento. Essa
espécie de “extinção precoce” adquire conotações desconcertantes
em tradições de pensamento que caracterizaram seus respectivos
espaços públicos nacionais pela ausência, pela negação, pela
precariedade ou pela hibridação perversa de traços públicos e
traços privados, fundidos em uma configuração em maior ou menor
grau bizarra, mas a olho nu não-moderna; sem dúvida, é o caso do
pensamento político-social no Brasil e em boa parte dos países
latino-americanos, que agora enfrentam o dilema de explicar como
“aquilo que não era”  o espaço público moderno  está “deixando
de ser” em decorrência das tendências de privatização dominantes
nos últimos anos. Mais: nos planos econômico, político e social,
a ironia assume sabores acres quando a formulação de perguntas
parte das histórias nacionais desses países, marcados pela
iniqüidade, pela vagarosa expansão e desigual efetividade dos
19

direitos e pela construção de uma modernidade que, não raras


vezes, foi suplantada por anseios modernizadores de proceder
verdadeiramente agressivo. Nesses casos, as transformações de
signo negativo nas feições universalistas e solidárias do espaço
público  como é sabido, aqui apenas muito parcialmente
conquistadas  não fazem senão aprofundar as já abissais
diferenças sociais e abalar os insuficientes mecanismos
institucionais de integração social. O novo não é a existência de
desigualdades, nem a insuficiência desses mecanismos, e sequer os
alcances medíocres das políticas públicas, é claro, mas sim que
as tendências dominantes não vêm carregadas de efeitos passíveis
de aproveitamento para enfrentar esses problemas  antes,
contribuem para seu agravamento.

Porém, este trabalho inscreve-se no quadro geral do


pensamento acerca da configuração do espaço público moderno e, de
forma mais específica, da vida pública no país; por conseguinte,
os problemas decorrentes da reestruturação contemporânea desse
espaço não serão aqui abordados. 2 Afastadas as dificuldades da
análise mais conjuntural, ainda persistem os problemas de
definição conceitual já assinalados, o que também implica
introduzir distinções razoavelmente precisas na variegada
terminologia de uso corrente: esfera pública, vida pública,
público, espaço público  para mencionar apenas os termos
utilizados nos parágrafos precedentes. Conforme os propósitos do
presente trabalho, caberá atentar para a especificação das
relações e diferenças entre o espaço público e a vida pública. A
anfibologia dos termos recém-enunciados, e de outros como
“publicidade” e “opinião pública”, aunada à ambigüidade da
categoria “público”, representa apenas uma parte dos obstáculos a

2
Análises mais conjunturais foram desenvolvidas em Adrián Gurza Lavalle, “Por
uma utopia ao alcance da mão: contracrítica antineoliberal do espaço público”,
in Reinaldo Carcanholo, Marcelo Carcanholo e Manoel Luiz Malguti (orgs.), A
quem pertence o amanhã  Ensaios sobre o neoliberalismo, pp. 141-54; Adrián
Gurza Lavalle, “Elogio de lo público a la desmemoria de los tiempos”, pp. 37-
44.
20

serem contornados na construção do objeto desta pesquisa; outra


parte deriva da “ambigüidade do real”, pois, como assinalado,
trata-se de lidar com o espaço público no Brasil ou, de modo mais
preciso, com uma de suas dimensões constitutivas que aparece com
expressiva recorrência no pensamento político-social: a vida
pública. Nesse caso, as dificuldades também impregnam o conceito,
mas são de outra ordem, ou seja, não remetem à discrepância entre
formulações já consagradas em virtude de sua densidade teórica ou
de volumoso respaldo empírico minuciosamente esquadrinhado a
partir de propostas sistemáticas de interpretação; na realidade,
ocorre algo inverso.

Na história do pensamento político-social há larga


concordância em um ponto, a saber, a franca inadequação entre o
conceito e a realidade. A revelia do objeto diante da idéia que
visa a apreendê-lo não é monopólio exclusivo do espaço público e,
embora tampouco seja um problema geral de cunho meramente
epistemológico, na linhagem do pensamento moderno existem outros
conceitos a produzir dissonâncias semelhantes quando introduzidos
em contextos distintos daqueles que animaram sua definição.
Democracia, cidadania ou espaço público, entre outras, são idéias
nas quais aparecem condensados de forma indissolúvel fortes
elementos descritivos e normativos: a presença dos primeiros 
associações, sufrágio, opinião pública, partidos políticos,
legislação, por exemplo  autoriza a aplicação dessas idéias em
realidades muito dissímeis; entretanto, os componentes normativos
 igualdade, liberdade, civilidade, etc.  acusam de imediato o
caráter “artificial” dessa operação ou a índole “disforme” do
real, dependendo da postura assumida. A questão é complexa, sabe-
se de sobejo que não é possível fazer tábula rasa e pensar no
vácuo para desenvolver conceitos “adequados”; ainda mais, sequer
parece desejável renunciar ao conceito negligenciando os efeitos
de suas exigências prescritivas e de sua inconformidade com um
mundo que pode ser transformado. De outro lado, sob o alto
21

contraste dos componentes normativos do conceito, corre-se o


risco de obliterar a própria realidade, espantosamente infirmada
como pura negação, como inexistência daquilo que deveria ser. Em
diversas vertentes do pensamento político-social, as reflexões
sobre a configuração do espaço público no país encontram-se
perpassadas por tais tensões, e não raro esse espaço torna-se
pálido símbolo “daquilo que poderia ter sido e não foi”.3
Explicitar a persistência dessas tensões dista muito de resolvê-
las, pois representam traço constitutivo do itinerário
intelectual nas nações periféricas; no entanto, contribui para
identificar e controlar dificuldades presentes na caracterização
do espaço público.

Esse primeiro passo é por certo insuficiente, permanecendo


em pé questão central cuja análise parece mais proveitosa: que
tipo de concepções do espaço público foi elaborado aqui, a
despeito e em virtude das tensões assinaladas? Afinal, conforme
já mencionado, resulta iniludível trazer à memória o fato de
inúmeros autores terem posto em xeque o próprio objeto desta
análise  o espaço público moderno no Brasil e sua
correspondente vida pública , debruçando-se sobre as razões de
sua inexistência ou de sua constituição sob a égide do privado,
que, no limite, é uma forma pervertida de existência. É possível
colher depoimentos e comentários indignados ao longo do
oitocentos, acusando deturpações na administração e salvaguarda
da coisa pública, mas interessa, para os propósitos deste
trabalho, a compreensão daquela que acabou por se tornar a
interpretação mais difundida do espaço público ao longo do século

3
A frase refere-se ao poder público na Primeira República, especificamente ao
papel de Rui Barbosa como símbolo do revigoramento desse poder nos moldes dos
valores e práticas institucionais do liberalismo; ela provém do instigante
trabalho de Angela de Castro Gomes, “A política brasileira em busca da
modernidade: na fronteira entre o público e o privado”, in Lilia Moritz
Schwarcz (org.), História da vida privada no Brasil  Contrastes da intimidade
contemporânea, p. 492. As palavras de José Murilo de Carvalho acerca da
malfadada instauração do regime republicano são igualmente ilustrativas, porém
mais contundentes: “Na república que não era, a cidade não tinha cidadãos”. (Os
Bestializados  O Rio de Janeiro na República que não foi, p. 162)
22

XX, cuja consolidação encontra-se estreitamente vinculada à


literatura dos anos 30. Nos diagnósticos dessa interpretação, a
rarefação da sociedade e ampla gama de manifestações de
privatismo protagonizam o elenco dos empecilhos profundos a
obstarem a constituição de um espaço público efetivamente
moderno. Para além do contexto intelectual do qual emergiram tais
diagnósticos  cujo exame pormenorizado será efetuado na segunda
parte deste trabalho , a nota distintiva dos empecilhos neles
consignados é seu papel decisivo na constituição da vida pública,
assim reduzida a mero veículo de uma pré-modernidade pertinaz. A
aparição recorrente, no pensamento político-social, de uma vida
pública assim concebida poderia ser equacionada quer como
manifestação de leituras da realidade datadas e definitivamente
superadas, quer como legado de interpretações em maior ou menor
medida verazes; no entanto, ambas as alternativas resultam
insatisfatórias: no primeiro caso, porque essa forma de abordar a
caracterização do espaço público continua a ser reproduzida ainda
hoje e, no segundo, porque toma-se por dado aquilo que deveria
ser objeto de maiores indagações. Em vez de pressupor tal
caracterização da vida pública como assente ou como superada no
plano histórico ou analítico, parece mais produtivo problematizar
seu destacado papel como expediente explicativo da configuração
“ambígua” ou francamente “pré-moderna” do espaço público. Eis o
eixo de análise aqui assumido.

A recorrência da vida pública aparece como problema posto


pela literatura em vertente dupla: primeiro, no plano das idéias
cabe exame nuançado de modo a reconstruir a especificidade dessa
perspectiva de abordagem e entendimento do espaço público, ou
seja, sua emergência, cristalização, reprodução e forma analítica
de proceder  assuntos a serem tratados na próxima parte ;
segundo, a centralidade da vida pública também pode ser explorada
como fenômeno em que transparecem dilemas fundamentais da
configuração do espaço público no país e, nesse plano, trata-se
23

de pôr de relevo algumas dificuldades históricas que não apenas


dizem respeito ao pensamento político-social das primeiras
décadas do século XX, senão aos desafios políticos e intelectuais
suscitados a partir do momento em que a edificação do Estado-
nação irrompeu na história dos outrora territórios coloniais. Se
as mazelas da vida pública tornaram-se leitmotiv de inúmeras
tentativas empenhadas em desvendar as razões do “atraso”, do
caráter “não-moderno” do espaço público, houve motivos de peso
para isso: impossível não reconhecer, no registro dessas
interpretações, a esteira da escravidão como pano de fundo de uma
sociabilidade aviltada e incapaz, portanto, de animar qualquer
expressão pública genuína. Destarte, a ponderação da ausência de
uma vida social favorável à implantação de normas de convivência
civilizada, da primazia esmagadora dos interesses senhoriais na
vida política, assim como da artificialidade do mundo das formas
institucionais, jurídicas, políticas e ideológicas, aparece
amiúde embasando diagnósticos acerca de um espaço público cuja
especificidade é “não-ser” universal, abstrato e impessoal.

No percurso das páginas que se seguem serão estabelecidos o


ponto de partida e os vínculos dos problemas aqui analisados com
o campo das teorias do espaço público, justificando as opções
analíticas que permitirão lidar com uma categoria altamente
polissêmica e reconstruir uma de suas dimensões em termos de vida
pública. Para tanto, o itinerário da exposição contempla vários
momentos: na primeira seção recorre-se a um modelo canônico no
intuito de fixar o conceito do espaço público, segundo traços
bastante difundidos na literatura contemporânea; também mostra-se
o caráter problemático e ambíguo desse espaço e de sua índole
moderna, ainda dentro das balizas do modelo hoje mais influente;
e amplia-se a percepção das dificuldades evolvidas nos esforços
de sistematização conceitual mediante a revisão dos dissensos
levantados pelas principais abordagens do espaço público. Na
segunda, identificam-se as principais dimensões do espaço público
no intuito de contornar as restrições impostas por reconstruções
24

modelares altamente estilizadas; desenvolve-se uma perspectiva de


análise a partir de uma compreensão multidimensional,
especificando-se tanto os problemas inerentes a cada dimensão 
inclusa a vida pública  quanto alguns lineamentos de índole
conceitual acerca das novas dificuldades trazidas à tona por essa
compreensão. Por fim, na terceira seção assinala-se o lugar de
privilégio ocupado pela vida pública no pensamento político-
social do país; levantam-se algumas dificuldades históricas já
frisadas na literatura acadêmica, cujas implicações para as
diferentes dimensões do espaço público motivaram definições em
negativo; e mostra-se como a centralidade da vida pública pode
ser compreendida em parte como resposta a essas dificuldades,
para abrir passo ao tratamento pormenorizado da questão no plano
do pensamento político-social. Em última instância, o quid desse
itinerário é saber se existem para a pesquisa, além de intenções,
um problema e uma forma adequada para abordá-lo, levando em
consideração, segundo aconselhara Bachelard, tanto a
especificidade da realidade  “coisa”  quanto as dificuldades
do conceito  “nome”. A resposta a essa dupla exigência organiza
a exposição das páginas seguintes.
25

AS CARACTERÍSTICAS E O ESTATUTO MODERNO DO ESPAÇO


PÚBLICO COMO PUBLICIDADE

1. A delimitação mediante um modelo canônico

É recurso freqüente iniciar a especificação conceitual do


espaço público a partir da ambigüidade de seus significados
presentes na fala cotidiana, ilustrando assim seu caráter
complexo ou multidimensional e os diversos problemas nele
envolvidos  representação de interesses gerais, controle social
do poder, acesso irrestrito ou aberto a instâncias, lugares e
fluxos, processos de comunicação socialmente relevantes,
determinação democrática de fins coletivos, criação e expansão de
direitos, institucionalização de benefícios, organização da
sociedade por vias endógenas, para listar apenas alguns dos
problemas mais evidentes. 4 De fato, a constelação de substantivos
e adjetivações associados ao campo semântico desse conceito é
pródiga em usos lingüísticos contrastantes e até francamente
contraditórios: no castelhano do século XVIII, os vocábulos
publicana e publique conotavam a mulher e a casa públicas, a
prostituta e o bordel, enquanto à mesma época as public houses
(pubs) do inglês remetiam a lugares de encontro e convivência
pública  lugares, aliás, muito caros ao modelo de publicidade

4
Para abordagens que lançam mão da ambigüidade semântica com o propósito de
problematizar a configuração do espaço público, cf., v. g., Graciela Soriano de
García-Pelayo, “Aproximación histórica a ‘lo público’ y ‘lo privado’, a otras
nociones afines y a sus mutuas relaciones, desde una perspectiva
pluridimensional”, in Graciela Soriano de García-Pelayo e Humberto Njaim
(eds.), Lo público y lo privado  Redefinición de los ámbitos del Estado y de
la sociedad, pp. 27-62; Nora Rabotnikof, El espacio público: caracterizaciones y
espectativas, pp. 1-12; Geoges Duby, “Poder privado, poder público”, in
Philippe Ariès e Georges Duby (orgs.), Historia de la vida privada  Poder
privado y poder público en la Europa feudal, p. 19 e ss.; Adrián Gurza Lavalle,
Estado, sociedad y medios  Reivindicación de lo público, pp. 43-71.
26

burguesa desenvolvido por Habermas. 5 No latim, público


significava simultaneamente tornar propriedade pública,
confiscar, e deitar a perder ou motivar a ruína de algo. 6 Os
exemplos de sentidos conflitantes podem ser multiplicados com
extrema facilidade, particularmente se considerada a miríade de
possibilidades do adjetivo “público”: homem público e mulher
pública, fé pública e clamor público, força pública e opinião
pública, por exemplo, são expressões em que o qualificativo não
reenvia a uma fonte única de significação. A vantagem desses
“rodeios lingüísticos” é trazer à tona de forma imediata a
inexistência de unidade óbvia nas diferentes dimensões vinculadas
ao espaço público, levantando como problema inicial a própria
concreção do conceito, isto é, a difícil conexão de seus
determinantes constitutivos.

Utilizar-se de um modelo teórico implica riscos,


precisamente aqueles contornados pelas abordagens
“fenomenológicas”  por assim dizer , que lançam mão da
polissemia do termo “público” tal como aparece na fala, evitando
assim a aceitação a priori de qualquer unidade já organizada e
resolvida no campo das teorias do espaço público. Contudo, se
mantida a interlocução com os resultados dessas abordagens,
parece mais conveniente optar pela sistematização conceitual a
partir de um modelo mais difundido, de um referente canônico,
pois por essa via obtém-se ganho tríplice: primeiro, abreviar a
exposição em virtude de os traços mais destacados do modelo serem
amplamente conhecidos; segundo, favorecer as possibilidades de
diálogo com o espectro da literatura mais relevante, cujos
debates se reportam de modo sistemático aos grandes modelos; e,
por último, salientar a magnitude das discrepâncias nas grandes
caracterizações do espaço público por contraste com o modelo mais

5
Ibid. p. 46, apud. Alonso Martín, Enciclopedia del idioma  Diccionario
histórico moderno de la lengua española (siglos XVII a XX), etimológico,
tecnológico e hispanoamericano, pp. 3433-4.
6
Adrián Gurza Lavalle, Estado, sociedad y..., op. cit., apud. E. A. Andrews,
Charlton T. Lewis, et. al., A new Latin dictionary, p. 1485.
27

influente. Essa última vantagem permitirá evidenciar de forma


mais convincente a plausibilidade de se pensar o espaço público
em termos de uma configuração multidimensional, evitando-se o
ônus de assumir princípios de unificação demasiado depurados,
inerentes aos grandes modelos. Ao se falar em modelos, admite-se
aqui tanto seu caráter de constructo estilizado, de abstração
modelada com o intuito de aferir aspectos primordiais de
determinado fenômeno, quanto seu papel exemplar, de “molde” a ser
reproduzido para equacionar problemas. Nesse sentido, há diversas
contribuições de valia quanto à conceituação do espaço público
moderno, mas nem todas desempenham uma função modelar no debate
contemporâneo; sua listagem teria de contemplar nomes como Carl
Schmitt, Niklas Luhmann, Norberto Bobbio, Claude Lefort, John
Keane, Manuel García-Pelayo, Koselleck, Sennett, Arendt e
Habermas. A crescente difusão do pensamento de Luhmann introduz a
pouco e pouco, no debate, sua concepção da opinião pública
enquanto recurso do sistema político para a redução de
complexidade na sua relação autodescritiva com o ambiente; a
despeito dessa difusão, a terrível densidade conceitual de sua
obra e a redefinição escrupulosa de cada termo nela utilizado
tendem a refrear a assimilação de sua proposta teórica. 7
Entrementes, sem dúvida os dois últimos autores  Arendt e
Habermas  mantêm maior presença na literatura que hoje lida de
forma direta ou indireta com questões vinculadas no plano
conceitual ao espaço público, embora a influência do segundo seja
sensivelmente superior.

7
“Chega-se, assim, à experiência de uma complexidade do sistema [político] e
de seu ambiente, e torna-se provável que a ação seja orientada de maneira
crescente para os ambientes internos a seu próprio sistema e para as relações
auto-referentes. [...] Mas como podemos controlá-lo? E quais os parâmetros de
um funcionamento bom ou menos bom? [§] Naquelas sociedades que têm diferenciado
a política como sistema soberano, auto-referente, não pode existir qualquer
parâmetro externo, no sentido da pergunta acima [§§] No que diz respeito à
relação entre público e política, a referência ao entorno ocorre através
daquilo que se qualifica de opinião pública [...].” Niklas Luhmann, Teoría
política en el Estado de bienestar, (1981) pp. 76-7 (tradução de AGL; também as
outras passagens vertidas para o português na primeira parte).
28

Para além dos méritos próprios ao pensamento de Arendt,


voltado para preocupações radicalmente humanas, não parece
descabido afirmar que sua posição no debate em questão decorre,
em certa medida, da força crítica de suas formulações normativas
como referente alternativo diante do notável sucesso da teoria
habermasiana, explicitamente contrária à introdução de definições
substantivas com respeito a valores  por exemplo, a defesa de
uma concepção de boa vida baseada na concepção aristotélica de
praxis, ou de princípios de justiça, para trazer à tona apenas as
conhecidas divergências desse autor com Arendt e com John Rawls.8
A escolha que aqui se faz do modelo de Habermas não apenas
obedece à larga influência de suas idéias, mas também ao fato de
que, em se tratando de delimitar as características e o estatuto
modernos do espaço público, a concepção alternativa de Arendt
impõe enormes dificuldades. Com efeito, no pensamento da autora o
público é mais uma categoria filosófica do que um fenômeno a ser
elucidado historicamente, e sua abordagem beira uma ontologia da
condição humana que cinde de maneira radical o público e o
privado. O público é realização da condição humana mediante uma
das atividades fundamentais da vita activa: a liberdade, a
dignidade da política, a luta dos homens contra a mortalidade e
contra o esquecimento, a relação desinteressada entre eles e sem
mediação do mundano ou das necessidades vitais; em suma, para
utilizar o termo correto, a ação e sua correspondência na

8
Cf. Jürgen Habermas, “Reconciliação através do uso público da razão:
observações sobre o liberalismo político de John Rawls”, (1995) versão
mimeográfica para publicação na revista Filosofia e Sociedade; também, Jürgen
Habermas, Philosophical-political profiles, pp. 173-89 (o ensaio acerca do
pensamento de Arendt, particularmente sobre sua concepção do poder, foi
incorporado na edição revisada de 1981; primeira edição: 1971). Para a
concepção de boa vida em Hannah Arendt, como vita activa centrada na ação, cf.,
é claro, La condición humana, (1958) pp. 21-36 e 199-276. Por sua vez, os dois
princípios de justiça de John Rawls encontram-se formulados em sua grande obra:
Teoría de la justicia, (1971) pp. 62-118; a esse respeito, a síntese do próprio
Rawls é muito esclarecedora, cf. “Justiça como eqüidade: uma concepção
política, não metafísica”, pp. 25-59, especialmente pp. 28-34. Por último, a
réplica de Rawls à crítica de Habermas  “Resposta a Habermas”, (1995) 
também pode ser consultada na revista Filosofia e Sociedade.
29

pluralidade como forma em que a vida humana se dá.9 O privado


também é realização da condição humana, particularmente da
atividade fundamental labor, mas permanece encerrado no âmbito do
doméstico, da reprodução material, do mundo das coisas e não dos
homens; confinado como pré-requisito da ação e por vezes como
mera negatividade: “Viver uma vida privada por completo significa
acima de tudo estar privado das coisas essenciais da verdadeira
vida humana [...].” 10 Nesse quadro, o papel crucial da polis grega
e da república romana aparece, sim, como cenário histórico onde a
elaboração conceitual ensejada pela autora encontra plena
ressonância; todavia, trata-se de um referente pré-moderno, e em
ocasiões francamente antimoderno pelas conseqüências críticas
extraídas de sua reconstrução estilizada.11 Como será visto, o
espaço público e seus traços distintivos no mundo moderno não
podem ser apreendidos de forma cabal mediante as balizas teóricas
propostas por Arendt, pois, sob tal orientação, a emergência do
social e a nova relevância do privado são conotados como fatal
corrupção de um espaço público moldado pelos padrões da
Antigüidade clássica.

A escolha do modelo de Habermas é também


circunstancialmente oportuna porque, nas últimas duas décadas,

9
Hannah Arendt, op. cit., pp. 21-36 e 59-67. A autora engloba na vita activa
as condições fundamentais em que se dá a vida humana: as necessidades vitais, o
artifício do mundo material das coisas, e a vida política que corresponde à
condição humana da pluralidade. Há uma atividade fundamental para cada uma
dessas condições: labor, trabalho e ação  respectivamente.
10
Ibid., p. 67.
11
Não é fortuito que obra em questão tenha suscitado as seguintes apreciações,
em uma autora rigorosa e equilibrada como Nora Rabotnikof: “nostalgia da pré-
modernidade”, “nostalgia aristocrática”, “antimodernismo” e “falta de
sensibilidade histórica”. Cf. El espacio público..., op. cit., pp. 107-22 e
142-60; especificamente, pp. 114, 120 e 142. Habermas também assinalou o fato
de certos diagnósticos políticos de Arendt serem “demasiado fáceis” pelo peso
de sua reconstrução filosófica altamente estilizada, em detrimento da
ponderação “bem balançada” de uma pesquisa orientada por critérios históricos.
Cf. Jürgen Habermas, Philosophical-political..., op. cit., pp. 177-81. Em todo
caso, a ausência de uma reconstrução histórica “bem balançada” parece decorrer,
na autora, de sua ênfase na abordagem filosófica das catástrofes plenamente
contemporâneas acarretadas pelos totalitarismos. A esse respeito, cf. Vera da
Silva Telles, “Espaço público e espaço privado na constituição do social: notas
sobre o pensamento de Hannah Arendt”, pp. 23-48.
30

generalizou-se, na literatura internacional e no Brasil, a


discussão em torno da nova sociedade civil, cuja teorização tomou
emprestada parte de seus alicerces do programa de pesquisa desse
autor  em particular de seus desenvolvimentos sobre a
publicidade ou esfera pública. Para os propósitos que aqui
interessam, a perspectiva da nova sociedade civil aborda o espaço
público a partir de uma de suas dimensões constitutivas: a vida
pública enquanto proliferação de associações civis autônomas e
espontâneas, voltadas para a tematização pública de assuntos de
interesse geral e para a intermediação de causas legítimas.
Assim, nos últimos anos, a caracterização da vida pública no país
ocupou de novo o centro da atenção, mas agora com o signo
trocado, isto é, não mais como condensação de feições
idiossincrásicas e empecilhos pré-modernos, senão como fulcro de
radical renovação democratizadora e de vias inéditas para a
ampliação do espaço público conforme consensos emergidos no seio
da sociedade. O exame pormenorizado desses promissores
diagnósticos terá lugar na terceira parte deste trabalho.

O passo procedente é reconstruir em grandes traços o modelo


habermasiano, e, para tanto, convém estabelecer as primeiras
distinções conceituais entre os termos “publicidade”, “esfera
pública” e “opinião pública”. Por razões a serem elucidadas no
percurso da argumentação, são reservados para mais adiante os
esclarecimentos pertinentes para delimitar as definições do
espaço público e da vida pública aqui utilizadas. Cumpre frisar,
no intuito de evitar mal-entendidos, que o esforço de
reconstrução a ser desenvolvido não visa ao complexo programa de
pesquisa do pensador alemão e sequer à avaliação crítica do
modelo  assuntos já tratados alhures e com propósitos
12
diferentes dos deste trabalho. Lançar mão da caracterização

12
A crítica à concepção habermasiana da publicidade moderna, assim como uma
análise pormenorizada de seus argumentos centrais, foi exposta em Adrián Gurza
Lavalle, Estado, sociedad..., op. cit., pp. 109-56; por sua vez, a reconstrução
analítica do pensamento de Habermas a partir da noção “programa de pesquisa” 
diferente dos esforços de teorização desenvolvidos como sistema , foi
31

habermasiana da publicidade, conforme já mencionado, constitui


uma opção pertinente por sua notável especificação conceitual 

decantada ao longo de décadas  e, sobretudo, por sua larga


influência, o que fornece uma plataforma razoavelmente conhecida
para mostrar tanto os traços mais comuns da compreensão
contemporânea do espaço público quanto seu estatuto moderno, seu
caráter multidimensional e a profundidade dos dissensos
existentes. Mas é apenas isso: uma opção argumentativa cuja
exposição busca ser fiel ao autor, primeiro, para abrir passo à
problematização, depois.

2. As primeiras distinções conceituais

A publicidade  Öffentlichkeit  é a categoria central que


levou Habermas, em 1962, a sua formulação original sobre os
efeitos de racionalização do poder presentes na ação pública da

elaborada em Adrián Gurza Lavalle, “A humildade do universal: Habermas no


espelho de Rawls”, pp. 145-82. No último texto explora-se a importância do
trabalho sobre as transformações da publicidade burguesa na trajetória
intelectual do autor. O argumento aí exposto propõe que o núcleo dos problemas
fundamentais e das tensões presentes no empenho de universalização teórica de
Habermas aparece, em sua forma mais “pura”, ainda estilizada em moldes
histórico-sociológicos, na caracterização do modelo clássico da publicidade
burguesa e no diagnóstico sobre o desacoplamento das condições estruturais que
a fizeram possível. As diferentes linhas do programa de pesquisa do filósofo
alemão ensejam reformulações conceituais cada vez mais abstratas e universais
do legado positivo e dos impasses herdados por essa pesquisa seminal. O
esclarecimento é pertinente, pois a posição aqui assumida pode ser controversa
se considerado que a literatura tende a organizar a interpretação da vasta obra
de Habermas focando a atenção na teoria da ação comunicativa. De fato, o
próprio autor parece preferir esse recorte, cuja hierarquização outorga menor
relevância a seus primeiros doze livros. Cf. Jürgen Habermas, “Uma conversa
sobre questões da teoria política”, (1995) entrevista concedida a Mikael
Carlehedeme e René Gabriels, pp. 85-102; Jürgen Habermas, “Moralidad, sociedad
y ética”, (1990) entrevista concedida a Torven Hviid Nielsen, in María Herrera
(coord.), Jürgen Habermas  Moralidad, ética y política: propuestas y críticas,
pp. 79-113. Em reflexão minuciosa acerca da caracterização do espaço público em
Habermas, Nora Rabotnikof também salienta a primazia do trabalho de 1962:
“Debate crítico, racionalidade e correção moral aparecem geneticamente
enlaçados nessa auto-imagem da esfera pública burguesa [...] Este parece ser o
núcleo normativo duro mantido quase intato desde a gênese histórico-social da
idéia kantiana de publicidade, a qual Habermas rastreia nesse texto pioneiro,
até as versões mais modernas da soberania popular como fluxo argumentativo sem
sujeito.” El espacio público..., op. cit., p. 169; cf., também, pp. 162-3.
32

sociedade civil burguesa; 13 entretanto, tal categoria sói aparecer


traduzida nas línguas neolatinas como “vida pública”, “opinião
pública”, “espaço público”, “público” e “esfera pública”  sendo
a última opção de uso corrente em português e, aliás, também em
inglês.14 Os motivos para não verter literalmente Öffentlichkeit
como publicidade são claros, pois ao longo do século XIX, e
sobretudo do XX, o vocábulo perdeu qualquer referência a seu
sentido original, submetido a uma progressiva ressignificação
dentro do campo semântico da mídia e da propaganda comercial. 15
Ainda assim, as soluções escolhidas prestam-se a possíveis
enganos. No contexto do trabalho de 1962, a publicidade burguesa
conota a um tempo o intrincado processo histórico de gestação do
social e as suas conseqüências políticas, quer dizer, o movimento
simultâneo da construção da autonomia material e moral da
burguesia, e da projeção dessa autonomia para o convívio social
 publicidade literária  e para a esfera política 
16
publicidade política. De um lado, a publicidade remete em termos
gerais ao estatuto daquilo que é público, à qualidade ou estado
das coisas públicas; do outro, trata-se de reconstruir a
emergência e as feições de uma publicidade própria da sociedade
civil burguesa, edificada sobre uma robusta esfera privada, e
distinta de outras formas de publicidade como a plebéia ou a
feudal  chamada por Habermas de representativa. 17

13
Jürgen Habermas, Historia y crítica de la opinión pública  La
transformación estructural de la vida pública, (1962) pp. 94-123.
14
Cumpre lembrar que a obra de 1962, na sua versão em português, foi
intitulada: Mudança estrutural da esfera pública: Investigações quanto a uma
categoria da sociedade burguesa.
15
Cf. Antoni Domènech, “Prólogo a la edición castellana: el diagnóstico de
Jürgen Habermas, veinte años después”, in Jürgen Habermas, Historia y
crítica..., op. cit., p. 22; o valioso texto de Domènech consta da edição de
1981, da qual é tradutor, e foi suprimido da edição de 1994 para incluir o
prefácio de Habermas, escrito para a nova edição alemã de 1990. Cf., também,
Antoni Domènech, “Advertencia del traductor”, in ibid., p. 40; Adrián Gurza
Lavalle, Estado, sociedad..., op. cit., pp. 56-62.
16
Jürgen Habermas, Historia y crítica..., op. cit., pp. 65-8 e 88-93.
17
Cabe lembrar que em alemão bürgerliche Gesellschaft significa a um tempo
sociedade civil e burguesa; termo traduzido do inglês  civil society  quando
da difusão das idéias da Ilustração escocesa e da economia política inglesa,
particularmente dos trabalhos de Adam Ferguson e Adam Smith; cf. Norberto
Bobbio, O conceito de sociedade civil, (1967) pp. 28-9. Para a publicidade
33

Na medida em que os traços históricos específicos da


publicidade burguesa se inscrevem no multifacetado processo de
autonomização do social, eles exprimem uma constelação de fatores
fortemente entrelaçados, porém, irredutíveis entre si  expansão
do mercado, emergência da família nuclear, urbanização,
proliferação do hábito social da leitura e auge da imprensa,
entre outros. Nessa constelação, aquilo que normalmente é
designado como esfera pública corresponde, em Habermas, às
instituições da publicidade consolidadas ao longo da segunda
metade do século XVII e de todo o XVIII; com maior precisão,
trata-se de dois tipos de cristalização institucional: primeiro,
a afirmação confiante da autonomia burguesa em práticas e espaços
de convívio dialógico  clubes de leitura, salões, casas de café
e de chá, reuniões de conversação, lojas maçônicas e sociedades
diversas de índole cultural ; segundo, a culminância dessa
autonomia perante o poder, dessa vez materializada em um conjunto
de instituições dedicadas a veicular publicamente as opiniões
representativas dos interesses desse segmento social de livres
proprietários  jornais, ligas, clubes e associações políticas
extraparlamentares. A rigor, não existe em Habermas o termo
esfera pública, utilizado na tradução do conceito publicidade,
segundo assinalado acima; no entanto, o autor se utiliza da idéia
esfera da publicidade para referir um espaço consolidado e
garantido por instituições privadas  isso é, constituídas pela

sociedade civil burguesa , cuja existência abre o caminho da


notoriedade pública à formação de consensos emergentes no seio da
sociedade.18 Por isso, a publicidade burguesa como fenômeno

representativa, cf. Jürgen Habermas, História e crítica..., op. cit., pp. 44-
51; para a publicidade plebéia, cf. os esclarecimentos do autor no que diz
respeito à desconsideração desse tipo de publicidade no trabalho de 1962:
“Prefacio a la nueva edición alemana de 1990”, in ibid., pp. 5-6.
18
V. g., ibid., pp. 46 e 118. Esse espaço de notoriedade pública, garantido
por um suporte institucional civil e desvencilhado do poder, é o conteúdo de
fundo do termo esfera pública, tal como utilizado hoje pela literatura; v. g.:
“O conceito esfera pública tem sido um dos pontos de atenção mais importantes
em torno do problema da sociedade civil democrática. Como é bem sabido, ele se
34

histórico abrangente fornece a explicação das instituições da


publicidade  “esfera pública”  enquanto suporte que contribuiu
a cimentar uma identidade de classe e a promover e defender
publicamente seus interesses. A opinião pública arremata o
processo, visto que não apenas é a expressão por excelência de
certos consensos emergidos do seio da sociedade civil 
sedimentados e divulgados por fora da órbita de controle do poder
através das instituições da publicidade política ; antes,
quando olhada não da ótica da sociedade, senão dos fundamentos do
poder, o opinião pública representa a consagração das pretensões
de legitimidade dos interesses das pessoas privadas enquanto
imperativo funcional da própria democracia  o mandato da
publicidade.

Embora “publicidade” e “esfera pública” admitam certa


sinonímia, particularmente se considerada a importância conferida
no trabalho de 1962 à dimensão institucional da publicidade, seu
uso indistinto pode gerar mal-entendidos, tanto pela diferente
abrangência dos conceitos, referida acima, quanto pela
impossibilidade de aplicar o segundo em outros contextos que não
os das sociedades modernas. Em sua formulação mais sucinta, os
traços distintivos da publicidade burguesa implicam o complexo
processo histórico de autonomização do social e, especificamente,
a construção de uma esfera institucional relevante  cuja
dinâmica incide nas decisões políticas mas independe dos ditames
do poder , assim como o deslocamento da produção do público
para o terreno da sociedade: “A publicidade propriamente dita tem
de ser contabilizada nos ativos do âmbito privado, visto se
19
tratar de uma publicidade de pessoas privadas”. Cabe antecipar
que os desenvolvimentos do programa de pesquisa de Habermas
levaram-no a redefinir a publicidade em termos de fluxos

refere a espaços de comunicação societal abertos, autônomos e politicamente


relevantes.” Andrew Arato e Jean Cohen, “Esfera pública y sociedad civil”, p.
37.
19
Jürgen Habermas, Historia y crítica, op. cit., p. 68.
35

comunicativos espontâneos, abandonando, pela abstração do


conceito, qualquer pressuposto empírico  notadamente a
existência de um suporte institucional consolidado. Entrementes,
quanto às ressalvas com relação à aplicação anacrônica da idéia
de “esfera pública”, os traços da publicidade burguesa recém-
assinalados são especificamente modernos, e, de fato, induziria a
sérios equívocos de interpretação falar em “esfera pública
representativa” ou “esfera pública plebéia”, pois inexiste nesses
casos uma institucionalidade privada, abonada social e
politicamente como legítima em sua função de veicular e
intermediar interesses oriundos da sociedade diante das
instâncias do poder político. Não se trata de ressalva meramente
hipotética: por exemplo, na tradução ao português de Mudança
estrutural da esfera pública encontram-se expressões como as
seguintes: “esfera pública plebéia”, “esfera pública helênica”,
“esfera pública de representação cortesã-feudal” ou, ainda,
20
“esfera pública em sua configuração representativa”. Na verdade,
no plano histórico de longa duração, a diferença fundamental no
que diz respeito à publicidade representativa remete à
progressiva desagregação das sociedades baseadas numa lógica
comunitária e na corporificação representativa do poder, e ao
correlativo surgimento da sociedade de indivíduos, da
subjetividade moderna do íntimo, da privacidade e do interesse
particular  com seu correspondente mundo do social. 21 Aqui, e

20
Tais expressões aparecem, respectivamente, nas páginas 10, 16, 21 e 25.
Quanto à publicidade representativa, Habermas foi bastante explícito: “A
publicidade representativa não se constitui como um âmbito social, como uma
esfera da publicidade; é mais algo assim como uma categoria de status  se
permitido utilizar o termo nesse contexto.” Ibid., p. 46.
21
Aliás, é bem conhecido quanta atenção dedicou Arendt para esquadrinhar as
conseqüências da constituição do social como oposto ao político, porém, também
ao privado: “[...] a aparição da esfera social, que a rigor não é pública nem
privada, é fenômeno relativamente novo, cuja origem coincidiu com a chegada da
Idade Moderna e cuja forma política foi encontrada na nação-Estado.” Hannah
Arendt, op. cit., p.41. Para as diferenças entre as sociedades comunitárias e a
sociedade moderna, no que tange à configuração do espaço público, cf. Arnaldo
Córdova, Sociedad y Estado en el mundo moderno, pp. 21-68; Clemy Machado de
Acedo, “Individuo, sociedad, Estado: tensiones y oposiciones entre el interés
privado y el interés público”, in Graciela Soriano de García-Pelayo e Humberto
Njaim (eds.), Lo público y lo privado..., op. cit., pp. 63-94.
36

enquanto a análise permaneça dentro do contexto do pensamento de


Habermas, será utilizado o termo original “publicidade”,
preservando-se a um tempo seu sentido histórico mais abrangente e
sua conotação de espaço de interação dialógica atrelado a uma
base institucional autônoma. Como será visto, à medida que a
análise se afasta das considerações genéticas do trabalho de
1962, as distinções assinaladas assumem novos contornos, cada vez
mais precisos e abstratos. Porém, os avanços conquistados na
trajetória do autor, consagrados na sua teoria da ação
comunicativa, operaram em demérito de outras dimensões presentes
na sua reflexão sobre a publicidade burguesa  notadamente os
arcabouços das instituições políticas e da comunicação pública.

3. Os sentidos modernos de uma publicidade não


garantida

A partir das balizas gerais recém-esboçadas, é possível


avançar mais um passo na reconstituição do modelo da publicidade
moderna; para tanto, e embora já mencionadas, convém fixar suas
principais características. No pano de fundo de uma temporalidade
maior, a publicidade se enquadra no processo histórico da
emergência do social como âmbito simultaneamente privado e
público, delimitado por fronteiras porosas em dois flancos: a
nova esfera da privacidade e uma esfera política cada vez mais
sensível à crítica e às solicitações provindas da sociedade por
intermédio da opinião pública. A complexa causalidade histórica
subjacente à aparição do social segue a trilha do paulatino
fortalecimento da sociedade de mercado, do crescimento das
grandes metrópoles, da afirmação material e simbólica da família
burguesa, do surgimento do interesse privado como pretensão
racional e legítima, sem esquecer o amadurecimento da
subjetividade moderna afiançada na moral em sua relação com o
37

mundo. 22 Quando focada com menor distância, a publicidade moderna


obedece à configuração de uma esfera institucional de interação
no interior das camadas de livres proprietários e entre elas e o
poder. Nessa esfera institucional, primeiro consolidou-se uma
visão de mundo comum no terreno do convívio social e, depois,
multiplicaram-se reclamos e iniciativas voltados para a auto-
regulação da sociedade civil burguesa, da sua atividade econômica
e interesses  os quais, a despeito de serem privados, atingiram
extraordinária relevância para o conjunto da sociedade enquanto
motores da reprodução da vida social sob a lógica autônoma do
mercado.

Assim, a relação da publicidade com o mundo privado admite


vínculo duplo, aliás, nem sempre corretamente percebido. De um
lado, a reprodução material da sociedade tornou-se assunto
privado, exprimindo a conquista da autonomia do econômico diante
do político e inaugurando o problema moderno da integração social
 a questão social ; por sua vez, a esfera política
especializou-se funcionalmente como instância incumbida de paliar
esse problema que, assumindo estatuto público, não mais
encontrava mecanismos de resolução nas antigas estruturas
comunitárias das sociedades estamentais. De outro lado, esse
aspecto amplamente salientado na literatura ainda é parcial, pois
não apenas o pauperismo e a pobreza de amplas camadas da
população adquiriram feições de coisa privada com relevância
pública; como também, maior atenção foi despendida em outro
âmbito do privado, cuja extensão atingiu proporções sociais

22
Jürgen Habermas, Historia y crítica..., op. cit., pp. 53-64 e 80-8. Note-se
que o conjunto de tendências enunciadas dizem respeito à emergência do social,
pelo que outras grandes transformações em curso não aparecem no elenco 
notadamente, a centralização do poder político, a emergência de instituições
políticas modernas e a consolidação do Estado. O surgimento do social também
gerou transformações no âmbito privado-doméstico, agora simbolizado pela lógica
da intimidade. Para as mudanças que redefiniram a geografia do público e do
privado no plano da intimidade e da moralidade, analisadas a partir de um de
seus componentes mais clausurados  o corpo , cf. o trabalho de Emanuele
Amodio, “Vicios privados y públicas virtudes  Itinerarios del eros ilustrado
en los campos de lo público y de lo privado”, in Graciela Soriano de García-
Pelayo e Humberto Njaim (eds.), op. cit., pp. 169-201.
38

inéditas: o mercado como cristalização da atividade econômica dos


particulares, que, entretanto, pleitearam o caráter público de
seus interesses, exigindo reconhecimento, regulação e
salvaguardas das instituições políticas. Nas palavras de
Habermas: “[... a privatização do processo de reprodução] afeta
apenas um aspecto do curso empreendido [...], mas não sua nova
relevância ‘pública’. A atividade econômica privada tem de se
orientar conforme um tráfego mercantil submetido a diretrizes e
supervisões de caráter público; as condições econômicas nas quais
ele se realiza agora são localizadas além dos confins do lar:
pela primeira vez são de interesse geral. Essa esfera privada da
sociedade  esfera que adquiriu relevância pública  tem
caracterizado, na opinião de Hannah Arendt, a moderna relação da
publicidade com a esfera privada, muito diferente da antiga
23
relação, gerando o ‘social’.” Por isso, a publicidade moderna
exprime e consolida, mediante a intervenção da esfera política, a
progressiva privatização da sociedade: “A publicidade
politicamente ativa mantém o status normativo de um órgão que se
utiliza da automediação da sociedade burguesa com um poder
estatal coincidente com suas necessidades. O pressuposto social
dessa publicidade burguesa ‘desenvolvida’ é um mercado
progressivamente liberalizado, que faz da troca na esfera da
reprodução social um assunto entre pessoas privadas, completando
com isso a privatização da sociedade burguesa.” 24

O caráter moderno da publicidade não se esgota nesses


traços, isto é, nos seus laços com o processo simultâneo de
afirmação das camadas de livres proprietários e do alargamento do
âmbito privado; tampouco decorre apenas da localização da
publicidade no período da ilustração, da crise do Estado
absolutista e do assenhoreamento do mercado, para mencionar de
forma grosseira as mudanças que nos planos ideológico, político e

23
Jürgen Habermas, História e crítica..., op. cit., p. 57.
24
Ibid., p. 110.
39

econômico costumam ser invocadas como divisores de águas da


modernidade. Por outras palavras, não se trata somente da
inserção descritiva e compreensiva do fenômeno no seu contexto 
tipificado segundo cânones historiográficos de ampla aceitação.
Há outro sentido no qual a configuração dessa publicidade é
moderna, um sentido programático: as potencialidades nela
encarnadas para a realização do ideário político da modernidade. 25
Da interpretação dos princípios de universalidade contidos na
publicidade burguesa, tal e como caracterizada em registro
sociológico no trabalho de 1962, Habermas extrai os primórdios de
seu modelo, cuja reformulação cada vez mais abstrata ir-se-á
deslocando vagarosamente para o terreno da teoria social e da
reflexão filosófica, até atingir formulação mais ou menos
definitiva em 1981, quando da edição de sua teoria da ação
comunicativa. Seja dito de passagem, esse deslocamento não foi
realizado sem custos e, paradoxalmente, quanto mais universal
tornou-se o esforço intelectual do autor, menos mordazes
resultaram as críticas à realidade passíveis de serem engastadas
no seu programa de pesquisa. 26

25
Utiliza-se a noção programático e suas derivações correspondentes porque em
Habermas a modernidade preserva o caráter de projeto a ser realizado; todavia,
no pensamento do autor tal aposta deve prescindir de qualquer assunção
afirmativa de conteúdos normativos  quer dizer, sua proposta teórica é
“normativa” em um sentido muito peculiar. Em última análise, há um programa
defensável no cerne da modernidade, cujos pressupostos foram progressivamente
deslocados para o terreno das premissas lógicas de uma ontologia da linguagem;
o caráter formal de tais estruturas lógicas tornou possível, para o pensador
alemão, se desprender do espinhoso problema dos conteúdos. Não é fortuito que
os desdobramentos de seu programa de pesquisa, no campo das teorias das
democracia, tenha chegado a sua afamada concepção da soberania como
procedimento. Rawls assinalou corretamente o iniludível teor metafísico de uma
lógica como a habermasiana, que visa desvendar os pressupostos estruturais do
que existe, embora tal existir seja reconduzido à pragmática universal “[...]
dos seres humanos engajados na ação comunicativa”. (John Rawls, “Resposta
a...”, op. cit., 1.2.) Cf. Jürgen Habermas, “?Qué significa pragmática
universal?”, (1976) in Jürgen Habermas, Teoría de la acción comunicativa:
estudios y complementos previos, (1984) pp. 299-368; também, Jürgen Habermas,
“La soberanía popular como procedimiento  Un concepto normativo de lo
público”, (1989) in María Herrera (coord.), Jürgen Habermas..., op. cit., pp.
27-58.
26
Os custos desse percurso também foram frisados por John Keane, em La vida
pública y el capitalismo tardío  Hacia una teoría socialista de la democracia
(cf. pp. 214, 228-34); v. g.: “Sua valiosa defesa [de Habermas] das formas
alternativas de vida pública [...] é contradita pelo modo de argumentação
reconstrutiva, abstrata e formal que sustenta o projeto, especialmente na sua
40

Quais, então, os princípios programaticamente modernos


detectados naquela obra? No meio de uma argumentação intrincada e
plena de nuanças, é factível distinguir, grosso modo, o jogo de
três forças ou “vetores de universalização” presentes na
publicidade burguesa, que assim levaria no cerne a possibilidade
de sua própria superação. Primeiro, a inclusão nas práticas e
instituições dessa publicidade não foi regida por cláusulas de
hierarquia ou de prestígio social, senão por uma solidariedade
horizontal entre indivíduos contrapostos ao poder; mais: embora
fossem pessoas privadas no sentido de possuidoras de propriedade,
tais indivíduos reputavam-se representativos dos interesses da
sociedade e do homem em geral  da paridade “dos meramente
homens”, conforme expresso pela autocompreensão da época. 27 Nesse
sentido, não há na distinção operante entre homem e proprietário
qualquer quesito funcional; muito pelo contrário, trata-se de
diferença encoberta por uma identidade fictícia que alavancou
efetivamente processos de emancipação política, tornando viável
resgatar o princípio universal da igualdade no plano da
28
participação. Segundo, a substituição das hierarquias pelo
exercício do raciocínio e da concorrência de argumentos com
pretensões de validez  enquanto eixo na dinâmica das práticas e
instituições da publicidade , descansa no pressuposto de os
argumentos utilizados como fundamento serem passíveis de
compreensão por todo homem, sem mais exigências que o uso da
razão; isto é, os critérios de validez do discurso em público
prescindem do apelo à autoridade, do secreto ou do aprendizado de
saberes exclusivos mediante a inserção dos indivíduos em grupos
“vocacionados” para entender e/ou questionar os motivos e regras
do poder. Por essa via, estabelece-se vínculo forte entre a

fase mais recente.” (p. 232) Antoni Domènech defende opinião semelhante: “É
típico da posterior evolução de Jürgen Habermas carregar as tintas na ‘boa
intenção normativa’ em detrimento da exploração de seu possível encaminhamento
material.” Op. cit., p. 26.
27
Jürgen Habermas, Historia y crítica..., op. cit., p. 74.
28
Ibid., pp. 92-3.
41

capacidade crítica do homem comum e a razão como único parâmetro


universal de acesso irrestrito, cujos efeitos mediatos produziram
resultados libertários ao erguer o imperativo da transparência e
da responsabilidade  responsável e responsivo  diante das
29
decisões da esfera política.

Por fim, a opinião pública emanada do conjunto de


instituições sociais da publicidade, potencialmente abertas e
animadas pelo agir dialógico de seus integrantes, cristalizou sua
própria legitimidade como depositária da força democratizadora da
razão; mas foi muito além disso e imprimiu o princípio da
publicidade no funcionamento das instituições políticas,
conferindo-lhe o estatuto de condição sine qua non da democracia
 tal como mostrado, para Habermas, pelo caso paradigmático do
parlamentarismo britânico. 30 A partir do momento em que o
princípio da publicidade tornou-se irrenunciável para todo
arcabouço institucional democrático, a esfera política não mais
pôde se manter hermética ante os reclamos de uma opinião pública
ativa, e teve de desenvolver dispositivos sensíveis aos consensos
sociais emergentes  “the sense of the people”, “the common
voice”, “the general cry of the people”, “the public spirit”,
segundo as denominações utilizadas nos embates parlamentares da
Inglaterra do século XVIII. 31 Em suma, os princípios da inclusão
universal, do juízo baseado em pretensões de validez universais
 a razão versus o privilégio , e a adequação da esfera
política a esses princípios sob os influxos de uma crítica
pública socialmente impulsionada subjazem no fundo da publicidade
burguesa enquanto princípios programáticos modernos: “O interesse
de classe é a base da opinião pública. Durante aquela fase, ele
deve ter se confundido de tal forma, objetivamente, com o

29
Ibid., pp. 115-23
30
De certa forma, Koselleck representa um contra-exemplo nesse ponto, pois,
preocupado como a relação entre crítica e crise política, enfatizou o papel dos
casos francês e alemão.
31
Jürgen Habermas, Historia y crítica..., op. cit., p. 101.
42

interesse geral, que essa opinião pôde passar por opinião pública
e racional  possibilitada pelo raciocínio do público [...] À
base do progressivo domínio de uma classe sobre a outra, esse
domínio desenvolve, contudo, instituições políticas cujo sentido
objetivo admite a idéia de sua própria superação: veritas, non
auctoritas facit legem; a idéia da dissolução da dominação
naquela leve coação que apenas se impõe na evidência vinculante
de uma opinião pública.” 32 A passagem da frase “auctoritas facit
legem”, formulada por Thomas Hobbes, para sua subversão em
“veritas non auctoritas facit legem”  “a verdade, não a
autoridade, é que faz a lei” , ilustra de forma sintética a
introdução da razão identificada com a sociedade como única fonte
de legitimação do poder e de suas decisões, em face das formas
pré-burguesas de domínio público, nas quais a legitimidade da lei
era emanação direta da autoridade.

É bem conhecido que no mesmo movimento de reconstrução


conceitual da publicidade burguesa, do seu inédito potencial para
a autodeterminação dos rumos da vida social mediante a
articulação de fluxos comunicativos dirigidos a pressionar o
poder, Habermas diagnosticou o desacoplamento irreversível das
condições estruturais que lhe deram sustento. Nessa perspectiva,
o curso da história comprometia a força emancipadora da
publicidade moderna, pelo menos no quadro de seus pressupostos
liberais clássicos: um público raciocinante e esclarecido; um
âmbito privado ainda composto essencialmente por proprietários
iguais  o que, aliás, fez com que durante muito tempo a
iniciativa privada fosse sinônimo da iniciativa dos indivíduos
particulares e não do capital ; um Estado com severas
restrições quanto ao espaço legítimo de sua intervenção; a
inexistência de grandes corporações de classe, quer do lado dos
proprietários, quer do lado do trabalho; e o teor verdadeiramente

32
Ibid., p. 122.
43

representativo de uma opinião pública não mediatizada, cuja


incipiente base institucional não visava a mercantilizar os
33
veículos de transmissão como objetivo essencial. O exame desse
diagnóstico negativo, por via de regra julgado como herdeiro da
escola de Frankfurt, escapa aos propósitos destas páginas; em
todo caso, é fato que em sua trajetória intelectual o autor
enveredou no plano da macroteoria para a resolução desses e de
outros problemas, aprimorando a especificação conceitual do seu
modelo de publicidade.

Porém, convém assentar que as transformações estruturais


apontadas por Habermas, em e para além de sua obra, salientam o
caráter problemático do espaço público moderno, pois,
diferentemente da centralidade do mercado, da secularização, da
expansão da “soberania” legítima do interesse individual ou de
outras tendências de longa duração já consumadas na modernidade,
o espaço público, como de resto a própria democracia, dista de
ser um fato estável e garantido; antes, encontra-se constituído
por campo de tensões que a um tempo preserva e põe à prova seus
alcances na realização do ideário político da modernidade. 34
Cumpre explicitar que, neste momento, a idéia de espaço público
permanece indefinida e remete apenas à possibilidade de se pensar
de outra perspectiva o conjunto de problemas e processos
históricos englobados no modelo habermasiano da publicidade. É
emblemático que Habermas tenha enfatizado o caráter ambíguo ou
não garantido do espaço público quase três décadas depois do seu
trabalho sobre a publicidade burguesa, e mais de um lustro após
ter concluído sua teoria da ação comunicativa: “Não se sabe de
verdade se esta ‘sociedade cultural’ só reflete a ‘força do belo’
profanada com fins comerciais e de estratégia eleitoral, e com

33
Ibid., pp. 173-260.
34
Para uma análise elucidativa da forma como a filosofia política moderna tem
elaborado e cercado, mediante o esforço do conceito, os riscos da subordinação
do público sob o império do privado  particularmente no plano do exercício do
poder , cf. Marilena Chaui, “Público, privado, despotismo”, in Adauto Novaes
(org.), Ética, pp. 345-90, especificamente, pp. 357-81.
44

isso uma cultura de massas privatista e semanticamente rarefeita,


ou se a mesma poderia constituir uma caixa de ressonância para
uma publicidade revitalizada, na qual a semente das idéias de
1789 apenas estivesse por nascer.”35 Além do mais, tanto pela via
do processo histórico de privatização das atividades destinadas à
reprodução social, quanto pela via da emergência e consolidação
de uma instância de sujeitos privados  o mercado  como questão
de interesse para o conjunto da sociedade, essa publicidade
responde e é conformada, na sua origem, por exigências e
transformações amadurecidas no mundo privado. Trata-se de
exigências por certo conflitantes, pois de um lado aparece o
problema da integração social  particularmente em face da
desagregação das formas de vida comunitárias , enquanto do
outro se coloca a necessidade de garantir e regulamentar a
dinâmica econômica do mercado, precisamente responsável pelo
36
problema moderno da integração. Assim, se aceita a reconstrução
genética da publicidade, tal e como desenvolvida por Habermas, a
nota distintiva do estatuto do público no mundo moderno, de sua
ambigüidade, reside na forma de sua relação com o privado, a
qual, antes de ser uma deturpação, como postulado pelo modelo
clássico de Arendt, adquire caráter constitutivo. 37

4. A publicidade como fluxo comunicativo

35
Jürgen Habermas, “La soberanía popular como...”, op. cit., p. 36.
36
Cf. o extraordinário trabalho de Robert Castel, Las metamorfosis de la
cuestión social  Una crónica del salariado, (1995) pp. 29-69 e 158-267. Para
uma síntese do próprio autor quanto aos conceitos fundamentais que articulam a
análise desse livro, cf. Robert Castel, “De l’indigence à l’exclusion, la
désaffiliation  Précarité du travail et vulnérabilité relationnelle”, in
Jacques Danzelot (org.), Face à l’exclusion, pp. 137-68.
37
Seja dito de passagem, isso evidencia quão rudimentar tem sido o debate dos
últimos anos em torno da redefinição dos limites do Estado e do mercado, do
público e do privado, como se fosse uma espécie de equação matemática de soma
zero. Cf. Giuseppe Vacca, “Estado e mercado, público e privado”, pp. 151-64,
especialmente, pp. 160-2; Adrián Gurza Lavalle, “Por uma utopia...” op. cit.,
pp. 141-54.
45

Malgrado a recusa de Habermas a qualquer elucidação


afirmativa de pressupostos axiológicos  conforme o desafio de

um pensamento pós-metafísico ou de uma ética discursiva 38 , a


aposta por assegurar os efeitos democráticos, de autodeterminação
social e de racionalização do poder inscritos nas tensões
constitutivas da publicidade moderna, é sem dúvida condizente com
o fato de o autor conferir a seu pensamento o perfil de uma
colossal empreitada programática. Uma vez explicitado em grandes
traços o núcleo das questões envolvidas no surgimento e
consolidação da publicidade moderna, assim como suas implicações
para um programa de reflexão sobre os problemas e reptos
contemporâneos da modernidade, falta avançar mais um passo:
estabelecer os acréscimos fundamentais que permitiram refinar o
modelo habermasiano da publicidade, tal e como hoje é utilizado
na literatura por uma gama expressiva de autores. A atenção será
focada apenas nos aportes mais relevantes, pois não cabe aqui
acompanhar, sequer sumariamente, o percurso de mais de quarenta
anos de intensa produção intelectual que, desde 1958, com a
edição de Lectures, deixou até o momento saldo superior a trinta
livros. É possível distinguir dois grandes eixos de trabalho
teórico, a partir dos quais a publicidade seria investida de
atributos conceituais mais ou menos definitivos: o vínculo
conflitante entre a sociedade civil e o Estado e a qualificação
da lógica inerente a ambos os termos desse binômio.

Embora o princípio de publicidade tenha impregnado o


funcionamento das instituições políticas no contexto dos regimes
democráticos, subsiste o problema da efetiva realização desse
princípio, tendo em vista evidências históricas abundantes quanto
à perseverança do hermetismo na esfera política e, ainda mais,
quanto ao alastramento de dinâmicas de manipulação da opinião
pública após o advento da “revolução do número” ou da democracia

38
Cf. Jürgen Habermas, “Los usos pragmáticos, éticos y morales de la razón
práctica”, (1988) in María Herrera (coord.), Jürgen Habermas..., op. cit., pp.
59-78.
46

de massas. A elaboração da teoria da legitimidade, a propósito do


exame das crises sistêmicas no capitalismo tardio, aparece em
Habermas como resposta a equacionar a impossibilidade da clausura
total do poder; impossibilidade derivada da diluição da imagem
liberal do Estado como instância imparcial, em virtude de sua
crescente intervenção nos processos de reprodução da sociedade. 39
No marco dessa proposta, a legitimidade não se reduz aos motivos
psicológicos ou sociológicos para acreditar nas razões do poder
 e aqui a referência explícita é à influência das formulações
clássicas de Max Weber ;40 na verdade, ela condensaria os
limites da autonomia do Estado em seu vínculo contraditório,
41
porém constitutivo, com a sociedade. Nas democracias, e desde
que nesse contexto, pois o programa de pesquisa do autor não se
preocupa com “casos exceptivos”, o poder precisa justificar seu
agir, expor e ponderar publicamente os motivos de suas decisões,
sempre passíveis de contestação quanto a suas pretensões de
validez e à luz dos elementos probatórios disponíveis para a
opinião pública. Destarte, apesar de o princípio de publicidade
na esfera política estar sujeito a inúmeros constrangimentos que
o tornam vulnerável, ele se encontra atrelado de forma
indissolúvel à dinâmica dos reclamos sociais veiculados por
intermédio das instituições autônomas da opinião pública  as
quais, por sua vez, e devido a seu enraizamento na vida social,
constituem um âmbito indispensável de processamento da
42
legitimidade para o poder. É claro que as instituições autônomas

39
Jürgen Habermas, A crise de legitimação no capitalismo tardio, (1973) pp.
34-8, 50-2.
40
Ibid., pp. 121-40. A principal crítica de Habermas à concepção weberiana da
legitimidade aponta para os obstáculos incontornáveis que ela erige para
resolver de forma satisfatória a relação entre verdade e legitimidade.
41
O caráter constitutivo desse vínculo suscitou em seu momento sérias críticas
à visão instrumental do Estado e à redução da questão da legitimidade ao
caráter presuntivamente formal da democracia burguesa; é claro que o
destinatário de tais críticas era uma parte do pensamento marxista e sua
“estratégia conceitual dogmática”; cf. ibid., p. 78.
42
“À proposição que os valores-metas dos sistemas sociais variam
historicamente, precisa ser acrescentada a proposição que a variação em
valores-metas é limitada pela lógica do desenvolvimento das estruturas das
visões do mundo; uma lógica que não está à disposição dos imperativos do
47

da publicidade arraigadas no mundo social são passíveis de coação


mediante expedientes diversos, mas não podem ser desmontadas nem
banidas sem quebrantar os pressupostos de todo Estado de direito
democrático. O desfecho de tais formulações parece evidente: a
opinião pública pode ser artificialmente fabricada, e, sem
dúvida, as verdadeiras causas que animam as decisões políticas
podem ser-lhe escamoteadas de modo a manipular sua orientação;
entretanto, em meio a esses riscos e à sua própria ambigüidade,
ela mantém seu potencial democratizador graças ao fato de que o
processo de legitimação das decisões políticas não pode ocorrer
totalmente à margem das práticas e espaços da publicidade. Note-
se a mudança conceitual: trata-se agora de uma publicidade
depurada de suas feições burguesas, consagrada como instância
geral de intermediação entre o Estado e a única fonte
insuprimível de legitimação nos regimes democráticos, ou seja, a
sociedade.

No que diz respeito ao segundo eixo, a separação entre o


social e o político  entre o mundo autônomo da sociedade e o
Estado com suas regras internas de poder  seria levada até às
últimas conseqüências na teoria da ação comunicativa,
particularmente na idéia de sociedade em dois níveis. O primeiro
termo do binômio, a sociedade, aparece radicalmente
ressignificada mediante sua definição conceitual como mundo da
vida, em cuja lógica prima a produção simbólica de sentidos não
subordinada a qualquer determinação heterônoma aos agentes
envolvidos na interação.43 No mundo da vida, trama inter-subjetiva
de todos os sentidos herdados e dos novos sentidos possíveis ou,

poder.” Ibid., p. 25. Compare-se tal asseveração com a seguinte, formulada


vinte anos depois: “O desenvolvimento de tais estruturas do mundo da vida pode,
certamente, ser estimulado, mas escapa em boa medida à regulamentação jurídica,
à intervenção administrativa ou à regulação política. O sentido é um recurso
escasso que não pode ser regenerado ou incrementado voluntariamente [...].”
Jürgen Habermas, Facticidad y validez  Sobre el derecho y el Estado
democrático de derecho en términos de teoría del discurso, (1992) p.439.
43
Jürgen Habermas, The theory of communicative action II  Lifeworld and
system: a critique of funcionalist reason, (1981) pp. 113-52.
48

para dizê-lo com Habermas, um “[...] horizonte no interior do


qual ações comunicativas estão ‘sempre prontas’ e moventes
44
[...]”, os indivíduos interagem não apenas na interpretação e
reapropriação do preexistente  costumes e cultura , como
também na produção de sentidos que escapam ao controle
administrativo e às necessidades de auto-regeneração do poder. Já
a esfera política, ganha novos contornos como universo sistêmico
alheio à dinâmica das mediações lingüísticas imperantes no mundo
social. De fato, o nível sistêmico expande-se analiticamente para
abarcar a lógica funcional da política e da economia  não mais
representativa do empenho material mais ou menos igualitário de
pessoas privadas ; sendo que tal cisão com o mundo da vida
assume caráter irreversível, pois responde ao incremento da
complexidade na evolução social. A realidade sistêmica é
organizada, então, pelo automatismo de imperativos funcionais
refratários à linguagem moral e ao controle comunicativo da
sociedade, o que, em certo sentido, eqüivale a dizer que a
atividade da economia e da política encontra-se subordinada à
lógica do poder e do dinheiro enquanto dispositivos de
coordenação  media  cifrados de modo “deslingüistificado”. 45

A oposição entre o nível do mundo da vida e o sistêmico,


aqui bosquejada de forma rápida, traz conseqüências relevantes
para o modelo habermasiano da publicidade: aprimora sensivelmente
o achado histórico e sociológico de uma sociabilidade mediada por
fluxos autônomos de comunicação, capazes de produzir efeitos de
racionalização do poder; mas, sobretudo, eleva esse achado ao
plano de uma teoria geral da evolução social e da ação social,
despindo-o de todo vestígio particularista oriundo de sua gênese
burguesa. 46 Na realidade, o resultado é a postulação de um modelo

44
Ibid., p. 119.
45
Ibid., pp. 153-97.
46
Para a apresentação dessa teoria geral, cf. Jürgen Habermas, The theory of
communicative action I  Reason and rationalization of society, (1981) pp.
237-337.
49

de publicidade passível de ser analiticamente mobilizado na


reflexão programática acerca das possibilidades contemporâneas de
realização dos ideais modernos. A publicidade já desempenhava
funções de espaço de mediação  no interior da sociedade e entre
ela e o poder , todavia, seu papel conquistou salvaguarda
inabalável como “caixa de ressonância” do mundo da vida; ainda
mais, ela não mais pode ser compreendida como conjunto de
instituições ancoradas no tecido social, pois agora se constitui
na intangível articulação de fluxos comunicativos, como rede ou
como espaço abstrato materializado em cada momento e lugar onde a
formação de opinião emerge do mundo da vida e vem à luz pública. 47
A opinião pública também é reforçada no seu potencial
democratizador, não porque seus conteúdos e posições sejam
definitivamente garantidos, senão porque, apesar dos alcances dos
processos de manipulação e dos estímulos artificiais, ela
preserva liames constitutivos com o mundo da vida. Outra operação
analítica na redefinição do modelo merece destaque. Por seus
objetivos, modo de proceder, autoconcepção e fonte de suas
demandas, o protagonismo político da opinião pública era, stricto
sensu, pré-político: nunca aspirou a se entronizar como ator
central no exercício das funções políticas, limitando-se à
prática de um assédio constante sobre o poder  que assim
recebia pressões racionalizadoras “de fora” ; a opinião pública
tampouco cristalizou autopercepções como poder alternativo,
muito pelo contrário, animada por uma lógica liberal apresentou-
se como encarnação da crítica racional para o aprimoramento das
instituições; por último, a força da opinião pública visava a
esfera política, mas seus reclamos tinham raízes fundas que
atravessavam o âmbito do social e suas instituições de convívio e
projeção pública, para se encravar nas experiências de vida e
preocupações emergentes da privacidade familiar.48 Assim, a índole

47
Cf. Jürgen Habermas, Facticidad y validez..., op. cit., pp. 439-46.
48
As três considerações expostas acerca do caráter pré-político da opinião
pública foram nitidamente expressas em diversas passagens da obra de 1962; v.
g., com respeito às duas primeiras considerações: “Conforme a suas próprias
50

pré-política da opinião pública já era condição a garantir sua


missão política; entretanto, essa condição é agora investida de
notável solidez, visto que o mundo da vida sintetiza não apenas o
universo das experiências de vida, dos processos de socialização
e de formação da personalidade dos indivíduos, também, e
sobretudo, a base comum graças à qual e somente por intermediação
da qual se torna possível a reapropriação e produção de sentidos.

Para que tais inovações conceituais fossem possíveis,


tiveram de convergir distintas linhas de trabalho no programa de
pesquisa de Habermas, em áreas tão diversas como a epistemologia,
a ética, as teorias da linguagem e da ação e evolução sociais e,
mais recentemente, as teorias da democracia e do direito. No
quadro mais restrito dos propósitos desta análise, é cabível
afirmar que a chave do revigoramento da publicidade reside na
“arquitetura dual da sociedade” e na relação necessária entre
ambos os níveis. De um lado, o mundo da vida sempre exposto às
investidas colonizadoras provindas dos sistemas, mas por
definição salvo, já que a espontaneidade social e a infindável
produção de sentidos nunca serão suprimidas ou reguladas por
completo; do outro, a realidade sistêmica ensimesmada, porém
incapaz de produzir sua própria legitimidade e, portanto, de se
clausurar diante dos reclamos que, emergindo do mundo da vida,
alcançam consenso social pela via da publicidade. Em suma, o
modelo habermasiano da publicidade como “[...] espaço social
gerado na ação comunicativa [...]” 49 reconfigura-se, no essencial,
no quadro das definições teóricas próprias à legitimidade, ao
mundo da vida e à realidade sistêmica  as duas últimas,
diretamente vinculadas à teoria da ação comunicativa. Na
trajetória de tal especificação conceitual ocorreu um

intenções, a opinião pública não quer ser nem limite do poder nem o poder mesmo,
e ainda menos fonte de todo poder. Dentro de seu próprio contexto, é antes
obrigada a modificar o caráter do poder executivo, da própria dominação.”
Jürgen Habermas, Historia y crítica..., op cit. pp., 117-8. Para a terceira
consideração, cf. ibid., pp. 80-8
49
Jürgen Habermas, Facticidade y validez..., op. cit., p. 441.
51

deslocamento progressivo da publicidade como fenômeno histórico


abrangente, que envolveu instituições políticas e de comunicação,
associações civis e a vida pública de uma pujante camada de
livres proprietários, para a publicidade como constructo abstrato
e altamente estilizado, cuja nota distintiva é tão-só a
confluência de fluxos comunicativos oriundos do mundo da vida.
Sob suas feições mais abstratas, de rede tecida ao sabor da
espontaneidade social e da emergência de consensos, a publicidade
condensa seus significados como virtualidade comunicativa
indeterminada, embora sujeita aos limites do mundo da vida quanto
à capacidade de criação e reapropriação de sentidos. Nesse
percurso, dimensões problemáticas do espaço público moderno como
o perfil das instituições políticas e do Estado ou as tendências
dos meios de comunicação, pesadamente presentes no diagnóstico de
1962, permanecem à margem dos novos contornos do conceito  sem
dúvida mais universal e preciso, embora sociologicamente
empobrecido. Cumpre ressalvar que o fato de abstrair essas
dimensões na definição da publicidade não implicou sua exclusão
do programa de pesquisa de Habermas, como ilustrado pelo
tratamento mais acurado do direito e do Estado nos trabalhos de
finais dos anos oitenta e da primeira metade dos noventa.

5. A multiplicação dos problemas: consensos e


dissensos

Sem sombra de dúvida, a constelação de concepções do espaço


público hoje dominante  e convém frisar hoje, isto é, após duas
décadas de críticas e reestruturação do Estado de bem-estar 
assimilou muitos dos elementos do modelo habermasiano da
publicidade; quer em sintonia com o programa de pesquisa do
pensador alemão, quer em franca discrepância com alguns de seus
pressupostos fundamentais. Nessa constelação são mais ou menos
constantes os seguintes traços na definição do espaço público:
seu papel como instância de mediação entre a sociedade e o
52

Estado, mas sempre representando os interesses da primeira diante


do segundo; seu potencial democratizador; sua função como âmbito
privilegiado para atender ao problema da integração social, ora
na produção de sentidos vinculatórios, ora na resolução solidária
de necessidades sociais; sua edificação mediante o uso de
recursos comunicativos universalmente disponíveis  o domínio da
língua e das regras do diálogo ; seu desempenho como diapasão
que amplifica processos legítimos de formação de vontade política
sedimentados no seio da sociedade; e, por fim, sua reconstrução
contemporânea a partir das iniciativas de consociação da nova
sociedade civil, nitidamente diferenciadas de outras formas de
organização de interesses ditos particularistas  próprios das
instituições políticas e econômicas. Neste elenco torna-se
patente que nos últimos anos ocorreu a combinação de duas
tendências na percepção do espaço público, a saber, tanto a troca
de polaridade no uso axiológico da dicotomia público/privado,
outorgando primazia ao segundo pólo  nos termos bem conhecidos
do esquema analítico de Bobbio , quanto a transferência do
público para o terreno da sociedade no binômio Estado/sociedade
civil. 50 A multiplicação de denominações para balizar o novo papel
do pólo social é sem dúvida sintomática: organizações da
sociedade civil (OSCs), organizações não-governamentais (ONGs),
terceiro setor, organizações da sociedade civil de interesse
público (OSCIPs), organizações públicas não-estatais (OPNEs) e
nova sociedade civil. Curiosamente, o segundo deslocamento parece
ser a um tempo conseqüência lógica do primeiro e reação contra
suas implicações: a valorização do privado inerente à concepção
dos programas de ajuste estrutural implementados pelo mundo
afora, nas últimas duas décadas, levou a invocar as “energias” e
“responsabilidade” da sociedade diante dos limites financeiros do

50
Bobbio gosta de se utilizar das dicotomias como expediente analítico para
mapear e ordenar as discussões mais espinhosas da filosofia política; cada
dicotomia em sentido descritivo vem acompanhada de usos axiológicos em sentido
prescritivo. Cf. Norberto Bobbio, Estado, gobierno y sociedad  Por una teoría
general de la política, (1985) pp. 11-38, especialmente pp. 22-30.
53

Estado  de sua “obsolescência” até, como agente do


desenvolvimento ; mas de forma simultânea desencadeou a
proliferação de estratégias conceituais defensivas de
revalorização do público a partir de sua reapropriação por parte
da sociedade civil.

Na larga presença dos traços acima arrolados no debate


contemporâneo, parecem coincidir a progressiva difusão e
crescente influência da obra de Habermas e o desafio de cimentar
novos referentes de pensamento para equacionar os problemas
levantados pelas profundas transformações ocorridas no último
quartel do século XX. Não obstante, quando olhados da perspectiva
de outras grandes análises do espaço público, tais traços se
revelam mais controversos do que pareceria razoável esperar a
partir de seu caráter mais ou menos consensual na literatura.
Para Arendt, o espaço público foi e deve ser diretamente
político, âmbito capaz de elaborar o comum porque liberto da
necessidade; valioso em si pois realiza o modo mais sublime da
condição humana. Por isso, a intromissão do social com suas
demandas materiais, próprias da esfera doméstica  do oikos ou
do domus  acarreta a diluição perversa dos lindes entre o
político e o privado: “A emergência da sociedade  o auge da
administração doméstica, suas atividades, problemas e planos
organizativos  do escuro interior do lar à luz da esfera
pública não apenas apagou a antiga linha fronteiriça entre o
privado e o político, mas também mudou quase além do reconhecível
o significado das duas palavras e sua significação para a vida do
indivíduo e do cidadão.” 51 Mas não se requer um recuo às
conseqüências críticas trazidas à tona pelo modelo da antigüidade
clássica para encontrar caracterizações sofisticadas do espaço

51
Hannah Arendt, op. cit., p. 49. Também: “Desde o momento do auge da
sociedade, da admissão da família e das atividades próprias à organização
doméstica na esfera pública, uma das características notáveis da nova esfera tem
sido uma irreversível tendência a crescer, a devorar as mais antigas esferas do
político e do privado, assim como a da intimidade, mais recentemente
estabelecida.” (ibid. p. 56)
54

público a apontar em direções de franca discrepância com respeito


às posturas mais difundidas.

No extremo oposto também há réplicas contundentes, ou seja,


no terreno de uma proposta teórica como a de Luhmann, que se
impôs a espinhosa tarefa de redefinir todos os grandes conceitos
da tradição do pensamento ocidental, em termos da teoria de
sistemas, para dar conta do exponencial incremento da
complexidade nas sociedades contemporâneas. As divergências de
Luhmann são tão fundas e em tantos aspectos, em virtude de sua
radical mudança de registro, que não seria possível bosquejar seu
sentido geral sequer de forma grosseira em comentário marginal
como este. 52 Ainda assim, cabe salientar um ponto no qual
transparece claramente a crítica à concepção habermasiana de
publicidade. Como o processo de diferenciação funcional na
evolução da sociedade ocorre mediante o surgimento de sistemas,
cuja preservação precisa de dispositivos auto-referenciais diante
da ameaça representada pelo excesso de possibilidades do
ambiente, as sociedades complexas não mais podem ser
compreendidas como se estivessem estruturadas em torno a um
centro  leia-se: o sistema político no papel a ele atribuído
pelo pensamento moderno. 53 Nas sociedades sem centro não existe
qualquer sistema capaz de conferir unidade de sentido ou de ação
à própria sociedade, antes, cada sistema é especializado na
produção de um tipo específico de sentido que responde apenas às
exigências de auto-reprodução e diferenciação do próprio sistema.
Assim, além de o sistema político ser desbancado de seu lugar
privilegiado como instância de realização de uma “vontade social”
racionalizadora  para Luhmann inexistente , a opinião pública

52
Para uma apresentação do pensamento de Luhmann, pode-se consultar com
proveito a interessante análise de Javier Torres Nafarrate, “Galáxias de
comunicação  O legado sociológico de Niklas Luhmann”, pp. 144-61. Uma análise
particularmente elucidativa para o assunto que aqui interessa, isto é, focada
na concepção da opinião pública e do público no autor, foi desenvolvida por
Nora Rabotnikof, em El espacio público..., op. cit., pp. 216-67.
53
Cf. Niklas Luhmann, Sistemas sociales  Lineamientos para una teoría
general, (1984) pp. 405-34.
55

torna-se dispositivo interno ou subsistema do sistema político


para processar sua legitimidade.

Convém precisar a formulação anterior, e para fazê-lo no


estilo taxativo do sociólogo alemão bastaria afirmar que a única
legitimidade possível para qualquer sistema é a autolegitimação:
“[...] legitimação sob as condições modernas apenas pode ser
autolegitimação [...] cada ação em um sistema encontra sua
legitimidade no fato de ter se tornado possível mediante outras
ações do mesmo sistema. Os sistemas funcionais somente podem
legitimar a si mesmos. Isto é, nenhum sistema pode legitimar
outro [§...] as falsas descrições são irritantes quanto à vã
busca de legitimação de fora, por cima, mediante valores básicos
ou mediante consensos baseados em discussões ordenadas
racionalmente.” 54 Embora não sem certa deselegância, a alusão ao
pensamento de Habermas é bastante explícita no que diz respeito à
“vã busca” de uma fonte externa geral de legitimidade  a
opinião pública atrelada ao potencial de uma publicidade não
subordinável aos ditames do poder , capaz de erigir a “vontade
social” como fundamento processual da autodeterminação da própria
sociedade. Para Luhmann, semelhantes estratégias conceituais
ainda estão vazadas em reminiscências das auto-descrições
iluministas acerca da organização da “sociedade”, cujos
pressupostos não mais coincidiriam com o estado atual da
complexidade social. De fato, o incremento evolutivo dessa
complexidade teria esvaziado a representação unitária da
sociedade, outrora corporificada no soberano, como atestado pelo
caráter tipicamente moderno do tema da legitimação na filosofia
política ocidental. A progressiva diferenciação social caminha,
assim, a par da especialização funcional dos sistemas em um
processo de diversificação, descentramento e multiplicação de

54
Niklas Luhmann, “The representation of society within society”, (1987) in
Niklas Luhmann, Political theory in the welfare state, pp. 18-9. A obra já foi
referida aqui na sua versão em castelhano, mas a tradução para o inglês
incorporou esse artigo que não constava da edição original.
56

sentidos funcionais específicos, por isso sempre limitados e


auto-referenciais: o direito não opera conforme critérios
estéticos, nem a ciência segundo normas jurídicas ou a política
em apego a exigências morais; e, em cada caso, os critérios para
avaliar a legitimidade obedecem aos códigos internos do
respectivos sistemas  legalidade/ilegalidade, verdadeiro/não
verdadeiro, governo/oposição. Particularmente no caso do sistema
político, a legitimidade das decisões vinculatórias nele
produzidas é gerada interiorizando a “sociedade” como opinião
pública que sinaliza os temas passíveis de decisão, mas nunca o
sentido das decisões, cujo resultado decorre das possibilidades
condicionadas pelo código binário governo/oposição.55 Por esse
caminho, a opinião pública não é expressão da “sociedade” e
tampouco se vincula às decisões políticas como pressão
racionalizadora, embora funcione como dispositivo de auto-
sensibilização do sistema político para balizar o que é ou não
possível em cada momento.

No terreno da reconstrução histórica, mais favorável ao


modelo original da publicidade em Habermas, diagnósticos como os
de Koselleck ou Sennett são de certa forma mais surpreendentes,
pois as diferenças não decorrem do desenvolvimento ou da adesão a
grandes modelos teóricos, cujos pressupostos tornariam
incompatíveis os resultados das análises, senão da leitura das
mesmas tendências gerais  presentes na configuração da
publicidade burguesa  a partir de ênfases em outros aspectos e
implicações. Em Koselleck, o fulcro da projeção das idéias
ilustradas como aríete crítico contra as muralhas do poder tem de
ser buscado além da consolidação da autonomia material e
ideológica da burguesia ascendente, pois, embora importante, suas
características derivam de um fator de índole política: o

55
Cf. Giancarlo Corsi, Elena Esposito e Claudio Baraldi, Glosario sobre la
teoría social de Niklas Luhmann, (1996) pp. 128-31.
57

absolutismo. 56 A despeito da crítica das Luzes, “desmemoriada”


quanto à dilaceração social produzida pelos antagonismos da fé, o
Estado absolutista representou extraordinário avanço na
racionalização e secularização da política, particularmente se
inserido no contexto do século XVII como solução pacificadora das
guerras civis religiosas; entretanto, o processo de concentração
do poder na figura do Príncipe acarretou a clausura da política e
a entronização do Soberano como factótum inapelável, incumbido de
tudo o que não fosse privado  inclusive, dentro da economia, do
empreendimento mercantilista.57 A doutrina da razão de Estado foi
a cristalização antonomástica da nova racionalidade hermética da
política, cujos verdadeiros motivos históricos poucos teriam
58
compreendidos e ninguém de forma tão lúcida como Hobbes. Sob a
égide do absolutismo e de seu desinteresse em regular a vida
interior dos súditos, sua moralidade, conformou-se a nova elite
da sociedade burguesa confinada ao mundo do privado; foi a partir
dessa posição e como contrapartida a sua exclusão da política que
essa elite empreendeu a crítica do poder como prática do secreto,
do livre-arbítrio moral e de uma pedagogia das virtudes humanas

56
Reinhart Koselleck, Le règne de la critique, (1959) pp. 13-9.
57
“Apoiada na magistratura e nos militares, a monarquia construiu acima das
religiões um campo de ação racional determinado pelo Estado e pela política. Do
ponto de vista social, as monarquias permaneceram atreladas às classes
tradicionais e se esforçaram em conservá-las. Mas do ponto de vista político,
as monarquias procuraram eliminar ou neutralizar todas as instituições
autônomas. Como sistema econômico, o mercantilismo estava também às ordens da
planificação da política e do Estado. Foi dentro desse mesmo espírito que as
questões concernentes à religião e à Igreja foram tratadas em função de sua
utilidade política para o Estado, seja no quadro de uma Igreja de Estado, seja
no de uma tolerância oportuna. [§] Esse sistema encontrou expressão teórica na
razão de Estado. Constituiu-se um espaço onde a política pôde se desenvolver
fora de qualquer consideração moral.” Ibid., p. 14.
58
Na interpretação de Koselleck, o pensamento de Hobbes é eminentemente
histórico porque preocupado com a fundamentação científica de repostas
orientadas para a ação: conjurar a guerra civil. O tratamento filosófico das
principais características políticas do século XVII e  segundo parece insinuar
Koselleck  a irrupção da guerra em 1789 evidenciam a pungência e o vigor dos
diagnósticos do filósofo inglês. Cf. ibid., pp. 19-33, 157-60. Para uma análise
dedicada na íntegra ao papel fundamental das guerras religiosas no pensamento
de Hobbes, em interpretação consoante com a de Koselleck, cf. Renato Janine
Ribeiro, “Thomas Hobbes o la paz contra el clero”, in Atilio A. Boron (comp.),
La filosofía política moderna  de Hobbes a Marx, pp. 15-40.
58

 como mostrado exemplarmente pelas lojas maçônicas e pela


59
República das letras.

Com efeito, o absolutismo e a auto-afirmação conspiradora


da sociedade burguesa complementaram-se de modo a cindir a
política da moral: a primeira como mundo exterior, exercício da
tomada de decisões, arcano das razões do poder, âmbito da
intervenção e do cálculo das conseqüências práticas e, sobretudo,
da responsabilidade isenta de culpa; a segunda como mundo
interior, exercício da crítica, lugar da Razão identificada com a
sociedade  mas também sujeita ao segredo enquanto princípio de
identidade e de sobrevivência , como espaço de elucidação do
justo e sobretudo do imperativo moral exonerado de toda
60
responsabilidade. Destarte, alicerçado na imanência virtuosa de
uma moral concebida como apolítica, na Razão que não obedece
senão a si mesma  sendo superior à política porque externa a
ela , o reino iluminista da crítica erigiu-se como jurisdição
autônoma e auto-suficiente para julgar o mundo e para desmascarar
a natureza tirânica do poder. Porém, tratar-se-ia de uma razão
hipócrita, cega aos fundamentos históricos do dualismo que
sustenta sua suposta apoliticidade e, portanto, incapaz de se
assumir de maneira explícita como programa com pretensões
políticas e de formular as conseqüências reais de seus objetivos,
a saber, a conexão entre crítica e crise política e, é claro, a

59
As duas formações sociais privilegiadas por Koselleck como tipos altamente
representativos da incursão dissimulada das novas elites no espaço público
ilustram bem suas preocupações intelectuais: as lojas maçônicas subtraíram-se
da luz pública e fizeram do secreto um expediente para “[...] unir o mundo
burguês de uma forma original na sociedade” (p. 62); e a República das letras
ocultou suas feições políticas por trás da função pedagógica e de elevação
moral da arte  especialmente do teatro  “[...] a arte entra em cena como
antípoda da ordem estabelecida” (p. 84). Reinhart Koselleck, op. cit., pp. 55-
82 (para as lojas maçônicas) e 83-105 (para a República das letras).
60
Para o papel do segredo na conformação de uma identidade social, cf. ibid.,
pp. 62-70; para as conseqüências da cisão da política e da moral, cf. pp. 21,
32-3, 45-6, 60-1, 69, 84-7. É curioso constatar que, em outro contexto
histórico, um liberal como Karl Popper também chama a atenção para o caráter
irresponsável da opinião pública: “Por ser anônima, a opinião pública é uma
modalidade irresponsável de poder  portanto, especialmente perigosa do ponto
de vista liberal.” Conjeturas e refutações, p. 381.
59

ameaça da guerra civil. 61 O hiato iluminista entre moral e


política será preenchido no plano irresponsável da filosofia da
história, em cujos sistemas especulativos a violência e a luta
pelo poder aparecem naturalizados como devir do progresso. 62 As
implicações da análise de Koselleck são contundentes: a opinião
pública burguesa, convicta da superioridade de suas virtudes,
constitui um espaço público moral que não é pré-político, como
sustentado por Habermas, mas ilusoriamente apolítico e, em
definitivo, politicamente irresponsável e impedido de realizar
qualquer integração social abrangente. Semelhante espaço público
não pode funcionar como intermediação entre a sociedade e o
Estado, pois, ao anatemizar o próprio Estado como princípio
negativo de identidade, a lógica inerente às decisões políticas é
obliterada e dissolvida na autonomia da crítica social. Diga-se
de passagem que a autoconsciência da sociedade civil burguesa
como factótum moral externo à política, e o uso do espaço público
como meio para a realização de tamanha investidura, tal e como
reconstruídos pelo autor, sugerem instigantes linhas de reflexão
para se pensar de forma menos conjuntural em alguns dos traços
característicos do que tem se convencionado em chamar de “nova
sociedade civil”. 63

Em mais de um sentido, há paralelismos entre o quadro geral


que anima o diagnóstico de Koselleck e as tendências culturais de
longa duração prolixamente documentadas no estudo de Sennett. A
sociedade burguesa trouxe consigo a inversão entre o público e o
privado, tal e como era vigente até o século XVII, antes da
decadência do Ancien Régime: à nítida separação entre ambos os

61
Para a hipocrisia como característica da Ilustração, cf. Reinhart Koselleck,
op. cit., pp. 100-5.
62
Ibid., 107-56.
63
A analogia também é assinalada por Nora Rabotnikof, cf. El espacio
público..., op. cit., p. 98. Não é fortuito que Jean Cohen e Andrew Arato,
autores centrais na redescoberta da sociedade civil, caracterizem a
interpretação de Koselleck como posicionada do ponto de vista do Estado, além
de insensível às conquistas morais da esfera pública liberal e de seu ulterior
processo de institucionalização. Cf. Civil Society and political theory, (1992)
pp. 206-10.
60

âmbitos, correspondendo ao segundo termo a encarnação do bem


comum no corpo político, sobreveio a progressiva expansão de uma
sociabilidade centrada no indivíduo ou, com maior precisão, no eu
como única instância legítima de generalização de qualquer juízo
acerca das questões relativas ao conjunto da sociedade. 64
Diferentemente de Koselleck, cuja leitura da privatização do
espaço público descansa no desenvolvimento e ascensão da moral
privada como oposta ao mundo amoral da política, o alentado
trabalho de Sennett foca a atenção na gênese do fenômeno da
privatização ao longo do século XVIII e, sobretudo, nos seus
desdobramentos no percurso dos séculos XIX e XX  isso, a partir
de arcabouço analítico inscrito no campo da psicologia social. O
longo processo de privatização é equacionado enquanto história da
sedimentação de uma identidade individual narcisista, de sua
correspondente forma de sociabilidade e das conseqüências
deletérias de ambas para a configuração de uma vida pública
civilizada.

Aferir com rigor historiográfico as mudanças na


sociabilidade, e ainda mais na identidade, é empreitada complexa
e de difícil resolução metodológica; para tanto, o autor recorre
a uma teoria da expressão em público, nutrida pelo vínculo
analógico entre o teatro e a vida pública nas grandes urbes.65 A
idéia de os homens agirem como atores quando confrontados ao
convívio social e ao cenário da rua, por definição repleto de
estranhos no contexto da emergência de uma cultura metropolitana,

64
Richard Sennett, El declive del hombre público, (1977) pp. 15-35.
65
Ibid., pp. 41-58. Seja dito de passagem, a abordagem teórica do autor e a
conseqüente opção metodológica, centrada em uma heurística da dinâmica
subjacente à aparição em público  dinâmica condensada, por exemplo, na
vestimenta ou nas regras de urbanidade , parecem ter sido entendidas de forma
apressada por Habermas, que lamenta o fato de Sennett ter se deixado guiar por
um “falso modelo”, estudando a publicidade burguesa conforme as regras da
publicidade representativa, que não mais corresponderia à lógica moderna da
nova publicidade. Cf. Jürgen Habermas, “Prefacio a la nueva...”, op. cit., p.
7. Na realidade, aquilo que é pano de fundo em Habermas, a saber, a emergência
de uma identidade social burguesa como condição de possibilidade da publicidade
moderna, é trazido ao primeiro plano por Sennett e esquadrinhado em termos
psicológicos. Cf. Adrián Gurza Lavalle, Estado, sociedad..., op. cit., pp. 156-
71.
61

possui raízes fundas na tradição do theatrum mundi; 66 entretanto,


no trabalho em questão é mais do que uma analogia “fraca”,
conferindo densidade conceitual à convenção como condição sine
qua non da vida pública, isto é, enquanto expediente que
viabiliza a apresentação de conteúdos compreensíveis para todos e
por todos comunicáveis  independentemente das qualidades e
sentimentos de cada um. O papel nevrálgico da convenção condensa
para a autêntica vida pública aquilo que Denis Diderot tinha
analisado como o paradoxo da atuação: a verossimilitude e
vitalidade dramática dos papéis representados em cena dependiam
não de qualquer desempenho emotivamente sincero, carregado de
sentimentos, senão da falsidade, da capacidade de fingimento
histriônico subjetivamente esvaziado, do dever “comportar-se
inumanamente” na busca da forma adequada passível de ser repetida
inúmeras vezes. 67 A autenticidade da vida pública, sua civilidade,
também reside no artifício da convenção e de sua efetividade para
garantir a dinâmica da convivência social e do interesse coletivo
para além das peculiaridades, origem e razões subjetivas dos
indivíduos. 68

Em última análise, a tensão analítica da obra, estribada em


minuciosa reconstrução dos hábitos sociais e plena de nuanças e
de erudição, é articulada pela transformação plurissecular da
vida pública em três grandes momentos. Esses momentos transitam
do objetivo ao subjetivo; das razões impessoais ao império dos
motivos psicológicos; da unidade complementar entre o público e o

66
Cf. Richard Sennett, op. cit., pp. 47-53, 137-55, 189-221 e 387-90.
67
Ibid., pp. 141-6.
68
Para Sennett, a civilidade é a nota distintiva da autêntica vida pública,
entendendo por tal, em moldes psicológicos: “[...] a atividade que protege as
pessoas entre si, permitindo-lhes, no entanto, desfrutar a companhia de
outrem. Levar uma máscara constitui a essência da civilidade. As máscaras
permitem a sociabilidade pura, afastada das circunstâncias do poder, da doença
e do sentimento privado daqueles que as usam. A civilidade tem como objetivo
proteger as pessoas de serem carregadas com o eu de outrem.” Op. cit., p. 327.
Cabe assinalar, antecipando a segunda parte deste trabalho, que a civilidade
como despersonalização da vida pública, como formalização das relações sociais,
ocupa lugar central no pensamento de Sérgio Buarque de Holanda  embora mais em
sentido sociológico do que psicológico.
62

privado à ruptura e perversão da lógica inerente a cada âmbito;


da apresentação da pessoa em público, regida por signos claros, à
representação como símbolo de um fundo psicológico único e
inesgotável; enfim, de um espaço público politicamente
significativo à sua dissolução sob o jugo do tirania da
intimidade. A sociedade setecentista, surpreendida pelo
crescimento das cidades e pelo progressivo desmanche dos suportes
mediante os quais os sujeitos eram imediatamente adscritos a uma
categoria social  filiação, ofício, lugar de moradia ,
desenvolveu uma cultura da vestimenta e da linguajem como signos
que, apesar de restabelecerem as diferenças, eram temporariamente
suspensos nos lugares públicos destinados à conversação e
69
circulação de informações. Nesse sentido, tratou-se de uma
cultura da expressão pública francamente anti-simbólica; nela, as
diferenças sociais eram ativadas e desativadas por convenções
objetivas  signos  que, como tais, não se pretendiam expressão
de qualquer substrato profundo ou ininteligível  valores,
idéias, intenções ou sentimentos ocultos no signo. De fato, no
Ancien Régime o público e o privado estiveram marcados pelo signo
da objetividade, no primeiro caso como convenção e no segundo
como natureza: “Os impulsos de vontade e artifício eram aqueles a
governar o domínio público, enquanto no domínio privado
governavam aqueles da restrição e destruição do artifício. O
público era uma criação humana; o privado era a condição humana.
[§] Esse equilíbrio estruturou-se mediante aquilo que hoje
chamamos de impessoalidade; nem em público nem em privado ‘os
acidentes do caráter individual’ constituíam um princípio
social.” 70 Entre os dois âmbitos existia relação complementar e
corretiva: os benefícios e riscos da civilização contrabalançados
pelos direitos naturais e pela condição natural do homem.

69
Richard Sennett, op. cit., pp. 63-114.
70
Ibid., p. 126.
63

Compreendido o ponto de partida de Sennett, o arco das


transformações cobertas por sua análise torna-se evidente. Ao
longo do século XIX a personalidade irrompeu triunfante na vida
pública como princípio orientador da conduta social; sua
particularidade reside em ser expressão direta do eu íntimo e
inclusive em escapar à capacidade de controle do próprio eu. O
império da personalidade erodiu todo vestígio objetivo da
convenção e fez dela vazadouro do sentimento privado e do gosto
individual. Na vida pública edificada sob tal império, a
relevância dos fenômenos mais impessoais e gerais passou a ser
codificada em registro psicológico, isto é, por sua conexão com a
personalidade, por sua importância emotiva para o indivíduo ou,
nos termos do autor, pela gratificação narcisista do eu. 71 As
conseqüências desse processo avançam em duas direções pervertendo
a funcionalidade do público e do privado: de um lado, cancelam a
possibilidade de politizar o público, pois a vivência de
condições objetivas comuns não conduz à identificação de
interesses coletivos passíveis de organização e reivindicação; do
outro, à medida que a aparência sofreu radical metamorfose
assumindo o estatuto de símbolo expressivo da personalidade, o
temor do risco da “revelação involuntária do caráter” tornou a
vida privada um espaço de retraimento ante a vida pública e, no
entanto, de angústia pela afirmação do fingimento subjetivo ou do
princípio da personalidade dentro da própria família. 72 Ainda no
círculo íntimo familiar, o indivíduo continuou submetido à
repressão da conduta, não mais interpretada como manifestação
natural da condição humana, senão como espelho de opções
voluntárias íntimas, integradas no plano da construção da
personalidade. A histeria, não a ventura, foi o signo
oitocentista da convivência familiar.

71
Ibid., pp. 189-93.
72
Ibid., pp. 185-88, 221-29, 273-8.
64

As tendências acima esboçadas foram levadas ao paroxismo no


século XX: o mundo tornou-se psicomórfico, as instituições,
exigências objetivas, compromissos de toda índole e medidas de
contenção do interesse individual  orientadas a atender a vida
em sociedade , passaram a ser identificados como barreiras de
conotação meramente repressiva porque edificadas à custa do livre
desenvolvimento do próprio indivíduo. 73 A vida pública tornou-se
impotente sob o impacto demolidor de uma sociabilidade que se
pretende mais autêntica quanto mais centrada na lógica narcisista
da revelação honesta dos sentimentos. Tal impotência é expressa
em três campos da “condição humana em sociedade”; campos outrora
caracterizados como afirmação de uma vontade de ordenamento
objetivo do mundo: a política foi subordinada de maneira
progressiva aos apelos carismáticos das lideranças em busca de
vínculos baseados na identificação emotiva com seus públicos,
delindo a idéia da representação de interesses, cuja existência e
defesa independem dos traços da personalidade; a fraternidade
como princípio de inclusão universal do homem foi substituída por
regras empáticas que reúnem os iguais, conforme afinidades de
status e de estilos de vida, excluindo o estranho e até mesmo
banindo-o  como mostrado com eloqüência pela trajetória da
arquitetura e do urbanismo nesse século ; por fim, a sinonímia
entre autenticidade e intimidade, responsável pelo esmorecimento
da vida pública enquanto espaço impessoal aberto à atuação
legítima, amputou as capacidades expressivas do homem comum,
agora refugiado numa vida privada que, no entanto, carece de
instrumentos para estabilizar a vida do indivíduo em suas
74
relações com a sociedade.

73
Ibid., pp. 321-31.
74
A impotência da vida pública também pode ser caracterizada, nos termos que o
autor gosta de utilizar, como a reconfiguração da política e da vida em
comunidade sob o primado da incivilidade, isto é, como decorrência da diluição
das contenções objetivas justificadas por argumentos gerais e abstratos.
65

Em suma, esse acidentado percurso plurissecular traça os


perfis de uma “biografia” da psicologização infrene da vida
social e do processo simultâneo de declínio da vida pública. As
implicações do diagnóstico de Sennett não se restringem, é claro,
aos planos psicológico e cultural; antes, a abordagem do espaço
público a partir de arcabouço conceitual como o descrito permite
destacar tendências de longo prazo, cujos efeitos são
eminentemente políticos. A falta de efetividade ou, no limite, o
descaso da política na ordenação justa da sociedade  inclusa
sua dinâmica manipuladora  não deriva aqui de seu caráter
sistêmico e sequer de sua cisão com respeito ao mundo social
(Habermas); muito pelo contrário, o mundo da política exprime e
reproduz tendências emergidas e cristalizadas no seio da própria
sociedade. Nesse sentido, e embora sob perspectivas analíticas e
escopos temporais diferentes, em Sennett e em Koselleck há
elementos que apontam para as dificuldades de se pensar nas
distorções do espaço público enquanto fenômeno superável mediante
a projeção bem-sucedida dos desideratos do mundo da vida. Outra
coincidência parcial entre ambos os autores, particularmente
instigante quando considerada a lisura dos processos
comunicativos na publicidade habermasiana, é a ênfase no caráter
intransparente da comunicação. Se em Koselleck isso decorre da
hipocrisia de um programa ancorado no falso dualismo moral versus
política, a interpretação de Sennett parece mais radical: na
sociedade íntima, a expressão em público mediante signos claros
foi sepultada pela representação como símbolo de conteúdos
ocultos e incomunicáveis. Daí a importância da forma, da
convenção como artifício a viabilizar uma convivência social
civilizada; por outras palavras e levando até as últimas
conseqüências o raciocínio desse autor, a comunicação autêntica
apenas poderia efetivar-se quando cifrada na linguajem formal,
abstrata e política da vida pública  por sinal distante da
lógica pré-política do mundo da vida. Seja dito de passagem, o
tema revela-se especialmente atual ante o complexo problema da
66

proliferação de categorias parciais na arena política,


correspondentes a micro e meso-identidades de tipo não político;
isto é, identidades definidas em torno a características de
índole religiosa, racial, étnica ou sexual, mas também, em casos
extremos, em torno a preferências, princípios e afinidades assaz
restritas  ao estilo do movimento dos casais sem filhos ou dos
reclamos do “politicamente correto”. 75

De fato, no que diz respeito à despolitização do espaço


público, em certo sentido há consenso geral nas análises aqui
esboçadas (Arendt, Koselleck, Sennett). A despolitização não
aparece nelas como fenômeno moderno pleno de potencialidades para
a racionalização do poder sob os influxos de um mundo social
emancipado; antes, tratar-se-ia da manifestação mais acabada da
crise do próprio espaço público na modernidade. O pensamento de
Luhmann escapa a essa leitura negativa e, ainda mais, discrepa
dela reputando-a “falsa” por perseverar em descrições que,
provindas de outros séculos, se tornaram inadequadas para
compreender a complexa sociedade contemporânea. Malgrado a
opinião pública ser diretamente política na obra desse autor,
isso obedece não à conservação do princípio iluminista da
legitimação, e sim à interiorização desse princípio e da própria
opinião pública como parte do sistema político  perdendo
definitivamente qualquer liame constitutivo com a “sociedade”. Já
foi dito que não é o propósito destas páginas confrontar teorias
com o intuito de assentar as bases para um “modelo enriquecido”,
tampouco validar as qualidades ou demonstrar insuficiências
“insanáveis” de cada proposta; semelhante tarefa reclamaria um
estudo de fôlego, outro método de análise mais idôneo e,
sobretudo, uma reconstrução muito mais nuançada, que implicaria
menos vantagens para a exposição. O objetivo é mais modesto, a

75
Para uma análise contemporânea dessa questão no campo da literatura teórica
da cidadania, cf. Will Kymlicka e Wayne Norman, “El retorno del ciudadano  Una
revisión de la producción en teoría de la ciudadanía”, pp. 5-39;
particularmente, pp. 25-33.
67

saber, evidenciar a pertinência de se pensar no espaço público a


partir de uma abordagem mais flexível, que permita contemplar
diferentes dimensões problemáticas sem a exigência de reconduzi-
las à unidade analítica de um modelo. Com efeito, os dissensos no
campo das teorias do espaço público, por oposição ao modelo hoje
mais difundido, evidenciam enormes dificuldades para o esforço de
equacionar essa instância ambígua, perpassada de forma
constitutiva por leque de problemas bastante diversos. Como será
visto a seguir, a opção aqui escolhida delimita dimensões
constitutivas do espaço público, admite o caráter fundamental da
interação entre elas, mas assume a especificidade de sua dinâmica
interna e, portanto, evita postular de antemão tanto prioridades
causais quanto princípios prescritivos de unificação.
68

DO MODELO DA PUBLICIDADE ÀS TRÊS DIMENSÕES DO


ESPAÇO PÚBLICO

6. A identificação das dimensões

Na cristalização da opinião pública como recurso para


amplificar e veicular os consensos sedimentados no seio da
sociedade civil, visando à esfera política, conjugaram-se
distintas condições  contempladas pela reconstrução original de
Habermas dentro do processo histórico do surgimento da
publicidade burguesa. Como exposto na primeira seção, em Habermas
a primazia corresponde às transformações que deram origem à
autonomia material e sobretudo simbólica das novas camadas de
livres proprietários; não obstante, os efeitos políticos da
autonomia do social foram estimulados por circunstâncias
particulares não submetidas por completo à dinâmica da sociedade
civil, seja porque possuem uma lógica própria, seja porque, no
longo prazo, mudaram ou tornaram-se independentes do controle e
iniciativa dessas camadas. Primeiro, e embora focando a atenção
na experiência inglesa  cujo descompasso histórico com a
trajetória francesa é notável , a sensibilidade da esfera
política aos reclamos sociais canalizados pela opinião pública
obedeceu também a fatores inscritos no corpo das instituições
políticas: a institucionalização política do dissenso, a
existência de partidos de oposição no contexto de um regime
parlamentar e a consolidação do Estado. Não é gratuito que
Habermas tenha conferido ao caso inglês o estatuto de modelo
paradigmático na evolução da publicidade burguesa, enquanto
Koselleck privilegiou o caso francês, depositando a tônica de sua
análise nas conseqüências imprevistas do absolutismo: a
organização presuntivamente apolítica da vida pública das elites,
a crítica moral, a crise política e seu eventual desfecho na
69

guerra civil. Seria ingênuo resolver a especificidade daquelas


condições políticas apenas como o resultado vagaroso da
persistência de uma sociedade civil ativa e, sem dúvida, a
postura de Habermas dista de propor semelhante redução; basta
recordar que a alteração do perfil do Estado liberal, alargado
com as funções de providência social do welfare, foi assinalada
pelo autor como uma das mudanças profundas que desacoplaram os
alicerces estruturais do modelo originário da publicidade
moderna.

Segundo, o potencial racionalizador e democrático da opinião


pública contou com a garantia de que seu papel de intermediação
entre a sociedade e o poder, assim como os conteúdos através dela
amplificados, respondiam de forma veraz aos consensos e temas
emergidos da interação dialógica no seio da sociedade. Tal
garantia incorporou a força simbólica do apelo moral e a
consolidação do princípio da publicidade como dispositivo para a
legitimação das decisões políticas; não obstante, além ou aquém
disso, descansou em condições materiais menos sublimes: as
instituições de transmissão da opinião pública eram propriedade
da nova camada social de particulares autônomos, ou seja, ainda
não tinha sido extirpado seu raizame social pela lógica
concentradora do capital. Com efeito, a representação
comunicativa pressuposta na opinião pública tornar-se-ia
inautêntica se desvencilhada dos interesses representados, se
separada desses segmentos de livres proprietários que interagiam
gerando consensos para a defesa e promoção de seus interesses
diante das instituições políticas. A opinião pública não seria
valiosa em si, nem preservaria seu potencial democratizador se
não coincidisse com a sociedade civil, fundindo crítica e
difusão, corpo e voz em um processo comunicativo resguardado de
deturpações. Habermas acusou os efeitos corrosivos da fratura
dessa unidade originária entre a sociedade civil e a opinião
pública; a última cada vez menos autêntica porque expropriada
pela mídia e pré-formada com fins comerciais e administrativos. O
70

surgimento da mídia, inaugurada pela consolidação dos grandes


jornais, desarticulou progressivamente a comunicação pública dos
processos diretos da formação de consenso sociais.

Embora pertinente como diagnóstico e como recurso para


contornar certas dificuldades conceituais, há riscos analíticos
na opção de discriminar a genuína interação comunicativa da
opinião pública  interação espontânea e socialmente arraigada
, do fenômeno da comunicação de massas, sujeito aos imperativos
da acumulação do capital e da circulação de mercadorias. No caso
dos ulteriores desenvolvimentos do programa de pesquisa
habermasiano, tal separação dispensou o tratamento mais acurado
de uma das dimensões problemáticas do espaço público, que tem se
revelado fundamental ao longo do século XX e que subjaz como
pressuposto na origem da publicidade burguesa: as condições de
acesso à comunicação pública. O prodigioso crescimento da mídia,
e de seus impactos sobre as decisões políticas do poder e dos
cidadãos, coloca em pauta múltiplos problemas vinculados às
condições que definem tanto aquilo que hoje é comunicável com
sentido público quanto quem e como tem acesso a essas condições.
Entrementes, após décadas de desenvolvimentos teóricos, o modelo
habermasiano da publicidade acabou condensado no potencial
democratizador da trama de fluxos comunicativos ancorados no
mundo da vida; daí sua teoria ter se tornado tão atraente para a
fundamentação conceitual da nova sociedade civil, tal e como
formulada no influente trabalho de Jean Cohen e Andrew Arato 
introduzido na discussão latino-americana dos últimos anos. 76 Se,

76
Em revisão crítica do pensamento de Habermas, os autores resgataram o mundo
da vida, a publicidade e o mundo sistêmico, mas reintroduziram uma mediação
institucional entre eles: a sociedade civil corresponde a essa mediação, isto
é, constitui as instituições enraizadas no mundo da vida, que cristalizam a
espontaneidade social investindo-a de efetividade para difundir e defender seus
reclamos no espaço público. Cf. Jean Coehn e Andrew Arato, Civil society
and...., op cit., pp. 423-42. Na medida em que a proposta de ambos os autores
dirige a atenção para o conjunto de instituições representativas da sociedade
civil, viabiliza abordagens do espaço público em contextos nacionais
específicos, precisamente, pela via do estudo dessas instituições civis. Embora
parte da recente literatura latino-americana da nova sociedade civil mantenha
71

com a depuração de um modelo assim sintético, o autor conferiu


notável consistência à publicidade como uma das categorias
centrais no seu programa de pesquisa, a contrapartida foi
“exteriorizar” o Estado, o sistema político, as grandes
corporações gremiais, a mídia e até os próprios atores da
sociedade civil. O último caso ilustra melhor do que os outros o
nível de abstração atingido pelo modelo, pois a publicidade não
mais pode ser pensada como cristalização institucional da
sociedade civil, e sequer como resultado dos esforços de um
conjunto de atores sociais; ela é ubíqua e intangível porque
depende apenas da articulação espontânea de fluxos comunicativos
que emergem do mundo da vida  articulação não necessária, porém
sempre possível.77

Visando maior flexibilidade para a reflexão, opta-se aqui


por manter diferentes dimensões que incidem de forma constitutiva
na configuração do espaço público. Em tal configuração convergem
forças e entraves de diversa índole, notadamente: i) as pressões
da sociedade civil sobre a esfera política, animadas em primeira
instância pela força e estabilidade de uma gama ampla de
iniciativas de consociação mais ou menos autônomas; ii) a
abertura e clausura à representação de interesses nas
instituições políticas, o que inclui a determinação daqueles
interesses tidos como ilegítimos e, por conseguinte, como não
passíveis de representação; e iii) a mediação comunicativa entre
os processos políticos e sociais, que tem se tornado cada vez
mais abstrata graças ao desenvolvimento de um espaço virtual

vínculos diretos com o pensamento de Habermas, por via e regra trata-se de


referência teórica mediada pela interpretação e adequação operada por Arato e
Cohen. Cumpre lembrar que a análise dessa literatura no debate nacional,
representada por autores como Sérgio Costa e Leonardo Avritzer, será objeto da
terceira parte deste trabalho.
77
O caráter abstrato da publicidade não exclui a sociedade civil e seus
atores, apenas a torna independente deles; contudo, à ação concreta da
sociedade civil cabe manter intacto o potencial comunicativo da publicidade e
da opinião pública. Cf. Jürgen Habermas, Facticidad y validez..., op. cit., p.
450. Com essa formulação, o autor conciliou sua proposta teórica com a
literatura da nova sociedade civil, particularmente com as críticas aventadas
por Arato e Cohen.
72

operando como ímã da atenção pública. Na disputa pela atenção


pública  recurso escasso no entendimento de Luhmann  há regras
de interdição e acesso à mídia, cuja lógica não é cabalmente
compreensível se reduzida aos ditames do poder ou aos reclamos da
sociedade. O mesmo pode ser afirmado com respeito à
institucionalização política de interesses e à densidade
organizativa do tecido social, isto é, sua interação não anula a
especificidade de suas dinâmicas e problemas internos. A
importância dessas dimensões transparece nas circunstâncias
históricas que, na obra pioneira de Habermas, viabilizaram o
surgimento da publicidade burguesa; há, todavia, outras
tentativas de abordagem que apontam nessa direção.

Um estudo dos usos registrados para o vocábulo “público” e


suas derivações no castelhano, desde sua aparição no século XIV
até a segunda metade do século XX, assinala de forma indireta a
presença dessas dimensões e revela interessante deslocamento
78
semântico. Ao longo dessas sete centúrias entraram em circulação
e extinguiram-se distintas acepções de “público”, todas elas
vinculadas a três campos de significação geral, cujo sentido é
definido por oposição a igual número de sentidos do termo
“privado”: público versus privacidade, intimidade ou
sociabilidade primária; público versus propriedade ou interesse
particular; e público versus não difundido, de conhecimento
particular ou restrito. Se à noção de “privado” correspondem os
registros semânticos da privacidade, da propriedade e do
desconhecido ou não divulgado, à idéia do “público” pertencem, em
contrapartida, três sentidos opostos: privado versus vida
pública, com suas conotações de convívio social e de acesso
aberto ou irrestrito; privado versus vida política, associada a
decisões vinculantes, a cursos de ação obrigatórios sobre
problemas da comunidade e, em geral, ao interesse público; e
privado versus publicitado ou exposto à luz pública. Cada

78
Cf. Adrián Gurza Lavalle, Estado, sociedad y..., op. cit., pp. 37-71.
73

oposição semântica engloba um conjunto maior de acepções, ora na


forma gramatical de adjetivos ora na de substantivos, incluindo
todos os usos registrados da palavra “público” nesses sete
séculos. O mais notável é constatar que os três sentidos gerais
de “público” emergiram e foram adquirindo seus significados em
períodos históricos diferentes, sugerindo eventuais mudanças de
ênfase na definição daquilo que tem sido considerado socialmente
como público.

A maioria dos usos de “público” com o significado daquilo


que acontece fora do âmbito doméstico ou, no limite, da
sociabilidade primária, entraram em circulação entre os séculos
XIV e XVII; ademais, esse sentido é o único a registrar
conotações e até vocábulos extintos  por exemplo,
“publicamente” como sinônimo de má vida pública ou “publique”
como prostíbulo. Por sua vez, “público” referido ao interesse
geral ou ao bem comum garantido por autoridade passou a ser
utilizado de forma corrente desde o século XVI, ganhando todas
suas acepções até o setecentos; isso é digno de nota, pois vai ao
encontro dos argumentos de Sennett e de Koselleck quanto à
coincidência do público e do político no contexto do Estado
absolutista. Já os sentidos de “público” como aquilo que é
amplamente difundido começaram a vigorar só no século XVIII, em
consonância com amplo consenso na literatura acerca da origem
setecentista do fenômeno do público como platéia ou como
79
destinatário da produção literária. No caso desse significado, é
sem dúvida mais relevante o fato de ser o único a incorporar
novas dicções à lingua durante o século XX  por exemplo,
“publicable” ou “publicitario” , atestando o vertiginoso
crescimento da mídia e seu peso na determinação do que
socialmente é entendido como público. À medida que os três campos
semânticos recém-expostos continuam a vigorar, a despeito do

79
Cf. v. g., Georges Duby, op., cit., pp. 19-21; Richard Sennett, op. cit.,
pp. 26-9; Jürgen Habermas, Historia y crítica..., op. cit., pp. 53-64.
74

revezamento de ênfases em cada sentido ao longo desses séculos


todos, os resultados dessa exploração lingüística também apontam
para a pertinência de se pensar no espaço público a partir da
confluência de diferentes dimensões a englobarem o social, o
político e o comunicativo. Nesse sentido, embora por outros
caminhos e em trabalhos desenvolvidos com óticas diferentes,
autoras como Nora Rabotnikof e Graciela Soriano de García-Pelayo
lançaram mão da polissemia da palavra “público” para organizar
suas análises e, coincidentemente, propuseram abordagens
tridimensionais do espaço público em termos bastante compatíveis
com os resultados expostos. Rabotnikof distingue três sentidos
associados a “público”, a partir dos quais interroga as grandes
abordagens do espaço público: o comum e geral versus o privado
como particular; o manifesto e ostensível versus o privado como
secreto; e o acessível e aberto versus o clausurado. 80 Por sua
vez, Soriano explora as categorias público e privado “de uma
perspectiva multidimensional”, expressa nas tensões
comum/particular, individual/coletivo, pessoal/social.81 Em
registros diferentes e apenas parcialmente sobrepostos, nas
tríades examinadas por ambas as autoras comparecem de novo as
dimensões política, social e comunicativa associadas à idéia do
público: o comum e geral, no primeiro caso; o aberto, acessível e
coletivo, no segundo; e o manifesto e ostensível, no terceiro.

Cabe agora fixar os contornos aqui atribuídos a essas


dimensões, até agora apenas insinuadas sem qualquer precisão,
para abrir passo a sua análise mais pormenorizada. Utiliza-se o
termo “dimensão” porque preserva vínculos analógicos com a idéia
do espaço público e, sobretudo, porque simultaneamente remete ao
nível mais abstrato de um fenômeno construído por relações,
indicando sempre algumas variáveis mínimas para a determinação

80
Cf. Nora Rabotnikof, “Qué podemos esperar de la política”, entrevista
concedida a Antonella Attili, pp. 30-5; Nora Rabotnikof, El espacio público...,
op. cit., pp. 1-23.
81
Cf. Graciela Soriano de García-Pelayo, op. cit., pp. 27-62.
75

desse fenômeno; por conseguinte, se as dimensões do espaço


público são fundamentais para seu cabal entendimento, não por
isso implicam a exclusão de elementos ou conteúdos que
eventualmente possam ser mostrados como relevantes. A compreensão
do espaço público encontra-se subordinada, assim, à especificação
proposta para cada uma dessas dimensões. A dimensão política
contempla o arcabouço de mecanismos institucionais para
universalizar interesses e para garantir a obrigatoriedade dessa
universalização perante o conjunto da sociedade. Isso eqüivale a
focalizar os processos políticos de conquista de direitos e
benefícios mediante sua cristalização no seio do Estado  por
antonomásia o âmbito moderno de reconhecimento e imposição
universal de obrigações , dando cabimento à pergunta pelo
arranjo de interesses de longo prazo que define o perfil político
do próprio Estado e que configura de modo substantivo as
possibilidades do espaço público. A segunda dimensão abarca os
processos comunicativos competentes para determinar uma realidade
como pública; isto é, a comunicação no conjunto da sociedade
habilitada para organizar o mundo através da divisão entre aquilo
que não deixa de ser particular, mesmo se coletivo, e aquilo que
“merece” sair do anonimato ou do conhecimento de grupos mais ou
menos reduzidos para se tornar público. Parece desnecessário
insistir no evidente: há sistemas de comunicação social com
sentido público cuja crescente importância é uma tendência em
contínua expansão nas sociedades contemporâneas. Por fim, a
dimensão da vida pública contempla o estágio de desenvolvimento e
a especificidade do que, nem sempre de forma feliz, tem-se
convencionado chamar de sociedade civil, resgatando um conceito
cunhado pela inveterada tradição da filosofia política ocidental
e consagrado pelos clássicos modernos do século XIX. A intenção
analítica no uso desse conceito remete à densidade do tecido
associativo  urdido livre e autonomamente por indivíduos e
atores sociais , cujos efeitos operam como força capaz de
incidir no controle daquelas áreas de proveito recíproco e
76

convivência que geraram o vínculo de associação. A infindável


diversidade de níveis e assuntos que constituem a ordem pública
de uma sociedade pressupõe processos de institucionalização e
reconhecimento político de interesses, e nesse sentido reflete
como ausência ou como presença o peso da sociedade ou, com maior
precisão e em termos sociológicos, da densidade societária.

A definição daquilo que tem ou é investido de estatuto


público articula interesses sociais, condições de
institucionalização política e expedientes de intermediação
comunicativa, tal e como contemplado a partir de ênfases e
perspectivas diferentes pelas grandes abordagens do espaço
público  notadamente pela versão original da publicidade em
Habermas e pelos desenvolvimentos mais recentes do programa de
pesquisa desse autor na área da teoria do discurso aplicada ao
direito. Porém, nestas páginas propõe-se uma compreensão do
espaço público como produto da convergência de distintas
dimensões com suas respectivas problemáticas, as quais não podem
ser reconduzidas a um princípio ou pólo de articulação único;
quer dizer, a produção do espaço público não pode ser carregada
“no lado” da sociedade civil  tampouco apenas do Estado ou da
mídia. Diga-se de passagem que, embora existam hoje razões
estratégicas para apostar na sinergia desencadeada pelas
iniciativas da consociação civil, não parece analiticamente
proveitoso se pensar em um “espaço público social” como
alternativa à “falência” e autoritarismo de um “espaço público
estatal”, pois semelhantes descrições induzem ao equívoco de
conceber como possível um espaço público que não seja
simultaneamente condensação de interesses sociais cristalizada
mediante direitos e expedientes diversos de institucionalização e
reconhecimento políticos  como se o “público estatal”, por
exemplo, não fosse também expressão de determinados interesses
sociais, ou como se a afirmação da sociedade civil operasse,
necessariamente, minando a capacidade de imposição política do
77

Estado. Tais riscos encontram-se presentes na ênfase, hoje comum,


nas virtudes da sociedade civil enquanto agente produtor do
82
espaço público. Parece mais fértil inquirir pelas formas
historicamente concretas em que determinados interesses acedem a
sua institucionalização ou, por outras palavras, pela
convergência conflituosa das dimensões do espaço público.
Doravante, a análise será conduzida dentro de tal concepção do
espaço público e a variegada terminologia corrente no debate
teórico cederá lugar a esse termo, decerto menos construído e,
por isso mesmo, menos restritivo. Há o inconveniente de o termo
encerrar referências demasiado empíricas, quase geográficas ou
físicas, como atestado por seus usos mais comuns no campo dos
estudos urbanos, onde o espaço público sói aparecer como sinônimo
de espaço citadino aberto ou livre. 83 Acredita-se que a análise
até aqui desenvolvida e o esforço de problematização das
dimensões do espaço público sejam suficientes para desvencilhar o
conceito de suas conotações mais empíricas. Resta, portanto,
proceder a esse esforço.

7. A vida política e a comunicação pública

82
É nitidamente o caso da literatura da nova sociedade civil, a ser analisada
na terceira parte deste trabalho; mas há outras empreitadas de fôlego a
trabalhar com a idéia de um “espaço público não estatal”, cuja postura mais
nuançada mantém discrepâncias com essa literatura. Cf. Luiz Carlos Bresser
Pereira e Nuria Cunill Grau, “Entre el Estado y el mercado: lo público no
estatal”, in Luiz Carlos Bresser Pereira e Nuria Cunill Grau (eds.), Lo público
no estatal en la reforma del Estado, pp. 25-56; Nuria Cunill Grau, Repensando
lo público a través de la sociedad  Nuevas formas de gestión pública y
representación social, pp. 23-69.
83
Cf. Stanley B. Tankel, “La importancia del espacio libre en el modelo
urbano”, in Lowdon Wingo, Ciudades y espacio  El futuro del suelo urbano, pp.
43 e ss.; Mike Davis, Cidade de quartzo  Escavando o futuro em Los Angeles,
pp. 205-35; Gilles Lipovetzky, “Espace privé, espace public à l’âge
postmoderne”, in Jean Baudrillard, Gilles Lipovetzky, Michelle Perrot, et al.
Citoyenneté et urbanité, pp. 105-22. Para uma tentativa de equacionar o espaço
público, da ótica do urbanismo, como espacialização do domínio do poder
público, cf. Alfredo Cilento Sarli, “Espacio ‘público’ y ‘privado’ en el medio
ambiente construido: visión de una realidad caótica desde la perspectiva de la
arquitectura y del urbanismo”, in Graciela Soriano de García-Pelayo e Humberto
Njaim, op. cit., pp. 379-412.
78

Nas concepções de cunho normativo, a vida política é a


essência do espaço público como prática por excelência da
consagração do bem comum e dos interesses gerais que dizem
respeito ao corpo político como um todo. De uma perspectiva
sociológico-política, a produção do “interesse geral” decorre da
vida política mediante processos menos estilizados; isto é, como
produto da ação de diversos atores políticos organizados para a
defesa e promoção dos interesses por eles representados, no
contexto de marcos institucionais que outorgam pesos diferentes
às demandas e solicitações desses atores. Nessa ótica, a vida
política remete à pugna pela cristalização de interesses mediante
o complexo arcabouço das instituições políticas, abrindo o
terreno para refletir no papel do Estado como uma instância
84
fundamental na configuração do espaço público. Apesar da vaga de
maniqueísmo e anátemas em torno do Estado, nas sociedades
modernas não há outra instância de universalização efetiva de
interesses que não seja o próprio Estado, sua coincidência com o
direito e seu monopólio sobre o uso legítimo da violência. Os
diagnósticos mais promissores sobre o potencial de emancipação da
sociedade civil esbarram no mesmo obstáculo: todo mandato de
universalidade delegado a outras instâncias morais, econômicas,
associativas ou inclusive políticas carece de efetividade e não
pode ambicionar mais que uma universalização abstrata  para
dizê-lo com a sabedoria sobre o universal de Hegel. Na verdade,
como tem sido demonstrado faz muito tempo pela inveterada
tradição do pensamento jurídico  a começar pela filosofia do

direito , a lei é o expediente estatal tipicamente moderno no


qual descansa o princípio de universalidade e, neste caso, a
obrigatoriedade daquilo que foi investido de “estatuto público”.
Nesse sentido, não parece fortuito que os desdobramentos mais
recentes do programa de pesquisa de Habermas, após longa
trajetória de elaborações dedicadas a universalizar o potencial

84
Cf. Adrián Gurza Lavalle, “Los misterios del orden social: de lo público, lo
político, la política y la transición democrática”, in Darío Salinas, Problemas
y perspectivas de la democracia en América Latina, pp. 69-88.
79

do mundo da vida, visem a ancorar esse potencial a condições


efetivas de realização, precisamente, pela via do direito: a
facticidade da norma e a validez dos consensos do mundo social,
vinculados numa comunidade jurídica regida pelo Estado
democrático de direito.

A preservação e benefício de interesses nas sociedades


modernas é garantida, no longo prazo, mediante o expediente de
conferir estatuto público a tais interesses, tornando o caráter
particular ou geral dos mesmos uma questão eminentemente
política. Há óbvias exceções quando os assuntos envolvidos
unificam o conjunto da sociedade em posturas por via de regra
defensivas  ameaças contra a soberania nacional, por exemplo ;
ainda assim, a maior parte da decisões políticas no cotidiano de
uma sociedade soem escapar de situações tão extremas. Aquilo que
se torna público, que é público, pressupõe, então, a existência
de interesses universalizados  com imposição de
responsabilidade para o conjunto da sociedade  através do
processo de sua inserção como direitos no seio do Estado. A
determinação concreta da composição dos interesses
institucionalizados no longo prazo já fora pensada como o caráter
de classe do Estado, como o processo histórico do state-building
ou, de forma mais geral, como a natureza e resultados das lutas
entre atores econômicos e políticos organizados; no entanto, a
chave da vida política em relação ao espaço público bem pode ser
sintetizada como uma questão de institucionabilidade.85 Ela
salienta a pertinência de procurar e definir os volumes
contraditórios de interesses cristalizados no seio do Estado 
segundo certas possibilidades de institucionalização inscritas na
gênese e configuração do próprio Estado.86 A lógica dessa

85
Adrián Gurza Lavalle, Estado, sociedad y..., op. cit., pp. 207-14.
86
A idéia do caráter contraditório dos interesses institucionalizado no Estado
tem sido proficuamente explorada pela literatura do welfare state. Por exemplo,
a índole conflitante desses interesses de forma extrema nas conhecidas análises
de Claus Offe sobre o Estado de bem-estar, caracterizado pelo autor como
80

interpretação, à busca de uma composição mais ou menos duradoura


de interesses, permite e impele uma análise que considere as
múltiplas mediações que fazem do espaço público uma construção
complexa definida no Estado, através do Estado e contra o Estado.
Convém precisar a implicações de tal afirmação, pois ela resgata
a densidade histórica do espaço público; de fato, assume a
relevância da relação entre o perfil histórico-político do Estado
e a configuração do próprio espaço público, outorgando ao
primeiro o caráter de uma matriz pré-formativa de longo prazo a
determinar posições e efetividade desiguais para os interesses
que eventualmente possam ser projetados no segundo.

A idéia da existência de uma matriz básica, gerada e


portanto inscrita na gênese histórico-política do Estado,
pressupõe uma configuração fundadora do espaço público, quando
olhado da perspectiva da institucionabilidade; isso não eqüivale
a reduzir o espaço público ao Estado, resgatam-se os efeitos
duradouros de sua gênese na dimensão político-institucional, sem
diluir por essa via a lógica autônoma da organicidade social  a
ser abordada mais adiante. A matriz opera determinando o que é ou
não obrigação do Estado perante a sociedade, mediante uma espécie
de pré-qualificação da legitimidade das demandas sociais
passíveis de serem investidas de estatuto público.87 A contrapelo

estrutura de contradições irresolúveis (cf. Contradicciones en el Estado del


bienestar, pp. 135-50). Em Luhmann, todo sistema funcional efetua prestações
mediante critérios de incorporação parcial dos indivíduos; a operação desses
critérios corresponde ao conceito sistêmico de inclusão. Pois bem, o Estado de
bem-estar realiza a inclusão política característica da sociedade moderna, que,
ao estar subordinada aos reclamos do interesse individual, torna-se um problema
complexo, crivado de pretensões conflitantes (cf. Teoría política en..., op.
cit., pp. 49-52). De uma perspectiva crítica das abordagens estruturais e
sistêmicas, assim como do “paradigma da mobilização de classe”, Gosta Esping-
Andersen contempla a conjugação da estrutura do Estado, enquanto legado
institucional, e os efeitos não apenas da mobilização de classe, mas sobretudo
das coalizões políticas duradouras que forneceram e definiram o perfil político
dos distintos tipos de Estado de bem-estar. Cf. Gosta Esping-Andersen, “As três
economias políticas do welfare state”, pp. 91-7, 100-1 e 111-5; Gosta Esping-
Andersen, “O futuro do welfare state na nova ordem mundial”, pp. 77-8.
87
A idéia de uma matriz inscrita na gênese do Estado, que pré-configura as
possibilidades do espaço público no longo prazo, foi inicialmente explorada em:
Adrián Gurza Lavalle, La reestructuración de lo público  El caso Conasupo, pp.
62-9. Algumas conseqüências dessa matriz para a constituição do regime político
81

de leituras confiantes na espontaneidade como traço distintivo do


vínculos entre a ação social e o espaço público, o fundamental é
que a pressuposição de tal matriz ajuda a perceber esse espaço
como uma instância pré-formativa da politização das necessidades
sociais, particularmente quanto à viabilidade de elas serem
acolhidas no seio do Estado para sua resolução e imposição
universal ao resto da sociedade, ou seja, quanto a suas
possibilidades de se tornarem coisa pública  res publica,
institucionalização de interesses favorecida ou obstada pelo
arranjo institucional que materializa o perfil político do
Estado. Nesse sentido, a relação Estado/sociedade não pode ser
cabalmente compreendida a partir da figura de uma oposição em que
o fortalecimento de um dos pólos opera, por definição, em
detrimento da autonomia do outro. Com base nessas considerações é
possível desprender dois riscos, cujas conseqüências são maiores
no caso de análises do espaço público em contextos diferentes aos
das grandes democracias ocidentais. Primeiro, o perfil histórico-
político do Estado incide na configuração do espaço público e,
por conseguinte, nos alcances sociais dos regimes democráticos;
todavia, em sociedades como a brasileira, ou de outros países
latino-americanos, esse perfil introduz sérias limitações no
funcionamento do Estado de direito e no acesso ao reconhecimento
de interesses pela via das instituições políticas. Por isso, não
parece pertinente se furtar à análise do Estado  ou, se se
quer, daquilo que outrora podia ser nomeado como dominação sem
suscitar espanto , considerando apenas as relações entre o
sistema político e as pressões exercidas pela sociedade civil, no
contexto de um marco jurídico orientado a consagrar as normas
fundamentais.88 Segundo, se aceita a existência de uma matriz

podem ser consultadas em: Adrián Gurza Lavalle, “A longa transição  Eleições e
regime político no México”, pp. 5-28.
88
Após o auge das expectativas depositadas nas transições democráticas latino-
americanas, que em certos casos suscitaram novas teorias da modernização de
cunho político-institucional, Guillermo O’Donnell atentou com repercussão
notável para aquilo que já tinha sido pressuposto da análise sociológica no
terceiro quartel do século XX, a saber, a existência de fatores de longo prazo
82

constitutiva do perfil político do Estado e sua importância na


configuração do espaço público, então, parece de eficácia dúbia
qualquer tentativa de se aproximar apenas de forma sincrônica
desse espaço, pois um tratamento plausível de suas feições teria
de remeter ao marco maior da vigência da matriz correspondente.

A dimensão da comunicação pública encontra-se presente no


papel do discurso desinteressado como meio de realização da
política, no modelo normativo de Arendt, e inclusive no seu
conceito de aparição ou experiência que assegura a realidade do
mundo pela presença de outrem; também encontra-se presente no
diálogo raciocinante habermasiano e nas instituições originárias
da opinião pública. Aqui, a comunicação com sentido público faz
referência ao fato de nas sociedades contemporâneas a mídia ter
se convertido em um sistema altamente diferenciado de comunicação
social e, em conseqüência, de elaboração da própria percepção
social do que é assumido como realidade. Não se trata de reeditar
as críticas mais difundidas contra os meios de comunicação de
massas  notadamente a televisão , características do debate
acadêmico e político europeu entre as décadas de 1950 e 1970: por
sua capacidade de gerar esmagadora dominação ideológica sobre a
sociedade, a mídia representava uma ameaça, cuja conjuração
apelou ao controle restritivo do Estado e à criação de canais
públicos. 89 Na realidade, o teor do debate em torno da mídia
abandonou esse registro alarmado após a multiplicação de

que determinam configurações históricas específicas na relação


Estado/sociedade. Assim, o autor postulava que o efetivo funcionamento de
instituições democráticas podia conviver com sérios déficits na representação
social de interesses e no funcionamento do Estado de direito. “[...] o que
estou argumentando leva à conclusão de que atributos como ‘democrático’ ou
‘autoritário’ não correspondem apenas ao regime, mas também ao Estado”; ou
ainda, “[...] meu trabalho em curso sugere que os fatores mais decisivos para
gerar vários tipos de democracia não são tanto aqueles relacionados com as
características dos processo de transição do regime autoritário. Parecem ter
mais peso, de um lado, fatores históricos de longo prazo e, de outro, o grau de
profundidade da crise socioeconômica que os governos democráticos recentemente
instalados herdam.” Respectivamente, Guillermo O’Donnell, “Sobre o Estado, a
democratização e alguns problemas conceituais  Uma visão latino-americana com
uma rápida olhada em alguns países pós-comunistas”, p. 132; e Guillermo
O’Donnell, “Democracia delegativa?”, pp. 25-6.
89
Cf. Dominique Wolton, Elogio del gran público, pp. 42-60.
83

pesquisas animadas pelo enfoque da recepção; as quais, aliás,


inexistiam quando do diagnóstico de Habermas sobre os efeitos da
mercantilização das instituições da opinião pública burguesa. 90

No plano da mídia como dimensão problemática do espaço


público, a questão se coloca hoje de outra maneira, em boa medida
graças às contribuições dos estudos da comunicação política. 91 Em
última análise, o espaço público é determinado pela existência de
um sistema de comunicação com sentido público, quer dizer, de
processos que fundem a um só tempo e sob uma mesma lógica
específica a transmissão e a produção de significados econômica,
política e socialmente relevantes. A comunicação com sentido
público ou comunicação política vem desempenhando papel cada vez
mais destacado, e por vezes substitutivo, na realização de
funções antes concentradas nas instituições civis, nos atores
sociais e na esfera política: em sentido ascendente, a
intermediação entre as demandas sociais e a política, o
fortalecimento simbólico ou a deslegitimação de atores e
bandeiras sociais, e a sinalização de problemas e a denúncia de
irregularidades que nem sequer atingiram a condição de reclamo

90
Em releitura de seu texto de 1962, trinta anos após sua publicação, Habermas
reconhece o teor “[...] demasiado simplista de meu diagnóstico de um
desenvolvimento retilíneo do público politicamente ativo até o público retraído
numa má privacidade, ‘do público discutidor da cultura até o público consumidor
de cultura’.” Entretanto, o autor introduz várias ressalvas: à época, os
estudos eleitorais e o conhecimento dos impactos da mídia sobre a audiência
eram incipientes; seu pensamento encontrava-se ainda no campo de influência da
teoria adorniana da cultura de massas; tudo o que se viu reforçado pelos
resultados pouco auspiciosos de sua pesquisa acerca dos estudantes e a
política, publicada um ano antes. Cf. Jürgen Habermas, “Prefacio a la nueva...,
op. cit., p. 18.
91
Cf. André Gosselin, “La comunicación política  Cartografía de un campo de
investigación y de actividades”, in Gilles Gauthier, André Gosselin e Jean
Mouchon (comps.), Comunicación y política, pp. 9-28; Dominique Wolton, “Las
contradicciones de la comunicación política”, in ibid, pp. 110-30; Jean-Marc
Ferry, “Las transformaciones de la publicidad política”, in Jean-Marc Ferry,
Dominique Wolton, et al., El nuevo espacio público, pp.19-20. No Brasil, os
estudos sobre comunicação e política  que não de comunicação política 
começaram no final da década de 70 e, particularmente, registraram avanços mais
expressivos no contexto inaugurado pelas “Direitas já”, em 1984. Cf. o
elucidativo balance de Antonio Albino Canelas Rubim e Fernando Antônio Azevedo,
“Mídia e política no Brasil: textos e agenda de pesquisa”, pp. 189-216. Para um
trabalho que aponta questões próximas da comunicação política, não contemplado
nesse balanço, cf. Adalberto M. Cardoso, “Jornalistas: ética e democracia no
exercício da profissão (um survey entre jornalistas brasileiros)”, pp. 130-40.
84

ativado por algum grupo social  essa última função, aliás,


especialidade de um subgênero das reportagens jornalísticas ;
em sentido inverso, a consolidação ou comprometimento das
prioridades da agenda governamental ante a “opinião pública”, a
vinculação entre os políticos e seus eleitores e entre as
decisões políticas e os cidadãos, sem esquecer a
instrumentalização da própria mídia como arma de fogo nas
92
disputas da arena política. Se o papel da comunicação política
quanto à intermediação de âmbitos e conflitos é patente, nem
sempre é possível admitir tal nitidez no que diz respeito aos
critérios de seletividade para a escolha e amplificação dos
interesses “merecedores de atenção pública”. Tudo isso tem
exercido sensível influência na forma como são realizados a
política e o protesto social, cada vez mais submetidos à lógica
da imagem e à velocidade da mídia, em detrimento do raciocínio
argumentativo  sempre vagaroso, pouco espetacular e outrora
carregado de força figurativa. Afinal, a validade do comunicado
não alude em primeira instância à verdade ou qualidades dos
interesses veiculados, mas à verossimilhança decorrente da
autoridade do meio emissor.

Diferentemente do que pareceria plausível pensar a partir


da perspectiva que deposita a produção do espaço público na
espontaneidade da ação social, nas sociedades contemporâneas a
dinâmica fundamental da dimensão comunicativa desse espaço não
radica no lar da sociedade civil, em seus vínculos forjados
mediante o diálogo horizontal, mas nos processos próprios à
lógica da mídia. Nesse ponto é assaz insuficiente qualificar os
meios de comunicação como alheios ao mundo da vida, porque

92
O papel da comunicação política na intermediação entre âmbitos da realidade
sujeitos a exigências conflitantes é salientado por Alain Touraine; cf.
“Comunicación política y crisis de la representatividad”, in Jean-Marc Ferry,
Dominique Wolton, et al., op. cit., pp. 47-56. Para uma análise das
ambigüidades características da comunicação política, a contrapelo das
primeiras formulações mais otimistas, cf. Dominique Wolton, “Las
contradicciones de...”, op. cit., pp. 11-30.
85

submetidos aos ditames do poder e do dinheiro, ou como


caracterizados por uma ambigüidade que faz deles ora canal dos
legítimos consensos sociais, ora aparato de fabricação artificial
da opinião pública  tal e como sustentado por Habermas. 93 Sem
dúvida essa ambigüidade existe, mas enunciá-la dista muito de
levar à compreensão de sua lógica autônoma; ainda mais se
considerado que ela é constitutiva do espaço público e não
externa a ele. Para dizê-lo com as palavras de Dominique Wolton:
“A comunicação política, sem ser a única, talvez seja uma das
condições mais importantes de funcionamento do espaço público
94
expandido”. A configuração do espaço público é, portanto,
dificilmente compreensível se deixada à margem da mídia ou, com
maior precisão  pois não se trata de qualquer conteúdo por ela

veiculado , da lógica específica da comunicação política. A


problemática subjacente a essa função da mídia bem pode ser
95
sintetizada como uma questão de comunicabilidade. Ela diz
respeito ao conjunto de condições que explicam a validade e o
funcionamento do sistema de comunicação com sentido público: o
que, como, quando e quem comunica? Mais o fundamental: quais os

93
Nas últimas páginas da teoria da ação comunicativa (op. cit. Vol. II, adendo
c), o autor explicita os avanços analíticos conquistados quanto ao lugar
reservado à comunicação de massas nesse arcabouço conceitual: os meios de
controle sistêmico são independentes da formação de entendimentos lingüísticos
para coordenar a ação, prescindindo da lógica do consenso; já a mídia, pertence
às formas generalizadas de comunicação que pressupõem os recursos fornecidos
pelo mundo da vida e funcionam apenas como especialização dos processos da
linguagem. Nesse sentido, diante de leituras negativas “supercontundentes” como
as de Adorno e Horkheimer, seria factível resguardar o potencial ambivalente da
mídia, na qual se conjugam tanto um potencial uso autoritário com objetivos de
controle social, decorrente de sua capacidade de “hierarquizar o horizonte das
comunicações possíveis”, quanto à expansão exponencial e abstrata dos fluxos
comunicativos ancorados no mundo da vida. Como assumido aqui, a caracterização
da mídia pela ambivalência de seu potencial apenas assinala um problema 
aliás, largamente aceito  que demanda ulteriores investigações. Cumpre
mencionar que a postura do autor não registrou mudanças nos últimos anos; cf.
Jürgen Habermas, Facticidad y validez..., op. cit., pp. 457-60.
94
Dominique Wolton, “La comunicación política: construcción de un modelo”, in
Jean-Marc Ferry, Dominique Wolton, et al., op. cit., p. 40. Fora da corrente da
comunicação política os diagnósticos são muito discrepantes; para uma crítica
pungente, cf. Pierre Bourdieu, Sobre la televisión, (1996) pp. 19-53 e,
particularmente, pp. 63-70; para uma interpretação cética de todos os “clichês”
críticos, cf. Gilles Lipovetzky, La era del vacío  Ensayos sobre el
individualismo contemporâneo, pp. 39 e ss.
95
Cf. Adrián Gurza Lavalle, Estado, sociedad y..., op. cit., pp. 102-05.
86

interesses representados nessa comunicação? Entretanto, o que,


como, quando, quem e quais os interesses promovidos não são
interrogações passíveis de resolução satisfatória apenas no plano
da reflexão teórica, sendo preciso fixar o olhar pelo menos em
dois níveis. No nível mais geral, sem dúvida é pertinente recusar
a tentação de reduzir a lógica da produção de significados com
sentido público à simples manipulação regida pelo poder político
e econômico, tendo em vista que tal lógica obedece a regras
próprias de prestígio, concorrência, êxito, lucro e poder  cujo
cabal entendimento ainda é objeto de inúmeras reflexões e
96
pesquisas. No nível dos contextos em que se insere a análise,
caberia atentar para as diferenças históricas do desenvolvimento
da mídia: estrutura da propriedade, regimes de concessões,
padrões de funcionamento, sistema de concorrência, origem social
e política dos proprietários e dos grandes profissionais da
notícia e da análise política. No quadro de ambos os níveis
emergiriam com maior inteligibilidade os critérios de inclusão e
exclusão que determinam quais as demandas sociais, os atores
políticos e os centros de poder privilegiados em maior ou menor
grau no seu acesso à atenção pública ou difusão em grande escala
em busca da atenção pública.

8. A vida pública

Se a vida política e a comunicação em público das idéias


encontram-se estreitamente vinculadas na concepção clássica do
espaço público, a vida pública é um fenômeno moderno associado ao
auge do social  concebido por Arendt enquanto força corruptora
dos lindes entre o político e o privado. De fato, na concepção da

96
Cf., v. g., a caracterização do campo jornalístico realizada por Pierre
Bourdieu, Sobre la..., op. cit., pp. 30-7, 49-53, 57-78 e 104-10. Na
perspectiva da comunicação política, cf. Jean Chabron, “Los medios y las
fuentes  Los límites del modelo de agenda-setting”, in Gilles Gauthier, André
Gosselin e Jean Mouchon (comps.), op. cit., pp. 72-94; Dominique Wolton, “Las
contradicciones de...”, op. cit., pp. 110-30.
87

filósofa não há terreno propício para a elaboração positiva da


especificidade da vida pública, pois a vida política é por
antonomásia o “lugar” de realização da liberdade e da vida em
comum dos homens; isto é, a vida política é a única forma genuína
da vida pública, a tal ponto que a relação entre ambas aparece
simbolizada pela identidade entre o público e o político. A
preeminência pública conquistada pela vida social no mundo
moderno assume o caráter de força destrutora de tal identidade,
conferindo aos interesse privados significado público e
transladando a liberdade do mundo da política para o mundo
privado do social. Na dimensão da vida pública também encontram
ressonância, embora em registro diametralmente oposto, as
primeiras formulações de Habermas acerca dos efeitos de
emancipação inscritos na sociabilidade em público da sociedade
civil burguesa, e, de modo mais recente, a ênfase do autor nos
fluxos comunicativos que emergem do mundo da vida para a opinião
pública. Isso sem esquecer a crítica de Koselleck à consolidação
da moral como elemento identitário da uma vida social enfrentada
com o poder ou, é claro, o diagnóstico de Sennett acerca das
tendências seculares responsáveis pela queda do papel objetivo da
convenção como elemento ordenador da vida pública. Na realidade,
trata-se de tema muito caro aos grandes pensadores oitocentistas
e da virada do século, que ainda hoje continua a ser atualizado
com surpreendente vitalidade, embora sob novas roupagens. 97

No século XIX tornou-se palpável que os antigos vínculos


sociais comunitários, nos quais os sujeitos eram englobados numa
totalidade adscritiva, tinham ruído sob o peso das tendências
modernas: se a coesão social e política, se as obrigações morais
e políticas de índole coletiva, cediam ao avanço da igualdade, da
liberdade puramente negativa, do individualismo, da organização
funcional da sociedade, da racionalização e da compreensão não
metafísica do mundo, cabia equacionar a questão premente dos

97
Cf. Clemy Machado de Acedo, op. cit., pp. 67-72 e 80-6.
88

novos princípios que poderiam assegurar a integração e a


solidariedade social.98 A questão não aceita leituras unívocas nem
leva a desdobramentos analíticos necessários, capazes de
homogeneizar o pensamento de autores da envergadura de Alexis de
Tocqueville, Émile Durkheim, Ferdinand Tönies ou Max Weber; todos
eles preocupados de perspectivas diferentes com os rumos das
grandes transformações introduzidas pela modernidade. Interessa
apenas salientar que respostas como as de Tocqueville e Durkheim
assentaram balizas perenes quanto ao pensamento das
possibilidades da ação social voluntária como expediente de
moderação do poder concentrado, no caso do primeiro, e de
integração social, no caso do segundo. A arte da associação,
descrita por Tocqueville como prática rotineira dos norte-
americanos, foi elevada por ele ao patamar de único recurso à
disposição dos povos democráticos para contrabalançar o crescente
enfraquecimento dos indivíduos diante da concentração sem
99
precedentes do poder social. A formulação de Durkheim é
igualmente conhecida: a solidariedade orgânica baseada no direito
cooperativo, na escolha individual de agrupação e numa moral
secular, isto é, na divisão do trabalho, substituiria
progressivamente as relações características da solidariedade
mecânica. 100 Destarte, se a política como participação nos
assuntos da res publica é um tema clássico  aliás, explorado

com perícia por Arendt , a consociação de interesses


particulares como força de coesão social e de correção da

98
Cf. Raymond Aron, As etapas do pensamento sociológico, (1967) pp. 285-93.
99
Alexis de Tocqueville, La democracia en América, (1835) pp. 472-6, 621, v.
g., “Nos povos democráticos, apenas mediante a associação podem os cidadãos
resistir o poder central [...].” (p. 629) Em refinada análise, Gabriel Cohn
aponta para a peculiaridade da síntese do pensador francês quanto ao problema
da coesão social; síntese que ilumina a idéia da arte da associação: se, de um
lado, Tocqueville abre as portas para o problema moderno do interesse como
motivo por excelência da ação; do outro, em termos clássicos, a política
aparece vinculada à questão da vontade e, nesse sentido, não é resolvida no
mero interesse individual  antes, preserva a força da coesão outrora exercida
pelos vínculos morais. Cf. Gabriel Cohn, “Tocqueville y la pasión bien
comprendida”, in Atilio A. Boron (comp.), La filosofía política moderna  de
Hobbes a Marx, pp. 247-67; especificamente sobre o aspecto aqui mencionado, cf.
pp. 258-61.
100
Émile Durkheim, Da divisão social do trabalho, (1893) pp. 105-9.
89

política é um tema moderno, que, embora explorado de maneira


inicial no terreno da economia e da filosofia, só ganhou
nitidamente esses traços no pensamento oitocentista  avançando
pelo século XX adentro.

A dimensão da vida pública, precisamente, diz respeito à


consociação de interesses ou à organicidade social enquanto peso
sistemático e perdurável na determinação do espaço público. A
organicidade social compreende certo tipo de interações
associativas que pressupõem uma participação eleita de forma mais
ou menos voluntária para cumprir propósitos de índole coletiva,
beneficiando seus integrantes e, às vezes, por vias diretas ou
indiretas, o conjunto da sociedade. Atenta-se aqui para os
efeitos da consociação civil na configuração do espaço público,
moldado dentro de limites estruturais de longo prazo pelas
pressões de interesses sociais organizados de modos diversos e
conforme a disponibilidade de diferentes recursos de poder. Pode-
se dizer que a densidade associativa do tecido social espelha
alguns dos aspectos mais amplos e significativos da democracia,
pois constitui aquilo que Tocqueville chamara de poderes
intermediários, neste caso perante uma estrutura política cada
vez menos capaz de conhecer e representar, por si só, a crescente
pluralidade de interesses característica das sociedades
contemporâneas. É claro que a lógica autônoma da ação social não
se materializa de forma necessária em “poderes intermediários” ou
em esforços de associação estáveis, pois sua consolidação depende
de inúmeros fatores, notadamente da existência de fortes nexos
morais e da disponibilidade de recursos de poder; ainda mais, não
raro a ação social se manifesta em irrupções esporádicas, mas
mesmo nesses casos ela torna possível a projeção dos interesses
mobilizados na configuração do espaço público. Porém, a
efetividade dos distintos interesses sociais na determinação
desse espaço mantém relação diretamente proporcional com a
solidez e permanência de sua organização, que dizer, adquire
90

maior eficácia quando eles operam como peso perdurável e


sistemático na produção da ordem social, como um agir societário
pouco espetacular, mas sempre presente, cuja prontidão para
atualizar constrangimentos incide no curso das decisões políticas
e nas pretensões de outros interesses sociais conflitantes.

As diferenças nos resultados das práticas de consociação


levantam questão nevrálgica, particularmente no contexto de
sociedades caracterizadas por desigualdades socioeconômicas
abissais: os efeitos da organicidade do tecido social na
configuração do espaço público tendem a sobre-representar os
interesses dos “mais fortes”  sempre que aceito que a maior
disponibilidade de recursos favorece a organização e que, por sua
vez, a estabilidade dessa organização incrementa a efetividade
dos interesses nela representados.101 Os efeitos inibitórios das
clivagens socioeconômicas na participação na vida pública estão
assentes na literatura, com lastro empírico, pelo menos desde
meados do século XX: a riqueza e a educação foram associadas
positivamente à maior presença de iniciativas de organização
intermediárias ou coletivas, seja em estudos de caso  como o
de Edward Banfield (1958) sobre familismo amoral da comunidade de
Montegrano, ao sul da Itália , ou seja no plano das relações
macroestatísticas entre indicadores nacionais de renda e
educação, de um lado, e a detecção de valores favoráveis ao
envolvimento dos indivíduos na vida pública  tal e como
sumariado em conhecido livro de Seymour Martin Lipset, editado em
1960.102 O primeiro trabalho de fôlego a mostrar sistematicamente
tais efeitos veio à luz poucos anos depois, quando da publicação
dos resultados do maior survey realizado até esse momento no
terreno das pesquisas comparativas em ciência política  o

101
A facilidade e velocidade dos “mais fortes” para se organizar, em virtude da
maior disposição de recursos, das posições mais vantajosas por eles ocupadas e
da clareza imediata de seus interesses, foi explorada por Norbert Lechner, em
La conflictiva y nunca acabada construcción del orden deseado.
102
Seymour Martin Lipset, O homem político, pp. 55-60, 66-7 e 112-35; Edward
Banfield, The moral basis of a backward society.
91

estudo de Gabriel Almond e Sidney Verba (1963) acerca da


interação dos padrões de atitudes políticas e comunitárias com as
instituições políticas da democracia. 103 O engajamento na vida
pública pode ser equacionado, assim, como um assunto de cultura
cívica condicionada por clivagens socioeconômicas, contemplando
suas conseqüências para a vitalidade dos regimes democráticos;
mas também como um processo desigual de determinação do espaço
público em que certos interesses franqueiam com maior facilidade
a barreira da institucionalização política. Seja dito de
passagem, as perspectivas cuja atenção foca apenas os valores e
as práticas da participação correm o risco de enveredar para
teorias da modernização “epidérmicas”, segundo as quais a
implantação de um conjunto de medidas destinadas a estimular o
envolvimento cívico dos setores sociais passivos  por sinal,
sempre coincidentes com a camadas pobres da população ,
permitiria superar os déficits sociais crônicos dos países
subdesenvolvidos. Na América Latina, os anos 60 foram prolixos
nesse tipo de interpretações, e a crítica de seu teor fenomênico
e de suas implicações culpabilizadoras foi suficientemente
elaborada no contexto do debate conceitual acerca das teorias do
desenvolvimento  particularmente a partir da chamada teoria da
dependência e sua ênfase nos aspectos estruturais que definiam a
funcionalidade econômica dos segmentos “marginais” da
104
sociedade.

103
Gabriel A. Almond e Sidney Verba, The civic culture  An analytic study:
Political atitudes and democracy in five nations, (1963) pp. 126-34 e 246-65.
104
No intenso debate desse momento, sem dúvida um dos mais instigantes do
pensamento latino-americano, concorreram autores da envergadura de Ruy Mauro
Marini, José Nun, Fernando Henrique Cardoso, Enzo Faleto, Theotonio dos Santos,
Andre Gunder Frank, Anibal Quijano, Rodolfo Stavenhagen, Vania Bambirra e
Francisco Weffort. Para uma crítica das teorias da marginalidade centradas na
falta de participação, cf. o conhecido trabalho de Lúcio Kowarick, Capitalismo
e marginalidade na América Latina, (1973) pp. 41-56. Embora menos minuciosas,
cf., também, as análises de Manoel T. Berlinck, Marginalidade social e relações
de classe em São Paulo, (1975) pp. 15-20; e Marialice Mencarini Forracchi, A
participação social dos excluídos, (os textos são de 1972; publicados só em
1982) pp. 11-22.
92

Não seria prudente reduzir os efeitos da vida pública à


simples reposição dos interesses mais beneficiados pela ordem
social, não apenas porque há inúmeros exemplos a desmentirem tal
simplificação, senão porque a vida pública é perpassada de forma
permanente por dinâmicas de coesão e confronto; quer dizer, nela
concorrem a um tempo a consociação e a conflituosidade dos
interesses sociais. Isso levanta novo problema no que tange à
pertinência de se interpretar o diversificado leque das
iniciativas de associação a partir de uma vocação partilhada, tal
e como feito hoje sob a categoria unificadora da “nova sociedade
civil”. O ponto relevante nesse problema não recai nos efeitos da
organicidade social, visto serem pressuposto desejável do
funcionamento da democracia  sem por isso pressupor qualquer
unicidade de sentido ; antes, a questão controversa diz
respeito à eventual atribuição de uma lógica interna comum à
sociedade civil. Por outras palavras, embora seja cabível
postular, em termos muito abstratos, que a consociação de
interesses no seio da sociedade civil racionaliza a política,
sofisticando e diferenciando o espaço público para fazer dele
algo mais semelhante à fisionomia da sociedade e sua evolução;
nessa ótica corre-se o risco de conferir à sociedade dinâmicas
homogêneas diante do poder, obliterando a especificidade dos
interesses organizados. Se, de um lado, a autonomia das
associações civis, enquanto quesito para agir com liberdade
diante das instâncias de decisão política, pode sugerir a
existência de certa lógica comum; do outro, para além de
quaisquer prescrições sobre as formas de consociação e sobre os
mecanismos de geração de consensos próprios à sociedade civil, o
universo das práticas efetivas de organização de interesses é
internamente conflitante, muito diverso e não segue um padrão
único. Avançando mais um passo, a complexidade da vida pública
poderia ser sintetizada como um problema de societabilidade: da
maior ou menor propensão à consociação de determinados interesses
e do maior ou menor sucesso desses interesses no seu
93

reconhecimento público.105 Assim, o acesso ao espaço público


aparece menos como uma possibilidade virtual, passível de ser
atualizada em qualquer momento e por qualquer ator, do que como
resultado de posições sociais e circunstâncias conjugadas em
distintos padrões associativos a serem elucidados. Trata-se de
encontrar, em última análise, constantes para compreender esses
padrões, sua efetividade e seus mecanismos típicos de acesso ao
espaço público.

A vida pública como comprometimento cívico e, sobretudo,


enquanto organização de interesses no seio da sociedade já fora
objeto de numerosas reflexões e pesquisas sob o olhar de
diferentes enquadramentos analíticos  embora os conceitos
correspondentes para descrever a ação coletiva nem sempre
guardassem relação estreita com a problemática do espaço público.
Acodem facilmente à memória as classes sociais, na sua passagem
da determinação econômica à práxis política; os movimentos
sociais, como revigoramento da mobilização popular fora das
categorias e atores tradicionais; e, mais recentemente, a
sociedade civil e sua dinâmica pulverizada de ação coletiva,
cujas características analíticas reeditam boa parte das
esperanças depositadas nos movimentos sociais  notadamente o
potencial de revitalização da democracia nutrido por sua
autonomia perante o Estado, assim como a ampliação do espaço
público e a mudança da cultura política. Do ponto de vista da
problemática do espaço público, a conexão da ação social com a
vida pública emerge de forma “natural”, pois as iniciativas de
consociação envolvem compromissos participativos, convicções
morais, autoconsciência de interesses coletivos, propósitos de
transformação da realidade e inclinações cívicas de índole
cultural; tudo o que impele os indivíduos a estabelecer laços de
solidariedade além da vida privada. Assim, a idéia da vida
pública vem carregada de energias civilizadoras, de influências

105
Cf. Adrián Gurza Lavalle, Estado, sociedad y..., op. cit., pp. 171-9.
94

benéficas a permitirem ora o aprendizado da convivência social,


ora a edificação dessa convivência em moldes mais igualitários;
ainda mais, ela também aparece como condição do espaço público e,
no limite, como alicerce indispensável da própria democracia.

Uma das visões mais penetrantes do sentido radical da vida


pública foi formulada por Sennett a partir do conceito geografia
pública, entendido como a cristalização de um código comum  a
um tempo motor e decorrência da intensidade da vida pública ,
cuja existência plenifica o caráter objetivo e impessoal do
espaço público. “A criação de uma geografia pública tem [...]
estreita relação com a imaginação como fenômeno social. Quando
uma criança pode distinguir o eu do não-eu, dá o primeiro passo e
o mais importante no enriquecimento de seus poderes de
simbolização: cada símbolo não mais será projeção das
necessidades da criança sobre o mundo. A criação de um sentido de
espaço público representa, com resultados similares, o paralelo
social adulto dessa distinção psicológica da infância; a
capacidade de simbolização de uma sociedade é enriquecida porque
a imaginação daquilo que é real, e portanto verossímil, não se
encontra ligada a uma verificação daquilo que é rotineiramente
sentido pelo eu.”106 Mediante esse paralelismo psicológico, o
autor atenta para as implicações profundas da vida pública no
plano da sociabilidade e da construção de identidades baseadas em
interesses gerais  por definição abstratos ; por isso, o
esmorecimento da vida pública conduz ao império da subjetividade
como critério de ordenação social e à perda da vontade política
como ação afirmativa no mundo. Em outras perspectivas analíticas,
a tolerância política e social, o constrangimento das
oportunidades para a irrupção de episódios e regimes
autoritários, a estabilidade das instituições da democracia e o

106
Richard Sennett, op. cit., p. 56. Já foi mencionado em anterior nota de
rodapé que convém manter em mente o vínculo entre civilização, impessoalidade e
espaço público, tal e como postulado pelo autor, pois há semelhanças
interessantes com algumas idéias centrais de Sérgio Buarque de Holanda.
95

bom desempenho das funções governamentais também têm sido


vinculados à existência de uma vida pública ativa. Uma vez que a
vida pública e a vida política não mais coincidem no mundo
moderno, a vitalidade da primeira tornou-se tema continuamente
revisitado pelo pensamento político desde o século XIX; ainda
mais, a própria possibilidade de conceber o espaço público sem
vida pública acabou por assumir feições de antinomia. Segundo
será visto logo a seguir, essa antinomia subjaz à recorrência da
vida pública no pensamento político-social do país, no qual a
vida pública, ou melhor, sua “ausência”, foi firmada como chave
principal para equacionar em negativo a configuração do espaço
público.

A institucionabilidade, a comunicabilidade e a
societabilidade referem-se a diferentes dimensões constitutivas
do espaço público na forma de processos e, principalmente, de
capacidades. Não há qualquer pendor pela criação de neologismos
no uso dessas termos, muito menos em se tratando de expressões
tão pouco estilísticas; o intuito é salientar tanto a densidade
histórica do espaço público como matriz de possibilidades, quanto
o caráter diacrônico ou processual da sua presença na construção
e efetivação de capacidades sociais que incidem na conformação de
uma determinada ordem. Não se trata, então, do estado das
associações existentes, mas das tendências e capacidades da
consociação  ou das capacidades e tendências na
institucionalização e comunicação pública de interesses. A
confluência dessas três dimensões na configuração do espaço
público é, sem dúvida, um problema de enorme complexidade,
sobretudo se levado em consideração o fato de elas estarem
constituídas por tensões e dinâmicas internas  o que impede por
completo considerar a mídia, a sociedade ou o Estado como
sujeitos, quer dizer, como princípios ou blocos monolíticos de
ação homogênea. Dentro dos limites e competência desta análise,
96

apenas é possível sustentar de maneira muito sucinta aquilo que


já se encontra nas páginas precedentes, ou seja, são condições de
estruturação do espaço público: a) a institucionalização
universal de interesses, com seus respectivos mecanismos de
acesso e de conciliação de desavenças e conflitos; b) um
determinado desenvolvimento de padrões de consociação civil, com
seus expedientes próprios de constituição, defesa e promoção de
interesses; e c) formas cristalizadas e abrangentes de mediação
comunicativa política entre o Estado, os diversos centros de
poder e a sociedade. Destarte, a configuração do espaço público
se produz na conjugação de capacidades e processos históricos em
que coincidem e se descompassam a universalização institucional
do Estado, a auto-organização da sociedade como determinação
permanente da ordem pública e as formas de intermediação
comunicativa com sentido público. No cerne de tais coincidências
e descompassos cristaliza-se historicamente aquilo que sintetiza
toda a relevância do espaço público: quem tem direito a ter
direitos e como conquista, realiza e preserva esses direitos?
97

AS DIFICULDADES DO ESPAÇO PÚBLICO NO BRASIL

9. Os públicos de auditores e a “razão romântica”

A abordagem do espaço público pode ser realizada a partir de


enfoques diversos, enfatizando ora aspectos da vida política como
as características do Estado, do funcionamento das instituições
políticas e do exercício da própria política; ora condições da
vida pública como os efeitos da organização da sociedade civil e
de segmentos sociais significativos ou o papel de certas
instituições civis relevantes; ora problemas inscritos na
dimensão da comunicação com sentido público, como os alcances da
opinião pública ou os pressupostos legais e sociais desse tipo de
comunicação  por exemplo, liberdade de expressão, no primeiro
caso; índices de alfabetização, composição dos públicos, campos
de influência social dos distintos veículos de comunicação, no
segundo. Sejam quais forem as perspectivas adotadas para encetar
a análise do espaço público em determinado contexto nacional,
seria de esperar que os esforços por desentranhar as causas de
sua configuração remetessem à ponderação de fatores pertencentes
às diferentes dimensões; contudo, o traço que mais sobressai nas
interpretações desse espaço no Brasil tem sido a centralidade
outorgada à vida pública. Com efeito, a ausência de uma vida
pública genuína é assunto denunciado pelo pensamento político-
social desde o século XIX, e, a despeito de os enfoques
disciplinares consolidados ao longo do século XX terem
multiplicado diagnósticos pautados por critérios acadêmicos, é
possível afirmar que a concepção mais influente do espaço público
no país, cristalizada nas primeiras décadas dessa centúria,
privilegiou e em certo sentido continua a privilegiar a
caracterização de uma vida pública tolhida pela pertinácia do
98

privatismo como fator que emperra a construção do espaço público


moderno.

Equacionar o estatuto heurístico conferido à vida pública


impõe obstáculos difíceis de contornar, pelo menos em dois
planos. Primeiro, o escopo temporal abarcado pela a denominação
“pensamento político-social” é demasiado amplo, e, é óbvio, o
leque de autores e diagnósticos resulta diverso o suficiente para
unificá-lo de modo artificial sob uma tradição. Delimitação mais
precisa é aqui necessária: como será mostrado na segunda parte
deste trabalho, a concepção mais difundida do espaço público no
país surge no ambiente intelectual da década de 30, quando da
extraordinária renovação do pensamento sob o signo de inédito
repertório de abordagens antropológicas, psicológicas e
sociológicas, cujos frutos são facilmente perceptíveis na
proliferação de uma vaga de reinterpretações acerca da “formação
do Brasil”, assim como dos rumos mais prováveis e dos empecilhos
a serem equacionados para “completar” o trânsito ao estatuto de
sociedade moderna. Seria possível, então, remeter a análise a
esse contexto e dispensar uma noção demasiado abrangente como a
de “pensamento político-social”; contudo, a caracterização da
vida pública foi investida de suas feições mais duradouras no
marco de uma discussão maior, que orientou parte nada desprezível
dos esforços intelectuais no oitocentos e durante boa parte do
novecentos: a questão da identidade nacional.

Assim, a tarefa de historizar a concepção mais influente do


espaço público, quer dizer, aquela que explica sua configuração a
partir das mazelas e idiossincrasias da vida pública, torna-se, a
rigor, sub-capítulo de um dos grandes temas do pensamento
político-social  entendido em acepção ampla como um pensamento
que visa “explicar o Brasil”, escapando do registro meramente
99

político ou disciplinar. 107 Cumpre mencionar que, por motivos a


serem logo explicitados, o uso da denominação “pensamento
político-social” nas páginas seguintes engloba apenas autores da
primeira metade do século XX  salvo referência expressa. O nexo
entre a recorrência da vida pública e o tema da identidade
nacional não faz senão incrementar os problemas, particularmente
em se tratando desse tema, crivado de anacronismos. A inovação
nesse terreno será abandonar, em definitivo, as chaves
interpretativas naturalistas e desenvolver releituras centradas
na “formação” secular de valores morais, padrões de conduta,
traços de caráter e tipos sociais característicos da “cultura
nacional”, do “ser brasileiro”; no cerne dessa identidade
aparecerão conjugados diversos atributos que, quando projetados
para o espaço público, assumem o estatuto de um ethos público
cujas feições, não raro, resultam bastante próximas de um
108
“pathos”. Mas a resolução desse primeiro plano de dificuldades

107
Raymundo Faoro formula interessante definição do pensamento político como um
saber informulado: “Ela, a política que não é filosofia, nem ciência, nem
ideologia, que não se extrema na ação, nem se racionaliza na teoria, ocupa, na
verdade, o espaço do que se chama pensamento político, não necessariamente
formulável, não correntemente racionalizado em fórmulas.” (Existe um pensamento
político brasileiro? p. 12.) No mesmo sentido, Michel Debrum introduz a
diferença entre ideologia “primária” e ideologia “secundária”: a primeira, como
estratégia prática sem elaboração explícita, inerente à operação dos políticos
na esfera política; a segunda, como guardiã da anterior, como seu reforço
voltado para as justificativas universalizantes, quer dizer, para a especulação
teórica. (A “conciliação” e outras estratégias, pp. 19-20, 135-6.) Em ambos os
autores, a distinção obedece à decisão de compreender e salientar a relevância
 a primazia até  desse senso comum da prática política. Nestas páginas,
todavia, a noção de pensamento político-social assume apenas o significado
amplo de um pensamento não disciplinar e não rigorosamente político, isto é,
refere-se à contribuição das idéias impressas, em obras de gêneros os mais
diversos, para a consolidação de certos temas recorrentes no pensamento da
história do Brasil. O uso específico dessa noção adquirirá contornos mais
claros no transcurso da segunda parte deste trabalho, pelo que convém reter as
distinções assinaladas acima.
108
Em termos clássicos, o ethos reenvia ao plano dos valores, enquanto o pathos
remete ao plano dos afetos, apetências e emoções. O surpreendente, neste caso,
é o fato de a nota distintiva do “ethos nacional” recair no registro
tradicionalmente reservado ao pathos, o que se torna particularmente
problemático quando esse ethos é deslocado para o espaço público por intermédio
da vida pública. Cumpre esclarecer que, embora o ethos esteja referido ao plano
dos valores, não se trata de codificações explícitas do dever ser; pelo
contrário, ele opera como eticidade, como moralidade realizada ou como conjunto
de disposições naturalizadas para se agir no mundo. Cf. Angel Nebbia, “El ethos
de la sociedad capitalista”, pp. 13-7; Luis Leñero, “El ethos cultural en la
perspectiva del cambio en las nuevas generaciones de México”, pp. 109-14 (ambos
100

e, de modo mais preciso, a análise da concepção da vida pública


como regida por um ethos pré-moderno terão lugar na segunda parte
deste trabalho. Por enquanto, convém adiar o exame nuançado da
origem e lógica explicativa desse tipo de diagnósticos,
permanecendo em condição de pressuposto o fato de serem muito
difundidas e de existir uma racionalidade comum nas
caracterizações que interpretam os déficits ou insuficiências
históricas do espaço público pela presença de profundas
deturpações na sua origem  de uma “marca de nascença”, por
assim dizer, cujos efeitos atingem diretamente a vida pública,
cancelando no nascedouro as possibilidades de sua afirmação em
moldes modernos.

Em segundo lugar, o estatuto heurístico da vida pública no


pensamento político-social vai além da mera coincidência de
conclusões animadas pela convergência de enfoques  embora
mudanças ocorridas nos referentes de conhecimento reputados
internacionalmente como científicos tenham desempenhado papel
central na construção dos discursos acerca da identidade nacional
e, por conseguinte, ainda que de maneira indireta, na
cristalização de novos registros para se pensar na vida e no
espaço públicos. A importância analítica outorgada à vida pública
também traduz, na forma de diagnósticos negativos, o problema de
equacionar a especificidade histórica da gênese do espaço público
no Brasil, ou seja, de determinar tanto seus traços constitutivos
quanto as possibilidades de transformação, no longo prazo,
inscritas nessa gênese. A partir de quando, no país, é possível
assumir a existência desse espaço  instância própria das
sociedades modernas , e quais suas características mais
significativas e, em maior ou menor medida, perenes? A pergunta é
uma das múltiplas versões daquela que talvez seja a interrogação
mais permanente a espicaçar os pensadores das sociedades

os textos in Angel Nebbia, Joseph Ferraro, Aquiles Chihu, et al., El ethos en


un mundo secular). Cf., também, Pierre Bourdieu, Cosas dichas, (1987) pp. 24-6.
101

periféricas, edificadas sob o peso secular de legados coloniais:


qual o caminho e o momento de realização da modernidade? 109 A
relevância de temas como a gênese e os conteúdos constitutivos do
fulcro da identidade nacional, dos quais a vida pública foi aqui
assunto subsidiário, apenas pode ser compreendida cabalmente
nesse registro; isto é, trata-se de indagação animada por
preocupações “civilizadoras”. Por isso, o trabalho simultâneo de
inventariar e inventar a nação constitui, a um só tempo,
reconstrução historiográfica e aposta sobre o “sentido da
história nacional”. Na definição desse sentido, diferentemente da
maioria dos países latino-americanos, foi preciso lidar aqui não
apenas com o vinco da exploração colonial, mas com as terríveis
conseqüências geradas pela continuidade da escravidão. Eis o
ponto nevrálgico: a recorrente preocupação com a vida pública no
pensamento político-social expressa, precisamente, percepção
amplamente compartilhada segundo a qual a chave do caráter
pervertido do espaço público tem de ser buscada fora desse
espaço, no âmago de uma vida privada incapaz de alimentar
quaisquer manifestações públicas genuínas porque edificada sobre
a exploração do trabalho compulsório. A precariedade da vida
pública, corrompida pela incivilidade de uma vida social fundada
na escravidão, constituiria, assim, o empecilho fundamental da
configuração originária do espaço público no país.

As páginas que se seguem permitirão mostrar algumas


dificuldades históricas para se pensar na gênese do espaço
público no Brasil e como tais dificuldades contribuem para a
compreensão da recorrência da vida pública no pensamento
político-social; simultaneamente, esboçar-se-ão os contornos mais
gerais das discussões a serem desenvolvidas com maior vagar na
segunda parte deste trabalho. É claro que para avaliar de forma
satisfatória as dificuldades postas pela história, seria preciso
engolfar-se em minuciosa reconstrução historiográfica, e, mesmo

109
Cf. Leopoldo Zea, El pensamiento latinoamericano, (1965) pp. 102-50.
102

restringida às principais fontes secundárias, a tarefa assumiria


dimensões colossais. Para além das proporções de semelhante
propósito, sua natureza escapa de longe às aptidões deste
trabalho. Contudo, e embora muito gerais, algumas observações
permitirão levantar questões  apenas isso  para problematizar
a configuração do espaço público da perspectiva das dificuldades
para equacionar sua origem, visto que a preponderância analítica
da vida pública constitui uma resposta diante de tais
dificuldades. Cabe frisar novamente que o pensamento político-
social, a concepção mais influente do espaço público e a crítica
de algumas das questões a serem agora abordadas só receberão
tratamento detalhado e historicamente contextualizado na segunda
parte, quando do exame do ethos público. Por enquanto, trata-se
de salientar grandes problemas, e, por motivos de facilidade, a
análise permanecerá presa a uma leitura “estática”, por assim
dizer, na qual os autores invocados respondem a critérios que
serão iluminados no decorrer do trabalho.

Preservando como pano de fundo a conjugação das principais


condições históricas subjacentes à emergência do espaço público
moderno, desponta de forma contrastante um conjunto de
características para as quais seria difícil não atentar em
qualquer ensejo de reconstrução da origem desse espaço no país.
Imerso nos processos seculares de alastramento do mercado e da
autonomização do social, o espaço público moderno surgiu, quanto
à vida política, no seio de Estados-nação previamente
consolidados sob a égide do absolutismo e, ademais, contou com
arcabouços institucionais de exercício e regulação da própria
política; no terreno da comunicação pública, a nota distintiva
foi a consolidação da liberdade de imprensa e a progressiva
constituição e uma sociedade letrada, que deitou raízes em
virtude da célere evolução dos índices de alfabetização e,
sobretudo, do alastramento do hábito social da leitura e da
crítica informada pelas letras impressas  crítica cuja máxima
103

expressão permaneceu consagrada na legitimidade social e política


da opinião pública ; por fim, a emergência da vida pública
exprimiu a consolidação de uma vasta parcela social a um tempo
independente do poder e do exercício direto da dominação
econômica, cuja auto-organização acabou por pôr em xeque o
domínio político, conferindo-lhe feições modernas  o princípio
da publicidade e da legitimidade social do poder. A eventual
confluência de tais condições apenas poderia ser cogitada, aqui,
a partir do final do século XIX; ainda assim, é sumamente
controverso aceitar sua cabal realização ao longo da Primeira
República. Seja como for, os contrastes sugeridos por essas
condições permitem abordar alguns problemas que, em maior ou
menor grau, apontam para as dificuldades enfrentadas pelo
pensamento político-social quando colocado diante da tarefa de
equacionar a especificidade do espaço público. Os fatores de
maior peso para a centralidade da vida pública correspondem aos
efeitos do regime de trabalho servil, e aos descompassos da
relação entre o Estado e a sociedade, mas convém aproveitar o
ensejo para explorar certos aspectos da difusão pública das
idéias.

No plano da circulação pública das idéias apenas é preciso


recordar que as Provisões e Cartas Régias proibiram a impressão
de qualquer material na colônia  inclusive os de cunho
religioso. Assim, ao longo dos séculos XVII e XVIII, provinham
das imprensas lisboetas as publicações que contavam com a vênia e
censura do soberano, da Igreja e da Inquisição para serem
introduzidas nos territórios ultramarinos  mesmo no caso raro
de livro escrito acerca da e na colônia, como o do padre André
João Antonil.110 Em conseqüência, enquanto o fervilhar das idéias
era signo distintivo setecentista dos países europeus que ocupam
a posição de modelo nas grandes reconstruções do espaço público,

110
Trata-se da famosa obra do jesuíta: Cultura e opulência do Brasil por suas
drogas e minas, impresso no reino em 1711 e logo apreendido e destruído.
104

aqui havia duas alternativas: conformar-se com a parca circulação


de idéias e informações adequadas aos interesses da Coroa, ou
recorrer ao contrabando, que, conforme registrado nos autos da
época, tornou-se prática cada vez mais comum de certos segmentos
da elite. 111 Ambas as alternativas ampliaram seus horizontes com o
traslado da família real e com a abertura dos portos, mas ainda
assim, no primeiro quartel do século XIX a imprensa áulica e seu
repertório restrito de temas e documentos oficiais era a única
fonte de informação autorizada; por sua vez, se os grandes
documentos políticos do momento e a literatura ilustrada
tornaram-se mais acessíveis pela abertura dos portos, sua leitura
e posse continuou a ser tipificada como ousadia de lesa-
majestade. Tal panorama só mudara após 1822, e, embora os
primórdios da imprensa independente estivessem crivados de
episódios de repressão, sem dúvida tratou-se de conseqüências e
retaliações políticas do debate público das idéias  cujo
pressuposto é a incidência sobre as camadas sociais “aptas” para
a formação de opinião. 112 Sem dúvida, essas camadas eram bastante
reduzidas, e isso traz à tona mais uma especificidade
contrastante quanto à gênese do espaço público; particularmente
no que diz respeito à consolidação e ampliação do campo próprio
da literatura, à propagação do hábito social da leitura e à
prática das discussões literárias em público enquanto
antecedentes do processo de definição de uma opinião pública de
caráter político.

A conexão entre a emergência de uma nova literatura


simbolizada pelos romances epistolares e intimistas, e de um
público de espectadores e sobretudo de leitores confiante em sua
função crítica, de um lado, e a difusão do julgamento social do

111
Cf. Nelson Werneck Sodré, História da imprensa no Brasil, pp. 11-33.
112
Para uma análise da imprensa nos conturbados anos que vão da independência à
regência, cf. ibid., pp. 69-95. Também Antonio Candido enfatiza a vinda da
corte como “[...] o acontecimento mais importante da nossa história
intelectual e política.” Formação da literatura brasileira  Momentos
decisivos, 1o. Volume (1750-1836), (1956-1957) p. 217; cf. pp. 215-24.
105

poder a partir de critérios não subordinados à lógica da


política, do outro, tem sido frisada de perspectivas distintas
pelas grandes análises do espaço público. No Brasil, o nexo entre
literatura e política estabeleceu-se de modo muito diferente. O
escopo temporal é menos antigo, remontando às primeiras décadas
do século XIX, nas quais proliferaram tanto manifestações
literárias dirigidas a públicos razoavelmente regulares, quanto
associações político-culturais imbuídas de ideais patrióticos e
civilizadores  em presuntiva consonância com as referências
disponíveis do pensamento iluminista.113 A sintonia de tais
associações com os rumos gerais da história européia deveu
parecer tão evidente, pelo menos até o desfecho imperial da
independência, que Hipólito José da Costa escreveu no seu
periódico londrino, o Correio Braziliense: “[as sociedades
particulares] correspondem a uma necessidade de organização
social,  pois a marcha da civilização está ligada à
diferenciação social  e condicionam o próprio funcionamento do
Estado, ao se interporem entre eles [sic] e os indivíduos, cujas
atividades definem e coordenam.” 114 Nessa passagem, é notável a
cristalização ideológica do processo histórico de consolidação da
sociedade civil, a cuja opinião e associações autônomas é
conferido, além do estatuto de materialização civilizadora, o
papel de intermediação social perante o Estado. Deixando à parte
a composição social da sociedade oitocentista, marcada
precisamente pelo caráter engessado da “diferenciação social” e
pela raquítica “organização social”  questões a serem retomadas
no último item desta seção , cabe salientar que, a despeito do
paralelismo promissor de Hipólito da Costa, o romantismo se
encarregaria de mostrar a premência da estruturação simbólica e
política do Estado-nação como problema emanado da independência.

113
Cf. Antonio Candido, Literatura e sociedade  Estudos de teoria e história
literária, (1973) pp. 93-102.
114
Citado por Antonio Candido, Formção da literatura..., op. cit., 1o. volume,
p. 221; apud Correio Braziliense, vol. III, pp. 141-9 e 269-76. O periódico foi
publicado entre 1808 e 1823; cf. Nelson Werneck Sodré, op. cit., pp. 24-33.
106

Assim, o vínculo mais significativo entre política e literatura


assumiu aqui conotações diferentes e quase inversas às da “razão
letrada” do Iluminismo. O romantismo não postulou a razão e a
crítica como princípio de identidade social contra o poder, mas
colocou diante de si uma “missão patriótica”  decerto consoante
com os desafios simbólicos da consolidação política e territorial
do Estado : desenvolver uma autêntica literatura nacional e
desvendar o caráter da própria identidade nacional. 115 Como
contrapartida, a vocação modernizadora implícita no nexo entre a
missão literária e a construção do Estado-nacional outorgou boa
parte de sua especificidade ao romantismo brasileiro. É irônico e
surpreendentemente elucidativo o fato de esse movimento ter
expressado, na Europa, uma reação antimoderna ao universalismo
racional ilustrado, enquanto no Brasil tornou-se, a um tempo,
registro emotivo dominante do pensamento modernizador
comprometido com os desafios “civilizatórios” do Estado, e arauto
da “autenticidade nacional” diante do legado luso. 116

Quanto à propagação do hábito social da leitura, basta


mencionar algumas cifras eloqüentes, que não apenas vão ao
encontro das restrições à imprensa sumariadas acima, mas
reforçam-nas ao apontar para a ausência de condições favoráveis à
circulação ampla das idéias escritas. Nos primeiros anos da
década de 1790, o Rio de Janeiro contava com uma só livraria,
aumentando a duas em 1799, quatro entre 1807 e 1817, e oito em
1821; a Biblioteca Real abriu sua portas ao público só em 1814 e
nas outras cidades coloniais a situação era semelhante, apenas
atenuada pela existência de acervos nos mosteiros e em algumas

115
Cf. Antonio Candido, Formação da literatura brasileira  Momentos
decisivos, 2o. Volume (1836-1880), (1956-1957) pp. 11-30.
116
O segundo aspecto sói merecer maior atenção na lietratura; cf. Roger Bartra,
La jaula de la melancolía  Identidad y metamorfosis del mexicano, pp. 121-5;
Dante Moreira Leite, O caráter nacional brasileiro  Historia de uma ideologia,
(1954 e 1968) pp. 23-9, 32-6.
107

casas de particulares.117 Enquanto na França e na Inglaterra


atingiram-se porcentagens de alfabetização superiores a 90% ao
longo do século XIX, no Brasil o acesso à leitura permaneceu como
marca de classe: a população letrada na última década dessa
118
centúria não era maior de 16%. Assim, à rarefeita atmosfera do
ambiente literário, nutrido por escassas edições de livros,
gazetas, revistas, periódicos, boletins e cópias volantes, é
preciso adicionar os minúsculos estímulos do consumo para a
comercialização de materiais impressos e o caráter sumamente
restrito de uma opinião pública letrada, imersa em um oceano de
analfabetismo. Porém, perante os estreitos alcances das letras
impressas, outras foram as instâncias de difusão das idéias e dos
acontecimentos, e outras as feições da escrita, dos gêneros
jornalístico e literário, e dos escritores  esses últimos
acompanhados por elenco de personagens sociais cuja função era
comunicar mediante a fala: oradores, conferencistas, recitadores
e pregadores. Nas palavras de Antonio Candido: “[...] formou-se,
dispensando o intermédio da página impressa, um público de
auditores, muito maior do que se dependesse dela e favorecendo,
ou mesmo requerendo no escritor certas características de
facilidade e ênfase, certo ritmo oratório [...§] o homem de
letras foi aceito como cidadão, disposto a falar aos grupos
[...].”119 Destarte, além do bulício discreto das reduzidas ligas,
agrupações político-culturais e sociedades secretas como as lojas
 aliás, aqui também vinculadas ao poder como atestado nada mais

nada menos que pelo maçônico príncipe regente Dom Pedro120 ;

117
Cf. Antonio Candido, Formação da literatura..., op. cit., 1o. Volume, pp.
218-20; Nelson Werneck Sodré, op. cit., p. 11-19.
118
Cf. Renato Ortiz, A moderna tradição brasileira  Cultura brasileira e
indústria cultural, pp. 23-4 e 28; também pp. 45-6.
119
Antonio Candido, Litertura e sociedade..., op. cit., p. 96.
120
Nas fileiras da maçonaria, particularmente dentro da loja Grande Oriente do
Brasil, dirigida por José Bonifácio de Andrada e Silva, o príncipe regente
escolhera para si pseudônimo pleno de ressonâncias românticas: Guatimozim  à
época, grafia do último imperador asteca com sufixo reverencial (Cuauhtemoc-
tzin). Aliás, o nome do penúltimo imperador asteca  Moctezuma  fora
utilizado por Gomes Brandão, fundador da Sociedade dos Jardineiros na Bahia.
Cf. Paulo Prado, Retrato do Brasil  Ensaio sobre a tristeza brasileira, (1927)
108

além da urdidura pouco ajustada dos cafés, saraus e outros


lugares e eventos freqüentados pelo setores sociais letrados;
multiplicaram-se aqui os expedientes rotineiros mediante os quais
se veiculavam, para públicos mais amplos regidos pela oralidade,
as idéias processadas nos modestos confins da “república das
letras”.

Os efeitos coetâneos dessa oralidade constituem um filão de


análise instigante para se pensar na gênese do espaço público.
Alguns autores, indo mais longe, reputam-nos responsáveis por
influências de longo prazo: quer pelas feições mais
características da literatura brasileira, que sempre estaria
disposta a suavizar o esforço da compreensão oralizando a prosa;
quer pelo suposto teor dependente e autoritário de uma cultura
auditiva, inerentemente superficial, intuitiva, de memória curta
e, por isso mesmo, presa fácil dos efeitos em demérito do
raciocínio; quer pela simbiose entre a cultura “culta” ou
restrita e a cultura comercial ou ampliada  simbiose expressa
de maneira nítida na tradicional fusão das figuras do jornalista
e do literato, que antecipou em décadas os traços híbridos
presentes na origem da indústria cultural e dos meios de
121
comunicação de massas. À margem de hipóteses arrojadas como as

pp. 170-1; João Camilo de Oliveira Torres, Interpretação da realidade


brasileira  Introdução à história das idéias políticas no Brasil, p. 272.
121
Estendendo sua caracterização do público de auditores além do que pareceria
prudente, Antonio Candido eleva a oralidade ao estatuto de traço distintivo da
literatura brasileira: “A grande maioria dos nossos escritores, em prosa e em
verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som de sua voz
brotar a cada passo por entre as linhas.” “Estas considerações mostram porque
não há quase no Brasil literatura verdadeiramente requintada [...] inacessível
aos públicos disponíveis. A literatura considerada de elite na tradição
ocidental [...].” (Literatura e sociedade..., op. cit., pp. 96 e 102,
respectivamente) Em livro que promove a formulação de Candido a patamares ainda
mais abrangentes, Luiz Costa Lima postula o caráter auditivo do sistema
intelectual brasileiro, estabelecendo uma relação entre oralidade,
intuicionismo, autoritarismo e dependência culturais. (cf. Dispersa demanda 
Ensaios sobre literatura e teoria, pp. 3-20) De forma muito mais mediada,
Renato Ortiz identifica a inexistência de uma público de leitores e a correlata
indistinção entre literatura e jornalismo como índices nítidos de que o mercado
 a “fragilidade do capitalismo”  não comportou aqui uma diferenciação da
cultura e do trabalho intelectual. (cf. A moderna tradição..., op. cit., pp.
17-37, 45, 65, 69 e 72)
109

duas primeiras, não se precisa grande argúcia para perceber que o


advento da era do rádio e suas misteriosas ondas hertzianas,
exploradas exaustivamente pelo Estado getulista, encontrou as
bases de sua recepção social em públicos compostos em boa medida
por analfabetos. Se, de um lado, a transmissão massificada e de
longa distância  pela já mítica Rádio Nacional  permitiu
estender as repercussões da comunicação pública, entretecendo o
imaginário de públicos amplos pela construção de sentidos que
“[...] cruzando o espaço azul vão reunindo corações do norte e do
sul”;122 do outro, a lógica da mensagem radial deve ter reforçado
o caráter ágrafo dos públicos de auditores, embora tenha
promovido os processos de formação de opinião a uma “oralidade de
segunda ordem”  por assim dizer. 123

10. O “divórcio” entre a sociedade e o Estado

Outro tipo de contrastes de maior envergadura quanto à


configuração do espaço público, que não as condições
oitocentistas da comunicação pública, exercem especial atenção
sobre o pensamento político-social, a saber, as características
“atípicas” da articulação do binômio moderno Estado/sociedade.
Não se trata de preferência estranha ou inexplicável, pois, de
fato, a emergência do Estado-nacional e da autonomia do social

122
Refrão entoado pelas Irmãs Miranda em 1936. A citação provém do belo
trabalho de Nicolau Sevcenko, “A capital irradiante: técnica, ritmos e ritos do
Rio”, in Nicolau Sevcenko (org.), História da vida privada no Brasil 
República: da Belle Époque à Era do Rádio, p. 586; para a análise da rádio cf.,
especificamente, pp. 585-97.
123
Esse quadro mudou apenas lentamente, não apenas porque os índices de
analfabetismo continuaram superiores a 50% até meados do século, mas também
porque o império da imagem televisiva, esparsa e intimista se comparada com as
projeções nas telas do cinema, só conquistou posição de rivalidade no último
quartel do século; isto é, mais de duas décadas após a primeira emissão de TV
(1950). Para a acidentada e improvisada trajetória da TV, cf. Renato Ortiz, A
moderna tradição..., op. cit., pp. 57-64, 84-101. O auge da TV coincide com o
extraordinário boom do mercado cultural no período da ditadura  mercado
fonográfico, editorial, cinematográfico e publicitário; cf. ibid., 113-48.
Também cf. Esther Hamburger, “Diluindo fronteiras: a televisão e as novelas no
cotidiano”, in Lilia Moritz Schwarcz (org.), História da vida privada no Brasil
 Contrastes da intimidade contemporânea, pp. 440-87; especificamente pp. 444-
59.
110

antecedem histórica e logicamente o desenvolvimento das


instituições civis da opinião pública, e constituem sua condição
de possibilidade. Interessa abordar esse binômio a partir da
problemática da consolidação política do Estado e da construção e
sua coincidência simbólica e política com a “nação”, tendo em
vista que a centralidade da vida pública decorre simultaneamente
da reiterada postulação dos descompassos ou “desarmonia
histórica” de ambos os pólos e da caracterização das
conseqüências do trabalho compulsório para a vida social. Por
razões óbvias, a delimitação temporal não poderia remontar à
transição dos séculos XVII e XVIII, segundo a periodização
corrente nas análises aqui contempladas, sendo bem conhecido que
a organização política do Estado e a edificação nacional foram,
por excelência, o desafio político e intelectual do oitocentos no
país  como de resto no conjunto da América Latina. A “tardia”
edificação do Estado e o vigor dos poderes regionais a obstarem o
processo de centralização política levantam sérias dificuldades
para se pensar na origem do espaço público no país, se levado em
consideração o pressuposto da consolidação do Estado nacional. A
isso é preciso aunar as formidáveis tensões e defasagens entre as
questões nacional e do Estado: a continuidade da estrutura
econômica colonial e, por conseguinte, do regime de trabalho
compulsório, põem em xeque o caráter vinculante das instituições
políticas ao longo do século XIX e apontam para o conflito entre
as tarefas da integração social  nação  e os imperativos do
ordenamento político estável  Estado.

O primeiro dos aspectos recém-enunciados, ou seja, a


impossibilidade de admitir a efetiva existência do Estado-nação
como um dado do século XIX, foi ponto cego para boa parte do
pensamento político-social. Já o segundo aspecto introduz a
relação Estado/sociedade, e a esse respeito há interpretações
consagradas com posturas muito divergentes, irreconciliáveis até,
cujos diagnósticos são passíveis de sistematização como oscilando
111

entre dois extremos: ora conferindo primazia inconteste ao pólo


da sociedade ou privado, vigoroso ante a impotência de um poder
público “sumítico”  para dizê-lo com Gilberto Freyre ; ora
outorgando superioridade ao pólo do Estado ou de sua burocracia,
que exerceriam sua força infrene perante a fraqueza e
desorganização da sociedade.124 A rigor, tal dualismo opera no
plano heurístico como uma dicotomia capaz de informar leituras
abrangentes acerca de problemas os mais variados: de um lado, o
“Brasil real” com seus múltiplos desdobramentos ruralistas,
servis, patriarcais, centrífugos, latifundiários, familistas,
oligárquicos, privatistas e clientelistas; do outro, o “Brasil
legal” ou “oficial”, munido por uma miríade de atributos por via
de regra opostos  urbano, centralizador, industrioso,
individualista, impessoal, racionalizador e, não raro, artificial
e autoritário. 125 É claro que, em função do contexto histórico e
do autor considerado, ambos os pólos têm sido revestidos de
ponderações positivas ou negativas, como atestado de modo
exemplar pelo pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, em
comparação com o de Freyre quanto aos efeitos do legado rural e
patriarcal; ou pela obra de Francisco de Oliveira Vianna, se
comparada com as teses críticas de Raymundo Faoro com respeito ao
papel histórico do Estado  ou do estamento burocrático, para
utilizar os termos do autor.126 As conotações positivas ou

124
A persistência desse dualismo hierárquico e de suas implicações para a
compreensão do espaço público foi explorada no trabalho de Eli Diniz e Renato
Raul Boschi, “O corporativismo na construção do espaço público”, in Renato Raul
Boschi, Corporativismo e desigualdade  A construção do espaço público no
Brasil, pp. 11-29. Cf., também, José Murilo de Carvalho, Os bestializados...,
op. cit., pp. 9-14 e 140-60.
125
Em aguda análise, Angela de Castro Gomes reconstrói o dualismo
aproximadamente nesses termos, cf. “A política brasileira...”, op. cit., pp.
497-503.
126
Cf. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, (1936) pp. 79-85 e 141-51.
Aliás, o autor lançou mão de alegoria das mais clássicas possíveis para figurar
o sentido radical da contraposição e o caráter trágico do compromisso
civilizador do Estado: o conflito entre Antígona e Creonte  não casualmente
também invocado por Hegel como momento do desventurado caminho da consciência no
progressivo percurso da universalização da eticidade. Em poucas palavras,
malgrado as crises ocasionadas por sua intervenção racionalizadora, Buarque de
Holanda apresenta o Estado como transcendência incumbida de abolir a ordem
familiar, cujos princípios são por definição incompatíveis com qualquer forma
112

negativas, inerentes à postulação da preponderância do Estado ou


da sociedade, não raro investem ambos os termos de atributos
perenes, cuja renitência definiria, precisamente, o perfil da
sociedade ou do Estado, segundo o caso: vitalidade e
plasticidade, ou particularismo e insolidariedade sociais;
autoritarismo e patrimonialismo, ou racionalidade e organicidade
estatais  para citar apenas alguns atributos facilmente
reconhecíveis.

Não é o propósito reputar plausível alguma das teses


empenhadas em explorar a primazia do pólo social sobre o estatal,
ou vice-versa; hoje é crescente a percepção de que tais
aproximações unilaterais distraem a atenção do problema mais
importante, qual seja, a especificidade da trama de mediações a
vincular e separar ambos os pólos, decerto bastante complexa e
cuja cabal compreensão não admite oposições em termos de ganhos e
perdas de soma zero. Entrementes, pareceria descabido atribuir
semelhantes divergências tão-somente a mudanças de contexto ou à
filiação autoral a distintas linhagens conceituais e políticas;
antes, a afirmação dos pólos desse dualismo também espelha
dificuldades impostas pela própria história do país. A enorme
continuidade da estruturação colonial da vida econômica e social
pelo século XIX adentro, aunada às mudanças na ordem das
instituições políticas, levanta o problema de um descompasso
histórico a ser equacionado pela reflexão; problema cuja fórmula
mais acabada no pensamento político-social pode ser expressa, de
maneira sintética, como o pressuposto do “descolamento” entre a

de ordenamento geral e abstrato da sociedade (ibid,, pp. 141-2). Cf., também,


Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala  Formação da família brasileira sob o
regime de economia patriarcal, (1933) pp. 24-6, 116-23; Gilberto Freyre,
Sobrados e mucambos  Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do
urbano, (1936) pp. XLIII-VII, LXXI, XC-I; Francisco Oliveira Vianna, O idealismo
da Constituição, (1924) pp. 87-8, 98-101, 229-32, 236, 243-8; Raymundo Faoro,
Os donos do poder  Formação do patronato político brasileiro, (1958) pp. 12,
39, 45, 52, 72-9, 124, 130, 185-93.
113

sociedade e o Estado.127 Com efeito, francas discrepâncias e


divergências de matiz convergem para o consenso quanto ao
“divórcio” entre ambos os termos  seja porque a inexistência de
uma opinião pública organizada e permanente travou a salutar
sintonia entre a vida social e política, ao modo do parlamento
inglês cuja sensibilidade tanto maravilhou a Oliveira Vianna,
pois “[...] semelhava o synchronismo de uma agulha de
sismógrapho”; seja porque da coagulação secular do estamento
burocrático resulta “[...] que a nação e o Estado se cindem em
realidade diversas, estranhas, opostas, que mutuamente se
deconhecem”, como sustentado com prolixidade por Faoro; ou ainda
porque, no extremo oposto, a família patriarcal forneceu o único
e obrigatório modelo de organização das relações sociais,
inclusive das de cunho político, emperrando o funcionamento
abstrato e universalista do Estado e de suas instituições,
conforme argumentado com nuanças e conseqüências diversas por
128
Freyre e por Buarque de Holanda.

Tal convergência no pensamento político-social teve efeitos


duradouros no entendimento dos fenômenos sociopolíticos e
constitui, sem dúvida, referência particularmente relevante no
que tange à caracterização do espaço público, pois em última
análise trata-se de elaborar uma interpretação genética desse
espaço  por definição intermediário entre a sociedade e o
Estado  em contexto nacional onde o binômio fora concebido a
partir do pressuposto de seu desacoplamento. Se a vitalidade e
solidez das instituições democráticas reclama um intrincado jogo
de pressões e freios, a assimetria entre a sociedade e o Estado
animará diagnósticos a apontar para vida pública quer como a
“maromba” capaz de estabelecer o equilíbrio, quer como ausência

127
A sugestiva idéia do “descolamento” aparece em José Murilo de Carvalho,
“República e ética, uma questão centenária”, in Renato Raul Boschi,
Corporativismo e..., op. cit., p. 37.
128
As citações provêm de Francisco de Oliveira Vianna, O idealismo..., op.
cit., p. 222; Raymundo Faoro, Os donos..., op. cit., p. 268. No caso de Buarque
de Holanda e Gilberto Freyre, vide a nota de rodapé 125.
114

ocasionada pelos traços mais arraigados da ordem social. Eis uma


das vias que conduzem à centralidade da vida pública, todavia, a
implicação de maior importância está um passo adiante e diz
respeito à concepção mais difundida do espaço público nos três
últimos quartéis do século XX. A caracterização da vida pública
como se estivesse regida por um ethos tipicamente nacional,
enquanto chave explicativa da configuração do espaço público,
contou de forma invariável com o concurso de autores que não
apenas firmaram a cisão entre a sociedade e o Estado,
esquadrinhando seus efeitos, mas também postularam o predomínio
esmagador do particularismo da vida social sobre a vida política;
isto é, encontravam-se posicionados no mesmo pólo do dualismo
examinado acima. Não é uma coincidência fortuita, pelo contrário,
a centralidade da vida pública decorre, precisamente, da primazia
outorgada ao pólo privado enquanto modelo de ordenamento do
conjunto das relações sociais, inclusive as de índole política.
Assim, o pressuposto do desacoplamento entre a sociedade e o
Estado e o eventual privilégio analítico da vida social e,
indiretamente, da vida pública constituem uma saída possível no
plano da interpretação para dificuldades colocadas no terreno da
história.

Embora hoje seja possível historizar e elaborar com maior


precisão os contornos dessas dificuldades, graças à vertiginosa
acumulação do conhecimento acadêmico, os vínculos entre Estado e
sociedade, democracia e cidadania, governabilidade e governança,
economia e integração social, entre outros, aparecem no elenco
das principais preocupações intelectuais, exigindo novas
reformulações dos descompassos não superados ao longo do século
XX. Foi mencionado que um primeiro aspecto se impunha por seu
próprio peso, a saber, a tardia e difícil edificação do Estado
nacional. Que o horizonte histórico da construção do Estado-nação
foi inaugurado com a extinção formal da situação colonial 
antecedida pela abertura dos portos e pelo traslado da família
115

real , é fato óbvio; entretanto, a proclamação da independência


dista de ser divisor de águas que de súbito improvisou tanto a
nação quanto seu ordenamento político. Como será visto na segunda
parte, é pressuposto comum em diferentes vertentes do pensamento
político-social, dos séculos XIX e XX, a existência da entidade
“Brasil” ao longo do período colonial e até, nos casos mais
extremos, desde o momento em que a expedição de Pedro Álvares
Cabral desembarcara nestas terras. Enquadrada dentro de
parâmetros acadêmicos, a historiografia ressalvou-se perante tais
excessos, mas por vezes preservou a idéia de unidade territorial,
a partir do século XVIII, e da constituição da nação no XIX. 129 Na
verdade, no percurso de boa parte do século XIX o Estado é
projeto em disputa, mais do que realidade constituída; o cenário
é dominado pela articulação das elites escravagistas em torno à
Corte, criando pretensões de unificação política dos antigos
130
territórios coloniais. A vastidão desses territórios e os
sólidos interesses regionais neles arraigados, cujo denominador
comum era a preservação do regime de trabalho forçado,
dificultaram a tarefa de consolidar a identidade entre o
princípio da soberania política e o espaço geográfico no qual ela
deve ser efetivamente exercida. Além do mais, tal coincidência
também reclamava a invenção de um componente simbólico de

129
Em pesquisa alentada, Luiz Felipe de Alencastro demonstrou recentemente a
ausência de uma espacialização colonial unitária ou do “território colonial”;
os vínculos realmente constitutivos dos territórios decorrem do tráfico
negreiro, fundindo os interesses das áreas de compra de escravos, deste lado do
Atlântico, com as áreas de venda no continente africano  isto é, há unidade
entre Bahia e Angola, mas não entre a primeira e São Paulo; daí a
“interpretação aterritorial da formação do Brasil contemporâneo”. A tese do
autor, amplamente documentada, tem desdobramentos fundamentais para o século
XIX: a independência não extinguiu a lógica endógena dos territórios e a
unidade política foi ancorada na continuidade do suprimento do trabalho escravo,
resguardado pela Casa Real dos Bragança. Cf. Luiz Felipe de Alencastro, Os
luso-brasileiros em Angola: constituição do espaço econômico brasileiro no
Atlântico Sul 1550-1700, particularmente os capítulos “O aprendizado da
colonização”, “Escravos da Guiné e escravos da terra” e “singularidade do
Brasil”.
130
Cf. Miriam Dolhnikoff, Construindo o Brasil: unidade nacional e pacto
federativo nos projetos das elites (1820-1842), pp. 3-6, 53-92. Para uma
análise do papel desempenhado pela formação lusa das elites na preservação da
unidade nacional, cf. o conhecido trabalho de José Murilo de Carvalho, A
construção da ordem  A elite política imperial, pp. 15-22, 41-51, 177-83.
116

vagarosa decantação: o pressuposto moderno, por sinal sempre


anacrônico, de o território e o poder exprimirem uma unidade
“natural” atrelada a um fundo comum primigênio: a identidade
nacional. 131

Na medida em que a “identidade nacional” implica a


existência de vínculos morais e a adesão a um sentido histórico
herdado e voluntariamente compartilhado, ela traz à tona o
segundo aspecto já salientado, de extraordinária relevância no
que diz respeito à difícil relação entre as problemáticas do
Estado e da nação  cuja “coincidência” ou “conciliação” aparece
como pressuposto dos modernos Estados nacionais. À margem da
violência largamente exercida para construir a identidade entre o
Estado e a nação, não há dúvida quanto ao papel desempenhado pelo
progressivo alargamento da cidadania como pedra angular que
viabilizou o nexo entre subordinação e incorporação em
132
comunidades políticas estatalmente organizadas. No Brasil, as
tensões e descompassos históricos entre o desafio da construção
de uma ordem política  sintetizada na cristalização do Estado 
e a questão nacional ou da integração social revelaram-se

131
Charles Taylor compara as idéias modernas de “nação” e de “soberania do
povo” por compartilharem o estranho pressuposto de que ambas as identidades
precedem à organização política, que, de fato, é responsável por sua
constituição (cf. “¿Qué principio de identidad colectiva?”, pp. 133-7). No
Brasil, coube ao pensamento romântico a “largada” no esforço de inventar
simbolicamente a nação, mas ecos desse ensejo prolongaram-se até o século XX
sob temas como identidade, caráter, alma, cultura, espírito, idiossincrasia e
personalidade “nacionais” ou do “povo”. Os estudos mais conhecidos de
sistematização dessas idéias no pensamento político-social correspondem a Dante
Moreira Leite, O caráter nacional..., op. cit.; e Carlos Guilherme Mota,
Ideologia da cultura brasileira (1933-1974), (1977). No plano da
historiografia, a tradição orientada pela idéia de “formação da nação” ou
“formação do Brasil”  bildung , também partilha em alguma medida o
anacronismo desse pressuposto: a atribuição de um sentido “nacional” a fatos e
processos ocorridos muito antes de que a questão nacional emergisse como
problema histórico relevante.
132
O texto clássico nessa matéria foi publicado por T. H. Marshall, em 1949,
sob o título Class, citizenship and social development. Na concepção do autor,
a evolução da cidadania começou nas primeiras décadas do século XIX com os
direitos civis  liberdade individual , progredindo para os direitos políticos
e, como decorrência de sua progressiva ampliação, para os direitos sociais (pp.
71 e ss.). O contraste com a experiência brasileira, onde a evolução seria
inversa, foi explorado no trabalho Desenvolvimiento de la ciudadania en Brasil,
de José Murilo de Carvalho.
117

praticamente incontornáveis. A distância entre ambos os termos


manteve proporções abissais, até o ponto de tornar impronunciável
sua causa: os românticos, que encetaram a busca da identidade
nacional, exacerbaram as cores rutilantes, a prodigalidade da
natureza e o indianismo como componentes remotos de um passado
comum imaginário, enquanto cobriram de silêncio o fato mais
gritante da realidade local  a escravidão.133 Após a
independência, a consolidação da ordem política colocou em
primeiro plano os interesses dos grupos regionais e sua disputa
por definir um arcabouço institucional que, a um tempo,
preservasse sua autonomia e garantisse a reposição do trabalho
compulsório; por conseguinte, a representação simbólica do
nacional e o eventual caráter integrador das instituições
políticas foram esvaziados de efetividade diante de uma realidade
social esgarçada.

Com o advento da Primeira República, o dilema foi


reeditado, e, mais uma vez, o desafio da consolidação e
continuidade das novas instituições ocupou posição de privilégio,
cancelando a possibilidade da integração social pela efetivação
da cidadania política. “O problema central a ser resolvido pelo
novo regime era a organização de outro pacto de poder, que
pudesse substituir o arranjo imperial com grau suficiente de
134
estabilidade.” Ainda mais, a centralização política do poder

133
Cf. Antonio Candido, Formação da literatura...., op. cit., 1o. Volume, pp.
181-4; Antonio Candido, Formação da literatura..., op. cit., 2o. Volume, pp. 11-
21; Pedro Puntoni, “A Confederação dos Tamoyos de Gonçalves de Magalhães  A
poética da história e a historiografia do Império”, pp. 119-24.
134
José Murilo de Carvalho, Os bestializados..., op. cit., p. 31. É bem
conhecida a tese do autor, segundo a qual: i) a República preservou feições
oligárquicas e, embora erigida sob o ideário liberal, manteve as portas
fechadas à participação política das maiorias, relacionando-se com elas como
objeto de seus projetos de modernização; ii) o povo, altamente participativo em
eventos de seu interesse, preservou uma relação de estranhamento com as
instituições republicanas, ciente “[...] de que o real se escondia sob o
formal. Neste caso, os que se guiavam pelas aparências do formal [formas
jurídicas e institucionais] estavam fora da realidade” (pp. 159-60); e iii) os
vínculos entre o mundo formal e o mundo real ocorriam de forma híbrida, em área
cinzenta de entrelaçamento da ordem com a desordem  o uso político de capangas
e capoeiras, por exemplo , configurando uma espécie de “estadania”. Cf.,
também, Angela de Castro Gomes, “República, trabalho e cidadania”, pp. 69-79.
118

foi processo repleto de vicissitudes e conflitos, cujo desfecho


mais definitivo em favor das instituições centrais só ocorreu
após a revolução de 30, definindo nova matriz para o Estado e,
por conseguinte, para a configuração do espaço público. 135 No
plano da integração ou da institucionalização política de
interesses populares, há razoável consenso na literatura acerca
das mudanças acarretadas para a configuração do espaço público
pelo Estado getulista, que mediante a instauração do
corporativismo, a regulação das profissões e a legislação social
“[...] forneceu as bases institucionais para um novo padrão de
regulação público/privado, que diferiu fundamentalmente das
relações prévias fundadas na visão do público como mera extensão
do privado.” 136 Também é amplamente sabido que o
reconhecimento/concessão dos direitos sociais assumiu feições de
uma gigantesca empreitada de integração social nacional, mais do
que de uma regulação do mercado em decorrência das pressões de
atores organizados conforme os princípios democráticos liberais.

Assim, pela primeira vez as questões da ordem política e da


integração social apareciam conciliadas, enquanto a identidade
entre o Estado e a nação encontrava suporte simbólico férreo e

135
A contrapelo das interpretações mais usuais, Elisa Reis reconstrói com
agudeza as bases republicanas da centralização do poder herdadas e aproveitadas
pelo Estado getulista. O ponto forte de sua análise reside tanto em recusar os
dualismos sociedade/Estado e interesse privado/ interesse público, quanto em
mostrar que a promoção dos interesses da oligarquia cafeeira não foi empecilho
para a consolidação do Estado, antes, firmou sua capacidade funcional e
territorial de intervenção. Cf. Elisa Reis, “Poder privado e construção de
Estado sob a Primeira Rapública”, in Raul Renato Boschi (org.), Corporativismo
e..., op. cit., pp. 43-79.
136
Eli Diniz e Renato Raul Boschi, “O corporativismo na...”, op. cit., p. 17. A
Constituição imperial de 1824, a republicana de 1891 e inclusive a revisão
constitucional de 1926 preservaram intocado o caráter privado das profissões,
sua liberdade segundo o ideário liberal; só a partir da Constituição de 1934 a
ordem econômica e social será consagrada juridicamente como área de intervenção
do Estado. Cf. o valioso trabalho de Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania
e justiça  A política social na ordem brasileira, (1979) pp. 15-37; cf.,
também, Sônia Miriam Draibe, “O ‘welfare state’ no Brasil: características e
perspectivas”, in Ciências sociais hoje  1989, pp. 29-41; e Marcus André B. C.
de Melo, “Atores e a construção histórica da agenda social do Estado no Brasil
(1930/1990)”, in Ciências sociais hoje  1991, pp. 270-9.
119

verossímil na figura do presidente Vargas.137 Também o espaço


público fora ampliado em conexão direta com mecanismos de
participação e organização da sociedade, mas tudo isso ocorreu
nos moldes funcionais de uma representação corporativa de
interesses e em contexto de vulnerabilidade das instituições da
democracia, o que incidiu profundamente na configuração do espaço
público. Se, no modelo liberal desse espaço, a vida pública é
expressão máxima da autonomia do social, na experiência
corporativa ela tornou-se prolongação do Estado limitada a
veicular demandas através de organizações previamente
reconhecidas na lei; mais como manifestação tipificada de
encargos técnico-burocráticos do que como exercício do dissenso
político ou da formação social de opinião. Sem sombra de dúvida,
o espaço público foi alargado em distintas direções: a mídia fez
incursão definitiva na vida política por intermédio do rádio e,
em menor medida, das imagens fílmicas, incorporando as massas e
em especial o trabalhador a um interlocução simbólica com o
poder; o aparato estatal cresceu, estenderam-se as fronteiras da
intervenção pública e consagraram-se dispositivos institucionais
de canalização de reclamos e de reivindicação legítima  desde
que circunscrita ao arcabouço institucional e aos temas
reconhecidos pelo Estado ; por fim, a cidadania avançou pelo
flanco econômico, isto é, não vinculada à pertença a uma
comunidade política nacional, senão ao estatuto do indivíduo como
trabalhador  mesmo assim, inaugurou-se uma via para a
dignificação política e social das camadas populares.

A contrapartida da ampliação do espaço público nesses


moldes veio simbolizada por um conjunto de restrições, de
“cláusulas de exclusão” a balizarem em nova geografia os limites
entre demandas legítimas e ilegítimas, ordem e desordem,
organização positiva dos interesses sociais e mera sedição,

137
Cf. Angela de Castro Gomes, “A política brasileira...”, op. cit., pp. 524-
38.
120

direitos sociais e políticos, público e privado. Por outras


palavras, o jogo do reconhecimento político e sua cristalização
mediante o direito viu-se seriamente limitado por diversos
fatores: sua efetivação condicionada à subordinação política dos
setores incorporados; seu caráter restritivo e outorgado porque
baseado no critério do mérito e não da universalização dos
direitos de cidadania política  quer dizer, tratou-se de um
reconhecimento extensivo às ocupações profissionais consagradas
na lei ; sem esquecer, é claro, que na nova matriz dos
interesses passíveis de reconhecimento não houve espaço para os
trabalhadores rurais, ou seja, a expansão da cidadania regulada
não transpôs o umbral da propriedade rural. 138 A ambigüidade dos
avanços e restrições que perfazem o saldo desse período foi
sintetizada por Florestan Fernandes, atualizando o velho dilema:
“O Estado ficou divorciado da nação, senão em bloco, o que seria
impossível, pelo menos em diversos setores, de importância vital
para a existência e a sobrevivência do Brasil como comunidade
política.”139 Os déficits da vida política continuaram a ser
tematizados de maneira profusa ao longo da segunda metade do
século XX, e com razão; ainda que por vezes em termos plenos de
reminiscências oitocentistas: “o Brasil ainda não é propriamente

138
Os alcances da expansão dos direitos sociais podem ser nitidamente
ilustrados pelos três pilares que lhe supeditavam sustentação institucional: a
carteira de trabalho, a regulamentação das profissões e o sindicato público ou
corporativo  pilares cuja combinação define o bem-sucedido conceito de
“cidadania regulada”, cunhado por Wanderley Guilherme dos Santos (cf. Cidadania
e justiça..., op cit., pp. 74-9). Por outras palavras: “É o princípio do
mérito, entendido basicamente como a posição ocupacional e de renda adquirida ao
nível da estrutura produtiva, que constitui a base sobre a qual se ergue o
sistema brasileiro de política social.” Sônia Miriam Draibe, “O ‘welfare
state’...”, op. cit., p. 33. O significado e as conseqüências de longo prazo
das desigualdades entre a força de trabalho urbano e a rural, decerto
majoritária, foram exploradas em afamado texto de Francisco de Oliveira: “A
economia brasileira: crítica à razão dualista”, (1972) pp. 5-82. Para uma
análise mais recente dos efeitos da divisão entre o trabalhador urbano
legalmente reconhecido e aquele que permanecia confinado à contingência da
informalidade, cf. Alvaro Comin, “Regulação e desregulação do mercado de
trabalho no Brasil”, Relatório para a Organização Internacional do Trabalho.
139
Florestan Fernandes, “Existe um crise de democracia no Brasil”, (1954) in
Florestan Fernandes, Mudanças sociais no Brasil  Aspectos do desenvolvimento
da sociedade brasileira, (1975) p. 103.
121

uma nação [...]”. 140 Parece difícil não reparar na surpreendente


vitalidade do pressuposto do desacoplamento entre a sociedade e o
Estado, cujas conseqüências analíticas subjazem à recorrência da
vida pública no pensamento político-social.

11. A “ausência de povo”

A cisão entre a sociedade e o Estado não é, todavia, a


principal fonte da centralidade da vida pública no pensamento
político-social, embora guarde estreitos nexos com ela. Trata-se
da composição da própria sociedade, de uma vida social incapaz de
engendrar uma vida pública vigorosa. Qualquer consideração em
torno às eventuais virtudes da vida social empalideceria se
entrasse em cena a escravidão, cujos efeitos econômicos,
políticos e culturais tornaram-se ponto obrigatório no itinerário
do pensamento político-social  pelo menos desde o momento em
que o silêncio dos românticos cedeu à emergência da literatura
abolicionista, à crítica do Segundo Império e à propagação das
explicações “científicas” animadas pelo ideário positivista.
Embora gritante, o contraste com a experiência européia não
prestaria qualquer serviço heurístico se reduzido à simples
constatação do óbvio: a inexistência de escravismo. A exclusão
das camadas populares majoritárias, dos segmentos plebeus e seu
“pendor irracional” pelas revoltas, foi condição histórica a
viabilizar a cristalização da opinião e do espaço público
modernos na Europa. A homogeneidade de interesses da sociedade
civil burguesa cimentou uma sociabilidade em público capaz de
erigir consensos mediante o diálogo entre iguais  consensos por
isso percebidos como ancorados apenas no “bom entendimento” e no
apelo ao princípio universal da razão. Apesar de a coincidência
entre as figuras do livre proprietário, do cidadão e do homem ser
ilusória, a origem de classe do espaço público não definiu

140
Octávio Ianni, A idéia do Brasil moderno, (1996) p. 177.
122

qualquer critério funcional de exclusão; pelo contrário, a ficção


de tal coincidência permitiu seu paulatino alargamento, até o
ponto de torná-lo irreconhecível se comparado com sua fisionomia
inicial. Isso foi possível, é claro, graças à preservação e à
conflituosa exploração política de seus princípios modernos
universalistas. Destarte, se na prática o espaço público moderno
nasce marcado pela projeção política dos interesses da sociedade
civil burguesa e pela exclusão das camadas plebéias, tais
interesses não se esgotaram apenas no particularismo nem a
exclusão implicou banimento funcional; antes, os segmentos
populares encontravam-se simbolicamente incorporadas nas
categorias universais mediante as quais os livres proprietários
descreveram e elaboraram de modo programático os princípios e
conseqüências de seu agir. A distância entre a identidade de todo
homem, no plano das idéias, e as diferenças reais de acesso
legítimo ao espaço público era salva, assim, por intermédio dos
princípios abstratos da razão, da liberdade e da igualdade. Mais:
a independência das camadas de livres proprietários com respeito
ao poder e a realização de sua autonomia material à margem de
qualquer princípio de exploração econômica de tipo estamental
revestiram a ideologia de coerência em relação ao mundo e de
efetividade como representação das relações entre os homens capaz
de guiar a ação política.

As considerações recém-formuladas permitem salientar dois


grandes aspectos entrelaçados de forma indissolúvel, cujas
repercussões foram objeto freqüente de análise na história do
pensamento político-social: a inexistência de um segmento social
significativo e articulado, em condições de encarnar interesses
sociais amplos; e o caráter artificial e estéril das ideologias.
O segundo aspecto é mais evidente, trata-se da existência
aviltante da escravidão no contexto de um ambiente político que
se pretendia contemporâneo das grandes tendências mundiais, e
onde a presença do trabalho forçado em larga escala obstava a
coerência formal dos valores universalistas pregados pela
123

ideologia política. Afinal, como falar em cidadania, liberdade e


igualdade como categorias universais da ordem política moderna em
um mundo social que tinha seu fulcro na escravidão? O primeiro
aspecto também decorre da continuidade e primazia do escravismo
na organização da sociedade oitocentista, mas remete a outro
segmento social: os homens livres. Já no século XVIII, em
observação que lamentava a ausência de população apta para servir
ao “Estado” na administração dos negócios públicos, Morgado de
Matheus julgava sentencioso a rarefação da sociedade: “nesta
terra não há povo”; no entanto, sua frase correu com menor
fortuna do que outra proferida no final da centúria seguinte por
Louis Couty, amplamente citada ao longo do século XX junto com
sua estimativa dos seis milhões de “inúteis” que caracterizavam a
“situação funcional da população” no país: “le Brésil n’a pas de
peuple”. 141 A contundência lacônica de semelhante afirmação
perderia todo sentido se referida à situação dos escravos, por
definição excluídos da identidade política pressuposta na idéia
“povo”; a “falta” era de outra índole, a saber, a inexistência de
camadas médias, de homens livres organizados econômica e
politicamente fora das órbitas do jugo senhorial, em condições de
enriquecer a vida social superando a abismo intransponível que
separava os extremos da ordem econômica. Ainda em 1916, quase
três décadas após a abolição da escravatura e a despeito do
regime de trabalho livre, Gilberto Amado acusava a continuidade
do “estado social” entre a monarquia e a república, reproduzindo
o diagnóstico oitocentista: “povo propriamente não temos”. 142

141
Cf. Louis Couty, A escravidão no Brasil, (1881) pp. 87-105. A frase de
Morgado de Matheus, extraída de uma carta ao Conde de Oeiras, foi citada em
belo texto de Paulo Prado acerca da decadência de São Paulo na virada do século
XVII; cf. “A decadência”, (1923) in Paulo Prado, Província & Nação. Paulística.
Retrato do Brasil, pp. 90-108, especificamente, p. 98. Cf., também, Gilberto
Freyre, Casa-grande &..., op, cit., pp. 142-3; Caio Prado Júnior, Formação do
Brasil contemporâneo, (1942) pp. 281-2.
142
Citado por Octávio Ianni, A idéia..., op cit., p. 97  apud, Gilberto
Amado, “As instituições políticas e o meio social no Brasil”, (1916).
Semelhante diagnóstico foi bastante comum na segunda metade do oitocentos, tal
e como aparece nas idéias de Silvio Romero ou de Tobias Barreto; por exemplo,
em seu “Um Discurso em mangas de camisa”, de 1877, o segundo autor asseverava:
“Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a nação [...] não é o
povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser
124

Não raro, a relação entre o “artificialismo das idéias”,


entendido como obstáculo para sedimentar vínculos morais
abrangentes, e a “ausência de povo” ou o caráter precário e
desarticulado das populações de homens livres foi elaborada no
pensamento político-social em termos negativos  ora como
nulidade, ora pelos efeitos dessa carência na estruturação
simbólica da sociedade. Para Gilberto Freyre, essa “[...] rala e
insignificante lambugem [sic] de gente livre sanduichada entre os
extremos antagônicos”, essa “[...] quase inútil população de
caboclos e brancarões, mais valiosa como material clínico do que
como força econômica [...]”, não teria concorrido com qualquer
aporte digno de nota para a “formação” econômica, política e
social do país  nem ao longo do período colonial nem durante o
século XIX. 143 A empreitada colonial e a progressiva edificação e
decantação de instituições e valores de toda ordem ocorreu graças
ao império da dominação senhorial, impregnando com seu privatismo
e familismo de fundo autoritário o conjunto das relações sociais.
Embora passível de crítica por seus excessos e por seu efeitos
pertinazes na cultura política e no funcionamento das
instituições e do poder, o patriarcalismo teria sido condição

a comunidade da língua, dos maus costumes e do servilismo.” (Ibid. p. 97; cf.


Dante Moreira Leite, O caráter..., op. cit., p. 187) Nas primeiras décadas da
centúria seguinte, o pensamento autoritário não cessou de denunciar a
inorganicidade da nação, a desarticulação das classes sociais; cf. Bolivar
Lamounier, “Formação de um pensamento político autoritário na primeira
república  Uma interpretação”, in Boris Fausto (dir.), História geral da
civilização brasileira. III. O Brasil republicano. 2. Sociedade e instituições
(1889-1930), pp. 360-4. Também o integralismo sustentou idéias semelhantes; cf.
Marilena Chaui, “Apontamentos para uma crítica da ação integralista
brasileira”, in Marilena Chaui e Maria Sylvia de Carvalho Franco, Ideologia e
mobilização popular, pp. 19-21. Ainda hoje é possível se defrontar com ecos
desses diagnósticos, pois “Não parece uma nação o país em que a população ainda
não se tornou povo” (Octávio Ianni, A idéia..., op. cit., p. 180).
143
Gilberto Freyre, Casa-grande &..., op. cit., pp. 20 e 141, respectivamente;
cf., também, p. 160. Com respeito ao século XIX, o autor não define mudanças
relevantes quanto às eventuais “contribuições” das camadas médias: “O
desenvolvimento das ‘classes médias’, ou intermediárias, de ‘pequena
burguesia’, de ‘pequena’ e de ‘média agricultura’, de ‘pequena’ e de ‘média
indústria’, é tão recente, entre nós, sob formas notáveis ou, sequer,
consideráveis, que durante todo aquele período [século XVI ao fim do XIX] seu
estudo pode ser quase desprezado; e quase ignorada sua presença na história
social da família brasileira.” Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos..., op.
cit., p. LXVII; cf., também, pp. 308, 353-423 e 534.
125

sine qua non para a “formação do Brasil”. No caso de autores mais


reticentes diante do legado colonial e patriarcal, a nulidade
torna-se falta plena de conseqüências e, abrindo passo à
controversa especificação em negativo, o homem livre emerge
onipresente como vácuo preenchido por uma sociabilidade
incivilizada, cujo privatismo agreste acabou por organizar a vida
social e até por inundar o próprio espaço público  pervertendo
seu sentido político genuíno. Quiçá uma das formulações mais
nítidas dessa “positivação da ausência” tenha sido expressa por
Nestor Duarte nas seguintes palavras: “[...] senão representa
nenhum fator preponderante, atuante e positivo dessa organização
social, [a classe dos livres] assume sombria proporção como
elemento negativo da sociedade brasileira. Não vale pelo que é
mas pelo que deixou de ser e representar na base da organização
econômica e política.” 144 Sem freios nem contrapesos, os
interesses dos grandes proprietários rurais expandiram seu
domínio para além das relações servis, erigindo-se como factótum
da organização política do poder e, por conseguinte, modificando
a “[...] índole do próprio poder, que deixa de ser o da função
política para ser o da função privada.”145 Com matizes e a partir
de perspectivas de análise diferentes, argumentos parecidos em
torno às repercussões acarretadas pelo caráter instável e
marginal dos grupos sociais livres de vínculos de submissão
direta também foram explorados por autores coetâneos como, entre
outros, Buarque de Holanda, Fernando de Azevedo e Caio Prado
146
Júnior.

Em se tratando de autor que encetou de forma fecunda as


reflexões históricas de filiação marxista no país, escapando às

144
Nestor Duarte, A ordem privada e a organização política nacional, (1939) p.
87 (a segunda passagem frisada é de AGL).
145
Ibid., p. 88.
146
Cf., Sérgio Buarque de Holanda, Raízes..., op. cit., pp. 58-9, 79-92;
Fernando de Azevedo, A cultura brasileira  Introdução ao estudo da cultura no
Brasil, (1943) pp. 131-2, 161-201, 220-5; Caio Prado Júnior, Formação do...,
op. cit., pp. 278-87 e 341-5.
126

preocupações de chave psicológica e cultural dominantes, não


causa surpresa o fato de ter sido Caio Prado quem, à época, maior
atenção dedicou à composição das camadas de homens livres e às
conseqüências de sua desclassificação social para a ordenação
material e simbólica da sociedade. Também nesse ponto seu
trabalho de 1943 consolidou-se como referência obrigatória,
particularmente da literatura acadêmica que desde os anos 60
voltou-se para o estudo e reconstrução da sorte desses segmentos
sociais, tanto no terreno da historiografia quanto no da análise
sociológica. Em Caio Prado, os homens livres, os libertos e os
fugitivos permaneceram confinados, seja fora da civilização, nos
quilombos e em áreas recônditas  “mantendo-se ao Deus dará,
embrutecidos e moralmente degradados” 147 ; seja em posições
marginais dentro dos confins da sociedade, inserindo-se como
agregados, apaniguados ou servidores esporádicos dos senhores das
terras  no melhor dos casos , ou simplesmente como vadios
estigmatizados com a pecha da inutilidade e do pendor gratuito
pela turbulência. A contrapartida analítica de semelhante
“destino” assume perfis claros quando inscrita no quadro do
diagnóstico maior”: a inorganicidade do todo social e a terrível
ausência de qualquer substrato favorável ao desenvolvimento de
nexos morais, cuja função foi precariamente substituída pelo
império dos laços primários alicerçados na mera dependência e
exploração econômicas. “Em suma, a escravidão e as relações que
dela derivam, se bem que constituam a base do único setor
organizado da sociedade colonial, e tivesse por isso permitido a
esta manter-se e se desenvolver, não ultrapassam contudo um plano
muito inferior, e não frutificam numa superestrutura ampla e
148
complexa.” Os contrastes sugeridos pelo pano de fundo das
modernas sociedades de classes e suas correspondentes
“superestruturas” no plano ideológico, jurídico e da
representação de interesses, levam o autor a concluir, em

147
Ibid., p. 282.
148
Ibid., p. 344; cf., também, p. 143.
127

congruência com a mesma linha de argumentação, o iniludível


deslocamento da grosseira estrutura social para o espaço público
 assim marcado pela impotência do poder político-administrativo
e pela índole rudimentar das mediações simbólicas que aqui mal
cimentaram a integridade corpo social. A despeito da ortodoxia
estruturalista de certo marxismo, os empecilhos históricos à
construção de uma institucionalidade moderna acusam, na obra em
questão, a extraordinária importância dos vínculos morais na
organização da sociedade. Talvez por isso, e na busca sempre
controversa das “razões da ausência”, o papel da religião e do
clero seja notabilizado, precisamente, pela sua inópia na
edificação de qualquer moral relevante, “[...] de um freio sério
à corrupção dos costumes”.149 Para dizê-lo nas palavras de Buarque
de Holanda, consoantes com o espírito dessa busca e com o
diagnóstico dela resultante: “A uma religiosidade de superfície
[...] transigente, por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém
pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral
poderosa.”150

O papel das grandes mediações simbólicas e seus vínculos


com uma ordem social que não comportava sua efetivação, nem lhes
fornecia referentes capazes de assegurar sua congruência formal,
assim como o lugar socialmente ocupado pelos homens livres e as
conseqüências de longo prazo acarretadas por sua desclassificação
para os desafios da integração social  surgimento do mercado e
trabalho e dos valores e direitos a ele inerentes , continuaram
a intrigar o trabalho intelectual na segunda metade do século XX,
animando novas contribuições de valia. Quanto ao papel das
grandes mediações simbólicas, hoje é bem conhecido que às “idéias
fora do lugar” correspondia, sim, um lugar específico, embora não

149
Ibid., p. 355; cf., também, 337-40 e 354.
150
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes..., op. cit., p. 150. Embora em outro
registro, Freyre também assinala o limitado papel do clero, logo subordinado
aos ditames da família patriarcal; cf. Casa-grande &..., op. cit., pp. 24, 26,
122, 130-4, 364-5.
128

fosse o ocupado alhures nem servisse, na maioria dos casos, para


cumprir funções cognitivas e totalizadoras. 151 A força das idéias
chegava aqui infirmada pela força crua da realidade, e, a rigor,
elas não realizaram o papel abrangente de uma ideologia 
sistema de idéias coincidente em algum grau com as aparências, na
concepção de linhagem marxista de Roberto Schwarz , mas de um
certo decoro de classe com os tempos que corriam pelo mundo
afora; decoro cujo pressuposto era a cumplicidade em maior ou
menor grau com o “anacronismo” interno. Por via de regra,
tratava-se de ideais longínquos, adequados para fornecer
diretrizes morais ao pensamento, desde que atenuados por inúmeras
considerações práticas impostas pela realidade quando das
decisões políticas. A fantástica dissonância entre o discurso
político e as formas institucionais, de um lado, e a onipresença
do trabalho forçado na organização da sociedade, do outro,
trouxeram conseqüências duradouras na compreensão do espaço
público, deslocando o foco do mundo institucional da política
para a vida social e seus efeitos sobre a vida pública. 152 O
problema é claro: equacionar a configuração desse espaço em
contexto histórico onde a forma jurídica e as idéias políticas
constituem um índice particularmente opaco da vida social.

Também quanto às camadas de homens livres existe hoje


conhecimento mais apurado. Se a sociedade civil burguesa
realizava seus interesses à margem de vínculos de submissão

151
Roberto Schwarz, Ao vencedor as batatas  Forma literária e processo social
nos inícios do romance brasileiro, pp. 13-25.
152
A esse respeito, nada mas eloqüente que a omissão do problema do trabalho
escravo da Constituição de 1824. Seja dito de passagem, lidar com a brutalidade
das conveniências escravagistas, no sofisticado marco de Constituições
políticas vazadas em pressupostos normativos modernos, parece não ser tarefa
fácil de equacionar sem lançar mão da omissão ou de eufemismos que permitam
preservar a forma jurídica. Nos Estados Unidos, a necessidade política de
regular os conflitos intestinos entre o norte e o sul e, portanto, de legislar
os limites territoriais do escravismo  por exemplo, Compromisso de Missouri
, eliminou o recurso da omissão; o substituto eufêmico utilizado na legislação
foi a “instituição singular”. Cf. Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e
justiça..., op. cit., pp. 17-9; Gerardo Gurza Lavalle, La gestión diplomática
de John Forsyth, 1856-1858  Las repercusiones de la crisis regional
estadounidense en la política exterior hacia México, pp. 17-26.
129

direta ou, por outras palavras, no jogo das trocas impessoais do


mercado  o que desempenhou papel fundamental na decantação de

uma ideologia isenta de atributos estamentais ; aqui, os homens


livres, embora desvencilhados tanto do jugo do trabalho forçado
quanto da apropriação direta dos benefícios da escravidão, nunca
se evadiram por completo da órbita do domínio senhorial, estando
a ela submetidos pelo vínculo pessoal do favor que lhes permitia
haurir benefícios em troca de lealdade. Apesar de serem camadas
numerosas, seu papel econômico e político foi residual durante a
colônia e ainda no império. 153 Na verdade, antes que uma classe
social em ascensão pujante, tratou-se de camadas de homens livres
e pobres a medrarem vegetantes à sombra da relação servil
senhor/escravo; e cuja vivência da ordem social foi caracterizada
pela violência, pela precariedade das relações primárias e,
sobretudo, pela experiência da liminaridade, ou seja, da índole
“prescindível” e “dispensável” de sua existência, de sua
desclassificação social sob o estigma de sua condição de vadios e
“inúteis ao mundo”  para dizê-lo com os termos dos belos
estudos de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Laura de Mello e
Souza e Lúcio Kowarick.154 Não fosse a “possibilidade de
desobedecer”,155 por certo rara e preciosa numa sociedade

153
Em seu estudo clássico sobre a comunidade de Guaratinguetá, no Vale do
Paraíba, e no contexto dos ciclos oitocentistas da cultura do café, Maria
Sylvia de Carvalho e Franco mostra como a particular inserção dos homens livres
na sociedade lhes impedia estereotipar comportamentos vinculantes e projetar
qualquer forma de auto-organização de seus interesses; cf. Homens livres na
ordem escravocrata, (1964) pp. 33 e 56-9. Por sua vez, Laura de Mello e Souza
esmiuçou as tentativas das autoridades mineiras setecentistas no sentido de
impor alguma “utilidade” aos segmentos sociais de desclassificados, empregando-
os em diversas tarefas de índole economicamente secundária e não adequadas para
o trabalho escravo; cf. Desclassificados do ouro  A pobreza mineira no século
XVIII, (1982) pp. 71-90.
154
Lúcio Kowarick, Trabalho e vadiagem  A origem do trabalho livre no Brasil,
pp. 27-32; Maria Sylvia de Carvalho Franco, op. cit., pp. 60-106,
especificamente, p. 104; Laura de Mello e Souza, op. cit., pp. 64-5, 72 e 220.
155
Lúcio Kowarick, Trabalho e vadiagem..., op. cit., p. 104. A frase segue a
trilha de algumas das agudas observações de Antonio Candido: “[...] depois da
estabilização, em meados do século XVIII, [o tipo humano do aventureiro] deixou
no caipira não apenas certa mentalidade de acampamento  provisório e sumário
 como o sentimento de igualdade que, mesmo nos mais humildes e desfavorecidos,
faz refugar a submissão e a obediência constantes. Esta, nele, é sempre
relativa e muito precária, comparada à do negro, e mesmo à do colono europeu
130

escravista, nada lembraria nessas camadas errabundas a autonomia


dos livres proprietários associada à emergência do espaço público
moderno; ainda assim, os expedientes de inserção marginal dos
homens livres na dinâmica econômica acabaram por montar uma
armadilha que tornou inócua sua autonomia, esvaziando-a de toda
projeção simbólica e política. O progresso material, muito
valioso pelas condições de instabilidade e penúria
características dessas camadas, dependia de sua inserção no mundo
externo que a um só tempo as confinava em sua posição residual e
lhes oferecia espaços limitados de reprodução. Autonomia, sim,
mas orientada material e simbolicamente “de fora”, e com
limitados recursos de auto-afirmação  desobediência, recusa ao
trabalho, revoltas esporádicas, violência, ócio e
desenraizamento. Seja dito de passagem, após o a Lei Áurea a
sorte do homens livres permaneceu presa ao estigma do trabalho
nacional, submetido a intensa campanha de desprezo por parte das
grandes elites proprietárias, agora interessadas em justificar e
prolongar a importação maciça de mão-de-obra à custa dos cofres
públicos. 156

A composição da sociedade oitocentista trouxe conseqüências


palpáveis na compreensão do espaço público a partir da
caracterização de sua gênese, levando a tônica das análises a
recair nas peculiaridades da vida pública. Idéias como
“inorganicidade” e “amoralidade” sociais não apontam para a
inexistência de qualquer forma estável de ordenação material e
simbólica da sociedade; antes, assinalam tanto o caráter
demasiado primário dessa ordenação quanto, e isso é fundamental,
a especificidade do modo imperante de relação entre a vida social
ou privada e a vida política  com seu correspondente arcabouço
institucional. Entre ambas haveria uma proximidade tal, que os
interesses e hábitos do mundo privado constituiriam também os do

[...].” Antonio Candido, Os parceiro do Rio Bonito  Estudos sobre o caipira


paulista e a transformação dos seus meios de vida, pp. 84-5.
156
Lúcio Kowarick, Trabalho e vadiagem..., op. cit., pp. 101-18.
131

mundo da política, mediante uma espécie de expansão a avançar


desimpedida para estabelecer a particularidade e a cultura
familiar de tipo patriarcal em instâncias onde deveriam
prevalecer critérios universais e valores cívicos de índole
cidadã. Independentemente de essa proximidade ser elaborada em
termos negativos ou positivos, ou seja, como vácuo,
inorganicidade, amoralidade e insolidariedade a amesquinharem a
política, ou enquanto afirmação de traços identitários
“nacionais” em maior ou menor medida valorizados, interessa
salientar que ela põe em jogo a própria caracterização da vida
pública. Com efeito, esquadrinhar a ausência ou presença de
mediações simbólicas e societárias capazes de elevar moralmente a
passagem entre o privado e o político, ou apenas de conferir-lhe
determinadas feições culturais, eqüivale a introduzir o papel da
vida pública, por definição interposta entre ambos os âmbitos
enquanto trama de interações cimentadas por laços morais e
vínculos orgânicos com densidade institucional estável. Parece
ocioso insistir nos efeitos deletérios da ordem escravagista para
o adensamento e sofisticação da vida pública  daí a “ausência
de povo”, a “lambugem de gente livre”. Em certo sentido, poder-
se-ia dizer que sua centralidade no pensamento político-social
opera na forma de “reflexo invertido”, quer dizer, como
constância motivada pela falta, como reiteração decorrente da
precariedade; enfim, registro específico em que foram
equacionados os entraves à modernidade no terreno do espaço
público.

Em suma, a (a)moralidade da vida social, o descrédito das


ideologias, o franco descaro ante os mandatos práticos dos
valores universalistas, o trabalho compulsório a destituir o
negro de todo atributo político, a desclassificação social das
populações de homens livres e, é claro, a persistência da
estrutura social responsável por semelhante quadro configuram em
conjunto o cenário no qual emerge o acanhamento da vida pública
132

como fatalidade a sintetizar a gênese truncada do espaço público


no país. As “linhas mestras” desse registro podem ser abstraídas
em três traços principais: os efeitos duradouros da composição da
sociedade, concebida quer em termos raciais, quer sob a ótica de
contingentes populacionais portadores e produtores de identidades
psíquico-culturais, quer na chave das classes sociais; a dinâmica
que uniu e separou esses grandes segmentos da população,
definindo as características específicas da (in)organicidade e
(a)moralidade social; e as repercussões de ambos os aspectos no
tolhimento de uma vida pública genuína ou, em leitura afirmativa,
na sua constituição moldada pelas exigências da “idiossincrasia
nacional”. Tais “linhas mestras” encontram larga presença no
pensamento político-social das primeiras décadas dos século XX e
sua esteira pode ser rastreada ao longo do oitocentos. Sem
sombra de dúvida, entre os padrões explicativos de cunho
naturalista dominantes no último quartel dessa centúria  por
via de regra centrados em determinações raciais e ambientais  e
as análises informadas pelos padrões culturais e psicológicos dos
anos 30, houve mudanças de vulto nos mais diversos planos
sociais, inclusive no intelectual; contudo, a semelhança lógica
facilitada pela abstração aponta para algo que transcende a
simples coincidência formal dos argumentos. Trata-se de duas
constantes. Em primeiro lugar, o peso da escravatura e suas
conseqüências como fulcro explícito ou implícito das múltiplas
facetas daquilo que o pensamento político-social foi definindo
como o “dilema brasileiro”  para emprestar o sentido da fórmula
sumária cunhada por Gunnar Myrdal ; quer dizer, as constelações
de problemas nevrálgicos a serem resolvidos para alcançar a
modernidade, seja qual for sua definição predominante em cada
período. 157 Em segundo lugar, e eis o fundamental para esta

157
Em trabalho alentado, Gunnar Myrdal reconstruiu a paradoxal disparidade
histórica entre a forte presença de um “ethos social”, de um credo político
norte-americano que desempenhou papel fundamental na construção política das
instituições democráticas nos Estados Unidos, e a mal resolvida problemática da
população negra, objeto da discriminação e iniqüidade sociais. Cf. An american
133

análise, a transposição desse dilema para o terreno do espaço


público sob a roupagem das dificuldades e deturpações da vida
pública; por outras palavras, a recorrência da vida pública sob o
signo da atrofia representa a tradução do “dilema brasileiro”
para o desconfortável problema da configuração do espaço público.

Nos primeiros parágrafos desta seção, diferenciaram-se duas


ordens de problemas a serem contornados para equacionar o
estatuto heurístico conferido à vida pública na concepção mais
influente do espaço público ao longo de boa parte do século XX:
de um lado, a inconveniência de se furtar a uma análise detalhada
e historicamente contextualizada da literatura no seu próprio
terreno, ou seja, no plano da reconstrução das idéias; do outro,
a implausibilidade de reduzir a recorrência da vida pública a um
viés analítico propiciado pela convergência de novas abordagens,
visto que tal recorrência também trazia à tona dificuldades
impostas pela história para caracterizar a configuração do espaço
público. De fato, sustentou-se aqui que a centralidade da vida
pública constitui uma resposta possível a essas dificuldades,
particularmente ante os descompassos entre as transformações da
vida política e a continuidade na ordem social  “divórcio”

entre a sociedade e o Estado , e ante os efeitos deletérios


dessa ordem para a sorte dos homens livres e para a edificação de
mediações simbólicas abstratas e impessoais  a “ausência de
povo” e a “artificialidade das idéias”. Contudo, assentar tanto o
peso desses fatores quanto a própria recorrência da vida pública
não faz senão assinalar o caminho a ser desbravado, pois o “ônus
da prova” não foi coberto ainda, permanecendo como premissa
suspensa a resolução da primeira ordem de problemas. Sem tal
resolução, as reflexões até aqui desenvolvidas careceriam de
pertinência. Afinal, ainda estão pressupostas a efetiva

dilema  The negro problem and modern democracy, (1944) pp. 3-25. Por sua vez,
Roberto DaMatta inspirou-se nessa obra clássica para explorar no terreno da
antropologia a “identidade do brasileiro” (cf. Carnavais, malandros e heróis 
Para uma sociologia do dilema brasileiro, pp. 13-36).
134

centralidade da vida pública, a existência de uma lógica


analítica comum nas interpretações que partilham esse recurso e a
influência dessa concepção na literatura contemporânea.
135

SEGUNDA PARTE

A IDENTIDADE NACIONAL PELO AVESSO E A


“PECULIARIDADE” DA VIDA PÚBLICA
136

ABERTURA

“A peculiaridade da vida pública está em ser privada”; em


conseqüência, o traço mais saliente do espaço público pareceria
ser sua inexistência ou, com maior precisão, sua constituição sob
a égide do privado  que é uma forma de existência perversa.
Essa compreensão paradoxal da dimensão do público e, no entanto,
tão natural e espontânea da nossa visão do mundo, não foi
formulada nestas terras nem se referia ao Brasil, mas ao México
agudamente esquadrinhado pelo olhar atento de Daniel Cosío
158
Villegas. Contudo, afirmação semelhante poderia ter vindo de
algum dos textos que, no Brasil, ajudaram a construir ou a manter
e ampliar certa tradição de análise sobre o espaço público a
partir da “peculiaridade” da vida privada; isto é, enquanto ethos
encravado na mais remota história do país, nas suas determinações
culturais mais profundas, ora definindo as feições mais pujantes
do caráter brasileiro e uma sociabilidade amenizadora das
diferenças, ora condenando o que é ou deveria ser público ao
personalismo, ao subdesenvolvimento e à asfixia diante da
hipertrofia da vida privada, à amoralidade dos costumes, ao
patrimonialismo, à incivilidade, ao familismo, à insolidariedade,
à indistinção entre o público e o privado, ao clientelismo e à
precarização dos direitos ou de qualquer arranjo de normas com
pretensões de universalidade  para lembrar alguns termos comuns
na caracterização do espaço público no Brasil, cristalizados em
obras bem conhecidas como as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda, Fernando de Azevedo e Nestor Duarte, mas também

158
Há interessante paralelismo entre o Brasil e o México quanto à problemática
da configuração do espaço público no marco da construção do Estado Nacional.
Inexistem estudos comparativos, mas para o leitor brasileiro sem dúvida
resultará esclarecedora a consulta do belo trabalho de Fernando Escalante
Gonzalbo, Ciudadanos imaginarios. Memorial de los afanes y desventuras de la
virtud y apologia del vicio triunfante en la República Mexicana  Tratado de
moral pública.
137

presentes de forma explícita em outros grandes autores do


pensamento político-social brasileiro como, por exemplo,
Francisco Oliveira Vianna, Paulo Prado ou Manuel Bonfim.

Sem sombra de dúvida, há diversos autores e abordagens


acerca do espaço público no país, cuja organização em modelos
analíticos explícitos e razoavelmente compartilhados é pouco
pertinente, se não inviável; todavia, as interpretações
orientadas pela lógica do ethos público configuram influente
tradição que, embora difusa, continua a animar diversas análises.
De fato, as abordagens a partir do pressuposto implícito ou
explícito do ethos público constituem a corrente de interpretação
mais relevante na matéria  talvez a única que mereça com
propriedade o substantivo “tradição”. Com efeito, malgrado as
diversas modernizações tecnológicas, econômicas e políticas que
têm mudado a face do Brasil ao longo deste século,
particularmente a partir dos anos 1930, a força de tal
configuração cultural, isto é, de um espaço público vazado na
fiel persistência de um passado de incivilidade incontida, na
cultura política da dádiva, da tutela e do favor  isentas de
qualquer vestígio de consciência cívica republicana , na
história lenta de um ethos “pré-moderno”  no qual os elementos
constitutivos de um espaço público moderno estão dissociados ou
quando muito perversamente entrelaçados , mostra-se vigente até
hoje, com matizes e força diferenciada, em análises de autores
como José de Souza Martins, Vera da Silva Telles, Guillermo
O’Donnell, Teresa Sales ou Marilena Chauí  dentre muitos outros
que partilham em maior ou menor grau algumas das conjeturas
subjacentes na idéia de um “ethos” diretor da vida pública.
Entretanto, a coagulação desse ethos, que perpassa parte do
pensamento político-social como algo implícito, corresponde à
obra de Roberto DaMatta, cuja análise descritiva consagrou uma
etnografia da sociabilidade brasileira  do “ser brasileiro” 
amplamente difundida no país e no exterior.
138

Na primeira parte examinaram-se algumas nuanças conceituais


de modo a entrelaçar a abordagem da vida pública no quadro mis
amplo das diversas problemáticas presentes na determinação do
espaço público; também aventou-se conjunto de dificuldades
históricas, cuja reprodução mo plano do pensamento político-
social converge no sentido de outorgar centralidade à vida
pública enquanto chave explicativa da configuração do espaço
público; por fim, estabeleceram-se algumas balizas que
delimitarão a reflexão neste momento do trabalho. Contudo, uma
vez exposto o cenário geral, a análise apenas começou, pois a
cabal compreensão do ethos público, como de qualquer complexo de
idéias fixadas em textos, não pode se furtar a uma reconstrução
minuciosa instalada no terreno da própria literatura. Cumpre
esclarecer desde já que o ethos nem sempre aparece como tal nos
textos dos autores a serem contemplados, e em todos os casos
carece de densidade conceitual explicitamente construída;
entretanto, a pertinência no uso dessa noção será documentada com
abundância no percurso da argumentação. Nas páginas que se seguem
será realizada a análise do ethos de forma reconstrutiva,
percorrendo distintos momentos: primeiro, limita-se o escopo
daquilo que aqui será abordado como um modo de caraterizar o
espaço público e que, com o decorrer do tempo, se tornou cada vez
mais difuso até perder quase por completo seus vínculos com as
teses culturais da literatura dos anos 30; segundo, explora-se o
surgimento de certos pressupostos indispensáveis para a
consolidação do ethos, quais sejam, a emergência da cultura e da
psicologia como registros de interpretação alternativos aos
determinismos naturalistas, notadamente aos de índole racial;
terceiro, propõe-se uma leitura da montagem da lógica do ethos 159
público a partir da variação de padrões de argumentação mais ou

159
Entende-se por lógica do ethos a dinâmica interna que articula o conjunto
principal de argumentos presentes na caracterização do espaço público aqui
analisada. O assunto será examinado com vagar na segunda seção: “A Rapsódia do
Ethos”.
139

menos semelhantes, cuja formulação conquistou aceitação


generalizada na década de 30 e cujas versões mais influentes
aparecem em obras já clássicas de Freyre e Buarque de Holanda;
quarto, analisa-se a reprodução atual da lógica do ethos como
recurso explicativo ad hoc, utilizado até mesmo por autores
críticos de qualquer discurso afirmativo acerca das
caraterísticas da brasilidade; por fim, desvenda-se a dinâmica
cognitiva do ethos em termos de um obstáculo de pensamento para a
melhor compreensão do espaço público e aponta-se sucintamente
para a possibilidade de lidar com a cultura, como dimensão
relevante na configuração do espaço público, a partir de avanços
instigantes produzidos no campo da crítica literária e das artes
plásticas.
140

O Ethos público: Temas e Problemas no Discurso


acerca da Identidade Nacional

1. Para contornar a tentação do anacronismo

Usar-se da idéia de tradição analítica implica pressupostos


que, não raro, são introduzidos negligenciando qualquer esforço
de explicitação no que diz respeito a sua pertinência e,
portanto, a seus limites. Quando a tradição intelectual é
invocada, soem aparecer certas interrogantes  aliás, não sem
razão : quais os elementos partilhados a definirem certo perfil
comum entre distintos autores e quais as caraterísticas excluídas
por esse recorte homogeneizador? Qual a dinâmica interna que,
pressuposta como continuidade de certa tradição, permite a
combinação lógica desses elementos  para além da enunciação
formal ou meramente descritiva? Sem esquecer, é claro, qual a
origem concreta dessa particular combinação? Embora seja simples
reconhecer as feições caraterísticas da vida pública quando
interpretada como se estivesse regida pelo ethos  ênfase em um
núcleo altamente estilizado de determinações culturais e
psicológicas profundas (familismo, cordialidade, privatismo ou
incivilidade, por exemplo), que além de constituírem o âmago da
identidade nacional, transbordam-na fundando e modelando o espaço
público , dificilmente poder-se-ia afirmar a mesma facilidade
para encontrar respostas satisfatórias a perguntas como as recém
colocadas.

O caminho mais rápido para delimitar a tradição e a lógica


de funcionamento do ethos seria estabelecer, desde já, o corpus
de referências que permitem localizar sua constituição e
caraterísticas; entretanto, nem sempre o caminho mais curto é
141

mais proveitoso  particularmente em se tratando de um tema


impregnado pela secular problemática da identidade nacional. A
preocupação oitocentista em inventar a nação, detectando indícios
e eventos “autenticamente originais” no passado remoto, manteve
repercussões no pensamento político-social que avançaram pelo
século XX adentro. Assim, quando analisadas as obras que, nas
primeiras décadas do século XX, marcaram os rumos do debate
acerca do estatuto do nacional e da nação, é comum se deparar com
o fato de os autores postularem a existência de continuidade
entre os termos de sua discussão e as idéias elaboradas por
diversos observadores e pensadores ao longo de centúrias  por
exemplo, a luxúria como traço distintivo da “psicologia do
brasileiro” teria sido fielmente registrada com fidelidade por
argutos observadores como Amerigo Vespucci, nos primeiros anos do
século XVI, ou como Gabriel Soares de Souza, na segunda metade
dessa centúria.160 A admissão de tamanha continuidade histórica
não é patrimônio exclusivo dos autores empenhados em desvendar as
feições da identidade nacional, por vezes os estudiosos do
pensamento político-social rastejam semelhanças igualmente
longínquas mediante o estabelecimento das “influências”. Nessas
perspectivas, corre-se o risco ou de naturalizar o ethos público
junto aos traços de uma “brasilidade originária”, ou de perder
sua especificidade histórica no plano das idéias; isso, porque o
ethos seria facilmente remetido aos antecedentes imperiais ou
mesmo coloniais de certas noções tradicionalmente vinculadas à
questão da identidade nacional. Uma vez aceita a continuidade,
seja pela via da reconstrução afirmativa da identidade nacional,
seja pela via das influências seculares no plano das idéias,

160
Cf., Paulo Prado, Retrato do Brasil  Ensaio sobre a tristeza brasileira,
(1927) p. 74. Como será visto, a tentação de semelhantes “recuos” históricos
ainda não desapareceu por completo; v. gr., há quem sustente que “[...] algumas
das primeiras personagens ligadas à história da MPB perambulavam na corda-bamba
da malandragem: Francisco de Vacas (século XVI) [...] o poeta barroco baiano
Gregório de Matos (1636-1696) [...] ou ainda o famoso mulato modinheiro
Domingos Caldas Barbosa (1740/1800) [...].” Gilberto Vasconcellos, “A
malandragem e a formação da música popular brasileira”, in Boris Fausto (dir.),
História da civilização brasileira. O Brasil republicano  4. Economia e
cultura (1930-1964), (1977) p. 506.
142

poder-se-ia concluir que certas noções acompanharam e moldaram a


história do pensamento político-social no Brasil; noções cujo
aperfeiçoamento só teria adquirido o perfil nítido de um ethos
público em autores de envergadura como os já mencionados.
Sustenta-se aqui postura contrária. A cabal compreensão do ethos
requer um deslinde preciso com respeito aos riscos desse tipo de
interpretações e esse é o intuito desta seção.

Em análise comparativa da democracia racial como mito de


origem nacional, Thomas Skidmore, sem se ressalvar pelo
anacronismo, localiza longínquas influências da tese de Gilberto
Freyre nos diários de viagem e nas epístolas dos jesuítas do
século XVI, cuja luta perseverante contra o laxismo moral da vida
e dos costumes locais teria contribuído de forma irônica, séculos
depois, à dignificação da promiscuidade combatida  ungida por
Freyre, e antes por Paulo Prado, ao estatuto de traço da
161
identidade nacional. De fato, é uma tentação comum àqueles que
dedicaram boa parte de sua obra a inventariar e inventar a
identidade nacional  o caráter nacional , se remontar a tempos
ancestrais nos quais não existia a nação e sequer a noção de um
“nós” brasileiro. 162 A rigor, desde essa perspectiva de busca das
influências primigênias seria coerente para qualquer autor se
163
remontar à Carta mítica de Pero Vaz de Caminha, passível de
apropriação como suposto prenúncio do naturalismo e de certo
nativismo  que viria a caraterizar o pensamento árcade164 , e

161
Thomas Skidmore, “Onde estava a ‘Malinche’ brasileira? Mitos de origem
nacional no Brasil e no México”, p. 112. Esse tipo de anacronismo, como será
visto no decorrer das seguintes páginas, é bastante comum; cf., v. gr., Paulo
Prado a emprestar o tema da tristeza do Padre Anchieta e de frei Vicente do
Salvador: Carlos Augusto Calil, “Introdução”. In Paulo Prado, op. cit., p. 13.
162
A análise de como o inventário dos temas e traços distintivos dos textos
coloniais foram reapropriados no processo de invenção do caráter nacional pode
ser consultada no trabalho pioneiro de Dante Moreira Leite, O caráter nacional
brasileiro  História de uma ideologia, (1954) pp 149-177.
163
“A Carta de Pero Vaz de Caminha  Primeiro relato oficial sobre a
existência do Brasil”, escrita em 1500 e publicada só em 1817.
164
Arcade, não na acepção estrita de estética bucólica ou conjunto de
preceptivas pastorais, mas no sentido amplo definido por Antonio Candido,
isto é, como um movimento que permite englobar também a ilustração e o
143

da exuberância e sensualidade entusiastas do romantismo. Aliás,


exuberância e sensualidade reapropriadas e recriados, por sua
vez, na noção de flexibilidade ou de plasticidade social
fortemente enraizada na literatura do ethos público.165 Nesse
espírito de busca retrospectiva, na Carta do cronista não
faltariam passagens para para fixá-la como o ponto originário e
literalmente intransponível da identidade nacional; não é
fortuito que ela já tenha sido entronizada como “certidão de
nascimento” do Brasil. 166

É claro que existem referências menos remotas e aquém da


flexibilidade quase irrestrita inerente a certa busca
historiográfica das influências primevas, não raro vinculada de
forma consciente ou ingênua à artificiosa fábrica da genealogia
da nação  cujo “rastejo” precisa da reconstrução de uma

neoclassicismo dentro de uma só dinâmica definidora do século XVIII  não por


acaso o mesmo século que vira nascer “uma literatura empenhada” em mostrar que
existia produção literária no Brasil. Antonio Candido, Formação da literatura
brasileira  Momentos decisivos, 1o. Vol. (1750-1836), (1956-57) pp. 41-42,
26-28.
165
“Somos o povo mais plástico do mundo” afirma quase entusiasticamente João
Camilo de Oliveira Tôrres, “Damos um ‘jeito’ em tudo.” (Interpretação da
realidade brasileira  Introdução à história das idéias políticas no Brasil, p.
216.) Por sua vez, Roberto DaMatta eleva a plasticidade ao estatuto de apotegma
geométrico: “E assim fazendo, acabamos por descobrir esta arte tão brasileira
de construir triângulos, fazendo [...] sempre de dois, três!”. Roberto DaMatta,
A casa e a rua  espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, (1985) p.26. Há
exposições bem mais apuradas da plasticidade como atributo de primeira ordem na
identidade nacional: canonicamente, cf. Sérgio Buarque de Holanda com respeito
à “extraordinária plasticidade social” (p. 53) dos portugueses, em Raízes do
Brasil (1936), cf., pp. 46-47, 132. Também Gilberto Freyre sobre a
“plasticidade social, maior no português” (p. 356), em Casa-grande & senzala 
Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933), cf.
pp. 23, 355-464.
166
Há inúmeros exemplos de quem assim o fizera. Dante Moreira Leite, crítico
ferrenho da “ideologia do caráter nacional”, paradoxalmente afirma ser a Carta
“o primeiro documento literário a respeito do Brasil”, op. cit., p. 147. Mas é
possível ir muito além disso, Roberto DaMatta declara que a Carta é “fundadora
de nosso modo de ser”[!]. O que faz o brasil, Brasil?,(1984) p. 105. Quanto às
passagens idôneas na Carta para esse exercício de determinação das origens
remotas, há algumas sem dúvida “irresistíveis”: “E uma daquelas moças era toda
tingida, de baixo acima daquela tintura; e certo era tão bem feita e tão
redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres
da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua
como ela”; “[...] bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos
pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das
cabeleiras que, de as muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha”. Pero
Vaz de Caminha, op. cit., pp. 10-11.
144

linhagem de personagens e eventos em termos particularmente


anacrônicos. 167 Reflexões oitocentistas de enorme relevância, como
as de José Bonifácio de Andrada e Silva ou as de Carl Friederich
Philippe von Martius, são bastante ilustrativas. Após longa
estância na Europa e com grande reputação vinculada aos afazeres
da mineralogia, José Bonifácio voltara ao Brasil e desenvolvera
notável e fugaz carreira política em um período de particular
densidade histórica, cuja desembocadura fora a independência. Ele
engajou-se na concepção e defesa de um programa de reformas
ousado  exprimido de forma nítida em suas iniciativas de lei
junto à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do
Brasil.168 As propostas de reformas contidas nesse programa
serviam um único propósito superior: a realização do seu projeto
de nação para o Brasil sob a forma de governo monárquico
169
constitucional. Na percepção de Bonifácio, os principais
empecilhos para a ex-colônia se consolidar como país civilizado
diziam respeito, fundamentalmente, às questões da unidade
territorial e da identidade nacional. Nesse último ponto, era
necessidade imperiosa a criação da comunidade nacional, do
sentimento de pertença, de afiliação a certo interesse coletivo,
comum a todos; ainda mais, “Era preciso criar uma nova ‘raça’,
com um repertório cultural comum, que servisse de substrato para

167
É crescente a literatura a desenvolver reinterpretações de personagens,
obras e eventos historicamente consagrados  em chave romântica e nacionalista
 a partir do arcabouço analítico fornecido pelos estudos e teorias da
recepção. Cf. v. gr. Joaci Pereira Furtado, Uma república de leitores 
História e memória na recepção das Cartas Chilenas (1845-1989); João Adolfo
Hansen, “Prefácio”. In ibid., p. 11-20; João Adolfo Hansen, “Os lugares das
palavras”. Entrevista a Joaci Pereira Furtado, Registro  Caderno Especial, pp.
1-6. Caio Prado já advertia, com respeito à independência, sobre o risco de
incorrer no anacronismo por parte daqueles que iam apanhar os prenúncios
libertadores em algum momento longínquo da colonização: “Divertimento a que se
têm dedicado muitos historiadores.” Caio Prado Júnior, Formação do Brasil
contemporâneo, (1942) p. 357; cf., também, pp. 358, 363-364.
168
“Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do Império do
Brasil sobre a Escravatura” e “Apontamentos para a civilização dos índios
bravos do Império do Brasil”  ambos de 1823. José Bonifácio de Andrada e
Silva, Projetos para o Brasil. Org. Miriam Dolhnikoff, pp. 45-82 e 89-121.
169
Cf. o belíssimo artigo de Miriam Dolhnikoff, “O projeto nacional de José
Bonifácio”, pp. 121-141.
145

a nova identidade nacional”. 170 De fato, Bonifácio propôs com


largueza a mestiçagem como solução: “O mulato deve ser a raça
mais ativa e empreendedora; pois reúne a vivacidade impetuosa e a
robustez do negro com a mobilidade e sensibilidade do europeu; o
índio é naturalmente melancólico e apático [...]”;“O melhor
método de amansar índios é casar com as índias os nossos, a quem
elas preferem aos seus”.171

Companheiro de viagem de João Baptista von Spix e cativo


por outros assuntos que não os da história nem os do reino
mineral, o botânico Martius adentrou-se na intrincada geografia
destas terras durante três anos (1817-1820) e, após sua volta à
Europa, sistematizou valiosos volumes acerca da fauna, da flora,
das doenças e remédios, assim como das línguas locais. De todo
seu trabalho com dimensões monumentais, aqui interessa,
entretanto, brevíssima dissertação entregue em 1845 ao Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, laureada com medalha de ouro
como o melhor “Plano de se escrever a história antiga e moderna
do Brasil, abrangendo as suas partes política, civil,
172
eclesiástica e literária”. O plano propunha a consideração
exaustiva das particularidades das três raças que aqui
concorreram para o desenvolvimento moral e físico da população. 173
Esperando não “ofender a susceptibilidade dos brasileiros” com
suas idéias, o autor inclinava-se “a supor que as relações
particulares pelas quais o brasileiro permite ao negro influir no
desenvolvimento da nacionalidade brasileira designa o destino do
país, em preferência de outros estados do novo mundo, onde

170
Ibid. p. 125.
171
José Bonifácio de Andrada e Silva, op. cit. p. 126 e 137, respectivamente.
172
M. Fleiuss, “O Centenário de Martius”. (1917) In Carl Friederich Philippe
von Martius, O estado do direito entre os autóctones no Brasil, pp. 1-8.
173
“Cada uma das particularidades físicas e morais, que distinguem as diversas
raças, oferece a este respeito um motor especial [...] o português se apresenta
como o mais poderoso e essencial motor. Mas também de certo seria um grande
erro para todos os princípios da historiografia pragmática, se se desprezassem
as forças dos indígenas e dos negros importados, forças estas que igualmente
concorreram para o desenvolvimento físico, moral e civil da totalidade da
população”. Carl Friederich Philippe von Martius, “Como se deve escrever a
história do Brasil”, (1845) in ibid., p. 87.
146

aquelas duas raças inferiores [negros e índios] são excluídas do


movimento [...]” e, por isso, “Com quanto maior calor e viveza
ele [o historiador] defender os interesses dessas por tantos
modos desamparadas raças, tanto maior será o mérito que imprima à
sua obra [...]”.174

Seja porque aquilo que havia de seminal no pensamento de


Bonifácio resultou plenamente condizente com embates pela
abolição da escravatura, particularmente com a questão da
integração social como condição de possibilidade para edificar a
nação; seja porque o galardão outorgado pelo Instituto, dois anos
após a entrega da dissertação, consagrou Martius como referencia
obrigatória para se elucidar corretamente o país  mas não
apenas por isso ; é fato que as idéias de ambos os autores
alastraram sua influência sobre os intelectuais pósteros que, ao
longo das décadas imperiais, vieram refletir nos desafios do
Brasil-nação. Não é preciso grande perspicácia para se perceber
que, para além de seu impacto coevo no mundo oitocentista, as
idéias de Bonifácio e de Martius, comprometidas com a
miscigenação como alicerce da nação, apresentam-se exemplarmente
como passíveis de reapropriação pela literatura do século XX
empenhada na tentativa de equacionar o Ser Nacional.175 Destarte,
seria possível localizar a origem das idéias que aqui interessam
no século XIX, reputando genuína a paternidade de pensadores da
envergadura de um Bonifácio ou um Martius.176 Porém, pareceria

174
Idid. Pp. 88-89.
175
“Enquanto boa parte da elite sonhava com o embranquecimento da população por
meio da imigração européia, Bonifácio foi talvez um dos primeiros a defender a
miscigenação como fulcro da identidade nacional”. Miriam Dolhnikoff, op. cit. p.
125.
176
É claro que o debate sobre a identidade nacional contou com outras figuras
de peso; no elenco poderiam comparecer, dentre outros, Sousa Caldas, Gonçalves
Dias, José de Alencar, Gonçalves Magalhães, Adolfo de Varnhagen, Nina
Rodrigues, Sílvio Romero ou Joaquim Nabuco  alguns desse autores serão
abordados no seguinte item. Dante Moreira Leite desenvolve análise breve acerca
do pensamento da identidade nacional nos românticos e em seus primeiros
críticos; cf. op. cit. pp. 164-193. Para uma análise pormenorizada do
romantismo e do nacionalismo após da independência, cf. Antonio Candido,
Formação da..., 1o. Vol., op. cit. pp. 225-251, 281-284; Antonio Candido
Formação da literatura brasileira  Momentos decisivos, 2o. Vol. (1836-1880),
147

deveras irônico o fato de se apagarem quaisquer traços de


especificidade histórica, precisamente, no intuito
historiográfico de estabelecer a fonte originária do pensamento
sobre o caráter nacional  fulcro em torno do qual se
desenvolveu a tradição do ethos público. A lógica dessa ironia
consiste em que o esforço analítico à busca das origens leva
consigo  de antemão  uma resposta feita de puro presente, se
“deparando” sempre com resultados que obedecem a uma espécie de
“arqueologia” dos elementos contínuos na tradição do pensamento
sobre a identidade nacional. Na realidade, a permanência de um
elenco de temas  por exemplo, miscigenação, lascívia ou

plasticidade  não implica continuidade no terreno dos


problemas, quer dizer, das formas específicas de abordagem a
partir das quais está sendo reconstruído e compreendido o tema.
Isso coloca a pertinência de se introduzir a descontinuidade e a
reapropriação como subsídios analíticos para refletir o problema
que aqui interessa: o surgimento e consolidação do ethos público
como chave explicativa da vida e do espaço públicos.

Antes de enveredar por esse caminho, convém precisar e


extrair algumas conseqüências da distinção recém apontada: a
relação contínua/descontínua entre temas e problemas, mediada,
como será visto, pela reapropriação. 177 É claro que, tirante parte
do período colonial, na história do pensamento político-social há

(1956-57), pp. 11-21. Angela Alonso desenvolve interpretação sintética das


diferenças em torno do debate da identidade nacional no interior do romantismo,
e entre essa vertente e a crítica da “geração científica”. (“Epílogo ao
Romantismo”, pp. 139-62)
177
A importância dos temas como um complexo de preconceitos estáveis e
largamente aceitos durante longos períodos  épocas até , como pressupostos
assentes, intrínsecos ao desenvolvimento do conhecimento científico, pode ser
consultada no conhecido trabalho do físico Gerald Holton, La imaginación
científica, pp. 3-14, 20-31, 178-201. Para uma análise epistemológica da
constituição de problemas visando a superação das prenoções próprias do tema 
por definição generalizador e abstrato , cf. Hugo Zemelman, “La totalidad como
perspectiva de descubrimiento”, pp. 53-85. Em concordância parcial com ambos os
autores, aqui o tema remete ao repertório normal de noções padronizadas
disponíveis; enquanto o problema refere-se aos conteúdos substantivos que
redefinem o sentido histórico dos temas, sempre conforme as grandes
inquietações do momento. A reapropriação estabelece relações de descontinuidade
e continuidade que animam a renovação do pensamento.
148

continuidade, relevância ou até reposição enfadonha de certos


temas, dentre os quais: as qualidades, inexistência ou francas
deficiências do povo ou, em termos mais atuais, da sociedade
civil  tema tratado na primeira parte ; a questão racial; a
moral pública; a identidade e integração nacionais; a grandeza e
riqueza natural destas terras; ou, equacionando amplo leque
dessas e outras preocupações, os temas perenes do Estado 
constituição, missão e consolidação  e da modernização do país
 econômica, política, social e cultural, segundo distintas
178
concepções e programas. Contudo, cabe assinalar que tais temas
não definem necessariamente a singularidade do pensamento local,
pois não raro as preocupações em aparência mais singulares, como
poderia ser a tristeza do povo, outrora emblemática, pertencem a
inveteradas tradições do pensamento ocidental; 179 ademais, é comum
os mesmos temas aparecerem com intensidade similar no pensamento
político-social latino-americano  por vezes em termos muito
semelhantes. 180

178
Cf. Octávio Ianni, A idéia do Brasil moderno, pp. 13-48, 94-101, 115-139;
Raymundo Faoro, Existe um pensamento político brasileiro?, 97-115. A
persistência de determinadas formas políticas e ideológicas, desde a
independência até o presente, fez com que Michel Debrum lhes outorga-se o
estatuto  por sinal bastante controverso  de arquétipos político-
ideológicos. O que Debrum chama de ideologia “secundaria”  o pensamento
político-social  investiria todas suas energias na produção de racionalizações
e justificativas adequadas à conjuntura na qual estar-se-ia realizando mais uma
reposição do arquétipo na ordem política. Nesse marco, a reposição de
arquétipos pelo pensamento político-social reflete esmagadora continuidade no
plano da realidade que não está pressuposta na noção de tema aqui utilizada.
Cf. Michel Debrum, “Conciliação” e outras estratégias, pp. 15-18, 121-124, 130-
148.
179
Certos traços do caráter como a tristeza, a melancolia ou a passividade; a
personificação desses ou outros traços em figuras pitorescas mas socialmente
desadaptadas como o malandro; a existência de tempos findos, nos quais imperava
uma ordem harmônica; a memória e sobrevivência residual do drama constitutivo
da nação, definido pela cisão da “alma popular” entre suas raízes e o futuro;
tudo isso, apresenta algumas das múltiplas facetas do processo de elaboração e
mitificação de arcaísmos, a partir do qual as sociedades européias esculpiram a
imagem de sua própria identidade defronte ao mundo rural gerado,
paradoxalmente, pela secular urbanização. Cf. o mordaz trabalho de Roger
Bartra, La jaula de la melancolía  Identidad del Mexicano, pp. 31-138.
180
Cf. Ruy Mauro Marini, “Las raíces del pensamiento latinoamericano”. In Ruy
Mauro Marini e Márgara Millán, La teoría social latinoamericana  Los orígenes.
Vol. 1, pp. 17-35.
149

Pois bem, a tentativa de historizar lançando mão do


expediente de descobrir e datar influências remotas, quanto mais
longínquas no tempo aparentemente mais originais e valiosas, visa
desentranhar os elementos constantes que permitem alinhar longa
sucessão de pensadores; entretanto, essa tentativa produz no
mesmo ensejo a constância visada, mas de forma retrospectiva,
como efeito de continuidade, como invenção da memória de uma
linhagem  isto é, como constructo anacrônico cuja legitimidade
histórica é garantida mediante sua inserção historiográfica no
âmbito da tradição. Assim, é a reapropriação que faz possível a
realização do efeito de continuidade, ao intermediar entre a
disponibilidade dos temas e as exigências dos problemas que,
colocados pelo presente, levam os autores a explorar determinadas
perspectivas de leitura do passado. Embora a reapropriação seja
condicionada pela história específica dos temas e pelo
desenvolvimento das perspectivas de abordagem existentes e
conceituadas no momento de sua construção  o que tem
conseqüências importantes para se pensar na origem do ethos
público , é claro que ela obedece de forma decisiva à lógica
concreta dos problemas, às questões que eles colocam e que têm de
ser elaboradas para dar respostas às inquietações do presente.
São duas as vantagens a explicarem a adoção desse quadro
elementar de referências analíticas  por sinal bastante
esquemático, particularmente se considerado em relação ao campo
teórico da historiografia.181 Em primeiro lugar, permite firmar o
estranhamento diante das idéias coaguladas na literatura sobre a
identidade nacional e, especificamente, sobre o ethos público 

181
A relação entre história, historiografia e teoria da história é complexa e
sequer há consenso quanto à pertinência de definir a escrita da história sob o
termo historiografia  no sentido amplo que tem sido utilizado aqui. Porém, é
claro que as teorias da história trabalham com um campo de problemas de índole
particularmente abstrata e universal  as condições de possibilidade da
apreensão da história  e, nesse plano, distinções como as realizadas acima são
reenviadas a sofisticadas discussões sobre a própria definição da história e
dos limites e recursos da historiografia. Cf. Carlos Mendiola Mejía,
“Distinción y relación entre la teoría de la historia, la historiografía y la
historia”, pp. 171-182.
150

origens remotas, tradições seculares, continuidades essenciais e


imutáveis, traços constitutivos do ser nacional ; em segundo
lugar, torna não apenas pertinente, mas obrigatória a indagação
acerca da especificidade do ethos público ao destacar a
relevância da descontinuidade.

É mister, portanto, formular a questão da origem do ethos


público em termos do horizonte de problemas que animou uma
reapropriação específica de determinados elementos pertencentes
aos temas da identidade nacional, agora resignificados sob um
182
escopo analítico a rigor novo. Nesse sentido, em estudo
pioneiro acerca da ideologia do caráter nacional, Dante Moreira
Leite propõe quatro grandes momentos para periodizar o pensamento
político-social à busca da brasilidade: o colonial, o do
romantismo, o do pensamento disciplinar imerso no ambiente de
pessimismo próprio das últimas décadas oitocentistas e da
primeira metade do século XX e, por último, o momento da
industrialização e da  suposta  superação da ideologia do
caráter nacional. 183 A análise e caracterização de tais fases, por
sinal, acompanha até o século XIX os argumentos e a periodização
desenvolvidos por Antonio Candido no seu clássico trabalho sobre
a Formação da literatura brasileira. Mais que explorar esses
períodos, interessa salientar apenas o fato de eles estarem
constituídos, grosso modo, pela irrupção e permanência, no longo
prazo, de horizontes de problemas que balizam a descontinuidade
no sentido da reapropriação de certos temas continuamente
invocados para identificar os traços da identidade nacional.

182
Embora seja pertinente se pensar em termos analíticos a relação
tema/problema, não é plausível que historicamente apareça apenas um problema,
mas um conjunto interdependente e articulado de problemas relevantes em um
período histórico determinado. Nesse sentido e sem maiores pretensões
conceituais é introduzida aqui a noção “horizonte de problemas”. O conceito de
“problemática” traduz de forma nítida essa questão, todavia, seu registro
semântico encontra-se muito construído e normalmente atrelado a discussões de
índole epistemológica ou metodológica. Para uma discussão teórica acerca da
caracterização de uma época por seu correspondente horizonte de problemas, cf.
a idéia de “programática político-social burguesa” em Ana María Rivadeo
Fernández, Epistemología y política en Kant  Apriorismo y noumenicidad.
183
Dante Moreira Leite, op. cit. pp. 147-148.
151

2. A reapropriação dos temas da identidade

Foi mediante o contato com os textos europeus e coloniais,


sem dúvida muito limitado pela ausência de condições de
184
reprodução e de circulação na colônia, que se cristalizaram na
obra do arcadismo um conjunto de atributos incorporados de
maneira definitiva ao tratamento do vernáculo: a prodigalidade da
natureza defronte os homens ora mesquinhos ora apoucados que
povoavam estas terras; a primazia da riqueza e da beleza natural
da América Portuguesa no orbe; as feições próprias à
sensibilidade dos habitantes destas latitudes, por vezes meigos e
ternos, por vezes melancólicos, mas quase sempre propensos à
185
lascívia ou portadores de sensualidade exuberante. Embora um
traço distintivo do arcadismo  não o único e sequer o mais

importante  tenha sido a vocação para inventariar, definir e


enaltecer as caraterísticas da vida e natureza locais, seria
grave equívoco atribuir-lhe um nativismo com pretensões de
originalidade nacional. Nada mais distante dos textos árcades,
cujo horizonte de problemas, determinado pela condição cultural e
politicamente periférica da colônia, impunha a dupla conveniência
de demonstrar a excelência de uma cultura local a par da européia
e de revelar as riquezas e o valor das posses ultramarinas  que
devido a sua qualidade e a sua magnitude bem mereciam atenção do
poder peninsular. De fato, no demorado processo de decantação
daqueles tópicos árcades  cujos elementos e imagens foram
coagulados no nativismo e no naturismo prosaicos, que exprimiram
a decadência do arcadismo já estabilizado sob o jugo da rotina 186
 não há, stricto sensu, empenho por definir ou salvaguardar a
singularidade nacional, mas a preocupação por encaixar a vida e a

184
Cf. Antonio Candido, op. cit., vol. 1, pp. 73-74, 215-224.
185
Dante Moreira Leite, op. cit., pp. 149-163.
186
Antonio Candido analisa a decadência do arcadismo dentro do processo de sua
rotinização, cf. op. cit., vol. 1, pp. 181-183, 190-204.
152

cultura da colônia no quadro preestabelecido do universo cultural


e político peninsular.

O fato de aqueles elementos e imagens não visarem nem


pressuporem qualquer definição de uma singularidade puramente
brasílica, frisa o caráter profundamente anacrônico de se
procurarem as origens da noção do ethos público na colônia,
baseando-se na existência de certos lugares comuns; porém, isso
não implica a desaparição de tais tópicos e, por conseguinte,
deixa intocada a questão de sua continuidade como tema do
pensamento político-social brasileiro. Foi a coincidência de dois
importantes fenômenos, a definirem o teor dos novos tempos
oitocentistas, que inaugurou o registro a partir do qual seria
reapropriado o legado árcade: de um lado, o encadeamento dos
diversos acontecimentos históricos que levaram a extinção da
subordinação colonial e, do outro, a emergência do romantismo e a
conseqüente introdução de novas tendências no mundo da cultura.
Essa particular combinação fez com que, ao longo de boa parte do
século XIX, fosse possível surpreendente sintonia entre o mundo
da política e o mundo da cultura; “Em poucos momentos, quanto
naquele,”  para dizê-lo nas palavras da Antonio Candido  “a
inteligência se identificou tão estreitamente aos interesses
materiais das camadas dominantes [...].”187 O pensamento romântico
e suas expressões literárias, vazados em um horizonte de
problemas inédito  a construção do Estado-nacional , viram-se,
então, imbuídos fortemente pelo sentido de uma missão fundadora e
patriótica: “Toca ao nosso século restaurar as ruínas e reparar
as falhas dos passados séculos. Cada nação livre reconhece a
necessidade de marchar. Marchar para uma nação é engrandecer-se
moralmente, é desenvolver todos os elementos da civilização” 
afirmava enfático Gonçalves de Magalhães em seu famoso “Discurso

187
Ibid., p. 225.
153

sobre a história da literatura no Brasil”.188 A emancipação de um


território que devia ser construído material e simbolicamente
como nação, colocou em pauta o desafio da criação de uma
literatura própria voltada para a discriminação do âmago da
identidade nacional. Cabe ressalvar que apenas por brevidade de
exposição, em matéria que assume aqui interesse muito pontual, é
possível falar genericamente em “romantismo” sem considerar as
controvérsias internas desse pensamento: a polêmica entre
Gonçalves de Magalhães e José de Alencar basta para mostrar que
nem sequer o leitmotiv do indianismo, quanto aos cânones de sua
construção, era assunto pacífico entre os românticos. 189

A coincidência da dupla mudança, na ordenação política da


sociedade e no âmbito da cultura  mas não na economia ,
explica em boa medida o caráter “estatal-nacionalista” assumido
pelo movimento romântico  diferentemente do ocorrido na Europa.
Tratava-se de acompanhar e fortalecer a independência com
demonstrações incontestáveis da maioridade artística e
intelectual atingida pelo país, o que certamente exigia a
entronização das feições capazes de, a um tempo, definir a
identidade nacional como elemento unificador do território e
apontar para a construção dessa identidade como processo
civilizador, insuflando o orgulho patriótico. Então, o movimento
árcade foi submetido a dupla operação pelo romantismo:
estigmatizado porque representante fiel e indesejável do período

188
José Gonçalves de Magalhães, “Discurso sobre a história da literatura no
Brasil”, (1836) in Afrânio Coutinho (org.), Caminhos do pensamento Crítico, p.
30. O sentido de missão é traço distintivo do romantismo; o particular, neste
caso, é que o destino superior do artista e de sua escrita ligam-se com o
destino da nação. Cf. Antonio Candido, op. cit., Vol. 2, p. 24-26; Pedro
Puntoni, “A Confederação dos Tamoyos de Gonçalves de Magalhães  A poética da
história e a historiografia do império”, pp. 119-24.
189
Cf., Angela Alonso, op. cit. pp. 139-46. Isso, para não mencionar a franca
oposição de Varnhagen ao indianismo como elemento definidor da identidade
nacional: “Não será um engano, por exemplo, querer produzir efeito, e ostentar
patriotismo, exaltando as ações de uma caterva de canibais, que vinham assaltar
uma colônia de nossos antepassados só para os devorar. ” Francisco Adolfo de
Varnhagen, Florilégio da poesia brasileira, (1850-1853) in Afrânio Coutinho,
op. cit., p. 308.
154

colonial  por isso seu suposto “classicismo inautêntico” , e


em sentido inverso, reapropriado como manifestação incipiente da
consciência nacional  que presuntivamente balbuciava assim suas
primeiras manifestações em linguagem ainda tímida. Com efeito,
“[...] a descrição da terra e o sentimento nativista é que,
transformados pelo gosto romântico, terão continuidade na
literatura brasileira dos séculos XIX e XX.” 190 E claro que, na
medida em que essa continuidade ocorre no plano estritamente
temático, ela é produto de uma operação retroativa a serviço do
presente, neste caso, da necessidade de entranhar na colônia o
germe originário da fisionomia nacional. Nesse sentido, tampouco
o romantismo e sua consagração das feições da identidade oferece
resposta historicamente pertinente no que diz respeito às origens
do ethos público.

O teor laudatório da missão romântica se ocupou com menor


veemência do mundo das instituições econômicas e políticas e da
vida cívica  visto que, nesse terreno, a continuidade existia
por si própria e não precisava de invenção , preferindo a
natureza e o índio como objetos de exaltação. 191 Com o olhar
estranhado do estrangeiro, von Martius formulou ao respeito
observação de notável acuidade perceptiva: “[...] certa
particularidade, que excitou muito a minha atenção. Eu falo das
numerosas histórias e legendas sobre as riquezas subterrâneas do
país, que nele são o único elemento do romantismo, e substituem
para com os brasileiros os inúmeros contos fabulosos de
cavaleiros e espectros, os quais fornecem nos povos europeus uma
fonte inesgotável e sempre nova para a poesia popular.” 192 A

190
Dante Moreira Leite, op. cit., p. 157.
191
Cf. ibid., pp. 164-177; Octávio Ianni, op. cit., pp. 127-139; Antonio
Candido, op. cit., vol 2, pp. 18-21.
192
Carl Friederich Philippe von Martius, op. cit., p.100. Ao respeito, Paulo
Prado lamenta a “[...] hipertrofia do patriotismo indolente que se contentava
em admirar as belezas naturais, ‘as mais extraordinárias do mundo’, como se
fossem obras do homem [...]”. Paulo Prado, op. cit. p. 161; e Nestor Duarte
afirma com sentimento semelhante: “A nossa idéia de pátria como de nação é,
155

ausência de relatos épicos advertida por Martius e, como


contrapartida, a presença de um discurso acerca das vastas
riquezas naturais a definirem positivamente o Brasil 

escamoteando o caráter pouco benevolente da ordem social ,


aponta para as caraterísticas do romantismo acima expostas. Seja
dito de passagem e com as ressalvas necessárias, observação
semelhante não poderia ter sido formulada se a comparação
registrasse como pano de fundo os países da América Espanhola,
abalados por fortes revoluções de independência que forneceram
abundante pedra de cantaria para a lavra da historiografia
romântica. Sem dúvida, a prodigalidade quase omnipresente da
natureza e a simultânea ausência do povo  isto é, a crítica de
seus defeitos ou de sua pacata presença na história  constituem
um binômio temático complementar do pensamento político-social
193
brasileiro.

A harmonia entre o mundo da cultura romântico e o mundo da


política imperial ver-se-ia solapada aos poucos com o surgimento
e proliferação do pensamento crítico ao segundo império, com o
avance do movimento republicano, com o fortalecimento da causa
abolicionista, com o enraizamento do ideário positivista, enfim,
com a geração de um ambiente regido sob o signo da ciência e do
criticismo. Tal como o fizera o romantismo com o legado árcade,
agora a própria herança romântica seria passada pelo crivo da
censura que lhe impunham os novos tempos, cujo horizonte de
problemas não mais era permeado pela premência da
institucionalização estatal-nacional, mas pela transformação
profunda das próprias instituições econômicas e políticas do
país. Na verdade, o vertiginoso desencadear dos acontecimentos

antes de tudo, um complexo geográfico”. Nestor Duarte, A ordem privada e a


organização política nacional, (1939) p. 125.
193
Interessantes reflexões sobre o papel da natureza na “mitologia verde-
amarela”, apoiadas no exemplo da bandeira e do hino nacionais brasileiros, e
sobre a esterilização da história na “mitologia do Brasil paradisíaco”, podem
ser consultadas em Marilena Chauí, Conformismo e resistência  Aspectos da
cultura popular no Brasil, p. 93-104; Marilena Chauí, “O mito fundador do
Brasil”, p. 10.
156

fez com que, após ocorrerem as transformações almejadas, esse


horizonte de problemas se desdobrasse, assumindo novas
caraterísticas diante dos resultados obtidos  sempre aquém das
expectativas.194 No primeiro momento, o desafio partilhado pela
maior parte do pensamento da época consistia de novo empenho
renovador no plano das idéias, acompanhado de uma crítica
ferrenha do passado; ambos os trabalhos  o construtivo e o
destrutivo  faziam-se sob a convicção generalizada de que,
banida a escravidão e instaurada a república, o país enveredaria
rumo a modernidade. Já o segundo momento, além de manter as
ambições edificadoras, defrontou os pensadores com a
insuficiência ou franca ausência de quadros explicativos para
compreender a crise que se alastrava, paradoxalmente, como
desfecho das grandes transformações destinadas a solucionar os
problemas do país. “Isso provocou um estado de depressão e de
perplexidade no ânimo dos líderes das camadas dominantes,
inclusive nos [sic] da inteligência. Originou-se, desse modo,
outra convicção: a de que os desequilíbrios da sociedade
brasileira, que eclodiam periodicamente na cena histórica,
195
possuíam causas mais profundas.”

Sem constituir, de forma ingênua, a Lei Áurea e a


proclamação da República em divisor de águas cronologicamente
preciso, até porque fora pouco traumática a passagem do Império
para o novo regime  não assim suas conseqüências , 196 esses
episódios simbolizam, mediante a introdução simplificadora de uma
“antes” e um “depois”, a tensão constitutiva de boa parte do
pensamento da época entre um empenho positivo de edificação para
a realização dos ideais acalentados, e um trabalho negativo de
crítica acerva não apenas do passado, que deveria ser derrotado,

194
Cf. Florestan Fernandes, A sociologia no Brasil  Contribuição para o
estudo da sua formação e desenvolvimento, pp. 31-44.
195
Ibid., p. 34.
196
Cf. Boris Fausto, História do Brasil, pp. 245-248; Cruz Costa, Pequena
história da República, pp. 11-26.
157

mas do presente e da renitência de seus empecilhos que impediam


moldar a realidade conforme aqueles ideais. A partir desse
momento  segundo o dizer certeiro de Buarque de Holanda , “Nos
livros, na imprensa, nos discursos, a realidade começa a ser,
infalivelmente, a dura, a triste realidade”.197 A tensão entre
ambos os pólos aparece de forma particularmente nítida no
pensamento de Sílvio Romero, cuja obra influenciara largamente
autores do primeiro terço do século XX; autores associados à
produção da literatura sobre o caráter nacional e, portanto,
sobre o ethos público. 198 Em prefácio a seus Cantos do fim do
século (1878), livro de poemas compilados com que pretendera
fornecer amostra do rumo da renovação literária pregada o mesmo
ano em seu texto programático A filosofia no Brasil,199 Silvio
Romero explicitou, invocando a seu favor o prestigio de Darwin,
Comte e Spencer, a nova função das ciências do homem e,
especialmente, da arte: “Nesta altura, sua primeira obrigação,
entre nós, há de ser o completo abandono de meia dúzia de
celebres questões, que hão sido eterno martelar de autores
brasileiros. Por este modo esquecer-se-á de índios e lusos para
lembrar-se da humanidade; não indagará se é nacional para melhor
mostrar-se humana [...] Procuram-se hoje as leis de uma
sistematização exata de nossa vida pensante. Sabe-se agora que
não somos um povo de alta cultura, não porque nos faltassem
frases, que nos sobram; mas por faltar-nos a ciência; não por
falharem os trovadores, mas porque não se encontram os
200
artistas.”

197
Sérgio Buarque de Holanda, op. cit. pp. 189-193.
198
Cf. Dante Moreira Leite, op. cit. 178-179. Cabe salientar que no tratamento
da terceira fase histórica, definida por esse autor como “As ciências sociais
e a imagem pessimista do brasileiro (1880-1950)”, não há referência à tensão
que impregnou o horizonte de problemas do período, fazendo com que ele fosse
ambíguo quanto ao pessimismo assumido por Moreira Leite como feição homogênea.
Além do mais, parece inadequado que o tipo de análises que viram luz no
contexto revolucionário da década de 1930 partilhe o mesmo “pessimismo”
característico das décadas da virada do século. Cf., Carlos Guilherme Mota,
Ideologia da cultura brasileira (1933-1974), Pp. 27-33.
199
Cf. Wilson Martins, História da inteligência brasileira. Vol. IV (1877-
1896), p. 34-54.
200
Ibid., p. 36.
158

Porém, malgrado o ensejo para banir a meia dúzia de lugares


comuns românticos das questões relevantes a serem pensadas, o
trabalho demolidor da crítica lançou mão, precisamente, de todos
e cada um dos tópicos do romantismo acerca do tema da identidade
nacional e reapropriou-se deles, desta vez, invertendo seu
sentido. Os índios, outrora portadores de raras qualidades, agora
responsáveis por contribuições de pouca ou nenhuma valia; a
natureza, outrora feraz, agora inclemente e adversa aos esforços
civilizacionais; além do mais, seria preciso enfrentar a questão
do negro, cuja importância ultrapassava de longe o problema dos
índios. O próprio Sílvio Romero fora um dos porta-vozes desse
pessimismo lancinante: “O brasileiro ficou quase um retrato do
português. A natureza, como agente de transformação, pouco há
feito para alterá-lo, tendo a lutar contra a estreiteza do tempo
e a civilização européia. O caboclo, tipo quase perdido [...] O
africano, rebelde aos progressos intelectuais [...] Do consórcio,
pois, de velha população latina, bestamente atrasada, bestamente
infecunda, e de selvagens africanos, estupidamente indolentes,
estupidamente talhados para escravos, surgiu, na máxima parte,
este povo, que se diz, que se supõe grande, porque possui, entre
outras maravilhas, ‘o mais belo país do mundo’.” 201 Assim, a
continuidade dos elementos consagrados no tema da identidade
nacional pelo romantismo deu-se, mais uma vez, mediante mudança
de registro. Não se trata apenas da recodificação das feições do
ser nacional sob o signo da “ideologia do pessimismo”  segundo
a chama Moreira Leite , que, como analisado acima, é menos
homogênea do que sugere sua análise sem levar em consideração a
tensão da qual forma parte. Trata-se, também, do novo estatuto
outorgado a tais feições, isto é, da pretensão de validez
científica do discurso que as constrói como obstáculos
descobertos por diagnóstico objetivo, cuja veracidade encontra-se

201
Dante Moreira Leite, op. cit., p. 184, apud., Silvio Romero, O caráter
nacional e as origens do povo Brasileiro. (1871)
159

alicerçada na adaptação dos modelos da física e da biologia à


reflexão das ciências humanas.

Embora a caracterização negativa do brasileiro continuara a


se repetir ao longo das primeiras décadas do século XX, por vezes
sem qualquer variação de importância, é o teor científico
biologicista e naturalista  carregado de implicações raciais
discriminatórias  que impede atribuir a esse momento e a esse
pensamento a origem da noção do ethos público e que, no limite,
coloca a pertinência de se explicitar o sentido ambíguo
atribuído, nesse contexto, à idéia de caráter brasileiro. A
questão relevante é a seguinte: a matriz naturalista a organizar
análises como a transcrita acima, cujos referentes mais
conceituados encontram-se em autores contemporâneos como Lapouge
e Gobineau, dispensa qualquer consideração da multiplicidade dos
processos psicológicos presentes na definição da personalidade,
pois tais processos apenas poderiam, se muito, amenizar as
feições já inscritas no caráter da raça. 202 Por isso, o caráter é
natureza, isto é, manifesta-se, sim, mediante os traços comuns da
personalidade, mas responde aos imutáveis ditados da genética,
prescrevendo comportamentos decorrentes do caráter da raça e não
de uma “personalidade coletiva”  personalidade que, no limite,
é um compósito medíocre dos traços correspondentes aos diferentes
elementos raciais envolvidos nas sua conformação. Não fosse
assim, resultaria incompreensível a importância programática
atingida pela terapêutica do branqueamento. Contudo, nem sempre a
noção de caráter recebeu o tratamento racial então imperante e,
não raro nos mesmos autores, também apareceu vinculada à idéia
unitária da uma psicologia comum  ecoando ainda teses caras ao

202
É claro que nesse momento a personalidade não tinha conquistado a
profundidade abissal consagrada na obra de Freud, que produzira sua primeira
obra sistemática só na virada do século; todavia, a psicologia nas abordagens
comportamentalistas distava de reduzir-se a simples biologia do comportamento.
160

romantismo e sua concepção do espírito do povo 203  ou, às vezes,


embora timidamente, relacionada a processos históricos
responsáveis pela definição dos traços analisados  por exemplo,
a escravidão como causa da indolência típica do negro.

3. A identidade como substrato cultural e


psicológico

É precisamente essa ambigüidade que faz com que as feições


do caráter e da psicologia do ser brasileiro não adquiram ainda,
stricto sensu, moldes culturais e psicológicos, o que constitui
condição de possibilidade para o surgimento do ethos público.
Malgrado o pessimismo “realista” da crítica contra-romântica ter
estimulado azedas caracterizações da brasilidade, que continuaram
a subsidiar tematicamente análises no decorrer das primeiras
décadas do século XX, a origem do ethos público não pode
responder apenas aos desafios colocados pelo horizonte de
problemas aberto com o advento da Primeira República, visto que
não estavam à mão, no terreno das perspetivas de abordagem
disponíveis, modelos analíticos alternativos voltados para a
especificidade da cultura ou da dimensão psicológica da vida
social. Não que não existissem abordagens ditas sociológicas ou
estudos sociais de psychologia  segundo a grafia da época , ou
ainda análises ditas antropológicas, voltadas à explicação da
formação do Brasil, pois de fato existiram, e em abundância;
todavia, tanto a “sociologia” como a “psicologia” e a
“antropologia” eram informadas por idéias naturalistas e
biologicistas, ou seja, eram ciências das determinações
ambientais e raciais  tributárias da climatologia, da eugenia
ou da antropogeografia. 204 Isto, sem esquecer a referência
ideológica mais abrangente proporcionada pela doutrina

203
Silvio Romero escreveu, além de O caráter nacional e as origens do povo
brasileiro, já citado, um capítulo sobre a psicologia nacional no seu livro
História da literatura. Cf., Dante Moreira Leite, op. cit., pp. 178-174.
204
Cf., Afrânio Coutinho, op. cit., p. 16.
161

positivista, cujos anseios de progresso, atrelados ao


evolucionismo e ao cientismo, não raro traduziam-se em descaso
pela realidade  apesar de sua confessa orientação “anti-
metafísica”. O horizonte de problemas durante os conturbados anos
da Primeira República, continuou marcado pela necessidade de
equacionar, a um só tempo, as mazelas herdadas pela escravidão e
os rumos que a consolidação política do país deveria de seguir.
Entrementes, o trabalho da crítica foi se afastando dos esquemas
explicativos de matriz naturalista e, principalmente,
biologicista, quer como recusa ao ônus de suas implicações
raciais, quer como depuração e incorporação parcial dos
postulados raciais em quadros explicativos maiores e mais
sofisticados, ou quer como mudança de perspectiva analítica ainda
parcialmente vazada em argumentos naturalistas, mas em todos os
casos, visando a compreensão da realidade nacional a partir da
produção de um conhecimento que respondesse e se adequasse a sua
especificidade. 205 Manuel Bonfim, Oliveira Viana e Paulo Prado são
exponentes notáveis desse esforço de compreensão enraizada e do
paulatino e também ambíguo afastamento da concepção naturalista
da identidade. 206

O pensamento de Manuel José do Bonfim é representativo da


primeira opção  a contestação das implicações racistas  e
evidencia de forma eloqüente a dificuldade de se escapar aos
pressupostos das interpretações e idéias biologicistas criticadas
quando não há possibilidade de se desprender dos modelos
analíticos que as sustentam. Por outras palavras, Manuel Bonfim
apresenta o paradoxo da crítica que repõe parcialmente o

205
João Cruz Costa, Contribuição à história das idéias no Brasil, pp. 420-423.
206
Na geração de autores cujas obras viram luz entre 1914 e 1930, além dos
três autores mencionados, João Cruz Costa salienta: Vicente Licínio Cardoso,
Ronald de Carvalho e Azevedo de Amaral (ibid. pp. 423-431). Por sua vez, na sua
afamada revisão do pensamento autoritário, Bolivar Lamounier contempla autores
como Alberto Torres e Francisco Campos, incluindo também Azevedo de Amaral e o
próprio Oliveira Vianna; cf., “Formação de um pensamento autoritário na
primeira república  Uma interpretação”, pp. 345-48, in Boris Fausto (dir.), O
Brasil repulicano  2. Sociedade e instituições (1930-1977).
162

criticado por permanecer presa nos seus pressupostos; e nesse


sentido, não é banal lembrar sua profissão de médico e a
disposição para o uso de figurações biológicas, como atestado por
seu recurso ao parasitismo enquanto caracterização crítica dos
vínculos entre a metrópole e a colônia, primeiro, e do Estado com
a nação, depois.207 Em argüição contra a teoria das raças
inferiores o autor arregimenta autoridades na matéria que, pela
afinidade de posições, lhe permitem mostrar a legitimidade de
suas idéias no campo do conhecimento científico: “Waitz, Martin
de Moussy e Quatrefages afirmam ‘que os mestiços são pelo menos
iguais em inteligência aos seus progenitores de raça superior’.
Este último  Quatrefages, refere-se nos termos mais
encomiásticos às sociedades sul-americanas, onde a mestiçagem
teria, no seu parecer, desenvolvido qualidades apreciáveis [...]
sobretudo no Brasil, onde, não existindo preconceito de cor, os
mestiços têm podido desenvolver as suas aptidões e têm mostrado
‘uma decidida superioridade artística sobre as duas raças
208
mães’.” Sem sombra de dúvida, o pensamento do autor representa
uma ruptura com o ponto de vista dominante na época, ainda mais
em um momento em que, segundo Moreira Leite, “[...] os
intelectuais só discordavam quanto às razões da nossa
209
inferioridade como povo”. Para Bonfim, as caraterísticas das
raças erradamente tidas como inferiores eram resultantes de uma
socialização deficiente ou, no limite, “ausente”: “Não são maus;
são violentos, reflexos, espontâneos  por incultos e
ignorantes; falta-lhes a inibição superior, fruto da educação”;
ou ainda, “[...] estes defeitos todos são devidos simplesmente à
falta de educação social. Ensinem-lhe a trabalhar, inspirem-lhe
desejos novos [...] e o caboclo aceitará, e se habituará a

207
Cf., José Murilo de Carvalho, “república e ética, uma questão centenária”,
in Renato Raul Boschi (org.), Corporativismo e desigualdade  A construção do
espaço público no Brasil, pp. 36-7. Quanto ao pensamento de Manuel Bonfim, cf.,
América Latina: Males de origem,(1905) particularmente o capítulo “As novas
sociedades  Elementos essenciais do caráter; raças colonizadoras; efeitos do
cruzamento”, pp. 233-267.
208
Ibid., p. 264.
209
Dante Moreira Leite, op. cit., p. 251.
163

trabalhar”. 210 No entanto, na crítica às teorias raciais


imperantes, Bonfim, apesar de seu empenho em trazer à tona os
processos de socialização, acode aos argumentos disponíveis que,
em última análise, levam mais uma vez à reificação da raça como
fator com poder explicativo: há caraterísticas próprias às raças
e aos efeitos de sua miscigenação, embora passíveis de
aperfeiçoamento por expedientes não genéticos.

Por sua vez, Francisco Oliveira Vianna, no movimento de sua


vasta obra, acabou realizando uma depuração de seus postulados
raciais que, todavia, permaneceram preservados de forma cada vez
mais moderada e inseridos em quadros explicativos maiores e mais
sofisticados. Não que nesse percurso os argumentos do autor
tenham se desvencilhado por completo das teses raciais, mas
existe deslocamento perceptível entre Populações meridionais do
Brasil: História, organização, psychologia; paulistas,
fluminenses, mineiros (1918); Pequenos estudos de Psychologia
social (1921); Evolução do povo brasileiro (1923); Raça e
assimilação (1932)  livros carregados de uma psicologia
naturalista, ou seja, animada por determinações ambientais e
raciais , e o grande balanço final de seu pensamento, exposto
em Instituições políticas brasileiras (1949), em cujas páginas
realiza uma revisão de algumas de suas teses anteriores à luz do
direito costumeiro e das contribuições das abordagens culturais,
introduzidas no país na década de 30. 211 Parece findo o tempo em
que Oliveira Vianna suscitava reações iradas no pensamento
prezado como progressista, levando a autores de juízo normalmente

210
Manuel Bonfim, op. cit., pp. 267 e 240, respectivamente.
211
Os primeiros três capítulos da última obra estão dedicados a sistematizar as
propostas teóricas sobre a cultura, “passando a limpo” as idéias do próprio
autor no tocante à devida relação analítica entre fatores naturais e culturais:
“[...] a escola culturalista moderna esá [sic] reconhecendo que a ‘cultura’ não
pode explicar tudo, nem que o indivíduo seja apenas produto da cultura [§ ...]
Não esta muito longe o dia em que a sociologia terá de reconhecer  na gênese
das culturas e nas transformações das sociedades  não apenas o papel da
hereditariedade individual e do grande homem, mas mesmo o papel da raça. Na
verdade, tudo parece afluir para uma grande síntese conciliadora [...] passou
definitivamente a época do exclusivismos monocausalistas.” Francisco Oliveira
Vianna, Instituições políticas brasileiras, (1949) pp. 58-9.
164

sereno, como Moreira Leite, a cometer arroubos críticos


despropositados: “[...] esses livros tiveram várias edições e
foram citados a sério como se representassem algo mais que a
imaginação doentia de um homem que deve ter sido profundamente
infeliz.” 212

Hoje é possível reconhecer que os trabalhos de Oliveira


Vianna tiveram influência duradoura para além da órbita do
pensamento autoritário,213 revestindo de significado idéias e
termos que, reapropriados por outros autores, continuaram a
circular com signo parcialmente trocado  a tríade “clã feudal”,
“clã parental”, “clã eleitoral”; a “família senhorial”, o
“nepotismo”, o “afilhadismo”, o “personalismo”, a “aristocracia
rural”, a “solidariedade parental”, o “insolidarismo” e o elenco
poderia se estender. 214 A leitura mais instigante desses trabalhos
levaria a depositar a tônica nos processos históricos e
culturais, e por certo, há elementos para tanto: a identidade
nacional não definida por determinismos naturais, senão pelo peso
historicamente esmagador da vida rural, o que teria feito do
brasileiro “um homem do campo”  e sendo “este o traço realmente
nacional do seu caráter”,215 a progressiva urbanização teria
gerado certos desajustes que, em crasso equívoco, interpretes
pouco atentos acusariam como sintoma de decadência social e de
corrupção da identidade. 216 Nessa leitura, também a vida pública

212
Dante Moreira Leite, op. cit., p. 232. Em comentário que abre o balanço
final de Populações meridionais do Brasil, Leite afirma: “[...] o sentido de
toda essa elaboração confusa e contraditória, fruto de uma fantasia um pouco
desordenada, que se aproxima de certas formas de doença mental [...].” (p. 229)
213
Cf., Bolivar Lamounier, op. cit., pp. 345-48, 356-58 e 373-4.
214
Cf., Francisco Oliveira Vianna, Instituições políticas..., op. cit., pp.
149-231. Cf., também, Angela de Castro Gomes, “A política brasileira em busca
da modernidade: na fronteira entre o público e o privado”, in Lilia Moritz
Schwarcz, História da vida privada no Brasil  Contrastes da intimidade
contemporânea, pp. 507-11, 518-9.
215
Francisco Oliveira Vianna, Pequenos estudos de Psychologia social, (1921) p.
17 (itálicas no original).
216
A agudeza da observação de Oliveira Vianna vale a citação por extenso: “O
que está passando no Brasil não é a degeneração do caráter nacional; é coisa
de outra natureza. O que está dando à nossa sociedade esta apparência de
corrupção e degeneração, por um lado, e, por outro, esta impressão de desalento
165

encontraria diagnóstico no campo de uma psicologia alheia aos


condicionamentos raciais: “Este é um dos traços mais
caraterísticos da nossa psychologia social [a inexistência do
interesse coletivo] e, infelizmente, estamos muito longe de vel-o
desapparecer como elemento determinante da nossa conduta na vida
pública.” 217 Porém, tal leitura, embora mais instigante,
negligenciaria o aspecto que aqui interessa, isto é, a
ambigüidade do pensamento de Oliveira Vianna, cuja interpretação
da sociedade acode à existência de substratos psicológicos e
culturais ainda parcialmente presos em uma matriz naturalista.
Afinal, a ausência do interesse coletivo na vida nacional, para o
autor, obedece a outra ausência, a de dois tipos de atributos
abundantes em sociedades como a inglesa: o primeiro de índole
biológica  “porque se prende ao temperamento da raça”  e o
segundo de caráter moral, decorrente da formação social e
218
política do povo.

É com a publicação de Retrato do Brasil - Ensaio sobre a


tristeza brasileira (1927), obra breve e bela pela singeleza de
sua articulação interna, que Paulo da Silva Prado ensaia uma
interpretação estritamente psicológica da história do Brasil e
dos dilemas de seu presente. 219 Não há caraterísticas congênitas a
explanarem a configuração social do país, mas tensões entre
impulsos decantados mediante longos processos históricos, cujos
resultados se fixaram, primeiro, como traços dos indivíduos e,
depois, mediante influência secular na vida social, como feições
constitutivas da “psique nacional”. 220 Destarte, a “psicologia da

e egoísmo, pode-se compendiar nesta fórmula synthetica:  Tendência, de origem


recente, das classes superiores e dirigentes do paiz a se concentrarem nas
capitaes; dahi, como conseqüência, uma crise intensa e extensa nos seus meios
profissionais de subsistência.” (Ibid, p. 20, frisado no original)
217
Francisco Oliveira Vianna, O idealismo da constituição, (1924) p. 101.
218
Ibid, pp. 98-9.
219
Segundo a avaliação de Moreira Leite, trata-se da “[...] a primeira
interpretação rigorosamente psicológica de nossas história e de nosso caráter
nacional.” Op. cit., p. 262.
220
Paulo Prado, op. cit., p. 142 e 195. Cabe mencionar, em comentário marginal,
o extraordinário de Carlos Augusto Calil  organizador da edição aqui utilizada
166

descoberta” não pode ser inferida a partir das caraterísticas


raciais inerentes às populações que concorreram para o povoamento
destas regiões, pelo contrário, tem de ser reconstituída no
interior do processo da colonização. Representantes de um mundo
que estava a se desvencilhar da rígida moral religiosa, a
“Substituir à Obediência a Vontade individualista” (p.54), os
conquistadores encontraram nestas terras, longe da “Europa
policiada”, espaço para a libertação de sua mocidade e
individualismo  particularmente, para a expansão de uma
sensualidade livre. O primeiro grande impulso assim construído
fora a luxuria, inferior ao segundo, causa da empreitada colonial
e da expansão e retração dos núcleos de povoamento: a cobiça 
ambição mais poderosa e ainda mais representativa das tendências
individualistas da época. Assim, “Dominavam-no [ao colonizador]
dois sentimentos tirânicos: sensualismo e paixão do ouro. A
história do Brasil é o desenvolvimento desordenado dessas
obsessões [...].” (p.139) A conjugação dessas obsessões, todavia,
acarretou surpreendente resultado: visto que ambos os impulsos
são extenuantes devido a impossibilidade de saciá-los, à sua
tenaz atividade sucedeu a tristeza. Paulo Prado resume a lógica
desse paradoxo em formulação sintética, quase matemática:
“Luxúria, cobiça: melancolia” (p. 142). O decurso dos séculos
coloniais legara ao Brasil “uma raça triste”, cujas feições só
piorariam com o advento da sensibilidade romântica no século XIX,
cabendo ao presente a difícil responsabilidade de cortar os
liames com esse fardo. Diante de tamanho desafio, a revolução e a
guerra parecem ser os únicos instrumentos suficientemente
221
efetivos.

 no estabelecimento do texto. Em virtude da utilização mais extensa da obra em


questão, doravante será referida no corpo do trabalho com o número da página
correspondente.
221
O extraordinário acolhimento conquistado pelo livro deveu-se, em boa
medida, ao fato de a Revolução de 30 ter coincidido com passagem do “Post-
scriptum”, na qual Paulo Prado afirma ser o herói providencial “[...] uma
criatura das vicissitudes da guerra [...] será entre nós, numa longínqua
possibilidade, quem sabe, um gaúcho do sul [...].” Op. cit., p. 209.
167

Para os propósitos que aqui interessam, a singularidade da


obra em questão não radica apenas no teor psicológico da análise,
mas no fato de se encontrarem nela, de forma mais ou menos
acabada, duas caraterísticas imprescindíveis para a consolidação
da lógica do ethos público. Com maior precisão, embora sejam
perceptíveis em Paulo Prado claras incursões no modelo racial, a
assunção de outra ótica  psicológica  gerou relevantes
mudanças analíticas que, pouco depois e por caminhos diversos 

que não necessariamente os da sempre apelável influência ,


apareceriam estabilizadas como pressupostos na literatura
tributária do ethos público. Em primeiro lugar, ao desmitificar
as feições imutáveis da natureza racial, lançando mão do processo
histórico de constituição do perfil psicológico do brasileiro, o
autor propõe uma concepção da identidade nacional que, eis a
questão, leva em seu cerne a cristalização de novo determinismo
 embora desta vez pertencente ao mundo histórico-social. A
despeito de o caráter nacional não ser simples emanação das leis
naturais, os fatores que o determinaram vincaram tão fundo que,
poder-se-ia dizer, definiram uma segunda natureza: “Desses
excessos da vida sensual ficaram traços indeléveis no caráter
brasileiro.” (p. 139) Trata-se da “[...] filosofia de senzala, em
maior ou menor escala latente nas profundezas inconfessáveis do
caráter nacional” (p. 195). É claro que as óticas novas soem
alicerçar sua visão em chaves explicativas novas, e que essas
chaves, se inquiridas externamente, podem ser reputadas como mais
um modo de determinismo; todavia, para além do caráter simplório
desse tipo de crítica, o que é conveniente salientar é a
reposição essencializada da identidade  mediante a definição de
seus verdadeiros traços indeléveis , cuja índole psicológica
plurissecular a torna uma espécie de segunda natureza, avessa a
qualquer modelagem pelo mundo das instituições políticas e quase
hermética à mudança. Como será visto, essa primeira
característica opera largamente na lógica do ethos público.
168

Em segundo lugar, a constituição de uma identidade assim


acerada comporta conseqüências de interesse quanto à compreensão
da vida e do espaço públicos e, portanto, do mundo da política.
Tal reconstrução analítica permite discernir os elementos que
forjaram as feições da sociabilidade primária de modo a colocá-la
como pedra angular do universo das relações sociais e, por
conseguinte, como fator iniludível para a compreensão da
organização institucional da sociedade. De fato, na sociabilidade
aviltada residiriam as causas profundas que explicam as
deficiências da vida pública: é verdade que as paixões “[...] não
conhecem exceções no limitado viver instintivo do homem [...]”,
muito embora “aqui se desenvolveram de uma origem patogênica
provocada sem dúvida pela ausência de sentimentos efetivos de
ordem superior.” (p. 141) A “personalidade coletiva”, repleta de
determinações antisociais, extravasa, assim, os limites da
sociabilidade primária e impregna e desvirtua toda possibilidade
de constituição de relações impessoais  próprias da vida e do
espaço públicos, logo, também do espaço institucional da
política. A ineficácia da administração metropolitana pouco teria
contribuído para mudar o quadro geral da vida na colônia e ocupa,
na análise de Paulo Prado, a posição de um fator externo que
acirra a dinâmica endógena de degradação estimulada pelo “caráter
nacional”: “Na desordem da incompetência , do peculato, da
tirania, da cobiça, perderam-se as normas mais comezinhas na
direção dos negócios públicos.” (p. 202) Enfim, é como se a
história da configuração da “psique nacional”  o relato a

desvendar a intimidade da alma do brasileiro  fornecesse não


apenas uma chave para se entenderem certos traços distintivos da
sociabilidade local, mas a radiografia veraz do caráter acanhado
ou francamente pervertido da vida pública no Brasil. A dedução de
linhas mestras para a caracterização da vida pública, a partir do
estabelecimento de uma sociabilidade fundamental psicologicamente
ancorada, também encontra-se presente de forma ampla na
literatura do ethos público.
169

Porém, se falar em caraterísticas compartilhadas pela


literatura do ethos público, ou em traços que operam largamente
na lógica analítica desse ethos, dista muito de imputar
paternidade inconteste a qualquer autor, cuja idéia seminal teria
sido expandida e multiplicada através da obra de epígonos,
críticos ou comentaristas imparciais. O percurso seguido até aqui
leva a equacionar a questão em termos de continuidade e
descontinuidade. De fato, uma parte da equação encontra-se já
suficientemente esboçada, permanecendo de pé a questão da
especificidade da origem do ethos público. De um lado, é claro
que a busca das origens primevas escamoteia, sob a continuidade
meramente formal do plano temático, a especificidade e as
rupturas de sentido que animam a reapropriação e recriação das
idéias  sempre formuladas diante de um horizonte de problemas
concreto. Do outro, ainda poderia ser pertinente se cogitar
acerca da origem da descontinuidade e, portanto, acerca dos
autores e obras responsáveis pela “ruptura”. No agitado período
que antecede e acompanha a Primeira República, os desafios
colocados pela tensão  esboçada mais acima  entre a crítica
pungente dos problemas da época e a elaboração construtiva das
fórmulas que permitiriam encontrar saídas para a organização e
estabilização da nova ordem, decerto estimularam a renovação do
pensamento político-social como mostram as críticas do pensamento
autoritário à Constituição de 1891; contudo, esses desafios não
podem ser constituídos em motivo suficiente para o abandono das
explicações raciais sobre a identidade nacional, incompatíveis
por definição com a lógica do ethos público. Os modelos sócio-
lógicos que focaram a atenção em dimensões da sociedade como a
cultural, a psicológica ou a econômica, entraram decisivamente no
pensamento político-social na década de 30  com o pano de fundo
da revolução e da industrialização , quando vieram à luz
170

pública os célebres trabalhos de Gilberto Freyre (1933), Sérgio


Buarque de Holanda (1936) e Caio Prado Júnior (1933). 222

Os avanços disciplinares da antropologia, da psicologia e


da sociologia forneceram as bases para reeditar o tema da
identidade ou caráter nacional, cujos elementos puderam ser
desvencilhados dos modelos raciais e reapropriados em novo
registro. Na verdade, as explanações raciais resolviam com enorme
economia de recursos um problema que não cessou de instigar,
incomodar até, a teoria sociológica: se, no universo da física, a
dinâmica da continuidade segue os ditames da lei da inércia, qual
o principio de causação equivalente no mundo social? Isto é, o
que explica a continuidade do comportamento social ou melhor,
embora abstrato, qual o princípio de identidade diacrônica da
sociedade? Desde a perspectiva racial e naturalista, a resposta é
relativamente simples e bastante contundente: tudo decorre da
influência contínua do ambiente e/ou está inscrito na legalidade
da biologia, e por isso, o comportamento social pode ser moldado
a partir da miscigenação dos ditames genéticos e, no limite,
amenizado quanto a seus traços indesejáveis mediante a
intervenção de fatores externos como a educação. Tanto a
antropologia, encetando o desbravamento da especificidade da
cultura e das diferenças culturais, quanto a psicologia,
desvelando a obscura legalidade e a complexão da estrutura
psíquica, trouxeram à tona complexos universos de novas mediações
sociais e consolidaram aparatos analíticos que introduziram
outras categorias no lugar da “inércia biológica”. 223 Não é

222
No caso de Caio Prado, seu primeiro trabalho é Evolução política do Brasil,
mas há quem atribua a Formação do Brasil Contemporâneo, publicado só em 1942, o
verdadeiro papel de divisor de águas na historiografia brasileira, inaugurando
o estudo dos processo materiais que depois seria consagrado sob o rubro de
história econômica. Cf. Fernando Novais, “Caio Prado Jr. na historiografia
brasileira”. In Reginaldo Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante (orgs.),
Inteligência Brasileira, pp. 9-26; Evaldo Cabral de Mello, “‘Raízes do Brasil’
e depois”. In Sérgio Buarque de Holanda, op. cit. pp. 189-193.
223
A “desbiologização” da sexualidade é um caso particularmente elucidativo
pelo tema e pelo deslumbrante exercício de esvaziamento das premissas do senso
comum realizado por Freud; cf. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade
(1905).
171

fortuito que Gilberto Freyre afirmasse serem as casas-grandes


“[...] até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a
nossa continuidade social”.224

É bem sabido que, alicerçada no conceito de cultura, a


antropologia realizou a crítica do conceito de raça de forma
particularmente bem-sucedida e que a obra de Freyre é tributária
direta dessa crítica, desenvolvida de forma relevante no trabalho
de Franz Boas  a quem conheceu na Universidade de Columbia.
Paradoxalmente, malgrado o fato de ter colocado em xeque as
pretensões explicativas e uniformizadoras dos argumentos raciais,
a própria antropologia forneceu o ensejo para reformular a
questão da identidade nacional em registro bem mais apurado,
senão idôneo, e engolfou na empreitada de apreender as culturas
globais ou as culturas nacionais  Ruth Benedict e Margaret Mead
produziram, estimuladas pelo contexto da Segunda Grande Guerra,
algumas das obras mais representativas dessa empreitada: The
chrysanthemum and the sword  patterns of japanese culture
(1946) e And keep your powder dry  an anthropologist looks at
America (1942), respectivamente. 225 Por sua vez, a psicologia ou,
de modo mais preciso, a psicanálise, alargou a pouco e pouco seu
escopo de reflexão, remontando a sistematização da prática
clínica até atingir o patamar do que Sigmund Freud, ciente das
conotações pretensiosas de sua escolha, chamara de
metapsicologia. Essa derivação da psicanálise, segundo acreditava
Freud, fornecia pela primeira vez a possibilidade do raciocínio

224
Gilberto Freyre, Casa..., op. cit. p. 36 (frisado de AGL). No caso de
Buarque de Holanda, a obra em questão é normalmente caraterizada como
sociológica, o que é correto; todavia, os tipos sociológicos do autor são, a um
tempo, psicológicos; cf., Raízes do..., op. cit., pp. 40, 43, 144, 146, 148,
158, 177 e 185.
225
Moreira Leite atenta para esse papel crítico da antropologia como
“contribuição negativa” ao conceito do caráter nacional, definindo a segunda
fase como uma contribuição afirmativa desse conceito. Cabe salientar que Ruth
Benedict publicara em 1934 Patterns of culture, pois embora os livros citados
sejam dois estudos de caso amplamente conhecidos  graças ao contexto da
segunda guerra mundial , embasaram-nos formulações amadurecidas na década
anterior. Op. cit. pp. 47-48, 61-69; também cf. Roger Bartra, op. cit. pp. 18-
19.
172

especulativo ancorado no conhecimento empírico-científico,


superando assim o caráter meramente intuitivo da filosofia. 226 A
partir dessa ampliação inicial para além do comportamentalismo, a
psicologia fez surpreendente incursão no campo das humanidades,
no qual, além de introduzir novo registro para se pensar nos
problemas sociais como condicionados pelas caraterísticas
constitutivas da psique coletiva, estimulou volumosa produção que
viria configurar o corpus da literatura especializada em
psicologia social. O trabalho clássico de Theodor Adorno, A
personalidade autoritária (1950), constitui, sem sombra de
dúvida, uma obra-prima dessa copiosa e desigual literatura, que
também alastrara sua presença na América Latina. Cabe então
frisar, que na primeira metade do século XX, especialmente a
partir da terceira década, parte das reflexões sobre a
especificidade do ser brasileiro insere-se no movimento
internacional dos padrões de conhecimento de vanguarda aceitos,
isto é, partilha do instigante momento da assimilação da
psicologia dentro do arcabouço conceitual da ciências sociais 
contando para isso com forte tradição temática local, bem munida
de tipos e caracteres prestes a serem reapropriados. Longe de ser
mero trabalho mecânico de importação de idéias, conformado com
aquilo que havia tempo tinha sido amplamente criticado como
bovarismo da vida nacional, tratou-se de seminal esforço de
renovação do pensamento, de um “sopro de radicalismo intelectual
e análise social que eclodiu depois da revolução de 1930”  para
dizê-lo com as palavras de Antonio Candido.227 Se em ambos os
casos, o da antropologia e o da psicologia, a importância de seu
impacto na redefinição dos padrões de conhecimento decorreu do

226
Sigmund Freud, Más allá del principio del placer, (1920) in Obras completas
de Freud vol. II; particularmente pp. 277-282, 321-342. Sem entrar no mérito
das pretensões do autor, sua obra forneceu arcabouço analítico
extraordinariamente bem-sucedido, na constituição do campo disciplinar, para
determinar os processos psíquicos como objeto de conhecimento  processos
relegados à condição de “caixa preta” nas abordagens comportamentalistas da
época. Cf., Nestor Braunstein, Psicologia: ideologia y ciencia.
227
Antonio Candido, “O significado de ‘Raízes do Brasil’” (1967). In Sérgio
Buarque de Holanda, op. cit., p. 9.
173

fato de revolucionarem o estado das artes, não é possível


atribuir igual valor à repetição extemporânea das formulações
surgidas nesse contexto. Isto trará conseqüências relevantes na
elucidação da forma pela qual o ethos público continua a ser
reproduzido hoje na literatura.

Em suma, os novos aportes da antropologia e da psicologia


foram incorporados para equacionar de modo mais satisfatório e
nuançado a questão da identidade: a permanência diacrônica de
certas feições que configuram a identidade encontrou veículos de
transmissão adequados na cultura e no caráter  entendido a
rigor como estrutura de índole psíquica. Trata-se, para dizê-lo
dentro do arcabouço de mudanças conceituais operadas na obra de
Gilberto Freyre, da instituição da diferença entre raça e cultura
e de seu desdobramento na distinção entre “hereditariedade de
raça” e “hereditariedade de família”.228 É precisamente a partir
da incorporação e consolidação de tais categorias veiculadoras da
continuidade que se consolidou uma concepção propriamente
psicológica e cultural da identidade nacional, cujos traços
decerto absorveram, em termos de reapropriação, elementos
oriundos do secular tema da brasilidade. Entretanto, tal
continuidade oculta, mais uma vez, relevantes mudanças de sentido
no uso da concepção de identidade, não mais interpretada em
registro racial ou naturalista, nem apenas como a condensação da
impotência e dos empecilhos enraizados que obstavam as
transformações necessárias para a modernização do país. Nos
autores que pensaram o Brasil diante do horizonte aberto pela
revolução de 30, a identidade é a um tempo virtude e defeito,
compósito decantado no decorrer de longos processos históricos
que, incorporado cultural e psicologicamente, carateriza de forma
mais ou menos unitária o conjunto da população  não as raças ou
certas camadas. Por isso, a identidade é, em tese, passível de

228
Gilberto Freyre, Casa... op. cit. p. 18.
174

mudança mediante o efeito vagaroso das tendências sócio-


econômicas de longo prazo.

A percepção da identidade nacional, assim concebida,


consolidou-se e generalizou-se de tal maneira que até um autor
como Caio Prado, insuspeito de qualquer essencialização cultural
ou psicológica, concordara com ela: “Uma tal atitude da grande
maioria, da quase totalidade da colônia e relação ao trabalho, de
generalizada que é, e mantida a través do tempo, acabará
naturalmente por se integrar na psicologia coletiva como uma
traço profundo e inerraigável do caráter brasileiro.”229 Os
trabalhos mais notórios e que maiores repercussões tiveram na
redefinição da questão da identidade nacional e, por conseguinte,
na criação do ethos público, foram, é claro, a tetralogia
incompleta de Freyre, Introdução à história da sociedade
patriarcal no Brasil, e o clássico, quanto à estética sóbria e ao
conteúdo, Raízes do Brasil, de Buarque de Holanda. 230 A um tempo,
no corpo dessas obras estimulara-se a renovação do pensamento
político-social e condensara-se de forma extremamente apurada o
tipo de transformações e inquietações que animavam a
multiplicação de tentativas para explicar o Brasil. Ainda mais,
para além da pertinência histórica, acadêmica ou disciplinar das
idéias e teses aí exploradas, e com independência das críticas
parciais ou de francas refutações trazidas à tona durante décadas
pela proliferação dos estudos sociais e pela especialização do
conhecimento, é fato que o efeito de ambos os trabalhos atingira
a proeza de contribuir de forma decisiva para cristalizar, com
surpreendente velocidade, modos de se organizar o pensamento
acerca da nação e do Estado  com diversos desdobramentos:
integração social e democracia, sociedade e poder, cultura e

229
Caio Prado Júnior, op.cit., p. 348.
230
A saga de Freyre é integrada por Casa-grande & senzala  Formação da
família brasileira sob o regime de economia patriarcal (1933), Sobrados e
mucambos  Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano (1936) e
Ordem e progresso (1959); não fora realizado o projeto de escrever o quarto
volume intitulado Jazigos e Covas Rasas. Para a análise da constituição do
ethos público resultam particularmente relevantes as duas primeiras obras.
175

política, tradição e modernidade, privado e público. No que diz


respeito a problemática englobada nesse último binômio 

público/privado , consolidara-se um modo de apreendê-la e


equacioná-la a partir da lógica analítica do ethos público. De
fato, esses modos, embora aparentemente esquecidos ou apenas
suscitados nos elencos da história das idéias, sobrevivem ainda
hoje e continuam a informar os pressupostos de muitas análises
que se acreditam isentas de qualquer influência do belo,
“ultrapassado” e controverso ensaísmo desses autores. Sem dúvida
foram constituídos modelos de pensamento e é isso que define a
vitalidade de tais obras, em que pesem as revisões críticas
demasiadamente confortáveis que, não raro e esquecendo o
contexto, julgaram os conteúdos dos textos ora através do crivo
da pertinência empírica  burilada e fixada por décadas de
produção acadêmica  ora por sua adequação ou inadequação às
teorias e convicções políticas do presente.
176

A RAPSÓDIA DO ETHOS PÚBLICO

4. O núcleo e as variações dos argumentos

Para abordar o surgimento e rápida consolidação do ethos


público, enquanto modo de se organizar o pensamento acerca da
relação entre o público e o privado no país, é pertinente alargar
o escopo e contemplar outros trabalhos notórios da época, visando
reconstituir a reprodução e difusão de certo padrão lógico de
análise. Trata-se antes da reconstrução de uma espécie de sistema
de ressonância, no qual ecoa e se reproduz a lógica do ethos
público, do que de um empenho de exegese. De fato, as teses que
em Freyre e Buarque de Holanda resultavam dignas de polêmica e,
por isso, merecedoras de argumentação pormenorizada ou de provas
reputadas convincentes, em menos de uma década tornaram-se
premissas de trabalhos e autores contemporâneos, quer para a
apreensão de outros problemas, quer para o aprofundamento de suas
conseqüências. Os trabalhos a serem contemplados representam
essas duas opções. A primeira obra, de Nestor Duarte (1939),
apesar de submetida a estranho esquecimento, constitui referência
obrigatória porque devotada na íntegra ao exame do ethos público,
ou melhor  na terminologia de Duarte , ao exame da
estruturação nacional da política sob o jugo do patriarcalismo. 231
Trata-se da elaboração dos saldos políticos do “familismo”, que
embora de corretíssima formulação em Freyre e em Buarque de
Holanda  segundo o próprio autor , teria permanecido preso nos
lindes de “uma história social íntima” ou do “problema cultural

231
Por algum motivo não explicitado nos seus livros, Dante Moreira Leite (O
caráter... op. cit.) e Carlos Guilherme Mota (Ideologia... op. cit.) não
dedicam qualquer atenção ao trabalho de Nestor Duarte, A ordem privada e a
organização política nacional (1939); isso, a despeito de o seu pensamento se
enquadrar perfeitamente dentro dos temas analisados por esses autores.
177

Brasileiro”. 232 Quanto ao segundo caso, não obstante serem algo


extemporâneos e, nessa medida, parcialmente deslocados do debate
da década anterior, os três volumes da alentada obra de Fernando
de Azevedo, A cultura brasileira  Introdução ao estudo da
cultura no Brasil (1943), são menos um esforço de aprofundamento
das idéias cristalizadas nos livros de Freyre e Buarque de
Holanda  assumidas sem maiores reparos , do que uma ambiciosa
empreitada monográfica dirigida à sistematização histórica do
estado da cultura no país  segundo a acepção clássica e
restrita do termo.233

É claro que no percurso da década de 30 e no começo dos


anos 40 vieram à luz outros trabalhos voltados à reelaboração do
problema da identidade nacional e suas implicações políticas, e a
despeito de terem gerado efeitos menores no longo prazo, quer
pela menor fortuna de sua recepção pela crítica, quer por suas
qualidades inferiores ou por outras razões, eles sem dúvida
exprimiram preocupações mais ou menos semelhantes e contribuíram
na configuração do ambiente de renovação intelectual do momento.
Sem pretensões de arrolar um elenco exaustivo é possível
mencionar, dentre outros, os seguintes autores que contribuíram a
difundir e fixar o novo olhar sobre a questão da identidade
nacional: Tristão de Ataíde, Traços da psicologia do povo
braisleiro (1934); Azevedo Amaral, O Brasil na crise atual
(1934); Alfredo Ellis Jr., Populações paulistas (1934); Manuel
Bonfim, O Brasil (1935); Afonso Arinos de Melo Franco, Conceito
de civilização Brasileira (1936); Artur Ramos, Introdução à
psicologia social (1936); Milton Silva Rodrigues, Educação

232
Nestor Duarte, A ordem... op. cit., pp. 62-63. O autor se propõe a realizar
um ensaio político para extrair as conseqüências políticas da ordem familiar
patriarcal que em Freyre apareceria como história da intimidade e em Buarque de
Holanda como reflexão do “problema cultural brasileiro”.
233
O trabalho de Fernando de Azevedo, A cultura brasileira  Introdução ao
estudo da cultura no Brasil, publicada em 1943, é normalmente assimilado à
produção sociológica da década de trinta; cf. Dante Moreira Leite, O caráter...
op. cit., p. 293; Carlos Guilherme Mota, Ideologia... op. cit., p. 75; Octávio
Ianni, A idéia... op. cit., p. 30.
178

comparada  O Brasil, o povo e sua índole (1938).234 Contudo, a


compreensão do ethos público deve ser formulada e resolvida no
terreno conceitual, constituindo analiticamente como problema a
própria existência dessa noção, cuja lógica dista de ser um
simples dado posto pela sucessão de autores e obras alinhados com
esmero monográfico. O esforço de conceituação visa contornar o
risco, tão próprio de certa história do pensamento, de ocultar o
problema pelo exercício de nomeação das idéias. Nesse sentido,
não há  é pertinente enfatizá-lo de novo  qualquer
possibilidade de definir a paternidade do ethos público, pois
além de emergir apenso no corpo de uma discussão muito maior
acerca da identidade nacional, não aparece propriamente como tal
nos textos dos autores que intervieram nesse debate. Freyre
utiliza de forma explícita o termo ethos como sinônimo de caráter
ou de traços permanentes da cultura, sendo possível se falar em
“ethos nacional”, “ethos brasileiro”, “ethos do povo”, “ethos
235
lusitano”, e outros ethos; porém, não há qualquer menção ao
ethos público pois, conforme argumentado nestas páginas, ele
constitui uma peculiaridade apensa ou derivada do ethos ou
identidade nacional  é manifestação do ímpeto do privado e de
sua obra edificadora que, indiretamente, rarefaz o espaço vital
do público condenando-o à exigüidade. Assim, o ethos público
constitui um recurso analítico para isolar, apreender e
caraterizar em sua especificidade um modo de explicação de larga
presença, que de outra maneira teria de ser chamado de forma
demasiado imprecisa de culturalismo ou psicologismo aplicado à
interpretação do espaço público no Brasil.

234
Cf. Fernando de Azevedo, A cultura... op. cit., pp. 203-238; Dante Moreira
Leite, O caráter... op. cit., pp. 233-247, 250-255.
235
V. gr.: “[...] formação do caráter (‘ethos’) do brasileiro”; Gilberto
Freyre, Sobrados e Mucambos  Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento
do urbano, (1936) p. 612. Ou também: “[...] ethos [...] como constantes de
valores e formas de sociedade e de cultura independentes de substâncias étnicas
e, mesmo, etnográficas [...]”; Gilberto Freyre, Problemas brasileiros de
antropologia. (1943) p. XXVII, citado em Elide Rugai Bastos, “Gilberto Freyre e
a questão nacional”, in Reginaldo Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante
(orgs.), Inteligência Brasileira, p. 60.
179

Pois bem, o ethos público só adquire cabal sentido no


contexto analisado na seção anterior, quer dizer, vinculado de
forma inextricável à força da identidade nacional concebida como
uma construção histórica secular, cuja estrutura se fez em
códigos culturais e psicológicos aos que responde o comportamento
dos indivíduos. À manifestação e operação do ethos público não
apenas subjazem os constrangimentos onipresentes da cultura e da
psicologia coletiva, como complexos corporalizados  nos
sujeitos singulares  de disposições para se agir no mundo e
para representá-lo. Na verdade, ele responde a outra
cristalização ideológica de muito maior envergadura que engloba e
dirige esses constrangimentos e que, portanto, também o
subordina. Trata-se da existência de um ethos superior, a
brasilidade, atrelado ao mito de origem da nação e da identidade
nacional, cujo avesso é, precisamente, o ethos público. Com maior
precisão, a leitura do espaço público a partir do ethos é apenas,
como será mostrado logo a seguir, a tradução da idiossincrasia da
sociabilidade nacional  essencialmente privatista,
patrimonialista, personalista, rural, familiar, agnatista ou
patriarcal, rememorando suas denominações mais usuais , para um
terreno menor: o da vida pública. Nessa leitura, tudo se passa
como se um mundo, cuja nota distintiva é sua organização integral
sob égide do privado, tivesse produzido a subsunção do público,
tornando-o uma projeção do privado: a cidade um mero apêndice da
fazenda, a vida pública uma simples transposição da sociabilidade
familiar e a política uma ferramenta de açambarcagem na mão dos
poderes patriarcais. Em outras palavras, a análise da vida
pública como sociabilidade regida pelo ethos, leva a propor a
conclusão iniludível da absorção do mundo das relações impessoais
dentro da teia hierárquica das relações privadas  ora
protetoras ora iníquas. O privado seria, então, reposto
permanentemente sob uma roupagem pública que oculta a
continuidade essencial entre ambos.
180

A consolidação do ethos público como modo de organização


do pensamento independe de uma linha de argumentação única ou de
qualquer forma de exposição a rigor sistemática: como se fosse
uma rapsódia, sua cristalização produz-se a partir de variações
em torno do núcleo conceitual recém formulado. Cumpre esclarecer
que tal formulação, embora fiel nos traços principais, é
estilizada e não necessariamente corresponde ponto por ponto com
o pensamento dos autores assinalados. Ainda mais, da existência
de elementos iguais ou semelhantes nos textos de Freyre, Holanda,
Duarte ou Azevedo não é possível inferir qualquer significado
homogêneo no interior das respectivas obras, particularmente se
considerada a inserção do ethos nas preocupações maiores desses
autores  seja com a questão da identidade nacional e do futuro
da país em face das mudanças de longo prazo na estrutura
econômica, política e social do país (no caso dos dois
primeiros); seja com o descompasso entre a existência paradoxal
de vigorosa civilização nacional combinada com o descaso pelo
mundo da cultura (Azevedo), ou com a continuidade dos empecilhos
a emperrarem a constituição e desenvolvimento da política e do
Estado modernos (Duarte).236 Sem transgredir essas ressalvas, a
“montagem” que levara à consolidação do ethos público é passível
de reconstrução analítica graças ao fato de as variações se
reportarem ao mesmo núcleo conceitual de forma não contraditória,
operando uma contínua reposição de argumentos por caminhos não
muito diversos e, por vezes, bastante parecidos.237 Diferentemente

236
Neste item, pela referência contínua às obras em análise no próprio corpo do
texto, serão utilizadas as seguintes abreviações: Casa-grande & senzala (CG&S),
Sobrados e mucambos (SeM), Raízes do Brasil (RdB), A cultura brasileira (CB), A
Ordem privada e a organização política nacional (OP).
237
Sem dúvida é possível realizar uma leitura que enfatize a oposição e não a
confluência entre o pensamento de Freyre e de Buarque de Holanda e, de fato,
não raro esses autores recebem tratamento muito diferenciado; cf. v. gr.
Nathalíe Reis Itaboraí, “A família colonial e a construção do Brasil: vida
doméstica e identidade nacional em Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e
Nestor Duarte”. Mais ilustrativa é a estranha operação mediante a qual Carlos
Guilherme Mota acusa “o pretenso modernismo da obra freyreana” (Ideologia...
op. cit., p. 55), como artífice da ideologia da cultura brasileira, sem
considerar no elenco a influente obra de Buarque de Holanda. Em sentido
semelhante, cf., também, Dante Moreira Leite, O caráter... op. cit., pp. 268-
293. É pertinente se ressalvar dos riscos das leituras retroativas que soem
181

da rapsódia  na qual as variações encontram na relação com a


peça escolhida o expediente específico de sua constituição , o
núcleo que define o ethos público não preexiste a suas próprias
variações, mas é criado por elas e apenas por sua intermediação
atinge certo adensamento conceitual.

Para empreender tal reconstrução convém proceder


salientando, quer dizer, abstraindo, os principais passos no
itinerário dos argumentos que, nos autores mencionados, levam
indiretamente à dedução simultânea desse ethos e de suas
caraterísticas. Primeiro, ao se abrir mão dos diagnósticos
apoiados em critérios naturalistas, faz-se imprescindível colocar
no centro o novo veículo da continuidade social, a saber, a
tradição cultural  especificamente a tradição lusa. Nesse
ponto, seja dito de passagem, Freyre tem sido surpreendentemente
injustiçado, pois malgrado as inúmeras páginas por ele dedicadas
à análise dos condicionamentos sociais negligenciados pelas teses
raciais, atribui-se-lhe com freqüência a pecha essencialista da
miscigenação  em sentido racial e não cultural. Segundo, é
preciso não apenas valorizar os aspectos positivos dessa
tradição, mas desvendar seu conteúdo e equacioná-lo como a matriz
a partir da qual foram definidas as linhas primordiais da
identidade do Brasil. Terceiro, tal matriz é ainda insuficiente
para compreender o país, pois ela fora submetida ao avatar das
três centúrias coloniais, e nesse percurso sofrera importantes
transformações que acabaram por definir as feições mais ou menos
originais da sociedade nacional  que assim chegara ao século XX
devedora da uma herança rural plurissecular. Por fim, a questão
crucial para se refletir lucidamente no presente não é a

interpretar as obras em questão a partir da trajetória política  deveras


divergente  de ambos os autores, pois nem sempre é claro que as abordagens que
enfatizam as discrepâncias acudam apenas ao corpo das obras. Particularmente no
que diz respeito ao ethos público, segundo será viso nesta seção, há amplas
semelhanças e não poucas coincidências pontuais. Quanto às trajetórias
políticas, cf. Antonio Candido, “A visão política de Sérgio Buarque de
Holanda”; Mario Cesar Carvalho, “Céu & inferno de Gilberto Freyre”, pp. 4-8.
182

continuidade desse legado, mas sua inevitável metamorfose que,


impulsionada com vagar pelos processos de urbanização e de
restrição e abolição do trabalho escravo, fizera enveredar o país
para uma transição complexa, cujas vicissitudes ainda estariam em
curso e cuja realização, se bem-sucedida, poderia fadar o ethos
público à extinção  eis a questão medular. Esse passo no
itinerário esboçado, eventualmente cancelaria toda pertinência na
reprodução da lógica analítica do ethos; entretanto, tem sido
empalidecido  negligenciado até  tanto pelas leituras atentas
apenas para o registro da continuidade nas obras de Freyre e de
Buarque de Holanda aqui contempladas, quanto pela literatura que
continuou a abrevar na noção do ethos público.238 No itinerário
assim configurado, o primeiro passo é ponto de partida para a
edificação das interpretações e o segundo estabelece as
diretrizes de “longa duração” que perpassaram a organização da
sociedade colonial, mas apenas no terceiro e quarto passos
configura-se nitidamente a lógica do ethos público. Por isso
serão analisados de forma mais minuciosa.

5. Os primeiros passos do itinerário

238
Apenas a partir da não diferenciação entre o conteúdo das obras, de um lado,
e os usos, apropriações e ulteriores elaborações desse conteúdo, do outro, é
possível, por exemplo, inferir do texto a construção de um fetiche da
igualdade, cujos efeitos nocivos na mediação ideológica das relações sociais
levariam à negação do conflito. Cf. Teresa Sales, “Raízes da desigualdade
social na cultura política brasileira”, pp. 34-37. Sem negar a existência
desses efeitos, seria preciso reconhecer que eles não provêm direta e
necessariamente do corpo das obras, mas de suas reapropriações, usos e
recepções, operadas inclusive pelos próprios autores. Esse é o caso de Freyre,
que com o tempo foi enveredando por leituras e resignificações pouco rigorosas
de seus primeiros grandes trabalhos. Cf. v. gr. Gilberto Freyre, Homem, cultura
e trópico, (1962) pp. 13-29. Entretanto, no corpo de Casa-grande e senzala há
sim antagonismos, mas a supremacia do social sobre o político, da sociedade
sobre o Estado  que fizera de Freyre um autor de veia democrática diante do
pensamento autoritário , leva a sua resolução no seio da sociedade sem a
mediação do momento político, que conferiria a esses antagonismos feições de
conflito. Cf. v. gr. Valeriano Mendes Ferreira Costa, “Vertentes democráticas
em Gilberto Freyre e Sérgio Buarque”, pp. 231-2, 235-6. O caso de Raizes do
Brasil é mais evidente, pois a sociabilidade do homem cordial não é
igualitária, porém, terrivelmente hierárquica.
183

Ao resgate da tradição subjaz forte convicção que deitou


raízes na historiografia brasileira: a chave da identidade do
Brasil nação, o segredo de sua anatomia, encontra-se na
configuração da sociedade colonial, cuja correta compreensão tem
de ser norteada pela busca dos principais componentes que a
239
determinaram. A centralidade da tradição cultural lusa no
pensamento de Buarque de Holanda e Freyre  também assumida por
Duarte e Azevedo  baliza de forma múltipla os flancos de suas
rupturas com o pensamento da época. Em primeiro lugar, a
afirmação dessa importância, por vezes veemente, desloca
definitivamente o foco para os fatores sócio-históricos. Ao
respeito, a belíssima abertura de Raízes do Brasil não poderia
ser mais enfática: “[...] somos ainda hoje uns desterrados em
nossa terra” (p.31). De fato, conclui o autor no último
parágrafo do mesmo capítulo, “Podemos dizer que de lá nos veio a
forma atual de nossa cultura; o resto foi matéria que se sujeitou
bem ou mal a essa forma” (p.40). A elucidação da identidade
conta, assim, com novo programa de reflexão, pois se a nação é
apenas uma forma particular da civilização ibérica, como afirma
Azevedo, “[...] compreende-se quanto interessa, para compreender
o fenômeno brasileiro, ligá-lo constantemente à sua fonte
fundamental [...]” (CB p.43).240 Em segundo lugar, contra as
críticas “irrefletidas” ou pouco ponderadas do legado
lusocolonial, à maneira do discurso autoafirmativo do romantismo,

239
A relevância da estruturação da sociedade colonial pode parecer óbvia na
atualidade, pois encontra-se já assentada como parte do “senso comum
acadêmico”; entretanto, não necessariamente deve ser assim e nem sempre foi
assim, pois a importância das experiências coloniais não é auto-evidente à
margem dos processos de construção historiográfica dessa evidência. Cabe
lembrar, como contra-exemplo, que o caráter demiúrgico atribuído à revolução
mexicana opacificou a herança colonial e oitocentista na configuração da
sociedade e do Estado pós-revolucionários. Três momentos de virada na linhagem
historiográfica voltada à análise da formação do Brasil, a partir do primado
estrutural da época colonial, decorrem das obras de Caio Prado Jr.,
Formação..., op. cit.; Fernando A. Novais, Portugal e Brasil na crise do antigo
sistema colonial (1777-1808); e Luiz Felipe de Alencastro, Os lusobrasileiros em
Angola: constituição do espaço econômico brasileiro no atlântico sul 1550-1700.
240
Ainda mais contundente, Duarte acredita que o Brasil constituiu um espaço de
reprodução aprimorada e mais autêntica de certos traços da herança lusa, e por
isso afirma que o ensejo da edificação civil e política da colônia “Foi em que
Portugal continuou mais português no Brasil”. (OP p. 2)
184

dos abolicionistas ou, na virada do século, da lusofobia presente


em autores como Manuel Bonfim, opera-se uma espécie de
dignificação das qualidades extraordinárias que  do lado de um
rosário de atrocidades e de francas deficiências  teriam
caraterizado o temperamento português e a empreitada colonial. 241
Afinal, malgrado a inclemência do clima e a hostilidade do
ambiente, “[...] os portugueses e seus descendentes imediatos
foram inexcedíveis. Procurando recriar aqui o meio de sua origem,
fizeram-no com uma facilidade que ainda não encontrou, talvez,
segundo exemplo na história” (RdB p.46-7). 242 Por último,
disputa-se a forma correta de interpretar o legado luso, o que no
quadro das mediações analíticas de cada autor eqüivale a se
posicionar na redefinição das interpretações do Brasil
contemporâneo. Defronte aos diagnósticos que, propugnando por um
retorno à boa tradição  como Oliveira Vianna , localizavam a
fonte dos problemas nacionais na exterioridade, formalidade e
outros descomedimentos das instituições e política republicanas,
introduziu-se mais um deslinde acerca da própria idéia de
tradição. Pois “A falta de coesão nacional em nossa vida social
não representa [...] um fenômeno moderno. E é por isso que erram
profundamente aqueles que imaginam na volta à tradição, a certa
tradição, a única defesa possível contra nossa desordem” (RdB

241
V. gr., em Gonçalves Magalhães é possível ler: “O Brasil, descoberto em
1500, jazeu três séculos esmagado debaixo da cadeira de ferro, em que recostava
um Governador colonial como todo o peso de sua insuficiência, e de seu orgulho.
Mesquinhas intenções políticas, por não dizer outra coisa [...].” (“Discurso
sobre...”, op. cit., p. 28) Em Joaquim Nabuco: “[...] Portugal descarregava no
nosso território os seus criminosos, as suas mulheres erradas, as suas fezes
sociais todas, no meio das quais excepcionalmente vinham emigrantes de outra
posição [...].” (O abolicionismo, (1883) p. 98)
242
O argumento da precariedade das condições nas quais se realizou a empreitada
colonial também aparece em Freyre como a razão que “[...] dá à colonização dos
portugueses um caráter de obra criadora, original, a que não pode aspirar nem a
dos ingleses na América do Norte nem a dos espanhóis na Argentina”. (CG&S
p.112) Contudo, tanto em Buarque de Holanda como em Freyre, a revalorização
dessas qualidades dista muito da simples apologia, visando estabelecer o pólo
“positivo” das tensões que articulam a matriz cultural lusa. É comum serem
atribuídas a Freyre intenções encomiásticas, embora sejam bastante azedas suas
críticas à “tradição pegajenta de inépcia, de estupidez e de salacidade” do
português. (CG&S p.356 e ss.) Cf. Elide Rugai Bastos, “Gilberto...” op. cit.,
particularmente, pp. 48-57; Hermano Vianna, “Equilíbrio de antagonismos”, pp.
21-22.
185

p.33). Freyre é bem mais explícito ao disputar o sentido da


tradição lusa: “A suposição [...] pode tachar-se de extremada,
pecando [...] Oliveira Vianna [...] ideou um Brasil colonizado em
grande parte e organizado principalmente por dólicolouros.
Pesquisas mais minuciosas [...] tendem a revelar que a
colonização no Brasil se fez muito à portuguesa [...] Nela não
terão predominado nem morenos nem louros [...] nem aristocratas
como imaginou o arianismo quase místico de Oliveira Vianna”
243
(CG&S pp.398-399).

Uma vez restituída a importância do legado luso e


estabelecido seu estatuto de condição omnipresente na formação da
identidade nacional, o seguinte passo no itinerário acima
delineado é inquirir pelo conteúdo específico dessa tradição 
cujas forças apenas podem atuar no longo prazo se cristalizadas e
veiculadas na cultura e na psicologia, ora sob a forma de
complexos, ora sob a forma de tipos ou de “[...] hábitos e
tendências mentais ‘suficientemente persistentes e
suficientemente gerais’.” (CB p.204). Isso se traduz em uma
pergunta em aparência inócua, mas que leva no cerne da resposta o
germe do ethos público: quem é o português que realizou a
colonização ou, melhor, quais os traços principais de seu caráter
ou da cultura ibérica da qual, segundo idéia partilhada por esses
autores, ele forma parte? Para Buarque de Holanda, o complexo
cultural a definir o português é um só: a cultura da
personalidade ou personalismo, expressada em certa ética de
fidalgos e com um desdobramento de conseqüências fundamentais, a
saber, a ética da aventura encarnada no tipo do aventureiro. A
cabal compreensão do personalismo e da ética da aventura apenas é
possível à luz de sua tensão constitutiva, de sua oposição aos

243
Após declarar a insuficiência dos estudos e monografias  “quase sempre
ligadas às condições geográficas e às três raças”  para desenvolver “uma
psicologia política e social do povo brasileiro”, Azevedo lança mão da tradição
ibérica, acompanhando de perto o argumento de Buarque de Holanda, e explica
mediante esse recurso tanto a falta de coesão social como a constante
resistência à concentração política (CB pp. 205, 221).
186

pólos  por sinal modernos  da cultura do individualismo e da


ética do trabalho. Assim, a primazia do personalismo implica o
império dos vínculos afetivos, o domínio da esfera das relações
pessoais animada pela lógica da reciprocidade e da dependência 
por isso a ética de fidalgos: filho d’algo , sobre o indivíduo,
ente abstrato, e sobre as formas coesas e de hierarquia funcional
de organização da vida social. Organização que, decerto,
pressupõe a implantação do princípio da solidariedade, alicerçado
no reconhecimento das afinidades de interesses  também de
244
índole abstrata. No espaço reservado por Buarque de Holanda
para introduzir digressões sem romper a unidade estilística do
texto, particularmente na terceira nota ao capítulo quarto  O

semeador e o ladrilhador , sua posição é mais enfática do que


no próprio capítulo: “o que principalmente os distingue [o
português e o espanhol] é, isto sim, certa incapacidade que se
diria congênita, de fazer prevalecer qualquer forma de ordenação
impessoal e mecânica sobre as relações de caráter orgânico e
comunal, como o são as que se fundam no parentesco, na vizinhança
e na amizade”. (RdB p.137)

Por sua vez, a ética da aventura não é apenas uma qualidade


dentre outras, igualmente merecedoras de tratamento tipológico,
mas o desdobramento do personalismo no que diz respeito à relação
do homem com o mundo; relação mediada pelo trabalho lato sensu,
ou seja, pela atividade de transformação e apropriação da
natureza. Afinal, é da empreitada colonial que se trata. O
aventureiro, com sua relação perdulária com a natureza e sua
voracidade de ganho fácil, leia-se, com sua precária ética do
trabalho, podia edificar uma sociedade rural, mas não agrícola,
cujo desenvolvimento requer outros atributos que ele não possui:

244
“A bem dizer, essa solidariedade, entre eles [espanhóis e portugueses],
existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de
interesses  no recinto doméstico ou entre amigos. Círculos forçosamente
restritos, particularistas e antes inimigos que favorecedores das associações
estabelecidas sobre plano mais vasto, gremial ou nacional”. (RdB p. 39)
187

a presença de organização e “genuína” cooperação, não de


prestância; de predisposição à competição, não à rivalidade; de
constância, não de audácia (RdB pp. 49, 59-61) . 245 Curiosamente,
embora no texto de Freyre haja espaço para aceitar quase em sua
totalidade as feições decorrentes de tal concepção, ocorre que
elas são pertinentes apenas para descrever o português
transformado pelos efeitos da expansão ultramarina e,
particularmente, pelos desafios da colonização no trópico, não
correspondendo, portanto, à alma agrária da tradição lusa 246 
ainda não deturpada pela empresa mercantil. “Engana-se, ao nosso
ver, quem supõe ter o português se corrompido na colonização
[...] Comprometeu-o [...] a vitória, no próprio reino, dos
interesses comerciais sobre os agrícolas”. (CG&S p.431) Contudo,
o fulcro da identidade nacional lusa não reside nessas
caraterísticas já corrompidas, mas  não por um acaso, em se
tratando de Freyre  no prodigioso equilíbrio do “luxo de
antagonismos” intervenientes na idiossincrasia portuguesa,
amálgama de influências mouras, judaicas e ibéricas: “Portugal
acusa em sua antropologia, tanto quanto em sua cultura, uma
grande variedade de antagonismos, uns em equilíbrio, outros em

245
Azevedo adscreve explicitamente a tese de Buarque de Holanda no que diz
respeito à supremacia inconteste da herança dos portugueses (p. 209), pois
“[...] sempre ficou superficial a assimilação de índios e negros pela cultura
ibérica, predominante em todos os pontos [...]” (p. 206). Entretanto, talvez
pelo fato de ele ser tributário das condições do debate estabelecidas na década
anterior, o autor dispensa qualquer tratamento à especificidade do caráter
português, limitando-se à afirmação de estar ainda por se estudar
cientificamente o resultado da interação das três culturas (p. 208). Embora em
registro diferente, porque preocupado com as conseqüências da herança lusa nas
instituições que viabilizam a vida pública, Duarte também se aproxima do
raciocínio de Buarque de Holanda quanto às feições do colonizador: “[...] o
português era e continuará a sê-lo, o que é mais mencionável, um povo
eminentemente particularista [...]” (OP p.3). Ainda mais, antecipando o
diagnóstico que em Raízes do Brasil só aparece quando da caracterização da
sociedade colonial, Duarte sustenta: “O português é mais um homem privado do
que político.” (OP p.4) E esse privatismo não se esgota no estatuto psicológico
dos traços do caráter, mas encontra estímulo e espaço propício de projeção nas
instituições políticas do Estado português, na sua organização municipal, cuja
nota distintiva é a “[...] indistinção de esferas, quando não seja o predomínio
do espírito privado sobre o público. [§§] A organização municipal prolonga,
assim, até a esfera da res-pública o conjunto e massa de interesses da vida e
da organização privada”. (OP p. 11)
246
Tradição “[...] cujos começos foram todos agrários; agrária sua formação
nacional [...]”. (CG&S p.418)
188

conflito. Esses antagonismos em conflito são apenas a parte


indigesta da formação portuguesa: a parte maior se monstra
harmoniosa nos seus contrastes, formando um todo social plástico,
que é o caracteristicamente português.” (CG&S p.373)

6. A racionalidade da açambarcagem

A silhueta do ethos público insinua-se já na formulação da


herança lusa, todavia, é apenas no seguinte momento, na análise
dos processos de adaptação e transformação inerentes à edificação
da sociedade colonial, que se definem com plenitude suas feições,
deduzidas como conseqüência subordinada ao primado dos traços
patriarcais e privatistas da identidade nacional. A despeito das
diferenças de interpretação acerca da civilização ibérica 
recém referidas  e da especificidade e índole original e única
ou meramente derivada, e portanto incompleta, da cultura que aqui
arraigara, há interessante convergência entre Freyre e Buarque de
Holanda quanto às caraterísticas do ethos público  replicadas
sem mudanças nem reparos por Azevedo e exploradas com maior
detalhe por Duarte, embora sem acréscimos substantivos . No
contexto geral da expansão marítima mercantil à busca de
mercadorias agrícolas  portanto, ainda não subordinadas à
lógica da industrialização , o que aqui vingara, na ausência
inicial do Estado e de qualquer aparato administrativo, e na
presença da adaptabilidade e do personalismo lusos, é uma
civilização de raízes rurais, senhoreada pelo poder aglutinante e
quase onipotente das grandes famílias patriarcais, em cujas
órbitas suseranas articularam-se como universo coerente, embora
regionalmente fragmentado, o conjunto das relações sociais no
econômico, no político e no social. Com efeito, “[...] a
psicologia da classe dominante sob o regime patriarcal [...] se
impôs de tal maneira e tão fortemente na sociedade que ela acaba
189

por dar o tom a toda a vida social [...]” (CB p.168). 247 Tutelada

pelo senhor com sua “iniciativa impetuosa”  “desbragada” até ,


a casa-grande e sua contrapartida no âmbito do domínio, a
senzala, simbolizam por antonomásia, em Freyre, esse universo
social atrelado à economia latifundiária e ao trabalho escravo. O
sucesso econômico e social da família patriarcal, atestado pelo
fato de seus vínculos tutelares terem se alastrado até
constituírem o modelo da organização política nacional 
impondo sua lógica aos poderes régio e eclesiástico , trouxe,
no entanto, conseqüências perniciosas que, obviamente, vincaram
fundo na vida política do país: mandonismo, abusos e violências
autocráticos e desmandos privatistas. Nas palavras de Freyre,
“[...] só poderia resultar no que resultou: de vantajoso, o
desenvolvimento da iniciativa particular estimulada nos seus
instintos e posse de mando; de maléfico, a monocultura
desbragada. O mandonismo dos proprietários de terras e escravos.
Os abusos e violências dos autocratas das casas grandes. O
exagerado privatismo ou individualismo dos sesmeiros.” (CG&S
p.439) 248

A reflexão de Buarque de Holanda é mais eloqüente ao


esmiuçar as seqüelas indesejáveis acarretadas pelo “predomínio
esmagador do ruralismo”. Esse predomínio instaurou o império do
Brasil tradicional, ou seja, patriarcal, sobre o Brasil racional
ou urbano; do espírito de facção sobre o interesse geral; da
visão regional e limitadamente paroquial sobre a compreensão
citadina e cosmopolita das coisas; do corpóreo e sensível, dos
sentimentos e lealdades sobre o abstrato e intangível, sobre os
interesses e as idéias; da teia hierárquica das relações

247
A posição de Azevedo é, neste ponto, mais próxima de Freyre e aparece de
forma nítida em duas passagens de seu livro (CB pp. 90, 166-67).
248
É claro que se trata de efeitos indesejáveis, porém, resultam
consubstanciais a “[...] uma sociedade entregue principalmente aos elos e aos
interesses da relação territorial da propriedade, com todos os estilos próprios
e o sentimento e a mentalidade desse tipo de organização feudalizante” (OP
p.24).
190

familiares, ou seja da pessoa, sobre a trama igualitária do


direito, isto é, do indivíduo; da imaginação ornamental sobre o
empenho e esforços práticos; da linha curva, enlaçada de forma
caprichosa com a paisagem no traçado das cidades, sobre a
geometria uniformizadora da linha reta; da rotina sobre a
antecipação; da imprevidência sobre o rigor do método; enfim, do
complexo universo de valores, práticas, instituições e interesses
patriarcais sobre a incipiente emergência de formas de vida
modernas, de tendências urbanas e democráticas no econômico, no
político e no social. Particularmente no que diz respeito ao
âmbito político, suas feições aparecem marcadas pela fatalidade
de receber determinações fundamentais de uma sociabilidade
familística, e portanto pré-política, o que leva a caraterizar o
espaço público enquanto emanação desse universo de práticas e
valores culturais familiares, isto é, também de forma pré-
política, como sociabilidade ou mero ethos público: “O quadro
familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra
persegue aos indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A
entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A
nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível,
onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços
afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida
pública, todas nossas atividades [...] O resultado era
predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à
comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica,
uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família” (RdB
p.82). 249 Em suma, poder-se-ia dizer que o império do
patriarcalismo termina por definir muito mais do que certas
constantes da interação social, da sociabilidade, atingindo o
estatuto de princípio de estruturação social, cuja notável
coerência lógica opera, de fato, como uma espécie de

249
Assim, para formulá-lo nos termos de Duarte, “É próprio da colônia [...] o
exercício mais do que os romanos chamavam de vida civil em contraposição à vida
pública [§] [...] a vida social da colônia é, sobretudo, vida de relação civil,
própria e exclusiva do convívio do homem com o homem e dos rendimentos e trocas
estimulados e entabulados pelas suas atividades particulares.” (OP pp. 45-46)
191

racionalidade  quase um logos  da açambarcagem: “[...]


apropriação do impessoal pelo pessoal, do abstrato pelo concreto,
do objetivo pelo subjetivo, do coletivo pelo particular, do
250
público pelo privado”.

A inconteste primazia do pessoal, do concreto, do


subjetivo, do particular e do privado dista, todavia, de definir
um estado de desordem ou dissolução social, pois, na verdade,
“[...] a sociedade colonial tem [...] uma outra organização
sólida [não a pública ou política], indestrutível, que é sua
própria estrutura de base  a ORGANIZAÇÃO PRIVADA.” (OP p.61) 251
Uma vez assente tanto a onipresença do familismo como base da
estruturação social sobre a organização privada, quanto o fato de
essa forma de estruturação social conferir ao poder institucional
do Estado uma lógica também eminentemente privada  que lhe
usurpa os deveres de sua função política , Duarte se debruça
sobre a especificidade da sociedade política assim construída. Se
a gênese e vigor da ordem rural é sócio-cultural  família
patriarcal e ethos público , sua perpetuação apenas pode ser
compreendida de forma cabal se considerada a dimensão política,
isto é, a ausência de outros vínculos sociais de envergadura, que
não os patriarcais, capazes de alicerçar uma sociedade política
ampla, em cujo seio fosse impossível o monopólio faccioso do
poder da representação política e da gestão governamental. Em
Duarte, seguindo o pensamento de Oliveira Viana, o dilema
nacional é a inexistência do povo político que constitui óbice
incontornável para a institucionalização do império geral da lei
e da autonomia do poder do Estado. Instituíra-se o Estado,
formalizara-se a administração da coisa pública, unificara-se o
território nacional e pacificaram-se aos insurretos, entretanto,
250
George Avelino Filho, “Cordialidade e civilidade em raízes do Brasil”, p. 8.
251
As implicações mais relevantes dessa organização privada não são, para
Duarte, o atomismo social ou o caráter inorgânico e superficial da organização
política, mas, conforme citado na primeira parte, “[...] a modificação da
índole do próprio poder, que deixa de ser o da função política para ser o da
função privada.” (OP p. 88)
192

para isso o Estado teve de se apoiar nos poderes “feudais” e se


aliar à classe patriarcal, condenando-se à não-intervenção nos
domínios daqueles e a uma existência inorgânica e carente de
efetividade. Nesse diagnóstico, o ethos público aparece
pressuposto e reproduzido, no entanto, sua lógica é alargada e
parcialmente transbordada na medida em que a análise fita a
especificidade da política e das práticas de afirmação de
interesses das classes que constituem a própria política com
determinadas caraterísticas 252  essa especificidade, aliás,
adquiriria saliência no pensamento de autores pósteros como
253
Victor Nunes Leal e Raymundo Faoro. A incapacidade crônica de
se lidar politicamente com a coisa pública, contida na lógica do
ethos, condensaria, assim, tanto a continuidade sócio-econômica,
cultural e psicológica de longo prazo, quanto os resultados da
pugna de interesses entre os diferentes segmentos sociais e entre
eles e o Estado. Eis o motivo da lamentação pela precariedade da
vida pública, isto é, pela exigüidade das camadas independentes
do poder patriarcal e pela franca inexistência do povo político:
“[...] assenhoreou-se ela [a ‘classe do patriciado rural’]

252
Na verdade, é inexato expressar que a realização dos interesses particulares
constitui a política, pois em Duarte ela é compreendida com forte conotação
deontológica, correspondendo apenas ao âmbito universal do Estado  onde deve
ser dirimido o interesse geral da sociedade. A luta pela afirmação de
benefícios parciais e exclusivos, assumida em outras perspectivas analíticas
como âmago da política, é para o autor sua deturpação e negação mais do que sua
constituição.
253
A extraordinária novidade do livro clássico de Nunes Leal foi além de
documentar profusamente a dinâmica do coronelismo no plano da normas
institucionais da política e da administração governamental, introduzindo a
lógica do agente de forma sistemática. Em sua obra, o coronelismo não obedece a
qualquer forma de continuidade das raízes culturais; mais ainda, antes de ser
expressão da força do “ruralismo” ou do “privatismo” na vida nacional,
representa, na verdade, a decadência dos “senhores das terras”, submetidos pelo
poder do Estado. (Coronelismo, enxada e voto  O município e o regime
representativo no Brasil, (1949) cf., pp. 62-70, 74-8). Por sua vez, Faoro
opera inversão radical nos termos usuais do debate, pois na sua interpretação
da “formação do Brasil”, o pólo privado  isto é, a sociedade, o povo, as
classes  aparece totalmente subjugado pela pujança e autonomia do Estado e do
estamento burocrático: “O Estado sobrepôs-se à sociedade, amputando todos os
membros desta que não pudessem ser dominados.” (Os donos do Poder  Formação do
patronato político brasileiro, (1958) p. 78; cf., especialmente, pp. 8-15, 39-
45, 51-58 e 69-75). Assim, no caso de Faoro, a perversão do espaço público não
provém do pólo privado da sociedade, mas da própria forma de estruturação do
poder público.
193

durante todo o império, da cidadania política sem ter o espírito


dessa cidadania política, que além de exercer deformada e
desviada, restringiu-a singularmente, impedindo a formação de um
povo brasileiro, quer o das cidades, que reprimiu e venceu quando
dos seus perigosos e desorientados movimentos convulsivos, quer o
da extensa e penetrante região agrícola pastoril, que tutelou e
afastou da ação direta do poder público.” (OP p.111) Em suma, a
invasão do público pelo privado materializa-se no terreno das
instituições públicas, mediante a açambarcagem da sociedade
política e do Estado pela classe senhorial.

Essa racionalidade da açambarcagem, que transparece com


maior clareza nas linhas e entrelinhas de Buarque de Holanda, e
de forma pontual em Duarte, é que viria se tornar pressuposto
mais ou menos explícito da compreensão do espaço público a partir
das insuficiências da vida pública regida pelo ethos. Como será
visto mais adiante, a lógica desse ethos continuou a ser
introduzida e reproduzida em diversas análises, sem
necessariamente reconhecer suas origens, nem o pressuposto
central, que se tornaria cada vez mais controverso, de uma
identidade abrangente, de caráter nacional, da qual decorre a sua
própria especificidade. Mas a especificidade do ethos não se
esgota nessa racionalidade, ou seja, no fato de caraterizarem-no
impulsos privatistas ou de açambarcagem decorrentes de suas
feições patriarcais, familiares, tutelares ou “feudais”. Há ainda
um desdobramento relevante para o problema em questão, a partir
do qual é possível avançar na qualificação das relações entre
governantes e governados que, derivadas do ethos, moldam aquilo
que hoje é denominado “cultura política”  aliás, não sem
polêmica quanto a seu sentido e abrangência conceitual. Trata-se,
mais uma vez, dos efeitos do primado do patriarcalismo, mas agora
considerados desde a perspectiva da socialização e de suas
conseqüências decisivas na constituição de uma sociabilidade para
além do universo familiar, notadamente para o âmbito da política.
194

Em registro não apenas psicológico mas psicanalítico, Freyre


desenvolve a hipótese ousada: a axperiência infantil inclina a
formação da personalidade do senhor para o sadismo. Tal
experiência é cercada de estímulos e oportunidades que reforçam o
impulso sexual da criança nessa direção: um mundo submisso diante
de seus caprichos, feito de animais dóceis e de escravos 
sobretudo o emblemático menino “leva-pancadas” a simbolizar o
pólo passivo e masoquista dessas “vivências de moleques”. A
criança é socializada mediante a experiência precoce do exercício
do mando, de modo a prepará-la para o desempenho do domínio
senhorial; todavia, essa formação encontra-se impregnada de
sadismo, produzindo certo pendor pelas formas violentas e
perversas de atuação do poder. Assim, quando transposto ao
terreno da política, o complexo familiar sadomasoquista atinge
proporções macrosociais no mandonismo e explica a propensão
autoritária de governantes e governados: a ação infrene,
afirmativa, reflexiva, embora por vezes violenta e despótica dos
primeiros; e a inação, passividade e predileção pelos poderes
fortes ou francamente autocráticos dos segundos.254 Não obstante a
anterior caracterização da política enquanto mundo regido pela
assimetria das posições que nele podem ser ocupadas, é bem
conhecido que Freyre reafirma o equilíbrio de antagonismos como
traço distintivo e louvável da “formação brasileira”; nesse
ponto, assim como na posição do autor diante das tendências de
ruptura e na sua concepção do Estado, as diferenças com Buarque
de Holanda tornam-se palpáveis e certamente irreconciliáveis.

A cristalização da sociabilidade própria do “caráter


brasileiro” não encontra lastro, em Buarque de Holanda, na
hipótese psicanalítica da estruturação da personalidade nos
primeiros anos de vida do sujeito, mas na decantação cultural e

254
“[...] a tradição conservadora no Brasil sempre se tem sustentado do
sadismo do mando, disfarçado em ‘princípio de Autoridade’ ou ‘defesa da
Ordem’.” (CG&S p. 168) “[...] no íntimo, o que o grosso do que se pode chamar
‘povo brasileiro’ ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e
corajosamente autocrático.” (CG&S p.167)
195

psicológica das feições do “caráter coletivo”  no sentido amplo


de uma psicologia social , ao longo das mais de duas centúrias
do patriarcalismo colonial. 255 Para além da ordem familiar rural,
trata-se de nova síntese do ponto de vista da organização do
Estado e da construção política da nação, que introduz como chave
analítica o patrimonialismo na relação homem/bem-público e a
cordialidade nas relações entre os homens, isto é, entre
governantes e governados, mas também, é claro, no interior dos
próprios governados. A categoria síntese a exprimir a autonomia
ou originalidade do “caráter brasileiro” já decantado é o homem
cordial  transformação vernácula e muito mediada do
personalismo ibérico. A despeito de sua assombrosa popularização
e utilização meramente descritiva, como denominação das supostas
feições mais ou menos positivas do brasileiro, convém esclarecer
que, em Buarque de Holanda, o homem cordial é um conceito
síntese. Em definitiva, ele não conota quaisquer atributos
inerentes à bonomia  o bondoso homo brasilicus256 , e tampouco

255
Duarte também partilha essa concepção: “E como todo o País, no seu
ruralismo, se compôs e se definiu na órbita, no espírito e no mando dessa
classe [senhorial], foi ela que lhe deu até aqui a sua tradição, o sentido
profundo de sua psicologia, a índole de sua concepções e de seus sentimentos
coletivos.” (OP p. 108) Contudo, diferentemente de Buarque de Holanda, em
Duarte essa tradição opera na esfera política apenas mediante sua
corporificação no homem público, que se debate para se libertar desse “[...]
passado de forte peso tradicional, que o define e que o formou, esculpido-lhe
sentimentos e hábitos sociais, como costumes mentais e morais. [§] A força
desse passado há de ser naturalmente superior à força das idéias e dos
princípios abstratos.” (OP. p. 119)
256
A breve polêmica entre Cassiano Ricardo e Buarque de Holanda resultaria
sintomática daquilo que se tornou mal-entendido comum nos usos da idéia de um
“homem cordial”, como sendo representativo do bondoso “homem brasileiro”. Com
efeito, os reparos realizados por Cassiano Ricardo ao homem cordial pretendiam
demonstrar “Que a bondade (ao invés da cordialidade) é nossa contribuição ao
mundo [...]” (p. 197); isto é, a idéia que deveras exprimia o sentido do
pensamento de Buarque de Holanda não era a cordialidade mas a bondade, sempre
conciliatória e responsável por um estilo de vida criador do “[...] o máximo de
felicidade social até hoje sonhado por teorias e profetas.” (Cassiano Ricardo,
“Variações sobre o homem cordial”, p. 204). A polêmica foi publicada na revista
do Colégio, em 1948, e depois incorporada na terceira e seguintes edições de
Raízes do Brasil (1955). O debate foi eliminado da edição em circulação. O
estatuto rigorosamente etimológico e conceitual do homem cordial tem sido
negligenciado por inúmeros autores, por exemplo, Freyre considera-o como
sinônimo da “simpatia à brasileira” (SeM p. 644), e para Azevedo, voltando ao
registro da bondade como traço distintivo do brasileiro, “É uma delicadeza sem
cálculo e sem interesse, franca, lisa e de uma simplicidade primitiva [...].”
(CB p. 212)
196

visa salientar padrões de comportamento atrelados à emotividade


ou norteados pelo “irracionalismo” do mundo afetivo, como se a
cordialidade se constituísse em leitmotiv para todos os desmandos
de uma sociabilidade regida pelos ditames dos sentimentos e da
paixão, pela lógica do corpo antes que pela lógica da razão 
“crimes cordiais”, “violência cordial”, “ofensas cordiais”,
257
etc.

A referência ao coração, introduzida por sua origem


etimológica  cor, cordis , refere-se antes à esfera dos afetos
decorrentes dos laços primários do que a certa racionalidade
sentimental ou passional e, nesse sentido, o homem cordial é, em
Buarque de Holanda, o tipo lógico a sintetizar a oposição entre o
domínio dos vínculos diretos, da solidariedade mecânica  para
dizê-lo em termos consagrados pela sociologia de Durkheim , e o
precário e quase asfixiado domínio da civilidade, das relações
impessoais ou da solidariedade orgânica. 258 A oposição homem
cordial/civilidade, ou melhor, a subordinação do segundo pólo
pelo primeiro, define a sociabilidade e a cultura política como
empecilhos para a construção e consolidação do espaço público e
da democracia. A convivência social moderna, isto é, aquela que
se quer democrática, apenas é possível porque exercido largamente
o hábito social  outrora ignóbil  de ignorar o outro como
pessoa, ou com maior precisão, de desconsiderar suas
particularidades de índole privada de modo a instaurar relações

257
V. gr., “De fato, o crime brasileiro é cordial: ele não guarda as
distâncias, prefere passar pelo corpo”; Contardo Calligaris, “Do homem cordial
ao homem vulgar”, p. 9.
258
“E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do
núcleo familiar  a esfera por excelência dos chamados ‘contatos primários’,
dos laços de sangue e de coração  está em que as relações que se criam na vida
doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social
entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em
princípios neutros e abstratos, pretendem assentar a sociedade em normas
antiparticularistas.” (RdB p.146) Na linguagem ilustrativa e involuntariamente
bem humorada de Azevedo, trata-se de “formas imprevistas de individualismo” que
estimulam o desenvolvimento de classes, “[...] não só as sociais, mas anti-
sociais, cujo individualismo agressivo tinha de forçosamente tomar o lugar à
lei e à proteção do Estado”. (CB pp.168 e 220, frisado de AGL)
197

sociais de igualdade  porque abstratas. Nesse sentido, a


civilidade apresenta a ironia de permitir a autêntica convivência
democrática precisamente por ser invenção: sociabilidade
artificial, recurso legítimo da máscara e da convenção que,
abstraindo a pessoa de sua posição social, viabiliza o respeito à
autonomia do indivíduo e a isonomia das leis. 259 Assim, o
diagnóstico para Buarque de Holanda resultava iniludível: se a
civilidade é pré-requisito social da democracia ou, em outros
termos, condição de possibilidade pré-política da constituição do
espaço público, então o dilema da sociedade brasileira era que
ainda não tinha conseguido se desvencilhar da sociabilidade do
homem cordial, apesar das transformações em curso havia três
quartéis de século  permanecendo presa à tradição patriarcal
enquanto rumava para a transformação de suas caraterísticas
demográficas, econômicas e políticas. Em conseqüência, enquanto
não avançassem o suficiente os processos de mudança, enraizando
seus efeitos “antifamiliares” no seio da sociedade, nela
continuaria a operar o ethos público, de forma constante e
sistemática, contra a possibilidade de se constituir a sociedade
democrática e o próprio espaço público.

7. Os alcances da modernização

Transformações profundas vinham ocorrendo e os autores


agora examinados eram cientes disso e reservaram espaços
privilegiados na disposição das obras analisadas para refletir no
assunto. Os dois últimos capítulos de Raízes do Brasil estão
voltados para a análise da mudança, particularmente o último
deles, que não gratuitamente fora intitulado “Nossa Revolução”.

259
Conforme salientado na primeira parte, é notável o fato de a concepção de
civilidade em Buarque de Holanda, como condição de possibilidade da política e
do espaço público modernos, coincidir com reflexões de autores da envergadura
de Norbert Elias e Richard Sennet, cujos trabalhos foram desenvolvidos algumas
décadas depois. Esse paralelismo também foi observado por George Avelino Filho,
que estende as afinidades à obra de Reinhart Koselleck; cf., “Cordialidade...”,
op. cit., cf. pp. 9-10.
198

No caso de Freyre, é bem sabido que uma das diferenças


fundamentais entre Casa-grande & senzala e Sobrados e Mucambos é
a passagem do sincrônico para o diacrônico; isto é, da
cristalização intemporal da identidade nacional a partir das
contribuições dos três contigentes populacionais, para o processo
histórico de decadência do legado senhorial. Em analogia feliz,
Omar Ribeiro Thomaz compara os resultados da representação do
nacional em Casa-grande & senzala com a obra do movimento
muralista mexicano. 260 A analogia é particularmente aguda porque
engloba e sintetiza três elementos de difícil apreensão
analítica: o sentido (meta)historiográfico da representação da
história, a dimensão plástica inerente à estilização que permite
tal representação e o caráter privilegiado da sincronia,
precisamente, como recurso de estilização  o assunto, agora
enunciado de maneira algo críptica, será retomado com maior vagar
na última seção, quando da análise da reprodução do ethos
público. Nesse sentido, é possível estender a analogia afirmando
que a imagem quase pictórica de Casa-grande & senzala perdeu sua
harmonia pela introdução corruptora do movimento em Sobrados e
Mucambos. A ênfase na irrupção de tensões não mais conciliadas
dentro do complexo unificador da família patriarcal, figurado na
casa-grande, é patente inclusive no título das obras, na discreta
e proposital substituição do “&” integrador pelo “e” que reúne
pólos já exteriorizados pela evolução histórica. Destarte,
malgrado o enorme investimento de energias para firmar a tradição
 segundo os propósitos analisados no primeiro passo , o maior
desafio não era pensar a perpetuidade dessa carga histórica
imensa, cuja mole foi esculpida como “tradição” mediante
minuciosas operações analíticas, mas equacionar o problema da
mudança: a passagem à ordenação moderna da sociedade, quer dizer,
a transição do predomínio do universo rural-patriarcal  com

260
Cf., Omar Ribeiro Thomaz, “Prefácio a Interpretação do Brasil”, in Gilberto
Freyre, Interpretação do Brasil.
199

suas práticas, valores e instituições , para a organização


261
urbana, industrial e democrática do país.

Embora Azevedo seja partícipe do diagnóstico acerca do


caráter crítico da transição, qualificando-a como a “[...] crise
mais grave e complexa por que já passou o país [...]”,262 seu
parcial deslocamento com respeito às questões mais prementes no
debate da década de 30  dentre elas as “incógnitas políticas”

associadas ao Estado getulista  faz com que sua apreciação das


transformações em curso seja bastante confiante: “Certamente
encaminha-se o Brasil para a solução do problema de seu
equilíbrio social, pela consolidação de uma nova classe média,
por uma distribuição mais eqüitativa das riquezas e mais larga
difusão da propriedade, como da educação e da cultura, e, a
despeito de aparências contrárias, se acentua a marcha para a
unidade social e para a integração, lenta mas progressiva, de
todo o povo na vida econômica, cultural e política da nação.” (CB
p. 200)263 Por sua vez, neste ponto há importantes diferenças nas
perspectivas de leitura de Freyre e Buarque de Holanda, pois
enquanto a ótica do primeiro encontra-se posicionada no pólo da
tradição, o que lhe permite realizar agudas análises acerca dos
impactos perversos de desagregação e decomposição social
decorrentes das tendências de mudança, a ótica do segundo situa-

261
A problemática da transição para a sociedade industrial nas dimensões
econômica, política e cultural constituíra uma das preocupações mais recorrentes
das ciências sociais até a década de 70. Octávio Ianni vai mais longe e afirma
ser esse o núcleo de problemas predominante sobre outros problemas que também
foram de principal importância como a reinterpretação da história social do
país e o caráter da revolução burguesa. Octávio Ianni, Sociologia e sociedade
no Brasil, pp. 17-18, 23-29.
262
“Mas, à base desse tipo de comportamento político [...] [a subordinação dos
interesses nacionais aos interesses de grupos] residem mais do que a
persistência de hábitos inveterados da dominação patriarcal, as profundas
transformações de estrutura que marcam, no processo de evolução social e
política, o estado agudo da crise mais grave e complexa por que já passou o
país, em toda sua história.” (CB p. 197)
263
Convém lembrar que Azevedo fora nomeado para a presidência da Comissão
Censitária Nacional e que, apesar do “apoio sem restrições” de Getúlio Vargas,
recusara a indicação, tendo de aceitar, todavia, o encargo de escrever a
introdução ao recenseamento de 1940. O livro de Azevedo contemplado nestas
páginas é, precisamente, o resultado de tal encargo. (CB pp. 21-24)
200

se no pólo da modernização, possibilitando-lhe interpretação


pungente da conjuntura política e da democracia. Duarte também
situa-se nesse segundo pólo, visando extrair as conseqüências
radicais das teses inscritas em Raízes do Brasil, já
minuciosamente exploradas e aprofundadas no seu sentido político
ao longo da páginas de A ordem privada e a organização política
nacional. Ainda assim, o desfecho do argumento para firmar sua
discrepância com respeito à conclusão final de Buarque de Holanda
é, como será visto logo, mais próximo de Freyre.

A promulgação da Lei Eusébio de Queirós balizara, para


Buarque de Holanda, o começo de uma revolução lenta e profunda
que, bem mais eficiente do que os violentos e voláteis levantes
latino-americanos, vinha se alastrando pelo pais, acompanhada e
impulsionada não apenas pelas conseqüências da abolição do
tráfico negreiro, mas pelo auge da lavoura cafeeira, pela
multiplicação dos estabelecimentos de ensino superior e por todos
os processos inerentes à urbanização e à instauração da
“escravidão dos salários”. Ainda diante da incerteza do cenário
político nacional e internacional, ele soube reconhecer os
efeitos catalisadores e de forte institucionalização do governo
de Getúlio Vargas; 264 entretanto, a nota distintiva dessa via
política era o autoritarismo  fato renovador do legado do
personalismo político na figura do caudilho. Nessa encruzilhada,
a única saída democrática plausível era a vagarosa efetivação das
tendências de longa duração, que implicavam a progressiva, porém
incontornável incorporação do trabalhador à vida política. De
fato, a sociabilidade tradicional e, com ela, o ethos público,
seriam fatalmente extintos pela paciente ação dessas tendências,
“[...] cujo sentido parece ser o aniquilamento das raízes

264
“Com a simples cordialidade não se criam bons princípios. É necessário algum
elemento normativo sólido, inato na alma do povo, ou mesmo implantado pela
tirania, para que possa haver cristalização social. A tese de que os
expedientes tirânicos nada realizam de duradouro é apenas uma das muitas
ilusões da mitologia liberal, que a história está longe de confirmar.” (RdB p.
185)
201

ibéricas de nossa cultura [...]”, isto é, “[...] a dissolução


lenta, posto que irrevogável, das sobrevivências arcaicas, que o
nosso estatuto de país independente até hoje não conseguiu
extirpar.” (RdB pp.172,180) No que diz respeito ao ethos, é
pertinente inquirir de forma mais incisiva pela eventual
sobrevida de certas feições próprias do homem cordial, pois caso
ela ocorresse, poder-se-ia pensar na hipótese da reposição dessa
sociabilidade mediante expedientes diversos de compensação ou
sincretismo. Ao respeito, no encerramento da “Carta a Cassiano
Ricardo”  a propósito da polêmica desatada pelo conceito homem
cordial , Buarque de Holanda dificilmente poderia ser mais
explícito: “[...] o homem cordial se acha fadado provavelmente a
desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo. E às vezes
receio sinceramente que já tenha gasto muita cera com esse pobre
defunto”. 265

A divergência de Duarte radica nesse ponto: após Buarque de


Holanda investir tantos recursos analíticos para atrelar o
sentido da história no Brasil às feições da longínqua tradição
peninsular e aos seus avatares na edificação da sociedade
colonial, pareceria um despropósito antever com tal facilidade e
com tanta segurança a extinção do caráter privatista da estrutura
social e da organização política nacional. Com efeito, o
discrepância de Duarte radica em exigir de Buarque de Holanda a
assunção radical das conseqüências derivadas de sua própria
análise, pois “[...] um problema de tanta profundidade e com tal
poder de repercussão, não se pode restringir a tão poucas
conseqüências e efeitos. [§] Ele atinge à questão mesma do Estado
e não a essa ou aquela forma de organização estatal.” (OP p.121)
É claro que essa crítica é a um mesmo tempo defesa das teses
centrais de Raízes do Brasil, e que o intuito de resguardar a
obra contra seu próprio autor não é fortuito, pois nessas teses
Duarte estribou o decurso de sua própria argumentação. A defesa é

265
Sérgio Buarque de Holanda, “Carta a Cassiano Ricardo”, p. 213.
202

na realidade autodefesa. No entanto, o raciocínio de Buarque de


Holanda era impecável, a ruína das instituições materiais que
sustentaram o universo patriarcal terminaria por ruir sua função
modelar para outros âmbitos e por desbancar seu domínio
inconteste sobre o conjunto da sociedade. Como sustentar, então,
a continuidade do privatismo senhorial sem negligenciar o fato
histórico de a sociedade, aos poucos, não mais corresponder aos
antigos padrões patriarcais de organização demográfica, econômica
e política? Na resposta dessa interrogante Duarte lançará mão de
uma idéia que o aproxima de Freyre. Trata-se da busca de um
expediente capaz de autonomizar o privatismo, de explicar sua
reprodução como estando relativamente desatrelada das importantes
mudanças acontecidas no percurso do século XIX e das primeiras
décadas do XX. Para tanto, sem a sofisticação das nuanças nem o
requinte de detalhes de Freyre, Duarte retorna ao terreno da
cultura, previamente abandonado porque insuficiente para
compreender o mundo da política, e firma a continuidade do
império da organização privada pela sua condensação e
cristalização como identidade cultural: “Quando a força dessa
classe [senhorial], depois de deter e exercer tamanho poder
social e político, começou a declinar, nem por isso deixou de
continuar no Brasil a prevalecer pelo poder de sua tradição
demorada. Enquanto tudo se modifica, o País sofre várias
mutações, [...] enquanto todas as conquistas, e empresas ainda
não têm tempo de adquirir intensidade e profundeza, essa ordem
senhorial é a construção mais fixa e inabalável do Brasil [...]
É, enfim, a tradição de 400 anos do brasileiro. O tempo lhe deu
profundidade e uma história, o que vale dizer que lhe permitiu
fazer um estilo e uma cultura!” 266 (OP p.109) Contudo, Duarte
situa-se no pólo da modernização e, nesse sentido, a reintrodução
da dimensão da cultura não cancela as perspetivas de erradicação

266
E conclui sem ambigüidades: “Por isso, é bem maior a sobrevivência do que
poderemos chamar o seu espirito institucional, tanto mais resistente e
arraigado quanto chegou a formar do brasileiro um tipo social próprio e que
transparece inconfundível nas nuanças de nossa psicologia social [...].” (OP p.
109)
203

vislumbradas por Buarque de Holanda, apenas as afasta como


possibilidades bastante remotas, cuja realização conta com forças
incertas e assaz modestas: a ambigüidade constitutiva dos homens
públicos, que se debatem presos na sua formação cultural porque
cientes dos imperativos abstratos e universais das normas
públicas.

No caso de Freyre, o inusitado traslado da família real e


seus acompanhantes, vindos em milhares, simbolizou politicamente
a desintegração do regime patriarcal que, na realidade, tinha
sido deflagrada havia tempo pela paulatina acumulação de dinheiro
e prestígio na mão dos comerciantes das cidades  financiadores
da economia latifundiária, cujo enriquecimento fizera-se à custa
do poder senhorial. A mudança transoceânica é divisor de águas
não porque desencadeasse, ex nihilo, tendências adversas à ordem
rural, mas porque acentuou e definiu com clareza o rumo dos
processos de centralização e urbanização do poder e das camadas
governantes. Assim, para a ruína da ordem rural concorreram tanto
a emergência daquela classe econômica citadina como os inúmeros
efeitos da implantação e desenvolvimento paulatino dos costumes,
valores, instituições e práticas próprias da sociabilidade
urbana. Os antigos princípios da hierarquia social, rematada
pelos poderes senhorias, passaram a ser solapados pela interação
conjunta de influências as mais diversas  “estatistas”,
“individualistas” e “coletivistas” , atreladas aos processos de
centralização do poder, de especialização e diferenciação de
âmbitos específicos de autoridade e competência, e de geração e
consolidação de organizações disciplinadas por solidariedades
267
mais horizontais. A condensação por excelência dessas mudanças

267
A prolixidade de Freyre pode conduzir ao engano de se pensar que a ausência
de qualquer distinção conceitual sistemática é traço característico de sua
obra; no entanto, particularmente no que diz respeito à dissolução da ordem
patriarcal, o autor explora de forma exaustiva, no terreno da análise
descritiva, “[...] o impacto das influências individualistas, estatistas ou
coletivistas mais particularmente hostis às antigas hierarquias sociais
dominantes [...].” (SeM p. XC) Essas influências operam em diferentes níveis:
“suprapatriarcal”, ou de concentração política do poder (SeM cf. v.gr. p.305),
204

aparece simbolizada na passagem do universo da casa-grande, que


não apenas integrara seu pólo contrário  a senzala , mas em
torno da qual gravitara a sociedade toda, para o mundo restrito
dos sobrados, cujo progressivo acanhamento evidenciara o ascenso
de novas camadas tipicamente urbanas e a atrofia da família
patriarcal  agora cada vez mais próxima da família burguesa.
Destarte, viram-se tolhidas as capacidades de integração social
dos poderes patriarcais e a senzala, outrora explorada porém
protegida, transformou-se em mucambo, agora livre, embora expulso
do manto senhorial das reciprocidades e, portanto, abandonado a
sua própria sorte. Essa passagem, assim sintetizada por Freyre em
leitura social das transformações arquitetônicas acarretadas pelo
fenômeno abrangente da urbanização, também é detectada em
inúmeros indícios trazidos à tona minuciosamente por ele: os
hábitos alimentares e de lazer, a moda e a mobília, as novas
personagens urbanas.

Porém, a transição para a primazia do urbano sobre o rural


não aconteceu como obra meramente destrutiva ou de substituição,
pois nenhuma força cultural e social havia nas cidades que
pudesse operar tamanha transformação dispensando o concurso da
tradição patriarcal. Afinal, “O desenvolvimento de ‘classes
médias’, ou intermediárias, de ‘pequena-burguesia’ [...] pode ser
quase desprezado; e quase ignorada sua presença na história
social da família brasileira” (SeM p.LXVII). Malgrado a falência
que fadara a unidade familiar patriarcal à extinção, não houve
mudanças radicais no terreno dos valores e da sociabilidade, e
ainda menos no campo da cultura política. As caraterísticas dessa
transição, repleta de nuanças, de transformações sem ruptura,

“infrapatriarcal”, ou de individualização dos membros da família (SeM, cf.


v.gr. pp. 22, 87-88, 121), e poder-se-ia dizer, embora a expressão não apareça
no texto, “metapatriarcal” ou de geração de novas esferas de atividades
sociais autônomas diante dos poderes patriarcais (cf. v.gr. SeM p. 122). A
análise mais ou menos pormenorizada do tratamento que Freyre dá a ação dessas
influências escapa ao objetivo deste trabalho, entretanto, é oportuno abordar
as tendências dissolutivas, mesmo que seja brevemente, pois é no seu contexto
que se produzem conseqüências de fundamental importância para a questão do
ethos público.
205

podem ser exprimidas de forma sucinta e ambígua na frase: “O


patriarcalismo urbanizou-se” (SeM p.22) . Na verdade, poder-se-ia
dizer com igual pertinência que, para Freyre, foi o urbano que se
“patriarcalizou”, pois os sobrados foram habitados em sua grande
maioria pelas camadas urbanas emergentes e, em menor proporção,
pelos bacharéis e raramente pelas famílias a rigor patriarcais;
entretanto, o modelo de prestígio social dominante era patriarcal
e dele lançaram mão os novos segmentos sociais para se
diferenciar do resto da população. Foi a tradição da cultura
patriarcal, deslocada e expropriada de seu hábitat, que
estruturou no âmbito do simbólico a dinâmica expansiva das
cidades, conferindo ao novo espaço de sociabilidade feições muito
particulares  isto é, ainda patriarcais ou, nos termos do
autor, semipatriarcais. Mas se a urbanização do patriarcalismo e
a “patriarcalização” do urbano foram força vigorosa a contribuir
na consolidação das novas tendências espaciais, tal participação
não podia ser realizada como pura afirmação da continuidade  o
que, aliás, é evidente já na própria idéia da passagem da ordem
patriarcal à semipatriarcal. Com efeito, a tradicional ordem
familiar também foi mudada pela própria cidade, isto é, pelas
influências cuja ação independia das antigas hierarquias sociais.

O empenho de Freyre para elucidar a transição como processo


ambivalente apresenta conseqüências de primeira importância para
a caracterização da vida pública regida por um ethos privatista,
agora diminuído e assediado pela aparição de experiência inédita:
a sociabilização no espaço público, segundo seu sentido apenas
urbanístico, embora pleno de conseqüências para a configuração de
uma sociabilidade pautada pelas normas impessoais daquilo que se
convencionou chamar, não gratuitamente, de urbanidade. Trata-se,
grosso modo, de dinâmica dupla agindo de forma simultânea na
determinação das feições da vida na cidade. De um lado, a
presença de forças que embaraçavam e constrangiam a mera
reposição dos valores, práticas e instituições próprias do legado
206

senhorial. A esse respeito, a geografia urbana povoara-se de nova


“paisagem humana” pela multiplicação de figuras concorrenciais da
alguma vez infrene autoridade do senhor patriarcal; sua presença
era claro índice da proliferação de autonomias que escapavam,
embora parcialmente, às órbitas culturais da ordem familiar: a
igreja e os bispos, muito distantes dos padres de capela das
casas-grandes; os mestres régios e muitos outros membros próximos
ou pertencentes à corte; os chefes de polícia e outros
integrantes do crescente funcionalismo vinculado à administração
e preservação da ordem citadina; os egressos das incipientes
instituições de ensino superior  bacharéis voltados para a
política, como os advogados, ou para as profissões liberais, como
os médicos ; sem esquecer, claro está, os lojistas,
correspondentes comerciais e demais personagens vinculados ao
auge do comércio, em quase nada semelhantes aos mascates que
levavam suas mercadorias às portas das casas-grandes. De outro
lado, embora e porque sujeita a diversos constrangimentos, a
família semipatriarcal reafirmava a vigência incólume de seu
domínio dentro das estreitas fronteiras dos sobrados  o que
levou a definir uma relação inicial de estranhamento entre a casa
e o mundo externo.

Graças à interação dessa dupla dinâmica nas transformações


ocorridas nos âmbitos familiar e extra-familair, o sobrado
simboliza, com sua família tradicional ensimesmada  reclusa nos
lindes domiciliários , uma das duas faces do processo histórico
que, a um só tempo, desenvolveu a privatização do lar e a criação
da rua na sua conotação moderna. Eis a questão nevrálgica: à
privatização da casa corresponde a “publificação” da rua e ambas
produzem-se simultaneamente como uma operação de diferenciação
daquilo que era uno e indiviso, daquilo que coexistia formando
parte do mesmo universo. Assim, parte central da história da
decadência da família patriarcal realiza-se pela cisão do
universo senhorial nos mundos do público e do privado, pela
207

definição inaugural das relações entre esse dois âmbitos, o que


aparece protagonizado como o processo histórico no qual “[...] a
esfera pública avança sobre a esfera privada [...] [§] Em outros
termos, a decadência é resultado da quebra da continuidade
268
público/privado”. Nesse sentido, diga-se de passagem, carece de
qualquer pertinência, em Freyre, se pensar na rua como álter
oposto à casa-grande, cujo universo ainda indiferenciado 
segundo a lógica moderna  continha os caminhos senhoriais e
talvez admitisse como exterioridade apenas a natureza. 269 O
surgimento e consolidação da oposição entre a casa e a rua
aparece em Freyre como índice claro de modernização, do avanço
das tendências que solaparam a tradição patriarcal. Nos termos
empregados nestas páginas, o ethos público, enquanto manifestação
da identidade nacional de índole rural e familiar, passou a ser
confrontado e diminuído pela aparição do espaço público, que a
pouco e pouco atingiria “[...] um prestígio novo no nosso sistema
de relações sociais: o prestígio da rua.” (SeM p.XLIII) A
conquista desse prestígio  ou a criação de uma geografia urbana
estável entre o público e o privado  não foi espontânea nem
linear e teve de percorrer intricado caminho, passando pela
dignificação da rua diante de sua suposta devassidão e pela
regulamentação dos limites da casa, graças à qual “[...] a rua,
por sua vez, começou a se defender dos sobrados” (SeM p.200),
dos excessos de seus donos que costumavam jogar lixo e excremento
na rua. Resta, ainda, a questão crucial dos alcances dessa
redefinição que, em última análise, poderia levar à eventual
extinção do ethos público  diluído pela contínua suavização do
semipatriarcalismo urbano. Trata-se de averiguar se, ao igual que

268
Elide Rugai Bastos, “Os descendentes de Prometeu”, p. 18.
269
Na medida em que não há em Freyre uma oposição intemporal entre a casa e a
rua, mas uma tensão construída por processos históricos relativamente recentes,
é incorreto o pressuposto de Roberto da Matta, segundo o qual, “[...] se a casa
está, conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo, ela
também só faz sentido quando em aposição ao mundo exterior: ao universo da rua”.
Na verdade, a casa-grande e a senzala dificilmente fariam sentido por oposição
à rua. Roberto da Matta, A casa... op. cit., p. 17.
208

o homem cordial para Buarque de Holanda, a sociabilidade


patriarcal e sua correspondente cultura política encontram-se
fadadas à desaparição.

A constituição da geografia urbana do público e do privado


veio acompanhada da consolidação de instâncias políticas à margem
do controle direto dos poderes familiares e, nesse sentido,
registra-se uma tendência a certa forma de impessoalização do
Estado: “Ao declínio do poder político do particular rico [...]
correspondeu o aumento do poder político público [...] e, depois,
do republicano, não raras vezes instalados em antigas residências
patriarcais como em ruínas de fortalezas conquistadas a um
inimigo poderoso [...].” (SeM p.LXXI) Ainda mais, a trajetória
do declínio do patriarcado, que vai do rural ao semi-rural,
primeiro, e do semi-urbano ao urbano, depois, não apenas levara à
consolidação de instâncias políticas impessoais, mas abrira passo
à existência de formas individualistas de relacionamentos extra-
familiares: “Apareceram mais nitidamente os súditos e depois os
cidadãos, outrora quase ausentes entre nós [...].” (SeM p.355)
Destarte, a consagração do caráter público da rua aponta para
transformações de maior envergadura no sentido da parcial e
progressiva constituição da vida e do espaço público modernos.
Entretanto, a diluição das expressões orgânicas do patriarcalismo
não implica o esvaimento de todas suas manifestações,
particularmente daquelas cristalizadas no universo da cultura,
cuja autonomia relativa permite sua sobrevivência e continuidade
no terreno do simbólico. Por essa via, para Freyre resulta
impensável a extinção total do personalismo, discrepando
270
explicitamente de Buarque de Holanda. Com efeito, a renitência

270
Em Alusão a Buarque de Holanda, a sua interpretação sobre o caráter
inevitável da erradicação das raízes rurais  e de sua síntese: o homem cordial
, Freyre empresta a noção de personalismo, quiçá para frisar o destinatário, e
exprime: “Tudo indica que a família entre nós não deixará completamente de ser
a influência se não criadora, conservadora e disseminadora de valores, que foi
na sua fase patriarcal. O personalismo do brasileiro [...] dificilmente
desaparecerá de qualquer de nós.” (SeM p. XC)
209

da índole familista da identidade nacional aparece agora despida


de seus conteúdos patriarcais mais ortodoxos, para se perpetuar
na forma de uma cultura política paternalista, responsável pela
freqüência do estilo providencial e autoritário no exercício do
poder político: “Como família patriarcal, ou poder tutelar, [...]
a energia da família está quase extinta; e sua missão bem ou mal
cumprida. [§] Suas sobrevivências terão, porém, vida longa e
talvez eterna não tanto na paisagem quanto no caráter e na
própria vida política do brasileiro. O patriarcal tende a
prolongar-se no paternal, no paternalista [...].” (SeM
pp.XC,XCI) Nesse ponto, diga-se de passagem, Azevedo é mais
próximo de Freyre do que de Buarque de Holanda. 271

É conveniente atentar para a modificação ou


redimensionamento do papel analítico desempenhado pela cultura no
raciocínio de Freyre  similar no que aqui interessa ao
diagnóstico desenvolvido por Duarte , que objetivando resolver
a tensão entre continuidade e transição, opta pela preservação
desenrijada e limitada do universo patriarcal em certos valores
que animam o paternalismo da cultura política nacional. Essa
escolha põe de relevo a introdução de um recurso argumentativo
que, nas décadas seguintes, tornou-se central para a reprodução
da lógica do ethos na literatura tributária dessa forma de
equacionar a caracterização do espaço público. O legado
patriarcal ou a organização privada da vida nacional  e sua
correspondente sociabilidade , desprovido da energia oriunda
das instituições materiais que salvaguardaram sua continuidade,

271
Segundo Azevedo: “O que dela nos ficou [da sociedade rural], quase como um
resíduo transferido à vida política, foi a moral de patrões e agregados, de
senhores e escravos, formada e desenvolvida no regime social da escravidão.”
(CB p. 224) A transferência de um patriarcalismo amenizado para o âmbito da
cultura política também pressupõe, nesse autor, que as arestas mais
indesejáveis do legado rural foram e serão aparadas pelo processo de urbanização
da sociedade: “[...] defeitos ou traços de caráter, como a imprevidência, a
tristeza e o desapego da terra, intimamente ligados a determinados estágios de
nossa evolução, e destinados a desaparecer ou a alterar-se com as modificações
na estrutura social, são erroneamente atribuídos [...] como aspectos raciais e
típicos de nossa civilização.” (CB p. 208)
210

encontra na cultura uma dimensão privilegiada para sua


perpetuação, não como vigorosa cristalização do universo
senhorial, senão como reservatório hermético aos perigos da
extinção. Reservatório idôneo, aliás, porque autônomo ou
relativamente desvencilhado das mudanças que vinham alterando as
feições da sociedade nacional. Destarte, opera-se um
redimensionamento do papel da cultura, atribuindo-lhe a função de
hipótese de última instância na explanação da mais ou menos
minguada sobrevivência da herança patriarcal e, com ela, do ethos
público. Como hipótese de ultima instância, a introdução da
cultura adquire uma função mais voltada para explicar do que para
assinalar problemas, e nessa função o ethos perde parte de sua
densidade conceitual. A compreensão dessa mudança requer exame
mais nuançado, que terá lugar no seguinte subcapítulo; cumpre
dizer, por enquanto, que com a reprodução da lógica do ethos
ocorrerá algo semelhante, acentuando o papel do ethos como
recurso meramente explicativo.

Após o percurso deste último passo, parece claro que a


perpetuação da tradição é assunto problemático no corpo das obras
trazidas para a análise, segundo evidenciou o tratamento nelas
prestado à questão da transição: se para Freyre e, em menor grau,
para Duarte e Azevedo, a renitência do legado patriarcal
responsável pelo ethos público tenderia a se perpetuar, ainda que
muito atenuado, como cristalização no âmbito quase intangível da
cultura, e mais especificamente da cultura política; para Buarque
de Holanda não existiria qualquer salvaguarda capaz de garantir
longa sobrevida aos valores oriundos da ordem rural, uma vez que
seus pilares acabariam por ser definitivamente erodidos pela ação
das transformações econômicas e sócio-demográficas de longo
prazo. No contexto das obras analisadas, primordiais para a
montagem e consolidação da lógica do ethos, a transição, de fato,
cria e define novas tensões entre o público e o privado, no
sentido de introduzir tendências que, de forma imediata ou
remota, apontam para a configuração moderna da vida e do espaço
211

públicos. Nesse sentido, equacionar a configuração do espaço


público, retesada pela interação da resistência e da realização
das transformações ainda em curso, era antes um problema que um
pressuposto da análise, e, em conseqüência, não seria descabido
inferir que requereria reformulação constante na medida em que
sua resolução, com rumos já traçados, era uma pendência
histórica. Embora se trate de reconstruções de “longa duração” 
se permitido o uso do termo fora de contexto , nada mais
contrário à letra dessas obras que coagular concepções cuja
pertinência era em maior ou menor medida transitória em face das
incógnitas da modernização; o equacionamento dessas incógnitas,
conforme firmado pelos próprios autores, acabaria por tornar
parcial ou totalmente inadequado o recurso a um imperturbável
privatismo na vida social, projetado sem embaraços como diretriz
da vida pública. A tendência na literatura tributária do ethos
público, todavia, será assumir como pressuposto analítico a idéia
do caráter pré-moderno da vida pública, o que não raro levará a
propor a inexistência do próprio espaço público pelo arcaísmo de
suas feições. Assim, uma noção como o ethos público, carregada de
sentidos por sua articulação em arcabouços analíticos que
animaram novas interpretações das caraterísticas e problemas
fundamentais do país, tornou-se recurso inócuo para postular a
precária configuração do espaço público.
212

A REPRODUÇÃO DO ETHOS PÚBLICO

8. A função de hipótese ad hoc

Sem qualquer pretensão de constituir, stricto sensu, uma


exegese do pensamento dos autores considerados na seção anterior
 principalmente Freyre e Buarque de Holanda , a análise dos
quatro passos acima permite compreender a montagem da lógica do
ethos público a partir da idéia analógica da rapsódia, isto é,
das variações de padrões de argumentação mais ou menos
semelhantes. Contudo, cabe perguntar pela sobrevivência desse
ethos como noção que continua a permear o modo de se refletir na
questão do espaço público, pois parece pouco plausível pressupor
que ele tenha permanecido incólume diante do desenvolvimento e
diversificação do saber acadêmico, impulsionado por décadas de
especialização disciplinar. Ainda mais se considerado que o
fulcro originário do ethos público  a existência indubitável de
uma identidade nacional da qual derivam suas particularidades 
não ocupa mais lugar de privilégio nas preocupações acadêmicas, e
inclusive é objeto de franco descrédito em algumas áreas. 272 Com
efeito, mostrando o otimismo e a firmeza de quem olha para os
processos históricos como se fosse o observador ao final do
crepúsculo, Dante Moreira Leite e Carlos Guilherme Mota
sentenciaram a gradual desaparição desse tipo de inquietação
intelectual  agora superada pela produção de conhecimento

272
Já em 1949, Victor Nunes Leal, em afamada tese acadêmica para se tornar
catedrático da Faculdade Nacional de Fiosofia da Universidade do Brasil,
afirmava com destinatário certo que os problemas da política no país, seu
caráter paroquial, clientelista, patrimonial, etc., não decorriam senão de
qualidades ou problemas estruturais da configuração nacional ainda rural: “O
problema não é, portanto, de ordem pessoal, [...] ele está profundamente ligado
a nossa estrutura econômica e social”. (Coronelismo, enxada e..., op. cit., p.
59)
213

regida por cânones científicos273 , e acusaram o teor


mistificador das inúmeras expressões ideológicas do nacional:
caráter nacional, cultura brasileira, tipo social, personalidade
média, alma do povo, consciência nacional, ethos brasileiro,
temperamento coletivo, psicologia do brasileiro, vocação
nacional, dentre outras denominações usuais  por certo inúteis
para entender as “[...] contradições sociais e políticas reais
[...]”, embora de notável eficiência para “[...] embaçar as
tensões estruturais geradas na montagem da sociedade de classes e
mascarar a problemática da dependência”. 274

A despeito de prognósticos e denúncias, o pensamento em


torno da identidade nacional, do caráter original da
“civilização” brasileira, embora minguado e sem o mesmo
prestígio, continuou a ocupar o pensamento de autores influentes
 isso sem mencionar sua insistente reprodução na mídia ou nos
textos de divulgação. Mesmo se o pensamento acerca da identidade
nacional, se as tentativas dos “explicadores do Brasil”  para
dizê-lo com o engenho da denominação alcunhada por Mota ,
fossem menos expressivas do que vieram a ser, a verdade
surpreendente é que a reprodução do ethos público terminou por se
“independentizar” de seus referentes originários, isto é,
desvencilhou-se das reflexões afirmativas sobre a brasilidade. A
lógica do ethos público continuou a operar, embora não mais como
construção secundária e subordinada, ou meramente apensa ao ethos
nacional, senão apenas como caracterização crítica das
malformações intrínsecas ao espaço público no Brasil. Porém, tal
emancipação dos conteúdos homogeneizadores de uma suposta
identidade nacional e, nesse sentido, de suas eventuais
implicações “autoritárias”, “conservadoras” ou de “mistificação”,

273
Dante Moreira Leite, O caráter..., op. cit., pp. 310-24; Carlos Guilherme
Mota, Ideologia... op. cit., pp. 268-70, e 278. Em livro recente e lançando mão
de boa parte do material sistematizado por Moreira Leite, Marilena Chauí volta
à crítica da ideologia do nacional; cf., Brasil  Mito fundador e sociedade
autoritária.
274
Carlos Guilherme Mota, Ideologia..., op. cit., pp. 268-9.
214

é parcial e enganosa. A postulação do ethos, como chave para se


compreender os empecilhos que obstam a constituição do espaço
público moderno no Brasil mantém o pressuposto, agora oculto, da
necessária existência de uma continuidade cultural extensa e
homogênea o suficiente para nutrir e reproduzir uma sociabilidade
representativa da vida pública nacional. Por outras palavras, a
permanência do ethos como argumento sem vínculos óbvios com as
polêmicas teses da brasilidade, possibilita sua reapropriação sem
problematizar suas origens; torna viável lançar mão do ethos como
recurso explicativo se furtando à discussão acerca da pertinência
de se caraterizar criticamente o espaço público a partir de uma
noção que reintroduz indiretamente  de “contrabando”, por assim
dizer  a questão dos traços comuns definidores de certa
identidade de alcances nacionais. Tal autonomização, em última
análise, não permite prescindir do pressuposto lógico da
existência de uma identidade cultural maior  outrora explícita
, à qual se reporta a especificidade do próprio ethos.

Os vínculos entre o ethos público e sua lógica originária


são hoje tão pouco evidentes que não é raro se deparar com
extraordinário paradoxo. Não pareceria congruente se opor de
forma rotunda ao debate afirmativo sobre a brasilidade,
caraterizada como recurso ideológico dos autoritarismos políticos
ou como mistificação de conseqüências indesejáveis, e
simultaneamente sustentar concepções emanadas desse debate acerca
das caraterísticas da vida pública no Brasil. Ainda assim, não
são raras as análises que esgrimem tanto a crítica contra as
idéias da identidade nacional  nos moldes de Freyre ou de
Buarque de Holanda , quanto a defesa de diagnósticos deduzidos
a partir da lógica do ethos, atribuindo-lhes o estatuto de
conceituação pertinente sobre os traços mais sobressalentes da
vida pública. Exemplo breve ilustra bem esse paradoxo: em crítica
às contribuições de ambos os autores para a construção de um
“fetiche da igualdade”, Teresa Sales sustenta, na mesma análise,
215

a tese da constituição do espaço público no Brasil sob a


hegemonia da cultura política da dádiva, que implica relações
culturais de subserviência ao invés das de obediência; de uma
lado, recusam-se de modo explícito a implicações do discurso da
identidade nacional presuntivamente igualitário  de efeitos
nocivos na cultura política , mas do outro repõe-se o
pensamento questionado pela via oculta da atualização do ethos
público. 275 A leitura aguda de Vera da Silva Telles reparou nesse
paradoxo: “[...] assim me parece, não consegue escapar [a autora]
do que eu chamaria metaforicamente de uma ‘maldição das origens’
(o latifúndio, o patriarcalismo, as raízes ibéricas).” 276
Paradoxalmente, na sua reflexão acerca da relação entre cidadania
e pobreza, baseada de forma central na análise de processos
sócio-políticos ao longo do século XX, e na aferição estatística
da parte mais recente desses processos, a última autora não
prescinde por completo de certos argumentos animados pela lógica
do ethos: “Na verdade, a miséria brasileira revela a trama que
articula o Brasil real e o Brasil formal, numa dinâmica a um
tempo político e cultural, em que hierarquias de todos os tipos
desfazem a igualdade prometida pela lei, imprimindo na ordem
legal um caráter elitista e oligárquico que atualiza velhas
tradições. [§] Como mostra DaMatta, essa é uma matriz cultural
própria de uma sociedade que não sofreu a revolução igualitária
[...] em que, por isso mesmo, a modernidade nunca chegou a ter o
efeito racionalizador de que trata Weber, convivendo com éticas
particularistas do mundo privado das relações pessoais que, ao
serem projetadas na esfera pública, repõem a hierarquia entre
pessoas no lugar em que deveria existir a igualdade entre
indivíduos [...] Daí esse familismo tão característico da vida
social brasileira, em que relações sociais transforma-se em

275
Teresa Sales, “Raízes da...” op. cit., pp. 31-7.
276
Vera da Silva Telles, “Cultura da dádiva, avesso da cidadania”, p. 46.
216

relações pessoais regidas por códigos morais próprios da vida


privada.” 277

Assim, uma vez distendidos os vínculos do ethos com o


arcabouço de idéias do qual emergiu, tudo se passa como se fosse
reproduzido com independência dos motivos que fizeram dele uma
construção analítica de efeitos renovadores no pensamento
político-social. Perante tal reposição, cabe partilhar o espanto
de Octavio Paz em formulação expressa quando discorria acerca da
pertinácia dos vestígios simbólicos herdados pelo processo
histórico de definição da identidade nacional, por ele definida
como operação de inventar e firmar a diferença: “E não é
extraordinário que, desaparecidas as causas, persistam os
278
efeitos? E que os efeitos ocultem as causas?”. Considerar a
progressiva diluição dos vínculos, outrora explícitos, entre a
questão da identidade nacional e a caracterização da vida pública
regida pelo ethos, contribui na compreensão da “persistência dos
efeitos”, ou seja, da liberalidade com que o ethos é incorporado
em análises de diversas filiações intelectuais. Para além do
paradoxo, que assinala o risco de repor parte dos conteúdos
subjacentes às idéias visadas pela crítica, a reprodução da

277
Vera da Silva Telles, A cidadania inexistente: incivilidade e pobreza  Um
estudo sobre o trabalho e a família na Grande São Paulo, pp. 90-1. Para outra
expressão do mesmo paradoxo, mas agora definido como crítica ferrenha das
ideologias do nacional que simultaneamente expões traços do ethos  favor,
tutela, indistinção  como diagnóstico do espaço público, cf. Marilena Chauí,
Conformismo... op. cit., pp. 55-6, 136-7.
278
Octavio Paz, El laberinto de la soledad, (1950) p. 66. Nessa passagem, Paz
não trata das sobrevivências do pensamento político-social empenhado na
definição da identidade nacional  do qual ele é protagonista exímio , mas do
próprio processo histórico de definição dessa identidade enquanto diferença
cultural e psicológica, o que aproxima em mais de um sentido El laberinto de la
soledad de Raízes do Brasil. O primeiro livro é uma síntese, o desfecho final
de um período de novas inquietações intelectuais em torno da identidade
nacional; enquanto e segundo ocuparia mais a posição de abertura consagrada. A
despeito de a observação de Paz estar referida a processos históricos e não ao
plano do pensamento, idéia da renitência de certos “fantasmas” que, separados
de suas circunstancias vitais, passaram a assombrar o entendimento, pode ser
emprestada para ilustrar plasticamente a contínua reposição do ethos e seus
efeitos: “A persistência de certas atitudes e a liberdade e independência que
assumem diante das causas que as originaram, [...] [§] Em suma, a história
poderá esclarecer a origem de muitos dos nosso fantasmas, porém, não os
dissipará.” (Ibid.)
217

lógica do ethos público requer de análise pormenorizada quanto


aos efeitos de sua aplicação: a “ocultação das “causas”. Segundo
será elucidado mais adiante, a introdução do ethos na análise da
vida pública induz interpretações de causalidade circular,
obliterando aspectos relevantes da realidade.

Antes de abordar os efeitos, seria incorreto negligenciar o


fato de a autonomização recém considerada ser insuficiente para
assinalar os usos efetivos do ethos e as eventuais operações que
viabilizam sua atualização. Na realidade, a compreensão cabal da
forma em que essa noção é reproduzida levanta interrogantes
acerca da continuidade dos conteúdos, isto é, do perfil
particular dos “efeitos” a sobreviverem uma vez extintas as
“causas”  parafraseando a observação de Paz vertida acima. Tal
questão não apenas coloca a exigência de mostrar a maneira como
aparece hoje o ethos na literatura, também introduz assunto mais
relevante, a saber, as mudanças no seu estatuto, levando em
consideração que perdera o respaldo fornecido pelo seu engaste
originário em uma concepção forte da determinação cultural. Se,
como foi salientado, a reprodução do ethos contou com a distensão
de seus vínculos originários com essa concepção, isso não implica
a supressão de sua existência enquanto noção de caráter cultural,
ou seja, como referente de um complexo de condicionantes
culturais. Qual, então, a mudança na especificidade do cultural
no ethos? A resposta pode ser sinteticamente formulada nos
seguintes termos: a cultura perdera seu estatuto de problema
primaz ou fundamento, assumindo a função discreta, porém
enganosa, de expediente explicativo ad hoc. Por via de regra,
pressupõe-se a continuidade mais ou menos universal de certas
características como um dado, não como problema a ser elucidado;
em conseqüência, a noção do ethos não é reproduzida mediante a
construção ou justificação do estatuto basal da cultura na
compreensão do espaço público, tal e como no tocante à história e
à identidade fizeram as obras que contribuíram na montagem dessa
218

noção. Obras, aliás, preocupadas com a cultura como problemática


ou dimensão histórica crucial que, negligenciada pelos
determinismos vigentes à época, teria de ser construída e
desvendada pelos recursos da estilização analítica: por isso o
caráter inovador desses trabalhos, hoje inevitavelmente datados.
Atualmente, a tendência  já anunciada nos últimos parágrafos da
seção anterior  é conferir ao ethos público uma função antes
explicativa que problematizadora, redefinindo seu estatuto em
termos de uma hipótese ad hoc reproduzida de forma difusa a
partir da sua introdução em diversos contextos analíticos,
descontínuos em suas procedências teóricas ou ideológicas, mas
tributários da lógica do ethos por introduzirem-na como
expediente explicativo das particularidades do espaço público.
Nessa função explicativa, recém definida em termos lógicos, há
por certo espaço para a ambigüidade em espectro ou gradiente
contínuo que vai de posturas afirmativas, nas quais o ethos é
postulado com forte carga heurística, até diagnósticos em que ele
comparece apenas como argumento auxiliar. Dessa forma
instrumentalizado, o ethos perdera sem dúvida boa parte de sua
densidade conceitual e importância no pensamento político-social;
todavia, quando utilizado, continua a apelar para a presença de
certa continuidade que justifica as causas da incivilidade na
vida pública ou, melhor, da inexistência de vida pública
autêntica.

A despeito das consideráveis transformações da estrutura


produtiva, demográfica e política do país, ocorridas no século
XX, lança-se mão do ethos público, por vezes fatidicamente, para
explicar os saldos negativos, as insuficiências, as perversões
ou, no melhor dos casos, as peculiaridades desses processos no
que diz respeito à configuração de um espaço público moderno. É
como se se fizesse do ethos uma espécie de reservatório da pré-
modernidade, só que de cunho analítico: os arcaísmos e
tradicionais perversões da vida pública continuam a emperrar os
219

avanços na constituição de um verdadeiro espaço público 


segundo as caraterísticas que lhe são próprias na modernidade. Aí
onde a análise acusa o abismo entre a configuração moderna e a
nacional do espaço público, surge o ethos como explicação das
feições indesejáveis  ora pré-modernas, ora não-modernas, mas
quase sempre negativas , cujas causas restituem parte das teses
consolidadas pela literatura dos anos 30, agora flexibilizadas
pela destituição da cultura como determinação fundamental. Assim,
ainda hoje a lógica do ethos público é introduzida em
interpretações nas que se encontram imbricadas, com pesos e
avaliações diferenciadas segundo a ocasião, o personalismo a
travar a consolidação social da figura do indivíduo, a
indistinção entre o público e o privado, a apropriação privada do
público e a incivilidade ou incapacidade de se agir conforme
regras universais e abstratas; tudo como caraterísticas
distintivas da vida pública e do espaço públicos no país. 279 Em
virtude da perda de densidade conceitual do ethos, seu uso, e a

279
Eis dois exemplos e varias fontes em que tais caracterizações podem ser
conferidas: “[...] é a estrutura do campo social e do campo político que se
encontra determinada pela indistinção entre o público e o privado [...] a
sociedade civil também esta estruturada por relações de favor, tutela e
dependência, imenso espelho do próprio Estado e vice-versa”; Marilena Chauí,
Conformismo..., op. cit., pp. 55-6; cf., também, p. 136. “A vida se esgota no
próprio agente: ele gosta de perfumes e de roupas novas e bonitas, mas
emporcalha o espaço ao seu redor [...] A nem sempre clara ordenação da
apresentação pessoal não se estende ao espaço circundante e á
corresponsabilidade com aquilo que é propriamente público. Tudo se mostra,
portanto, banalizado. [[§] Por isso o privado é entre nós tão precário. Ele não
funda uma consciência social moderna e impessoal. A pessoa continua no centro
das relações sociais, não o indivíduo [...]”; José de Souza Martins, A
sociabilidade do homem simples, pp. 52-3. Em outro registro, que não o da
caracterização geral de uma sociabilidade personalista, o próprio José de Souza
Martins oferece instigante análise antropológica de formas não modernas da
geografia social do público/privado nas populações de fronteira, onde a
propriedade e a privacidade, a vida pública e o comunitário, tal e como
entendidas para o resto do país, não definem os contornos dessa geografia (“A
vida pública nas áreas de expansão da sociedade brasileira”, in Lilia Moritz
Schwarcz, História da vida privada no Brasil  Contrastes da intimidade
contemporânea, cf., pp. 670-81, 684-726). Para outras interpretações
afirmativas da lógica do ethos, cf., Guillermo O’Donnell, “Situações 
Microcenas da privatização do público em São Paulo”, pp. 45-52; Luis R Cardoso
de Oliveira, “Entre o justo e o solidário  Os dilemas dos direitos de
cidadania no Brasil e nos EUA”, pp. 70-4 ; Luiz Eduardo W. Wanderley, “Rumos
da ordem pública no Brasil  A construção do público”, pp. 98-99; Teresa
Sales, “Raízes da desigualdade...”, op. cit., pp. 26-34; Contardo Calligaris,
“Do homem...”, op. cit., pp. 8-10; João Camilo de Oliveira Torres,
Interpretação da realidade..., op. cit., pp. 35-9.
220

importância conferida a cada um desses três aspectos, amiúde


respondem mais aos argumentos ocasionais de um texto específico
do que às linhas de pensamento que perpassam o conjunto da obra
do respectivo autor. Diga-se de passagem, por enquanto, que se a
reatualização de teses tais como a indistinção, a privatização, a
incivilidade e o personalismo opera, normalmente, de forma muito
menos substancializada com respeito à literatura da década de 30,
a obra de Roberto DaMatta constitui exceção notória, tanto por
suas formulações culturais acerca do país como uma sociedade de
sistema dual  na que prima a identidade relacional consagrada
na figura “pessoa” , quanto por sua ampla difusão nos âmbitos
acadêmico e extra-acadêmico. 280

Em posturas afirmativas, os conteúdos do ethos operam


fornecendo razões, ou melhor, explicações baseadas na interação
de uma causalidade tríplice, cuja aparente contundência esclarece
os déficits do espaço público. Em passagem de texto singelo e
bastante difundido, Guillermo O’Donnell  autor insuspeito de
qualquer culturalismo  ilustra bem como os três aspectos
mencionados se conjugam, quando introduzido o recurso do ethos,
de modo a se reforçar reciprocamente, fechando uma espécie de
círculo explicativo. A ausência de cultura cívica obsta o
respeito dos lindes entre o público e o privado, o que estimula
comportamentos de apropriação indevida do público, gerando novo
adubo para a reprodução da vida pública sob o jugo de uma
sociabilidade incivilizada que, embora seja partícipe de valores
universalistas para a política, cancela no nascedouro, no próprio
cotidiano, a possibilidade da constituição de um espaço público
moderno: “[...] as condições prevalecentes são tais que se torna
lógico que aquele que pode privatize os espaços públicos ao seu
alcance. Ao fazer isso, não parece que tenham sentimentos de

280
Cf., Roberto DaMatta, A casa e...., op. cit., pp. 65-95; Roberto DaMatta,
Carnavais, malandros e heróis  Para uma sociologia do dilema brasileiro, pp.
21 e 179-95; Roberto DaMatta, “Um indivíduo sem rosto”, in Roberto DaMatta,
José Murilo de Carvalho, et. al. Brasileiro Cidadão?, pp. 3-21.
221

culpa; afinal, para ter tais sentimentos deveriam ter também


alguma consciência cívico republicana; isto é, que a separação
entre o público e o privado é relevante e que, portanto, vale a
pena mantê-la. Não encontrei essa perspectiva nessas pessoas, a
despeito de sua visão em muito aspectos moderna e, em níveis
macropolíticos, democrática. Mas, por eles não terem sentimentos
de culpa, a apropriação que realizam não é uma apropriação
triunfante e segura dos respectivos espaços públicos. É,
claramente, uma privatização do público defensiva [...]”. 281
Contudo, é conveniente se precaver contra uma interpretação
demasiado apresada acerca da presença desse tipo de
caracterizações em amplo espectro de autores, pois a denúncia de
todos ou de algum desses traços negativos não necessariamente
implica a incorporação do ethos como expediente explicativo,
podendo decorrer de outros pressupostos analíticos, cuja
pertinência teria de ser equacionada sob outros critérios. Sem
dúvida, a subordinação do público pelo privado, a confusão de
fronteiras entre ambos os âmbitos e a incivilidade admitem
interpretações diversas quanto a suas conseqüências, mas também
no que diz respeito a suas causas  quer, por exemplo, como
manifestações de corrupção ou de falhas no desenho do arcabouço
institucional político, quer como decorrências da iniqüidade
sócio-econômica imperante, quer como expressões de uma cultura
incivil ou de outros condicionantes culturais.

Permanecendo dentro do esquema explicativo fornecido pelo


ethos público, o quid parece residir na primazia conferida a um
dos elementos como alicerce dos outros, pois, como sugerido pela
citação do parágrafo anterior, a idéia da ausência de uma cultura
cívica moderna reintroduz, como contrapartida, o argumento da
perseverança  ou da reposição por vias modernas  de uma
tradição cultural avessa às formas abstratas de solidariedade.

281
Guillermo O’Donnell, “Situações  Microcenas...”, op. cit., p. 49 (frisado
de AGL).
222

Com efeito, se a indistinção entre o público e o privado e a


apropriação particular do público podem derivar de fatores mais
ou menos conjunturais, de origem específica  arranjos
institucionais, situações contextuais, posições sociais concretas
, uma vez introduzida a tese da carência na sociabilidade 

“ter alguma consciência cívico republicana” , tudo encaixa em


quadro de macrodeterminações de longo prazo, cuja lógica põe,
mais do que constrói, as caraterísticas do espaço público. 282 Em
interpretações afastadas de posturas afirmativas como as de
O’Donell e DaMatta  autor que em virtude de sua influência
merece tratamento à parte , 283
diagnósticos acerca da
configuração do espaço público como os de Vera Telles, Marilena
Chauí ou José de Souza Martins incorporam aspectos do ethos no
quadro maior de determinações históricas e sócio-lógicas. Ainda
assim, trata-se de terreno escorregadio e povoado de
ambigüidades, difícil de ser equacionado balizando onde começa ou
não a operar a lógica do ethos público. É claro que organizar o
pensamento a partir da caracterização da sociabilidade não é
necessariamente sinônimo de qualquer forma de culturalismo, e
que, portanto, a afirmação da constância de relações sociais
anti-individualizantes e incivis não implica necessariamente a
reposição da lógica do ethos; poderia ser apenas uma notável
coincidência morfológica quanto ao diagnóstico dos traços
constitutivos da vida pública no país. 284 Porém, se o argumento da

282
Exemplo de crítica à origem concreta de distorções no espaço público,
voltada para elucidação do contexto e dos condicionamentos específicos que
geram tais distorções, pode ser encontrada nas idéias plásticas “cidadão
privado” ou “subcidadania”, desenvolvidas por Lúcio Kowarick (Escritos urbanos,
pp. 43-55, 81-95; especialmente, pp. 54 e 94). Em ambos os casos, trata-se de
denominações sintéticas para simbolizar a dinâmica das mediações presentes em
certos processos urbanos, que por sua vez afetam certas camadas da população.
Cf., também, a análise contextual de José de Souza Martins, “A vida
pública...”, op. cit., pp. 660-726.
283
Para outros trabalhos de tipo afirmativo, vide nota de rodapé 122.
284
Como atesta o caso de José Murilo de Carvalho e sua análise sobre a
inversão, no país, do paradigma clássico marshalliano sobre a evolução e
consolidação dos direitos de cidadania, o que explicaria a existência de uma
“concepção de liberdade pré-cívica” e, no limite, da “ausência de cultura
cívica”; cf., “Interesse contra cidadania”, in Roberto DaMatta, José Murilo de
Carvalho, et. al. Brasileiro... op. cit., pp. 102-3. A mesma posição fora
223

sociabilidade não for elaborado dentro de parâmetros contextuais


restritos, e sim como atributo universal, o pressuposto de uma
identidade imanente à que seria preciso se reportar parece
incontornável. A despeito de ser muito atraente pela contundência
de seus efeitos explicativos, a invocação de razões de semelhante
teor  incivilidade, personalismo, sociabilidade precária,
insolidariedade, sociabilidade incompleta e até “sociabilidade
incapaz de constituir alteridade” 285 , que fazem da moral
pública imperante no tecido social o “locus” privilegiado das
distorções do espaço público, corre o risco de reproduzir a
lógica do ethos, pois, mais uma vez, os empecilhos para a
edificação da modernidade nacional derivariam, em boa medida, da
existência de feições identitárias comuns ao conjunto da
população. Os pressupostos subjacentes a tal concepção já foram
pródigos em conseqüências renovadoras para o pensamento político-
social; hoje, é preciso um olhar cauteloso para não enveredar por
essas trilhas aparentemente apagadas pelos avanços do
conhecimento disciplinar. Os descompassos entre a norma e a
moralidade, por vezes abissais, assim como a expressiva
existência de formas de sociabilidade  em plural  que não
comportam a efetivação de determinados direitos, constituem, sem
sombra de dúvida, dilemas de extraordinária relevância para se
pensar na configuração do espaço público no país; todavia,
permanece em pé a complexa questão de como equacionar tais
286
dilemas sem cair nas armadilhas do ethos.

exposta pelo autor, com maior fôlego, no livro Desenvolvimiento de la


ciudadania en Brasil.
285
“O não reconhecimento do outro como sujeito de interesses, aspirações e
razões válidas significa uma forma de sociabilidade que não se completa, porque
regida por uma lógica de anulação do outro como identidade [...] esse é um tipo
de sociabilidade que não constrói alteridade [...]”; “É possível dizer que o
drama da sociedade brasileira está por inteiro inscrito nessa equação entre
cidadania e civismo que não se completa”. Vera da Silva Telles, A cidadania
inexistente..., op. cit., pp. 98 e 114, respectivamente.
286
A presença coetânea de distintas temporalidades históricas é explorada por
José de Souza Martins na abordagem das relações entre corrupção, clientelismo e
espaço público no Brasil. No registro de uma “história lenta”, da “história
daquilo que permanece”, seria possível analisar a especificidade do modo em que
“o público e o privado se confundem”, sem por isso reconduzir toda
materialização do público ao terreno negativo dos valores enraizados. Nesse
224

9. Uma interpretação ainda afirmativa

Antes de se analisarem as armadilhas cognitivas inerentes à


reprodução do ethos, cumpre elucidar uma observação já
antecipada: nem sempre sua lógica trabalha de forma velada, como
paradoxo ou a contrapelo das intenções explícitas dos próprios
autores  por assim dizer. De fato, Roberto DaMatta reivindica
para parte de sua obra a posição de herdeira das preocupações
culturais distintivas dos trabalhos seminais de Buarque de
Holanda e  com maior fidelidade  de Gilberto Freyre, em termos
por vezes surpreendentes pela afinidade das interpretações, mesmo
após décadas de críticas contra os riscos envolvidos na tentação
de se definir a identidade nacional. 287 É fácil reconhecer em
diversos trabalhos de Damatta uma busca incansável não apenas
para esquadrinhar as particularidades do “brasil” popular, para o
autor esquecido pelas pretensões universalistas do “Brasil”
oficial  feito de normas, regras políticas e cifras econômicas
, senão para alcançar  finalmente!  o “BRASIL”: “maiúsculo

sentido, perderia qualquer pertinência a dicotomia simplificadora entre o


privado, enquanto moralidade e sociabilidade plenas de conteúdos incivis, de um
lado, e o público, como norma ou pura forma esvaziada de efetividade, do outro.
José de Souza Martins, O poder do atraso  Ensaios de sociologia da história
lenta, pp. 11-51; especialmente pp. 14, 20-2, 24 e 37-8.
287
Cf. Roberto DaMatta, A casa &... op. cit., p. 25. A periodização proposta
por Lívia Barbosa, em balanço sucinto das grandes interpretações sobre o
Brasil, é bastante ilustrativa da filiação do tipo de estudos encabeçados por
esse autor: após definir a existência de duas grandes vertentes, a primeira
voltada para os macroprocessos econômicos e políticos e a segunda preocupada
com a compreensão das caraterísticas “culturais” do país, Barbosa assevera que
“As [interpretações] do primeiro tipo predominaram do início do século até
meados de 1930 e, depois, resurgiram em torno da década de 1940. As do segundo
tiveram seu período áureo na década de 1930, desaparecendo quase completamente
até meados de 1970”. (O jeitinho brasileiro  A arte de ser mais igual que os
outros, p. 4) Apenas é preciso assinalar que Carnavais, Malandros e heróis, de
DaMatta, teve sua primeira edição pública em 1978. Diga-se de passagem que, a
despeito da filiação da autora às idéias de DaMatta, ao dar tratamento ao
“jeitinho” como categoria nativa, ela realiza interessante análise que
contorna a tentação de decifrar qualquer essência cultural ou conteúdo
substantivo do “ser brasileiro”. Além de examinar com prudência a função e usos
dessa categoria, Barbosa mostra que, diferentemente do que pareceria lógico
esperar, a noção “jeitinho brasileiro” só entrou em uso corrente a partir dos
anos 70. (pp. 139-147)
225

por inteiro”. 288 Por outras palavras, DaMatta visa encontrar o


âmago capaz de definir “[...] um modo de ser, um ‘jeito’ de
existir que, não obstante estar fundado em coisas universais, é
exclusivamente Brasileiro.” 289 Mais uma vez, embora de forma
extemporânea, a renitência das feições culturais continuaria a
emperrar a edificação da modernidade no país, ou seja, o problema
ainda residiria nas origens culturais da nação, cuja permanência
secular determinaria o “dilema brasileiro” enquanto incapacidade
de conquistar cabalmente a democracia e a igualdade  baseadas
na figura do indivíduo e no império efetivo da norma universal:
“O nosso dilema é a passagem de um estilo de fazer política
tradicional, ibérico, clássico [...] para uma forma
290
transparente”. Entretanto, mais próximo das formulações de
Freyre do que do diagnóstico de Buarque de Holanda, DaMatta julga
equívoco grave caraterizar tal permanência como reminiscências ou
arcaísmos fadados a extinção pelo contínuo crescimento de
relações sociais modernas; para o autor trata-se de traços
estruturais da sociedade, que organizam a vida em sistema dual:
legal, universalista, individualizante, de aspirações
democráticas e igualitárias, e a um só tempo, hierárquico,
relacional, explorador, desigual, particularista, personalista ou
constituído sob o primado da intimidade.291

O sistema é dual mas não dicotômico, pelo que sua


disposição interna não pode ser arquitetada mediante a oposição
de pólos longínquos e excludentes; antes, responde a princípios
funcionais diferenciados, cuja alternância opera no cotidiano ora
impondo critérios abstratos e universais, ora restabelecendo
hierarquias e privilégios derivados da inserção social da pessoa.
A continuidade entre ambos os princípios e a existência de

288
Roberto DaMatta, O que faz..., op. cit., pp. 11, 13 e 14, respectivamente;
também, Roberto DaMatta, Carnavais, malandros, op. cit., p. 15.
289
Roberto DaMatta, O que faz..., op. cit., p. 15.
290
Roberto DaMatta, “Um indivíduo...”, op. cit., p. 29; cf., também, Roberto
DaMatta, A casa &... op. cit., pp. 20 e 50.
291
Roberto DaMatta, Carnavais, Malandros, op. cit., p. 21, 25, 169, 178.
226

passagens para se ativar um ou outro, segundo as circunstâncias e


os sujeitos envolvidos em cada situação, poderia sugerir a idéia
de certo equilíbrio instável, que configuraria uma “geografia” do
espaço público ambígua, porém não estruturada sob a predominância
esmagadora do conjunto de valores personalistas em detrimento dos
individualistas. Eis a questão nevrálgica para se compreender a
ação do ethos, notavelmente revigorado na definição das
caraterísticas constitutivas do espaço público no diagnóstico de
DaMatta. Na verdade, o principio funcional moderno condensado na
figura do indivíduo não é, na concepção do autor, mera forma sem
qualquer aplicação, mas sua efetividade defende-se mal e a duras
penas diante do avassalador domínio das relações privadas e
familiares, cuja inveterada tradição remonta, é óbvio, às origens
culturais da nação. Ainda mais, a lógica abstrata e impessoal,
própria ao espaço público, não seria percebida no plano
existencial como algo valioso, e sim como ameaça, pois o
exercício da lei tornaria vulneráveis as pessoas ao considerá-las
como indivíduos, quer dizer, ao desconhecer as teias de relações
e os vínculos significativos decorrentes de sua inserção
292
social. Nesse sentido, o espaço público, mais que possibilitar
a vivência democrática da vida pública, condensaria a experiência
da arbitrariedade e da espoliação; por isso, seus imperativos
funcionais abstratos seriam sistematicamente desativados por
todos aqueles que contassem com recursos para faze-lo, restando a
aplicação da lei apenas para os desvalidos, para quem, desprovido
de relações pessoais ou de status, não pode arrostar as ameaças
da despersonalização com o rito hierárquico do “você sabe com
quem está falando?”.

Em virtude da ampla ressonância atingida por essa idéia,


vale a pena introduzir breve parêntesis. A frase “você sabe com
quem está falando?” foi celebrizada por DaMatta como rito

292
“Pois sendo assim, ao sair do meu domínio e desfazendo minhas relações, não
sou nada [...] O que equaciona o anonimato e a individualização (ou sua
possibilidade) como um risco e um castigo [...]”. Ibid, p. 176.
227

tipicamente brasileiro de restabelecimento da hierarquia social,


em situações que apresentam o risco de se desfecharem conforme
critérios de igualdade. O rito mostraria de forma cristalizada o
caráter relacional desta sociedade  avessa à igualação pelo
exercício da lei , cuja contraposição se encontraria no “who do
you think you are”, próprio a uma sociedade como a norte-
americana, regida pelo individualismo e pelo princípio da
293
igualdade. O autor parece atribuir demasiada importância ao uso
social de uma expressão que, aliás, também conta com versões de
sentido equivalente em outras línguas: no castelhano há o rotundo
“?usted no sabe con quien está hablando?” ou ainda “?usted no
sabe con quien se está metiendo?”; e mesmo no inglês
“igualitário” dos Estado Unidos e comum ouvir “I know people who
knows people”. Tomando como ponto de partida o “você sabe com
quem está falando?”, enquanto mostra emblemática para refletir na
especificidade do autoritarismo na sociedade brasileira, O’Donell
desenvolveu análise por contraste com o autoritarismo da
sociedade argentina, simbolizado pelo “e eu com isso”  “a mi
que me importa”.294 É claro que o sentido de semelhante expressão
não apenas existe na Argentina ou é bastante usado, com a mesma
ênfase, em outros países da América Latina de língua hispana;
também nos Estados Unidos é muito comum se ouvir o pouco polido
“I don’t give a shit about it”. A intuição inicial de DaMatta
despertou ao contato com as páginas de A volta do gato preto,
sugestivo título de um dos livros de memórias de viagem escritos
por Erico Verissimo  desta feita narrando sua estadia de dois
anos nos Estados Unidos, em meados da década de 40. 295 Após

293
Roberto DaMatta, Carnavais, Malandros..., op. cit. pp. 146-204; cf.,
especificamente, pp. 149, 158-61, e 168.
294
Guillermo O’Donell, “E eu que com isso? Notas sobre sociabilidade e política
na argentina e no Brasil”, in Contrapontos: autoritarismo e democratização, pp.
121-53.
295
Sem se tratar propriamente de uma saga, o título provém das memórias de
viagem anterior à União Americana, publicadas sob a rubrica Gato preto em campo
de neve; ademais, aproveitando alguma de suas longas estadias nesse país, o
autor visitou a “vizinho do sul” e narrou suas impressões em livro de nome mais
austero: México.
228

refletir acerca da simplicidade dos grandes acadêmicos norte-


americanos, Verissimo evoca a imagem de “certos homens
presunçosos de minha terra” que julgam ser “o sal da terra e
vivem a perguntar: você sabe com quem está falando?”;
curiosamente, na mesma obra o autor relata que “e eu com isso”
fora a resposta de Heitor Villa-Lobos antes seus serviços
solícitos como tradutor do protocolo em cerimônia de homenagem ao
maestro. 296 De novo, apresenta-se o problema de como lidar com a
dimensão da cultura sem cair na tentação de “encontrá-la”
cristalizada e prestes a ser decodificada em elementos tão
simplificados  sejam eles lingüísticos ou de outra índole. 297

Retomando o percurso da argumentação, para DaMatta o espaço


público aparece funcionalmente tolhido pela pertinácia de uma
sociabilidade que, aparando-lhe as pretensões universalistas, se
apropria dele e o transforma em extensão amena da vida privada,
criando imensa área cinzenta de mediação social: área de encontro
entre o “brasil” e o “Brasil”, entre a tradição e o moderno, não
sendo a rigor apenas privada, porém tampouco pública. Se a
dualidade público/privado é constitutiva do mundo moderno como
separação de domínios, unidos por uma visão de mundo que lhes
confere funcionalidade complementar, o especificamente
“brasileiro” residiria na tendência à contemporização de ambos os
termos sob a égide de uma sociedade relacional  embora a
ideologia do mundo público-político e do mundo privado sejam
conflitantes no contexto cultural deste país. Em outras palavras,
se a casa & a rua  retomando uma tensão cara ao autor, na
esteira de Freyre  são domínios distintos aqui e alhures, no
Brasil “[...] vivemos em uma sociedade onde existe uma espécie de
combate entre o mundo público das leis universais e do mercado; e

296
Erico Verissimo, A volta do gato preto, pp. 170 e 388, respectivamente.
297
Dante Moreira Leite foi bastante agudo em sua crítica ao uso de “formas
estereotipadas de linguagem” como expediente para desvendar diferenças
psicológicas e culturais das sociedades; cf., O caráter..., op. cit., pp. 61-9,
96-7.
229

o universo privado da família [...]”, 298 sendo que o último


termina por imprimir sua coloração no primeiro. Na tentativa de
reverter tais deturpações e de constituir um espaço público
efetivamente moderno, teria se acreditado desmedidamente na
capacidade transformadora da lei; entretanto, essa confiança
quase cega, associada ao esquecimento da singularidade cultural
do país, apenas teria contribuído para o fortalecimento do mundo
da casa, do personalismo, da “supercidadania” doméstica,
enfraquecendo o princípio funcional do mundo público 
“subcidadania” da rua. “Eis o que parece ser o dilema brasileiro.
Pois temos a regra universalizante que supostamente deveria de
corrigir as desigualdades servindo apenas para legitimá-las,
posto que as leis tornam o sistema de pessoas mais solidário,
mais operativo e mais preparado para superar as dificuldades
299
colocadas pela autoridade impessoal da regra”.

A caracterização da vida pública e de suas conseqüências


deletérias para a configuração do espaço público, tal e como
desenvolvida por DaMatta, confere renovado vigor à lógica do
ethos e, em última análise, vai além dos diagnósticos legados por
Buarque de Holanda e por Freyre. Para o primeiro, a oposição
entre as práticas e valores da tradição rural, de um lado, e a
paulatina expansão da vida moderna  urbanização, relações
salariais, participação política , do outro, não admitiria
conciliações no longo prazo. Entrementes, para Freyre a herança
patriarcal sobreviveria suavizada como pendor pelos poderes
autocráticos de cunho paternalista no plano da cultura política,
mas sua força minguaria na vida da sociedade tanto pelas mudanças
decorrentes da urbanização, quanto pela consolidação e aumento do
poder político público  que munido de crescentes recursos
legais teria contribuído, mediante variadas posturas municipais,
à consagração dos direitos da rua perante a lógica invasora da

298
Roberto DaMatta, A casa &... op. cit., p. 85
299
Roberto DaMatta, Carnavais, malandros..., op. cit., p 195.
230

casa. Por isso, malgrado a perpetuação da identidade em feições


culturais amenizadas de índole semi-patriarcal, Freyre é
confiante no desempenho da lei como constituição progressiva de
um âmbito resguardado das influências do ethos, consolidando a
lógica abstrata da rua. Já na leitura de DaMatta, a lei não
apenas não escapa ao controle do mundo privado, mas torna-se
expediente de reposição perpétua do ethos, fechando uma espécie
de círculo perverso. A notável popularidade das formulações desse
autor, acima esboçadas, merece sem dúvida reflexão acurada.
Parece correto afirmar ao respeito que as perguntas e respostas
mais pertinentes teriam de ser elaboradas no terreno da
sociologia do conhecimento; abordagem capaz de elucidar, para
além da pertinência cognitiva no plano dos campos disciplinares,
o jogo de condicionantes que fazem com que determinada
interpretação seja socialmente aceita e, sobretudo, promovida
como conhecimento válido e relevante.

10. Os flancos do conhecimento e da representação

A lógica do ethos público continua a ser reproduzida de


forma fragmentária e pontual a partir de perspectivas analíticas
muito diversas, por via de regra como hipótese ad hoc para
arrematar caracterizações do espaço público que não mais
partilham os pressupostos mais ou menos essencialistas da
literatura afirmativa acerca da brasilidade. Permanece como
incógnita não equacionada o fato de ser possível se apelar à
hipótese do ethos sem produzir estranhamento, seja nos autores
que lançam mão dela, seja no debate da crítica especializada. Não
parece descabido afirmar que tal operação é viável porque
condizente com representações largamente aceitas acerca de certos
traços constantes na vida pública do país. Na verdade, quando se
introduz a hipótese no decurso de reflexões voltadas para
apreender as feições constitutivas do espaço público, ela
funciona mais como arremate explicativo pela ratificação de
231

noções presentes no senso comum, do que como problematização ou


especificação de questões a serem elucidadas. Essas
representações amplamente aceitas constituem, decerto, algumas
das conseqüências mais abrangentes e duradouras da literatura que
originalmente montou a lógica do ethos, e merecem especial
atenção. Como já argumentado em passagens anteriores, a força
inicial do ethos emanou de sua subordinação a um discurso
inovador e bem-sucedido sobre a originalidade da matriz cultural
que constituiu o fulcro da identidade nacional. Contudo, a
reprodução atual do ethos não pode ser deduzida de sua concepção
originária, nem é cabalmente compreensível pelo aparente
esvaimento de seus vínculos com qualquer forma de discurso
substantivo sobre a identidade nacional, pois permanece em pé o
problema acima formulado: a “licença tácita”  impensada  para
se invocar a hipótese do ethos. Nesse quadro incompleto, a
existência de certas (auto)representações isentas de
controvérsia, porque amplamente compartidas, contribui para
repensar o assunto de forma mais acurada, embora ainda
insatisfatória. Há diversas formas de lidar com a história, mas
desde que o propósito seja a produção, sistematização e
transmissão de seu conhecimento, parece existir um registro duplo
no campo da historiografia, que apresenta interessantes
implicações para se pensar na relevância e conseqüências dos
desenvolvimentos da década de 30 aqui analisados. Trata-se da
historiografia como conhecimento e como representação. 300 Não são,

300
Aqui, tal formulação é intuitiva pelo desconhecimento dos suportes
pertinentes no campo do debate teórico da historiografia; ainda assim, a
distinção é clara para quem conhece a extraordinária relevância da
historiografia, e de outras práticas produtoras de discurso, na representação
da história no México. Diferentemente do Brasil, pode se dizer que nesse país a
representação da história, na forma de uma pedagogia da “odisséia nacional”,
desempenhou papel fundamental nas estratégias de legitimação do poder político,
o que sem dúvida contribuiu para multiplicar estímulos públicos não
desprezíveis quanto a sua influência na consolidação das artes plásticas. Nesse
terreno, Rodrigo Naves observa que, no Brasil, as artes visuais têm suscitado
menor atenção e recepção do que outras práticas estéticas como a literatura, a
poesia, a arquitetura, a música e o cinema: “De fato, talvez nenhuma outra área
artística brasileira tenha menor penetração pública.” Rodrigo Naves, A forma
difícil  Ensaios sobre a arte brasileira, (1996) p. 10. Diga-se de passagem,
com intuito comparativo, que não parece fortuita a posição de privilégio
232

é claro, opções totalmente exclusivas, e não raro convivem no


corpo das mesmas obras; todavia, diferem em suas lógicas e
sobretudo em seus efeitos e propósitos.

A história como objeto de conhecimento obedece inúmeras


regras e constrangimentos disciplinares, visando controlar aquilo
que pode ser afirmado de forma legítima e os alcances e
repercussões dessas afirmações; afinal, trata-se de gerar
conhecimento novo e de torná-lo saber mediante a demonstração de
suas condições de validez. 301 Já a história como representação,
preocupa-se fundamentalmente com a “necessidade” de sentido, e
responde a tal inquietação conferindo direção mais ou menos
unívoca e homogênea aos acontecimentos, assim encadeados e
condensados em significação nítida para o presente. Para tanto, a
representação dispõe de recursos proscritos do campo da
historiografia como conhecimento, a saber, ampla liberdade de
estilização, ênfase nos efeitos plásticos e, é óbvio,
simplificação da temporalidade e dos processos. Nesse sentido,
Casa-grande & senzala é por antonomásia a representação da
história nacional: empenho de invenção da tradição pelo
inventário das práticas sociais, narrada sob o império intemporal
da sincronia, de esplêndida prosa vazada em recursos ficcionais,
plena de tipos humanos estilizados que personificam a nação
“toda”  inclusa a própria família do autor ; enfim, esforço
ressumando o sentido da história como epopéia de gestação da
identidade nacional. Daí que Ribeiro Thomaz, em agudo golpe de

ocupada pela arquitetura no Brasil, como gramática do poder para representar


não encarnação do passado e da história comum da nação “toda”, mas como
simbolização do futuro, como cristalização de anseios modernizadores. Cumpre
assinalar ainda, que a historiografia como representação não pode ser reduzida
a simples “ideologia”; trata-se de um campo de enorme importância a ser
disputado pela produção historiográfica, embora os historiadores prefiram,
amiúde, não engolfar nele.
301
Nesse sentido, a ciência é um tipo de conhecimento que, graças às regras de
constituição de seu discurso, pode ser afirmado como saber, diferentemente das
experiências subjetivas ou vivienciais da verdade  conversão ou amor, por
exemplo , por definição incomunicáveis como saber. Cf., Luis Villoro, Crer,
saber, conocer.
233

vista, tenha comparado essa obra com a tradição muralista


mexicana. 302

Pois bem, embora pareça paradoxal, no longo prazo a


permanência das idéias formuladas por Freyre e por Buarque de
Holanda deve-se a sua distância do plano do conhecimento; isto é,
decorre de seus conteúdos de representação, cuja vigência
independe razoavelmente das exigências e avanços disciplinares.
Isto permitiria compreender a melhor fortuna de Casa-grande &
senzala diante de Sobrados e mucambos, livro de muito maior
riqueza e atualidade; ou de Raízes do Brasil diante de trabalhos
extraordinários como Visões do paraíso; ou ainda, o esquecimento
da alentada obra de Fernando de Azevedo, desenvolvida quase por
completo dentro do âmbito da historiografia como conhecimento e,
portanto, sujeita a rápido envelhecimento. O caráter perene das
representações também se estende à visão da vida pública como
expressão do ethos, perpetuando-se como simples enunciação dos
“nomes” correspondentes ao tipo de valores e comportamentos tidos
como presentes no espaço público. Para além de sua pertinência
cognitiva, a cristalização do ethos público como representação
não se alimentou apenas de sua inserção no discurso da identidade
nacional, mas partilhou com ele, e inicialmente graças a ele,
pelo menos de duas fontes que dizem respeito à força das idéias,
e mais particularmente da representações: a “simplicidade” e a
“beleza”.

No caso da força decorrente da “simplicidade”, existem


rápidos ganhos explicativos, embora não contribuam para a melhor
compreensão dos fenômenos visados pelo analista. À medida em que
a incorporação da lógica do ethos pressupõe, como fatores
explicativos de caráter cultural, a aceitação de conteúdos morais

302
A analogia refere-se particularmente aos murais de Diego Rivera, crivados de
personagens típicos e de contrastes cromáticos. Foi a pertinente observação do
autor que desencadeou neste trabalho observações muito periféricas sobre o
vínculo entre a obra de Freyre e a questão da história como representação.
234

e práticos de uma abrangência extraordinariamente flexível,


parece claro que se elevam de forma sedutora as possibilidades de
encontrar respostas satisfatórias para inúmeros problemas. Isto é
assim porque as determinantes culturais, se colocadas no nível de
abstração de uma identidade universal, isto é, “verdadeiramente”
nacional ou brasileira, parecem se adequar a qualquer pergunta,
fornecendo explicações convincentes para amplo leque de questões
 no caso, relacionadas às insuficiências e distorções
caraterísticas do espaço público. Dentro dos marcos dessa
perspectiva, a abordagem de problemas é simplificada pela
focalização de um conjunto de fatores altamente maleáveis e de
difícil contestação devido à ubiqüidade de seu caráter cultural.
Vista a realidade através da ótica do ethos, produz-se um efeito
de ordenação ou alinhamento de problemas e explicações, uma
nitidez no olhar com qualidades de simplificação: a continuidade
cultural de um ethos, previamente modelado e pressuposto pelo
observador, explica comportamentos sociais e perversões
institucionais. A compreensão de certas determinações culturais
opera, assim, como se fosse crivo a reter o estorvo de volumosas
condicionantes supérfluas, hierarquizando para a reflexão o
permanente e estrutural  já separado do efêmero e conjuntural.

Ainda é possível considerar que à simplicidade somou-se,


não raras vezes, a beleza. 303 A idéia do ethos público enquanto
condensação de longínquos processos históricos, que fazem dele
responsável e produto da inexistência de um espaço público
moderno, fora desenvolvida e consolidada no meio de belíssimas

303
A contundência estilística dos argumentos não é coisa que possa ser
dispensada julgando-a banal. As interpretações dominantes vigoram porque há
nelas uma força que vai além do estritamente cognitivo e que pertence, pelo
menos em parte, àquilo que Gerald Holton chamou de componentes temáticos. A
beleza é um componente temático das idéias, presente não apenas no terreno do
que aqui foi denominado “representações” ou no âmbito cognitivo das ciências
sociais: o físico P.A.M. Dirac, comentando em 1925 as formulações de
Heisenberg acerca das equações de movimento, tomou posição afirmando que “uma
teoria que tem certa beleza matemática mais provavelmente será correta do que
outra feia que nos dê um guia detalhado de alguns experimentos”. Citado por
Gerald Holton, op. cit., p. 10, cf., principalmente, pp. 15-30 e 178-201.
235

reflexões, cujos efeitos compensam, no terreno da contundência


estilística dos argumentos, o nível de generalização necessário
para preservar a verossimilhança das qualidades homogeneizadoras
da brasilidade e do ethos. Para os traços da idiossincrasia
assumirem a função de explicações conceituais na caracterização
do espaço público, se requer um desenvolvimento suficientemente
geral, porém atraente pelo seu apelo à densidade histórica da
cultura. Assim, é possível sustentar esses traços como chave de
interpretação de uma realidade diversa e complexa. Generalização
e historicidade definem uma dupla exigência a ser conciliada na
construção analítica da identidade e do ethos; tal exigência pode
encontrar interessante resposta no nível do relato belo, cuja
narrativa consegue construir continuidade sobre a mudança,
homogeneidade sobre a diferenciação, unidade sobre a dispersão,
congruência sobre o acidental e plenitude de sentido sobre
processos históricos de caráter fragmentário e desigual 
perpassados pela perda das significações “originais”.

Se a despeito de não poder se desvencilhar totalmente de


certos pressupostos culturais controversos, o ethos ainda é
passível de invocação como hipótese ad hoc sem causar
estranhamento  mesmo em autores críticos dos discursos à busca
da identidade nacional , isso decorre, em algum grau, da
cristalização e larga aceitação de (auto)representações acerca da
sociabilidade incivil imperante no país. A lógica do ethos parece
sobreviver, hoje, combinando sua presença em ambos os flancos de
uma relação difícil de se equacionar, cuja análise mais
autorizada recai no âmbito da sociologia do conhecimento: de um
lado, o da construção do conhecimento, como herança já muito
diluída de uma literatura que revolucionara tanto o pensamento
político-social quanto as abordagens e conteúdos disciplinares;
do outro, o do contexto social de produção e recepção desse
conhecimento, como (auto)representação da vida pública no país,
que emigrara daquela literatura para conquistar o terreno do
236

senso comum  na acepção não depreciativa do termo. Destarte, a


introdução ad hoc do ethos como hipótese explicativa aparece
naturalizada, por assim dizer, pela existência do próprio ethos
enquanto substrato de representações comuns e largamente aceitas
sobre o tipo de comportamentos dominantes na vida pública. Tal
formulação, é claro, não permite uma compreensão sequer
aproximativa dos motivos subjacentes à relevância e perenidade
dessas representações, apenas aponta para a coincidência entre os
planos do recurso explicativo e das representações, como fator
que contribui ao entendimento da reprodução difusa do ethos
público na literatura preocupada com a caracterização do espaço
público no Brasil. Como mencionado, respostas menos limitadas
poderiam ser elaboradas nos marcos da sociologia do conhecimento,
ou talvez da antropologia, mas tal esforço excede os alcances e
competência desta análise.

11. As armadilhas: tautologia e “anomalização”

Apesar de sua importância verdadeiramente notável na


tradição do pensamento político-social brasileiro e de sua
sobrevivência difusa na literatura, a ótica do ethos apresenta,
todavia, alguns riscos e distorções analíticas que é preciso
superar e que, no limite, têm se convertido em sérios obstáculos
aos avanços para uma melhor compreensão do espaço público no país
 particularmente se consideradas tanto suas limitações quanto
outros aportes passíveis de assimilação, gerados pelos
desenvolvimentos do debate teórico internacional nas últimas
décadas do século XX. Não é apenas um problema de aggiornamento,
sempre suspeito de continuar com a conhecida tradição latino-
americana de assimilação das ondas intelectuais que vigoram pelo
mundo a fora, mas de mudar o registro no qual tem sido colocada a
problemática do estatuto do público, visto que, sob a influência
difusa do ethos, a riqueza ou complexidade e transformações
ocorridas no espaço público costumam permanecer ocultas sob as
237

linhas mestras de um substrato cultural ubíquo. Quais, então, os


riscos e até distorções presentes na lógica do ethos público,
sobre os quais é pertinente reparar visando desbravar o terreno
para eventuais reconstruções mais compreensivas da configuração
do espaço público no Brasil? Parece óbvio que recusar a
ubiqüidade dos condicionamentos culturais carece de sensatez,
pois tudo é cultura e tudo está por ela constituído; entretanto,
avaliar a pertinência de se aceitar como satisfatórias
determinações “oniexplicativas” não apenas é desejável, mas
necessário. O privatismo, a cordialidade, o paternalismo, a
dádiva o familismo, a incivilidade, o intimismo, a aversão ao
conflito, a insolidariedade, o particularismo, a passividade e
tantas outras caraterísticas semelhantes  algumas decerto mais
“pitorescas” como a “malandragem”, o “jeitinho” ou a “moleza” ,
exprimem a lógica do ethos enquanto prevalência de diversas
formas de realização do privado sobre o público, e, sem dúvida,
têm sido e são passíveis de usos e abusos nas mais diversas
argumentações para explicar distintos problemas da vida pública e
do espaço públicos no Brasil.

Na verdade, é bem conhecido que um “sistema” de


determinações com capacidade para explicar “tudo”  neste caso
mediante causalidades culturais , termina produzindo uma
compreensão sobre quase nada ou, com maior precisão, acaba por
entabular relações nominais com a realidade, gerando a ilusão de
entendimento. Não se trata de nada além de certas exigências
epistemológicas, clássicas desde Karl Popper, segundo as quais
toda verdade imbatível é uma verdade “defeituosa” e não uma
formulação “virtuosa” ou “perfeita”; o que é equivalente a dizer
que a efetividade de uma explicação depende de nela estarem
contidos os limites da sua validade  as condições de sua
demarcação e falseação, segundo a terminologia do autor. 304

304
Karl R. Popper, La lógica de la investigación científica, (1934) pp. 33-42.
238

Malgrado tal formulação ser adequada para assinalar os riscos


inerentes à introdução pouco mediada de determinantes culturais,
é preciso reconhecer que se fossem levados até as últimas
conseqüências os postulados da epistemologia popperiana, seria
procedente renunciar à análise desenvolvida no presente capítulo
e descartar os diagnósticos e enunciados decorrentes da lógica do
ethos: ora porque a ubiqüidade de suas determinações culturais
escapa, a rigor, de todo critério de falseação  sendo,
portanto, “não-científicas” ; ora porque qualquer exercício
para contrastar empiricamente seus conteúdos mostraria a
inconveniência de trabalhar com teses culturais nesse nível de
generalidade  sendo, em conseqüência, “falsas”. A
especificidade da construção de conhecimento nas ciências sociais
não pode ser apreendida de forma cabal por uma crítica
epistemológica com tais restrições, pois embora seja aplicável
aos resultados de amplo espectro de pesquisas, deixa literalmente
à margem problemas relevantes para esse tipo de conhecimento
mediante a demarcação nítida entre aquilo que é e não é ciência.

Asseverar o caráter “não-científico” ou “falso” das


diversas formulações animadas pelo ethos, isto é, remetê-las ao
terreno daquilo que pode ser afirmado, mas cujas pretensões de
validez devem ser ou suspensas, na primeiro opção, ou recusadas,
na segunda, desloca e no limite dispensa o esforço da crítica,
pois por essa via evita-se entrar na dinâmica interna do discurso
em questão. Popper era ciente das implicações de tal recorte e
por isso delegou a análise da gênese, conformação e operação da
idéias à chamada “psicologia empírica”, que, no entanto, deveria
rechaçar por princípio qualquer tentação de elucidar os processos
para se conceber idéias novas. A “psicologia empírica”, nos
moldes popperianos, apresenta restrições semelhantes às de sua
epistemologia da pesquisa científica, cancelando a possibilidade
de se lidar analiticamente com arcabouços discursivos de
pretensões empíricas, cujas congruência e coerência não são
239

passíveis de equacionamento mediante o critério da demarcação. A


ênfase do autor na índole empírica dessa psicologia obedece a sua
ferrenha crítica contra o “psicologismo epistemológico”; no
entanto, a despeito das lúcidas formulações de Popper, as
reflexões epistemológicas oriundas da psicologia construíram
campo fértil de trabalho para se pensar em problemas próprios das
ciências sociais.305 Para avançar na crítica às armadilhas
cognitivas do ethos parece mais pertinente se pensar, então, em
termos das preocupações que Gaston Bachelard sintetizou na
atinada expressão “psicologia do erro”: esforço dirigido ao
esclarecimento da operação de obstáculos epistemológicos. 306 Nesse
sentido, as armadilhas do ethos podem ser concebidas como
barreiras de pensamento contra o próprio pensamento. Ao
introduzir o ethos na caracterização do espaço público realizam-
se normalmente duas operações, que geram efeitos de explicação
sem acréscimos quanto a compreensão dos problemas visados pela
análise: a primeira, assinalada mais de uma vez no percurso
destas páginas, mas ainda sem formulação precisa, é o raciocínio
circular ou tautológico; a segunda, menos evidente e cuja
avaliação será efetuada com maior detalhe, pode ser denominada
sucintamente como definição pela ausência ou pela anomalia.

Quanto à primeira operação, a excessiva flexibilidade e


ambigüidade das determinações culturais do ethos público
acarretam, curiosamente, o efeito contrário, a saber, um
determinismo cultural ao mesmo tempo incontornável e insuperável.
É como se uma certa “natureza” cultural desvirtuasse todas as
tentativas de transformação intencional da realidade para
restaurar-se a si mesma, fazendo com que tudo mude para
permanecer igual. É impossível negar a existência de uma
permanente determinação cultural, sendo que a distância entre ela
e um determinismo cultural reside na ausência de mediações;

305
Para as divergências do autor com esse “psicologismo”, cf., ibid. pp. 30-2.
306
Gaston Bachelard, A formação do espírito científico, (1938) pp. 17-28.
240

entretanto, essa ausência, que normalmente decorre da ortodoxia e


rigidez analíticas, parece produzir-se, neste caso, não porque
qualquer ortodoxia impeça a consideração de mediações, mas porque
a ambigüidade e flexibilidade extremas do ethos público fazem com
que seja factível encaixá-lo sem mediações como resposta circular
para um leque enorme de problemas. Propõem-se como razões
explicativas um conjunto de predicados que, na realidade, formam
parte dos atributos pressupostos na definição do sujeito  o
ethos , pelo que o raciocínio discorre de maneira circular. A
tautologia é sempre impecável: uma vez introduzido o ethos, seja
como chave explicativa da configuração do espaço público no
geral, seja perante algum problema mais específico, identificam-
se os comportamentos já pressupostos no próprio ethos e de
imediato produz-se a explicação, sem proveito para a compreensão,
precisamente pela “descoberta” da presença do ethos como
substrato organizador das relações que definem a vida pública no
país.307

A segunda operação traz à tona uma característica bem


conhecida na historiografia do pensamento político-social: a

307
Ao longo destas páginas, tem se firmado sem maiores esclarecimentos a
diferença entre a “compreensão”, como esforço voltado para a problematização, e
a “explicação”, como momento de conformidade com as razões existentes. Apenas
agora, com a formulação mais precisa do raciocínio circular operado pela
introdução do ethos, adquire nitidez tal distinção. A diferença entre
“compreender” e “explicar” faz parte de uma antiga discussão epistemológica,
presente na diferenciação entre o método de pesquisa e o método de exposição em
Marx, na dualidade razão instrumental versus razão crítica da Escola de
Frankfurt e, mais recentemente, no chamado pensamento complexo  crítico dos
monismos causais, temáticos e disciplinares. Cf., Edgar Morin, Introducción al
pensamiento complejo, pp. 27-35, 87-110; Alfredo Gutiérrez Gómez, Deslimitación
 El outro conocimiento y la sociologia informal, pp. 195-239. Particularmente,
cf., José M. Mardones, Filosofia de las ciencias humanas y sociales 
Materiales para una fundamentación científica. Nesse interessante trabalho de
reflexão filosófica, Mardones organiza a tradição do pensamento ocidental em
duas grandes vertentes, baseando-se na distinção entre a filiação às
problemáticas da compreensão ou da explicação. No caso destas páginas, a
diferenciação entre os termos “compreensão” e “explicação” guardam vínculo mais
estreito com as teses epistemológicas de Hugo Zemelman, segundo as quais existe
uma relação paradoxal entre ambos os termos, pois para se aproximar da
realidade de forma compreensiva é preciso renunciar, no primeiro momento, à
tentação de explicar. Cf. Hugo Zemelman, La totalidad..., op.cit.; e Hugo
Zemelman, Los horizontes de la razón  I. Dialéctica y apropiación de
presente.
241

assimilação de referentes conceituais que geram uma relação


ambígua de positivação e negação entre o intelecto e a realidade,
porque quando aplicados ilumina-se a ausência de certos atributos
na realidade e, como contrapartida, obscurece-se a especificidade
daquilo que efetivamente está presente. 308 Ao fixar o olhar em uma
espécie de ensimesmamento cultural, se defrontando com uma
idiossincrasia renitente, os diagnósticos que invocam a lógica do
ethos público, não raro, encerram fortes exigências normativas
ancoradas num modelo cívico. 309 Esse modelo, simboliza o dever ser
da vida pública e do estatuto do público frente ao estatuto do
privado, e pressupõe a multiplicação de cidadãos de um certo
padrão, o robustecimento das instituições republicanas e a
vitalidade de uma ativa convivência social civilizada e
tendencialmente igualitária. Nesse sentido, o ethos público é
constituído e explicado como negação do modelo cívico, como
afirmação da ausência de suas qualidades ou como uma forma de
presença incompleta e até perversa das mesmas: “O brasileiro
político é, assim, o resultado de um produto histórico irregular,
deformado e incompleto, como irregular e deformado é o curso da
vida do Estado brasileiro.”310

308
A larga presença, na história do pensamento político-social latino-
americano, de categorias que inferiorizam a realidade da qual são oriundos os
pensadores que as utilizam, já merecera inúmeras reflexões, por via de regra
em registro engajado  “estrangeirismo”, “imitação”, “peregrinismo”,
“ecletismo”, “mimetismo”, “colonialismo cultural”  , e em menos ocasiões em
termos analíticos  “bovarismo”, “idéias fora do lugar”. Cf., é claro, Roberto
Schwarz, Ao vencedor as batatas  Forma literária e processo social nos inícios
do romance brasileiro, pp. 13-25; Antonio Caso, Antologia filosófica, pp. 197-
200. Para Dante Moreira Leite, “[...] Silvio Romero foi o primeiro em enfrentar
esse problema muito curioso da história intelectual: como é que um povo
considerado inferior interpreta essa inferioridade?” (O caráter nacional...,
op. cit., p. 183) Há quem atribua a esse problema origens mais remotas, cf.,
Leopoldo Zea, América Latina y el mundo; Arturo Uslar Pietri, La creación del
Nuevo Mundo, pp. 97-154. Recentemente, a historiografia indiana tem revisitado
esse problema sob a rubrica de “subaltern estudies”, no intuito construir uma
historiografia alternativa a partir do olhar dos países coloniais; cf., Dipesh
Chakrabarty, “Historias de las minorias, pasados subalternos”, pp. 87-111;
Guillermo Zermeño Padilla, “condición de subalternidad, condición postmoderna y
saber histórico. ?Hacia una nueva forma de escritura de la historia?”, pp. 11-
47.
309
Interessante revisão acerca da constituição histórica e pressupostos do
modelo cívico moderno pode ser consultada em: Fernando Escalante Gonzalbo,
Ciudadanos imaginarios..., op. cit., pp. 32-48.
310
Nestor Duarte, A ordem privada..., op. cit., p. 116.
242

Determinações de origem cultural, extensivamente


mencionados em páginas anteriores, que imprimem diversos matizes
no privatismo monocromático do ethos, têm perfilado uma
caracterização do espaço público no Brasil a partir de certa
tipificação da anomalia, isto é, de um conjunto de falhas e
ausências congênitas que fazem com que a configuração desse
espaço seja definida por sua estruturação em negativo: como
afirmação daquilo que não é ou como negação do que deveria ser.
Em decorrência dos vícios e peculiaridades da vida pública, no
Brasil teria sido construído um “espaço público não-público”, uma
pertinaz “indistinção entre o público e o privado”, um “espaço
público privatizado”  negação, não configuração e positivação
pervertida do modelo, respectivamente. A disposição estrutural
dessas anomalias, solaparia de forma sistemática as
possibilidades de constituição de um espaço público realmente
moderno. Ainda mais, embora a detecção da anomalia seja
procedimento canônico no avanço do conhecimento, por via de regra
como dispositivo mental que cumpre a função de chamar a atenção
sobre aquilo que, normalmente de importância menor, não pode ser
satisfatoriamente encaixado em um quadro explicativo maior; 311
neste caso, a anomalia transborda sua função de assinalar aquilo
que destoa do “normal”, que escapa à norma posta pelo pensamento,
e atinge o patamar de natureza definidora. 312 Tratar-se-ia de um
fenômeno  o espaço público no Brasil  definido não pelo que é,
mas por aquilo que constitutivamente é impedido de ser, por seu
caráter anômalo, reproduzindo o achado do “nacional por

311
De fato, “A descoberta começa com a percepção da anomalia [...]”, para dizê-
lo com a formulação clássica de Kuhn acerca a transformação e ampliação da
ciência normal. Thomas S. Kuhn, La estructura de las revoluciones científicas,
p. 93.
312
Os pressupostos normativos da noção “anomalia” foram explorados com
extraordinária pertinência por Georges Canguilhem, particularmente se
considerado o escopo disciplinar de sua obra Le normal et le pathologique (cf.,
pp. 76-95).
243

subtração”  para tomar emprestada, de forma algo imprecisa, a


arguta formulação de Roberto Schwarz.313

A compreensão do espaço público com base nessa lógica da


anomalia  isto é, sua “anomalização” como expediente
explicativo , traz consigo o risco de apagar sua
especificidade, impedindo a percepção das diferenças por trás do
alto contraste produzido pela comparação entre o modelo cívico e
aquilo que não se comporta nem ordena segundo seus cânones. 314
Esse efeito de indiscernibilidade permite entender que
caracterizações correntes e aceitas acerca da vida pública sejam
formuladas, como mostrado mais acima, em termos de
“incivilidade”, de uma “sociabilidade incompleta”  porque
incapaz de constituir alteridade  ou de uma “indistinção entre
o público e o privado”. É patente que a identificação mediante a
falta só acontece na medida em que se espera encontrar alguma
coisa  ora mais civilidade, ora uma sociabilidade “completa”,
ora uma fronteira nítida entre os âmbitos do público e do privado

313
Não raro, a expressão de Schwarz “nacional por subtração”, que dá nome ao
segundo ensaio de seu livro Que horas são?, é invocada para questionar o
pensamento de distintas caraterísticas do país como negação de certas
qualidades pressupostas como desejáveis; todavia, o uso do autor é mais
restrito, pois se refere apenas uma da vias utilizadas pelo pensamento
nacionalista para equacionar a incômoda experiência daquilo que após a
independência foi estereotipado como “artificialidade” da cultura, como seu
“vergonhoso” pendor imitativo (cf., pp. 32-3, 46-8).
314
A “anomalização” como expediente explicativo da realidade não é patrimônio
exclusivo das abordagens do espaço público aqui analisadas, nem o abuso de
semelhante recurso é nelas mais característico: “Quando , porém, temos uma
visão plástica, uma visão vertiginosa, aliás, do caráter estranhamente
paradoxal, contraditório, surrealista mesmo, da história brasileira é no estudo
de nossas revoluções [...]”; “Acreditamos, porém, que a verdadeira anomalia,
nunca estudada completamente, estará no apelo ao governo por parte das classes
patronais.”; “[...] a república foi uma anomalia [...]”; João Camilo de
Oliveira Tôrres, Interpretação da realidade..., op. cit., pp. 50, 22 e 32,
respectivamente. José de Souza Martins oferece interessante chave para refletir
sobre a banalização da anomalia, que no contexto latino-americano converteu-se
em verdadeiro cacoete do pensamento: a emergência de uma “consciência social
dupla” derivada da índole inacabada ou inconclusa de uma modernidade almejada;
consciência cujos parâmetros de autocrítica e autocompreensão têm de recorrer à
tradição, ao (in)moderno ou ao não moderno na busca da autenticidade. Nessa
perspectiva, a especificidade é apenas acessível mediante uma inversão dos
termos capaz de decompor e elucidar aquilo que costuma receber tratamento
meramente negativo: “Nossa autenticidade está no inautêntico.” José de Souza
Martins, A sociabilidade do..., op., cit., p. 35; cf., também, pp. 18, 24-5 e
28.
244

 que não aparece como é normativamente esperada e, em


conseqüência, o que aparece como especificidade não é
adequadamente reconhecido ou diferenciado para além da sua
indefinição sob a forma da negação ou da ausência. Os alicerces
fornecidos pelo ethos nesse tipo de caracterizações do espaço
público, não são sólidos o suficiente para responder
satisfatoriamente perguntas que introduzem a questão do
reconhecimento da especificidade. Isso torna-se claro quando
examinada a pertinência analítica de idéias como, por exemplo,
“incivilidade”, “sociabilidade incompleta” ou “indistinção entre
o público”  entendendo por pertinência o tipo de concreção real
sugerido por tais idéias.

Ao resgatar a questão da especificidade diante de


semelhantes caracterizações do espaço público, animadas pelo
primado da ausência, surgem sérios problemas. Primeiro, caberia
interrogar sobre os efeitos de tratar outra forma intrincada de
civilidade como pura “incivilidade”  particularmente se
considerado o despropósito de se conceber a sobrevivência de uma
sociedade complexa sem padrões de conduta normativos e
universalmente aceitos no que diz respeito ao relacionamento com
os outros. No limite, isto também colocaria em questão, como um
contra-senso, a idéia de uma “sociabilidade incompleta”, pois
além da dificuldade de imaginar uma “sociabilidade vácua”, é
dificilmente defensável, com exceção de casos absolutamente
extremos, a hipótese de uma sociabilidade que não constitui
alteridade  uma espécie de “sociabilidade psicótica”, quer
dizer, tomando emprestada a analogia da psicanálise, regida por
alguma forma de abolição das diferenças e semelhanças entre o eu
e o outro. Já no caso da “indistinção entre o público e o
privado”, é curioso constatar que, enquanto a maior parte da
literatura que invoca o ethos coincide em uma descrição bastante
homogênea quanto ao comportamento social na vida pública, uma
conclusão comum seja afirmar a endêmica incapacidade da sociedade
245

brasileira para delimitar o público e o privado. Se existe uma


forma sistemática de relacionamento com e na vida pública, não
cabe firmar a indistinção como traço definidor, tanto porque
ninguém parece agir no espaço privado como se estivesse no
público, quanto porque parece existir de fato uma distinção na
medida em que há um padrão de conduta generalizado para quem atua
dentro dos confins desse último. Na verdade, seria mais correto
afirmar a esse respeito que, conforme as caracterizações animadas
pela lógica do ethos, “público”, antes de carecer de um sentido
diferenciado, significa consistentemente “de livre apropriação
privada”. Formulação essa não aplicável ao âmbito privado com
outra lógica constitutiva que não a da livre apropriação.

Não é o propósito desenvolver uma leitura do espaço público


no Brasil orientada, agora, pela caracterização da vida pública
como sendo regida pela “livre apropriação privada”; embora
pertinente quanto à maior especificidade da sua formulação dentro
dos marcos estabelecidos pelo pressuposto de um ethos
universalmente partilhado, permanece, é óbvio, no terreno
problemático da apreensão dos traços de uma identidade cultural
abrangente. Os três exemplos colocados acima simplesmente cumprem
a tarefa de mostrar as dificuldades colocadas pela lógica do
ethos  e suas operações: raciocínio circular e banalização da

anomalia  para avançar rumo a um entendimento mais compreensivo


e satisfatório da configuração do espaço público no Brasil. Na
verdade, tanto o raciocínio circular como o apelo à anomalia,
alicerçado na pressuposição de um modelo cívico, funcionam com
harmonia entre si na interpretação do espaço público: ambas as
operações se organizam estabelecendo relação complementar, na
qual presença e ausência estão imbricadas como se fosse uma
relação entre côncavo e convexo. Uma vez introduzido o ethos, a
primeira operação repõe as feições do espaço público, por
definição pré-modernas, enquanto a invocação da anomalia repõe o
modelo cívico que, pelo contrário, é inerentemente moderno.
246

Sem dúvida, o ethos como chave de interpretação do espaço


público oferece um campo de análise sumamente construído e pleno
de determinações elaboradas por longa tradição de
desenvolvimentos sociológicos, historiográficos e antropológicos.
Considerando que a compreensão dos constrangimentos culturais
profundos é uma preocupação consoante com a lógica do ethos,
parece razoável admitir que essa perspectiva continuará a ser
reatualizada em virtude de sua ênfase, precisamente, na dimensão
dos condicionamentos sociais de índole cultural. Ainda mais se
contemplado que esses condicionamentos nem sempre foram
apreciados na sua devida importância na análise sócio-política,
como não raro ocorreu, por exemplo, com estatísticas eleitorais e
em torno das instituições políticas fazendo as vezes de
diagnósticos sobre os traços da cultura política no país. 315
Porém, a qualificação do ethos como obstáculo de pensamento para
a melhor compreensão do espaço público, em definitivo, não diz
respeito à necessidade de desconsiderar a dimensão do cultural,
mas de outorgar-lhe seu devido peso, de ponderá-la com respeito a
outras instâncias constitutivas da configuração do espaço
público, as quais, por certo, são inesgotáveis nos
condicionamentos próprios de um ethos. Dispensar complexas
problemáticas envolvidas com o mundo institucional, com os
sistemas de comunicação social ou com a organicidade do tecido
social, ou talvez melhor, tentar explicá-las mediante o uso
interpretativo de um ethos compartilhado pelo conjunto da
sociedade, é delir sua especificidade, apagá-la pela onipresença
de condicionamentos soterrados e inatingíveis. Não porque os
processos de institucionalização de interesses, de comunicação ou
de organização voluntária da sociedade escapem à herança de

315
V. gr., José Álvaro Moisés, “Eleições, participação e cultura política:
mudanças e continuidades”, pp. 133-87; José Álvaro Moisés, “Democratização e
cultura política de massas no Brasil”, pp. 5-51. O último artigo foi revisto e
praticamente rescrito para sua publicação em: Os brasileiros e a democracia 
Bases sócio-políticas da legitimidade democrática, livro em que o autor amplia
a reflexão acerca da cultura política no brasil para além do voto e do sistema
político (cf., v. gr., pp. 235-63).
247

fatores culturais, mas porque tais processos e as histórias que


os produziram são ininteligíveis a partir de uma abordagem cuja
tônica privilegia apenas a dimensão do cultural  sobretudo se
essa dimensão é concebida dentro da camisa de força do ethos como
inércia determinante da vida pública. O que está em jogo, em
última análise, não é o caráter hoje implausível da lógica do
ethos e sequer sua indesejável reprodução, vistas suas limitações
e o ônus de sua incorporação para a análise do espaço público,
mas a busca de outros subsídios e outras formas de se equacionar
os efeitos constitutivos da cultura na vida pública.

Na idéia dessa busca não há qualquer insinuação no sentido


de restringir o tratamento da cultura a seus aspectos
mensuráveis; tampouco a sugestão de aferir, strictu sensu, uma
dimensão social de tamanha complexidade, pois minguar-se-ia, como
petição de princípio, a força heurística de uma das tradições
mais fecundas do pensamento político-social. Trata-se nada mais,
embora nada menos, da incessante e cumulativa elaboração de novas
mediações analíticas  atualmente gastas e quase esvaziadas por
completo na lógica do ethos. De fato, as melhores apropriações
hodiernas dessa tradição, ainda que pouco comuns, continuam a
desenvolver extraordinários trabalhos de interpretação como
mostrou recentemente Rodrigo Naves em sua instigante passagem
316
estética da “dificuldade de forma à forma difícil”. A esteira
da intuição que aponta para a existência de vínculos relevantes
entre ambigüidade do mundo social e a dificuldade de se
generalizarem formas comuns de percepção, apreensão e recreação
da realidade  quer no âmbito literário, das artes plásticas, da
reflexão intelectual ou quer no plano da autopercepção social ,
encontra-se esparsa aqui e acolá de maneira descontínua em
autores de envergadura. Já em 1936 Buarque de Holanda expressou,
muito tangencialmente, que “[...] nossa aparente adesão a todos
os formalismos denuncia apenas a ausência de forma espontânea

316
Rodrigo Naves, A forma..., op. cit., pp. 9-39.
248

[...].”317 Também Antonio Candido, em texto seminal para a crítica


literária a propósito da obra de Manuel Antônio de Almeida,
Memórias de um sargento de milícias, consagrou o trânsito da
ordem e desordem social para ordem e desordem como opção formal
narrativa.318

Porém, é nos trabalhos de Roberto Schwarz que tal intuição


é definitivamente conquistada, para o plano da reflexão
sistemática, como vector interpretativo que visa o mundo em
direção dupla: no campo literário, traça caminhos para a
releitura da historicidade da forma, no romance machadiano, como
matéria prima pacientemente burilada pela escrita; no terreno
sócio-lógico, a riqueza da produção artística, sua especificidade
estética cristalizada na forma, torna-se acurado diapasão da vida
social, assinalando para o olhar atento o ambíguo espectro das
formas de sociabilidade imperantes. Para o autor, o estilo
caprichoso da prosa de Machado de Assis em Memórias Póstumas de
Brás Cubas, antes de ser disposição estilística casual, obedece a
um princípio narrativo rigoroso; por isso, aquilo que parece
acidental em inusitada combinação de falso virtuosismo, erudição,
escárnio, volubilidade, manipulação do leitor e desfaçatez, pode
ser lido no interior da coerência de uma unidade formal que, por

317
Sérgio Buarque de Holanda, Raizes do..., op. cit., p.183. Em outro trecho da
obra, o autor afirma: “Religiosidade que se perdia e se confundia num mundo sem
forma e que, por isso mesmo, não tinha forças para lhe impor sua ordem.” (p.
150)
318
Antonio Candido, O discurso e a cidade, pp. 19-54. O texto em questão é
“Dialética da malandragem”, publicado pela primeira vez em 1970. “No Brasil,
nunca os grupos de indivíduos encontraram tais formas [as de uma “sociedade
moral” como a presente na formação histórica dos Estados Unidos, cristalizada
em romances como A letra escarlate]; nunca tiveram a obsessão da ordem senão
como princípio abstrato [...].” (pp. 50-1) Cf., a esclarecedora análise de
Roberto Shwarz: “Pressupostos, salvo engano, de ‘Dialética da malandragem’.” In
Que horas..., op. cit., pp. 129-55. Nessa análise, após esmiuçar a importante
renovação trazida pelo texto de Candido para a crítica literária, Shwarz acusa
a sobrevivência de um “ethos cultural”, de um “modo de ser brasileiro”, que
aproxima esse autor das formulações clássicas de Freyre e Buarque de Holanda.
(p. 150) Aliás, se utilizando das formulações de Antonio Candido acerca da
relação entre a produção artística e a estrutura social, e sem recorrer a
análise concreta da forma na obra, Gilberto Vasconcellos ousou nova hipótese no
terreno da música popular: a sincopa ostentaria “[...] os sinas do espaço
historicamente irregular no qual se desenvolveu.” (“A malandragem e...”, op.
cit., p. 518)
249

sua vez, recria a matéria bruta das formas de sociabilidade. 319 Já


em 1958, Raymundo Faoro encerrava sua obra clássica com uma
formulação intuitiva desse vínculo: “A civilização brasileira,
como a personagem de Machado de Assis, chama-se Veleidade, sombra
coada entre sombras, ser e não ser, ir e não ir, a indefinição
das formas e da vontade criadora. É uma “monstruosidade social”
[...]”.320 Cumpre ressalvar que nessa perspectiva, isto é, nas
passagens entre a forma social e a forma literária, inexiste
qualquer reducionismo sociológico, pois longe de tratar a
produção artística como reflexo do “real”, sempre externo á obra,
o texto encerra sua própria realidade, passível de decodificação
apenas mediante a análise dos recursos ficcionais de construção
formal nele empregados. A peculiaridade de Machado de Assis, pois
não há pretensões de se erigir como postulado de teoria da
literatura, e a redução sistemática da narrativa a um princípio
formal que traduz a volubilidade e arbitrariedade das relações
sociais não como discurso, senão, precisamente, como forma
literária  afinal, trata-se da visão mordaz de um mestre na
periferia (escravagista) do capitalismo, cuja modernidade
estética bem pode encontrar símil crítico inverso nas letras
acres de Boudelaire, o poeta lírico no apogeu do capitalismo. 321

No trabalho de Rodrigo Naves, a exploração dessa veia para


abordar a cultura, no sentido clássico do termo, aunada à
acuidade estética do autor, produz uma crítica da arte brasileira
em que a difícil resolução da forma pictórica confere concreção

319
Roberto Shwarz, Um mestre na periferia do capitalismo  Machado de Assis,
pp. 18-27, 32.
320
Raymundo Faoro, Os donos..., op. cit., p. 271.
321
Cf., Roberto Shwarz, “Machado de Assis: um debate  Conversa com Roberto
Shwarz”, pp. 59-84. Nesse debate, Shwarz frisa as similitudes entre Machado de
Assis e Charles Boudelaire: “O recurso de Boudelaire é o mesmo do Machado: ao
invés de você falar em nome próprio, com lirismo ou reflexões sinceras, você
identifica seu “eu lírico” com o lado mais abjeto da classe dominante.” (p. 63)
O ponto fora explorado por Walter Benjamin em seu livro inconcluso sobre o
poeta francês, Un poète lyrique à l’apogée du capitalisme, cujo título guarda
semelhanças evidentes com o nome da obra de Shwarz. O livro de Benjamin foi
publicado por primeira vez em 1969, e contém três ensaios nos quais o autor
explora as idéias que seriam desenvolvidas de forma sistemática em projeto mais
ambicioso sob a rubrica respeitada no título de 1969.
250

visual surpreendente  por que cifrada na forma  à estruturação


dilacerada da vida social. 322 Afinal, é no reino da forma que
podia ser resolvido o descompasso entre a instrução neoclássica
de um pintor como Debret, e uma realidade como a do Rio de
Janeiro da primeira metade do século XIX, cujas caraterísticas
pouco edificantes eram dificilmente formalizáveis  e ainda
menos dentro da preceptiva neoclássica. 323 As conexões intrincadas
entre a “dificuldade de forma” e a relutância às formas
universais na vida social  firmada em sua violência no mundo
privado, mas escamoteada na indefinição de seu reconhecimento
explícito no mundo público , iluminam aspectos relevantes da
sociedade contemporânea, particularmente de sua sociabilidade. A
análise desses aspectos pode ser assimilada com proveito no
âmbito das ciências sociais. Com efeito, as possibilidades
abertas por tal apropriação não permaneceram desapercebidas como
chave para se pensar nos dilemas da modernidade no país, cujos
processos de índole política nunca foram vigorosos e amplos o
suficiente para contrabalançar a incorporação limitada da
população pelos processos de caráter econômico: “E mais que tudo,
é nessa idéia de uma consciência literária dos duplos, das formas
do falso, dos avessos, do descolamento entre forma e conteúdo,
expressão do inacabado e inacabável, que está também posto o
nosso justo medo da travessia, nossa condição de vítimas, mais do
que beneficiários, da modernidade.” 324 A esse respeito é oportuno
trazer à memória uma das convicções mais do pensamento
autoritário, segundo a qual a sociedade brasileira carecia de
forma: “Trata-se, isto sim, de dar forma ao que não a possui. É
clara, sob este aspecto, a conotação forte do termo organização
quando utilizado (e o foi com freqüência assaz cansativa) por
Alberto Torres, por Oliveira Vianna, por Gilberto Amado e muito

322
Uma análise autorizada sobre o valor da crítica estética de Naves pode ser
consultada em: Alberto Tassinari, “Brasil à vista”, pp. 171-76.
323
O estudo mais minucioso no trabalho de Naves está dedicado à obra de Jean
Baptiste Debret; op. cit., pp. 41-129.
324
José de Souza Martins, A sociabilidade..., op. cit., p. 25.
251

outros. Trata-se de imprimir forma, de produzir estrutura e


diferenciação funcional numa sociedade percebida como amorfa,
325
amebóide.”

Se a escravidão e suas seqüelas foram óbice incontornável


para consagrar a estrutura social em formas institucionais e de
sociabilidade nítidas e para a universalização de formas de
apreensão e representação da realidade, hoje a pergunta
pertinente parece ser outra, embora a questão continue a ser,
intuitivamente, os empecilhos para a generalização da forma como
elemento comum da sociabilidade: que tipo de vida pública é
gerada sob os efeitos da terrível heterogeneidade e desigualdade
social  transformadas mas não superadas pelos processos de
modernização vividos pelo país ao longo do século XX? É bem
conhecido que o direito é a forma por excelência da sociabilidade
moderna, centrada no indivíduo e na delimitação dos alcances e
limites de seu interesse diante de outrem. Como será visto na
última parte do trabalho, a dificuldade da universalização de uma
forma comum como alicerce da sociabilidade subsiste, pois a
vivência efetiva do direito convive aqui com outras formas de se
conceber e organizar a sociabilidade. A convivência dessas formas
confere sua especificidade a uma vida pública que, a despeito de
seus resultados, alimenta nos seus participantes uma
representação do espaço publico como se estivesse esvaziado de
qualquer efetividade.

325
Bolivar Lamounier, “Formação de um...”, op. cit., p 362.
252

TERCEIRA PARTE

A NOVA SOCIEDADE CIVIL E AS PRÁTICAS DE


CONSOCIAÇÃO NA VIDA PÚBLICA DO FIM DE
SÉCULO
253

ABERTURA

“A devolução do caráter privado às esferas privadas e da


natureza pública às questões públicas” é frase que parece
sintetizar o dilema da modernização do país aventado profusamente
pela literatura do ethos público, cujos diagnósticos descansam na
tese de um vigoroso legado privatista cristalizado na cultura
“nacional”; entretanto, essa frase, formulada por Sérgio Costa,
exprime conteúdo radicalmente oposto: um programa de efetiva
reconstrução do espaço público sob o influxo civilizado de novos
atores sociais, capazes de representar e impulsionar interesses
gerais. Nessa perspectiva, a pertinácia de uma sociabilidade
avessa às normas abstratas e universais não mais aparece como
óbice para a constituição de um espaço público autêntico; antes,
é no seio da própria sociedade que emerge uma vida pública
revitalizada, responsável por inéditas tendências de
democratização das instituições políticas e de racionalização da
dinâmica do mercado. Entre ambas as caracterizações da vida
pública existe distância abissal: de um lado  como mostrado na
segunda parte deste trabalho , ela é precária ou ausente, e
suas feições culturais constituem ora franco empecilho para a
realização dos ideais políticos modernos, ora uma idiossincrasia
de traços tênues, porém inextirpáveis e sempre ativos na
adequação dos imperativos públicos às exigências de uma
sociabilidade personalista; do outro  segundo será visto nas
páginas que se seguem , a vida pública veicula os esforços de
inovação e transformação de atores sociais genuínos, e funciona
como espaço para a deliberação de interesses legítimos. O papel
da continuidade e da mudança, da lógica diacrônica e sincrônica,
da sociedade civil e da ação social também aparece com valências
contrárias, pois, enquanto os traços culturais mais arraigados na
254

convivência social condensam e restringem as possibilidades da


vida pública, no primeiro caso, no segundo, a própria vida
pública é acicatada ao sabor da espontaneidade social que  em
contexto em que vigoram as liberdades democráticas  apenas
enfrenta os limites impostos pelas tarefas da auto-organização.
Tal distância obedece em grau considerável a razões contextuais,
pelo que pode ser compreendida à luz das profundas transformações
socioeconômicas ocorridas no país ao longo do século XX, assim
como do processo de abertura política e consolidação democrática
dos últimos lustros  sem esquecer as tendências gerais adotadas
na evolução do conhecimento disciplinar, cada vez mais
especializado e, por conseguinte, cético perante os alcances
explicativos dos grandes determinismos, sejam eles culturais,
psicológicos ou de outra índole.

Porém, se considerado que a lógica do ethos público continua


a ser introduzida em diversas interpretações, adquire força outro
fator de natureza mais estritamente analítica, a saber, a adoção
de um arcabouço teórico distinto para equacionar não apenas as
características do espaço público, senão a própria forma de
abordá-lo e de conceber sua configuração. Trata-se dos
desenvolvimentos teóricos acerca da nova sociedade civil no
debate internacional. Embora a idéia de sociedade civil seja
corrente no debate político e também nos estudos acadêmicos
realizados no país pelo menos desde o fim dos anos 70, tornando-
se mais ostensiva sua utilização ao longo da década seguinte, nos
últimos anos ela foi investida de especificações conceituais
bastante precisas  restritivas até  sob a rubrica “nova
sociedade civil”. É a partir desse enquadramento que diversos
autores vêm atentando, aqui e alhures, para a emergência de novos
atores civis autônomos, cujas qualidades encerrariam promissoras
conseqüências: arraigados no tecido social e dirigidos a elucidar
publicamente questões relevantes para o conjunto da sociedade,
eles escapariam à órbita dos interesses particularistas inerentes
255

à política e à economia, preservando, todavia, a capacidade de


instar a esfera política a atender a seus reclamos legítimos. A
vida pública, equacionada a partir da ação incessante dos
inúmeros atores da nova sociedade civil, torna-se alavanca para
ampliar por vias democráticas as fronteiras do próprio espaço
público  o que sem dúvida vai ao encontro da definição
explorada na primeira parte deste trabalho. Contudo, nem quanto
ao sentido e às características de seu agir e sequer quanto a
suas conseqüências é possível afirmar a existência de uma unidade
óbvia no universo de práticas de ação coletiva que soem ser
abarcadas no rótulo “nova sociedade civil”; e, por isso, é digno
de espanto deparar-se com amplo consenso no que diz respeito aos
atributos que a definem: diversa, plural, ubíqua e representante
do interesse geral  a cuja incessante atividade é inerente um
ímpeto democratizador. São bem conhecidos os autores que
realizaram as principais ou mais influentes contribuições
teóricas para atualizar a idéia de sociedade civil sob nova
definição. Ainda que o próprio conceito conte com secular
tradição, cristalizada em mais de uma linhagem da filosofia
política moderna, as energias de sua nova pujança responderam
originariamente ao debate que acompanhara as mudanças dos países
do Leste Europeu e, de forma particular, da sociedade polonesa na
segunda metade da década de 70. Trata-se dos trabalhos de Jean
Cohen e Andrew Arato, cuja formulação mais elaborada encontrou
alicerces na crítica e reapropriação da teoria discursiva da
democracia e da teoria da sociedade em dois níveis de Jürgen
Habermas  mais especificamente, nos seus desenvolvimentos
conceituais acerca do potencial de autodeterminação inscrito
publicidade. A contrapelo da trajetória do programa de pesquisa
de Habermas, que levou à definição da publicidade como puro fluxo
comunicativo, Arato e Cohen reintroduziram os atores sociais e
suas cristalizações institucionais sob nova proposta teórica de
reconstrução da sociedade civil. Embora outros nomes como, por
exemplo, John Keane, Ernst Gellner, John Hall, Axel Honneth ou
256

Benhabib Seyla constituam referências relevantes na discussão


teórica da nova sociedade civil, corresponde àqueles três autores
a maior influência na definição de suas feições e no prognóstico
de suas promissoras implicações para o espaço público e para
democracia.

Na América Latina, as análises sociológicas dos últimos anos


acerca das transformações ocorridas após os processos de abertura
política têm sido realizadas, em boa medida, a partir do consenso
sobre o robustecimento do papel democratizador das associações
civis, equacionado através da mira analítica das teorizações mais
influentes sobre a (nova) sociedade civil. Em última análise,
trata-se das repercussões locais de amplos debates que
internacionalmente conquistaram posições hegemônicas nos campos
da sociologia e da filosofia política, em particular nos campos
das teorias do espaço público, da ação social e da democracia. De
fato, o extraordinário sucesso das teorias responsáveis pela
“redescoberta” da sociedade civil extravasou o mundo acadêmico e
somou-se a outros fatores para reforçar o uso do termo 

“sociedade civil”  na linguagem da mídia, fazendo com que ele


se aproxime mais de um lugar-comum do que de um problema que
precisa ser tematizado empírica e teoricamente. No Brasil, a
despeito das interpretações mais ponderadas, a literatura da nova
sociedade civil tem incidido no prolongamento de certos
“consensos fáceis”  para lançar mão de feliz fórmula cunhada
por Gabriel Cohn , gerados no contexto dos esforços políticos e
intelectuais contra a ditadura militar e acolhidos e
sistematizados na produção acadêmica sobre os movimentos sociais
e sobre o papel da própria sociedade civil  concebida em chave
diferente daquela que hoje impera. 326 Esses consensos assumiam a
coincidência entre a esquerda, a ação social e a razão,

326
Cf. Gabriel Cohn, “Razão e história”, in Tullo Vigevani, Gabriel Cohn, et
al., Liberalismo e socialismo: velhos e novos paradigmas, pp. 23-36,
especificamente, p. 29.
257

confrontadas à barbárie do poder. Os atores sociais e os


conflitos são hoje elaborados em registro menos premido pelas
circunstâncias, é claro, mas, conforme será visto, as altas
expectativas depositadas nos movimentos sociais  já revisitadas
e criticadas nos balanços dessa produção acadêmica  continuam a
ser repostas em maior ou menor mediada na perspectiva da nova
sociedade civil. Nesse sentido, o intuito desta parte do trabalho
é duplo: avançar no conhecimento dos padrões de consociação de
interesses, de modo a iluminar o aspecto da densidade societária
da vida pública; e examinar os diagnósticos da “nova sociedade
civil” enquanto fenômeno emergente que, ao revigorar a vida
pública, forneceria uma perspectiva de abordagem pertinente para
compreender a reconfiguração do espaço público no país.

Convém expor ambos os propósitos de maneira explícita. O


segundo é, por enquanto, mais evidente: contribuir para a
avaliação crítica da idéia de “nova sociedade civil”, tal como
apropriada e reproduzida pela literatura local. 327 Argumenta-se
que o potencial de determinação do espaço público, quase a
“missão” democratizadora da nova sociedade civil no país, aparece
sobrestimado tanto pela ênfase dada pela literatura à
proliferação de certo tipo de associações  em demérito da maior
importância de outras  quanto pelo pressuposto, também comum
nessa literatura, da existência de uma moralidade superior ou
alheia aos particularismos como atributo inerente à atuação
pública dessas associações. Diferentemente da análise realizada
na segunda parte, que permaneceu em nível mais interpretativo em
virtude das características das obras contempladas, agora é
mister equacionar simultaneamente a relação entre os planos

327
A denominação “literatura local” poderia encontrar sinônimos nas expressões
“literatura nacional” ou “literatura brasileira”; prefere-se a primeira opção
porque enfatiza o vínculo com os termos do debate teórico internacional já
consagrados e porque evita a pressuposição de existir algo de tipicamente
“brasileiro” ou “nacional” na apropriação desse debate  “artificialismo das
idéias”, “dependência intelectual”, “inadequação dos conceitos”  ou até uma
conjuntura intelectual exclusivamente nacional.
258

conceitual e empírico, pois os diagnósticos apoiados no enfoque


da nova sociedade civil envolvem tanto referências teóricas muito
consolidadas quanto formulações que visam positivamente à
realidade  no sentido dos cânones empíricos do conhecimento
disciplinar. Assim, a literatura da nova sociedade civil
constitui, hoje, referência obrigatória de qualquer indagação
sobre as principais tendências das práticas de consociação na
vida pública do fim de século; não apenas porque essa perspectiva
informa numerosas análises, como também porque a interlocução com
ela permite sumariar o estado atual do debate sobre os efeitos da
densidade societária na determinação do espaço público. Por
certo, a tarefa de entabular um diálogo crítico não prescinde de
pressupostos, e, a esse respeito, a posição aqui assumida já foi
devidamente explicitada na primeira parte sob a ótica do que foi
denominado como societabilidade  a maior ou menor propensão à
organização de interesses e os resultados desiguais dessa
organização, concebida em termos de padrões diferenciados segundo
posições sociais. Propõe-se que, para avançar rumo a um
entendimento mais acurado da incidência da vida pública na
configuração do espaço público, é pertinente, senão iniludível,
partir da reconstrução do universo das práticas de consociação
existentes, e, para tanto, a abordagem da nova sociedade civil
resulta demasiado restrita em virtude de seus conteúdos
prescritivos. Com efeito, os diagnósticos acerca do vigor da nova
sociedade civil e sua função democrático-normativa na
reconstrução do espaço público enfrentam dificuldades se
considerado seu substrato empírico e se confrontados com os
padrões gerais característicos da participação em associações no
Brasil  especialmente, no caso dos resultados de pesquisa
realizada na região metropolitana de São Paulo (RMSP), que serão
apresentados aqui.

Avançando mais um passo, cumpre afirmar desde já que a


realização do primeiro propósito  a reconstrução desses padrões
259

 permitirá tanto esboçar em grandes traços o quadro da


consociação de interesses presente na vida pública quanto mostrar
que a adequação entre a realidade e os diagnósticos da literatura
sobre a potencialidade da nova sociedade civil decorre do tipo de
correlato empírico privilegiado: as associações. Contudo, apenas
as associações enquadráveis numa definição particularmente
restrita de sociedade civil, isto é, aquelas que, embora
inexpressivas do ponto de vista do número de associados, parecem
satisfazer as exigências normativas da literatura. Ao invocar o
argumento das associações, isto é, sua rápida multiplicação e
consolidação, como respaldo à tese da redefinição e ampliação
democrática da política e do espaço público sob o influxo ubíquo
de uma nova sociedade civil normativamente estilizada, a
literatura tem negligenciado a questão dos associados  quem e
onde participa , cujos padrões de consociação divergem das
tendências detectadas a partir do estudo do célere incremento e
diversificação das associações civis. A caracterização dos
principais postulados em torno da nova sociedade civil recorre,
principalmente, aos trabalhos dos autores mais influentes: Sérgio
Costa e Leonardo Avritzer  entretanto, outros interlocutores
que participam do debate sustentando posições mais ou menos
328
semelhantes também serão considerados. Para estabelecer os
consensos existentes quanto às tendências das práticas de
consociação de interesses nas últimas décadas, contemplam-se
trabalhos de ampla circulação, assim como resultados de pesquisas
elaboradas a partir da ótica da nova sociedade civil; já a
reconstrução dos padrões de participação associativa recorre aos
escassos surveys realizados nesse terreno, o que implica a
paciente exploração das possibilidades contidas nas bases de
dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  IBGE

328
V. g., Ilse Scherer-Warren, Maria da Glória Gohn, Ana Amélia da Silva, Liszt
Vieira, entre outros; além dos autores que contribuem direta ou indiretamente
ao debate a partir de posições críticas.
260

 e do Sistema Estadual de Análise de Dados  SEADE , no caso


da RMSP.

Grosso modo, os resultados da pesquisa a serem apresentados


apontam em direção tríplice, confirmando percepções já assentes e
sem dúvida documentadas nos campos disciplinares da antropologia,
da sociologia e da ciência política, mas para a quais inexistiam
informações estatisticamente representativas. Primeiro, e sempre
do ponto de vista da participação  dos associados , o pequeno
peso dos empenhos associativos identificáveis com os atores
representativos da nova sociedade civil, particularmente quando
contemplados no quadro maior dos diferentes tipos de associação,
ou seja, quando comparados com a preponderância de outros
vínculos de consociação  notadamente os de caráter religioso.
Segundo, o viés excludente das práticas de organização de
interesses, tendo em vista sua extrema sensibilidade aos fatores
socioeconômicos; isto é, a participação responde a clivagens
sociodemográficas e econômicas, e é presumível que contribua a
reproduzi-las. Terceiro, tais clivagens não apenas incidem na
maior ou menor presença de laços associativos nas diferentes
camadas da população, antes, também orientam o tipo de
participação escolhido por essas camadas; enquanto a esmagadora
maioria dos segmentos mal aquinhoados se inserem em redes de
índole religiosa, os setores abastados apresentam repertório mais
diversificado, no qual a consociação de caráter político ocupa
posição de relevo.

Nas páginas seguintes, como na segunda parte deste trabalho,


proceder-se-á de forma reconstrutiva e o itinerário da
argumentação percorrerá vários pontos. Na primeira seção
delimita-se a matriz teórica da literatura a ser analisada, em
face das grandes linhagens de argumentos acerca da sociedade
civil  consagradas na filosofia política e no pensamento
político modernos ; explicitam-se alguns pressupostos da
261

reflexão aqui desenvolvida, inclusive o estatuto conferido a essa


literatura; e aborda-se o contexto disciplinar no qual se
encontram inseridos os diagnósticos da nova sociedade civil,
assim como o tratamento conceitual que ela recebe. A segunda
seção se aproxima do encaminhamento empírico da análise,
contemplando três momentos: o tipo de atores englobados sob o
rótulo “nova sociedade civil” e a operacionalização de seu estudo
em termos de associativismo; o papel normativo conferido a esses
atores pela literatura, como a principal característica que
distingue a nova sociedade civil de outras abordagens presentes
no debate nacional; e o boom associativo frisado de maneira
consensual em diversas análises, também utilizado como correlato
empírico para respaldar os diagnósticos sobre o potencial
democratizador dos novos atores da sociedade civil  argumento
das associações. Por fim, serão examinados os principais
resultados da pesquisa sobre as características das práticas de
consociação de interesses, conforme a ordem e a lógica expostas
no parágrafo anterior.
262

A DELIMITAÇÃO DA NOVA SOCIEDADE CIVIL

1. A reconstrução perante as antigas linhagens

Existe secular tradição de conceituações e interpretações já


consagradas sobre a sociedade civil, cuja história perpassa a
obra de autores da envergadura de Thomas Hobbes, John Locke, Adam
Ferguson, Thomas Paine, Immanuel Kant, G. W. Frederic Hegel,
Jean-Jacques Rousseau, Alexis de Tocqueville e Karl Marx. 329 A
reconstrução teórica proposta por Arato e Cohen não se insere
propriamente na perspectiva analítica de qualquer um desses
grandes pensadores, e embora sua filiação de origem remeta ao
marxismo, preservando vínculos estreitos com o pensamento de
Antonio Gramsci, trata-se de nova reformulação com o propósito
confesso de se distanciar de seus predecessores, particularmente
daqueles alheios à linhagem jusnaturalista  pouco trabalhada
por Arato e Cohen, talvez por considerarem-na uma vertente não
moderna de pensamento sobre a sociedade civil. Se as respostas
elaboradas por essa linhagem guarda considerável
incompatibilidade com o tipo de formulações ensejadas a partir de
Hegel, a própria problemática da sociedade civil é
intrinsecamente moderna, a saber, o processo de diferenciação
entre a sociedade e o poder, e por conseguinte, o progressivo
esvaimento das possibilidades da representação enquanto
330
encarnação da unidade social na figura do soberano. Não é
fortuito que as formulações teóricas da sociedade civil tenham se

329
Neste item apresenta-se breve resumo de argumentos explorados com maior
vagar em outro trabalho, entretanto, minuciosa avaliação das idéias ali
sustentadas, à luz de novas leituras, levou ao abandono de algumas posturas e a
reformulações aqui incorporadas. Cf. Adrián Gurza Lavalle, “Crítica ao modelo
da nova sociedade civil”, pp. 121-35.
330
Cf. Niklas Luhmann, “The representation of society within society”, in
Niklas Luhmann, Political theory in the welfare state, pp. 11-9.
263

desenvolvido de forma paralela à questão radicalmente moderna dos


fundamentos legítimos do poder, isto é, das teorias da
legitimidade. Hegel, em sua Filosofia do direito, refere-se ao
caráter especificamente moderno da legitimidade da seguinte
forma: “Aquilo que tem de valer agora não vale mais pela mediação
do poder, vale pouco pela mediação do hábito e dos costumes, mas
sobretudo pela mediação da inteligência e do fundamento [...] O
princípio do mundo moderno exige que tudo aquilo que tem de ser
reconhecido por todo homem lhe apareça como algo legítimo”.331 Por
isso, as formulações conceituais sobre a sociedade civil foram,
por via de regra, ponto obrigatório no itinerário das teorias
orientadas a desentranhar os fundamentos da unidade política do
todo social; mais especificamente, dentro daqueles corpora
teóricos que preservavam um lugar privilegiado para refletir a
especificidade da relação entre a sociedade e o poder 

sociedade/Estado  a partir dos efeitos que em ambos os pólos


introduziam tanto a dinâmica autônoma dos interesses privados
desenvolvidos no cerne da própria sociedade, quanto os
expedientes de sua consociação harmônica ou conflitante. Nesse
sentido, a sociedade civil foi secularmente burilada como
categoria para equacionar  na filosofia política, no pensamento
político e, mais recentemente, nas teorias sociológicas  alguns
dos grandes problemas políticos da modernidade.

Em função das propostas para cimentar, aprimorar ou


subverter os vínculos do corpo político, cada vez mais desprovido
de suas antigas feições de unidade “natural”, configura-se mais
de uma família de argumentos da sociedade civil. 332 A breve e

331
Citado por Jürgen Habermas, Historia y crítica de la opinión pública - La
transformación estructural de la vida pública, p. 150 (tradução de AGL, também
as outras passagens traduzidas nesta seção).
332
A expressão “famílias de argumentos da sociedade civil” provém de Michael W.
Foley e Bob Edwards, “La paradoja de la sociedad civil”, Este País, pp. 2-10.
No artigo, os autores trabalham com duas versões amplas do argumento da
sociedade civil: a primeira, cristalizada na obra de Tocqueville e herdeira de
seus traços principais; a segunda, organizada em torno àquilo que se poderia
chamar de argumento da nova sociedade civil  entretanto, o campo das teorias
264

portanto incompleta revisão desses argumentos cumpre apenas um


propósito: fixar as balizas mais gerais que informam a literatura
local da nova sociedade civil. Embora rápido, semelhante esboço
apresenta o serviço de evitar, desde o começo, mal-entendidos
freqüentes ocasionados pela interlocução entre concepções
atreladas a pressupostos conceituais diferentes. O primeiro
conjunto de argumentos com “semelhanças de família” corresponde à
inveterada linhagem do jusnaturalismo. Nela, a sociedade civil é
introduzida, por oposição ao estado de natureza, como hipótese
intermediária na reconstrução lógica da necessidade do surgimento
do Estado. Mais: a sociedade civil é reino do artifício; 333 é
propriamente o Estado, ou seja, o único caminho passível de ser
trilhado para resolver os dilemas inerentes ao estado de natureza
 por exemplo, para lembrar o discorrer clássico do Leviatã, o
promissor direito natural a todas as coisas como eqüivalente
mediato da guerra de todos contra todos. Em Hobbes existem razões
e medos de peso para alguém ajuizado o suficiente não renunciar a
seu direito natural, “Porém, num Estado civil onde existe um
poder apto para constranger a quem  de outra forma  violaria
sua palavra, tal temor não é mais razoável e, por essa razão,
aquele que em virtude do pacto vê-se obrigado a cumprir primeiro,
tem o dever de assim fazê-lo”. 334 Embora parta de uma construção
“civilizada” do estado de natureza, também Locke, no seu Segundo
tratado sobre o governo, reafirma a relação jusnaturalista de
identidade entre a lei e a sociedade civil ao definir a última
como uma sociedade com Estado: “Os que estão unidos em um corpo,
tendo lei comum estabelecida e judicatura  para a qual apelar 
com autoridade para decidir controvérsias e punir os ofensores,
estão em sociedade civil uns com os outros; mas os que não têm
essa apelação em comum, quero dizer, sobre a terra, ainda se

da sociedade civil é sem dúvida mas vasto e dificilmente resulta passível de


organização a partir de duas grandes famílias de argumentos.
333
Cf. Norberto Bobbio, Estado, gobierno y sociedad  Por una teoría general
de la política, (1985) pp. 56-60.
334
Thomas Hobbes, Leviatan o la materia, forma y poder de una república
eclesiástica y civil, (1651) p. 112 (grifo de AGL).
265

encontram no estado de natureza, sendo cada um, onde não há


outro, juiz para si e executor, o que constitui, conforme mostrei
anteriormente, o estado perfeito de natureza”.335

A segunda família de argumentos também equaciona a sociedade


civil em termos do Estado, porém, de forma mediata, como
importante patamar de universalização de relações sociais cujas
insuficiências precisam e pressupõem uma instância superior de
racionalização: o próprio Estado, âmbito do universal, da
conciliação das desavenças e particularismos próprios aos
interesses socais. Há divergências em torno do sentido e das
implicações da subsunção da sociedade civil ao Estado, e até
sobre o fato de existir propriamente uma subsunção ou apenas
subordinação legítima ou pura imposição de uma racionalidade de
ordem superior; entretanto, é claro que, direta ou indiretamente,
os diversos argumentos a atribuírem uma superioridade moral 
abstrata, universal, impessoal  ao Estado abeberaram-se na
mesma origem: Hegel e sua Filosofia do direito. Na elaboração
daquela que, segundo a opinião autorizada de Arato e Cohen, 336
fora a primeira teoria moderna da sociedade civil, o filósofo
alemão introduziu um deslocamento duplo em face da tradição
jusnaturalista: em primeiro lugar, Hegel estava preocupado com a
rudimentar analogia mercantil, pois, ao fazer do contrato o
expediente para sair do estado de natureza e a garantia da vida
social, condenava a unidade do corpo político à lamentável
condição da pura contingência. Enquanto o contrato permanece
subordinado aos caprichos do arbítrio e da moralidade de cada um,
a plena realização da sociedade civil e sua relação com o Estado
independem das vicissitudes individuais e se inserem plenamente
no mundo das instituições políticas, cuja “natureza é totalmente
distinta e mais elevada”: “(...) os direitos do príncipe e do

335
John Lock, Segundo tratado sobre o governo  Ensaio relativo à verdadeira
origem, extensão e objetivo do governo civil, (1690) p. 67 (grifo de AGL).
336
Cf. Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society and political theory, (1992) p.
91.
266

Estado têm sido considerados como objetos de contrato e sobre ele


fundados, como coisa simplesmente comum da vontade e como algo
decorrente do arbítrio dos associados em um Estado. Se, de um
lado, há perspectivas diferentes, de outro, têm em comum o fato
de terem deslocado as determinações da propriedade privada para
uma esfera que devido a sua natureza é totalmente distinta e mais
elevada”. 337 Além de elevar o estatuto da sociedade civil quanto à
contingência do arbítrio individual e aos limites da vida
familiar, Hegel não identifica a sociedade civil com o Estado. Na
sua redefinição, a sociedade civil interage dirigida por fins
egoísticos  sistema de necessidades (§§ 189-208)  condicionados
pela dependência multilateral em um sistema de instituições
administrativas e direitos  policy e corporações (§§ 230-256), e

Judiciário (§§ 209-229) , determinando assim uma forma de


universalização ainda insuficiente, um Estado chamado por Hegel
de “externo”, sem capacidade de impor custos ao conjunto da
sociedade.338 Destarte, o Estado político, ou Estado interno,
aparece como única e última instância de harmonização e
universalização  que inclui imposição  de interesses,
superando e contendo dentro de si a sociedade civil. Eis o
resultado do duplo deslocamento: uma teoria triádica da sociedade
civil, na qual existe uma nítida diferença entre o mundo privado,
familiar e de particulares isolados, o mundo institucional
econômico e estatal da sociedade civil e o magno mundo político
nacional e internacional do Estado.

A terceira família de argumentos da sociedade civil não é


oriunda da filosofia, mas do pensamento político oitocentista, e
nela cancela-se qualquer relação de interioridade capaz de fazer

337
G. W. F. Hegel, Filosofía del derecho, (1821) § 75, p. 92.
338
“O fim egoísta na sua realização, condicionado assim pela universalidade,
estabelece um sistema de conexão universal pelo qual a subsistência e o bem-
estar do indivíduo e sua existência jurídica, imbricada com a subsistência, o
bem-estar e o direito de todos, cimentam-se sobre eles e apenas nessa
dependência são reais e têm segurança. Esse sistema pode ser considerado como
Estado externo, como estado da necessidade e do entendimento”. Ibid., § 183, p.
194 (grifo de AGL).
267

do Estado o âmbito da plena superação das divergências de


interesses próprias às instituições da vida social. A tônica
dessa compreensão da sociedade civil recai “na capacidade da vida
associativa, em geral, e nos hábitos de associação, em
particular, para fomentar modelos de civilidade nas ações dos
cidadãos numa organização política democrática”. 339 Subjaz à
origem dessa família de argumentos a experiência histórica de uma
sociedade na qual a gênese do Estado e a organização da vida
comunitária foram processos paralelos  embora não por isso
necessariamente harmônicos. A leitura clássica dessa experiência
foi pacientemente construída mediante as inúmeras penadas de
Alexis de Tocqueville, cujo olhar sagaz, a colher observações cá
e lá, lhe permitira interpretar as lições projetadas por A
democracia na América para o futuro político da humanidade. São
célebres seus receios perante a ameaça de uma forma inédita de
escravidão, própria dos séculos democráticos, de um “despotismo
benigno” decorrente da atomização individual, da extinção dos
poderes secundários ou intermediários e da expansão e
concentração do poder social no Estado. 340 Entretanto,
diferentemente das nações européias, onde a desigualdade social
impunha a presença de um poder central particularmente forte, a
história da América do Norte continha uma espécie de antídoto
contra os perigos do “despotismo democrático”, a saber, o uso
irrestrito do direito de associação: “As associações são as que
devem ocupar, nos povos democráticos, o lugar dos particulares
poderosos que a igualdade de condições tem feito desaparecer”. 341
A congregação dos interesses privados pela arte da associação, ou
seja, a sociedade civil, representa não apenas a única forma de
resistência dos cidadãos ao poder central, mas, e isto é
fundamental, uma condição do bom governo.342 De maneira aguda, o

339
Michael W. Foley e Bob Edwards, op. cit., p. 2.
340
Alexis de Tocqueville, La democracia en América, (1835) pp. 632-5.
341
Ibid., p. 475.
342
“Os cidadãos dos Estados Unidos não têm qualquer superioridade uns sobre
outros, nem se devem reciprocamente respeito ou obediência; eles administram
268

diagnóstico de Tocqueville mantém uma tensão entre, de um lado, a


tendência irreversível de concentração do poder e suas
conseqüências inerentemente perversas  o novo despotismo  e,
do outro, a plausível e inevitável vida social igualitária e
livre a permitir o exercício entusiasta do direito de associação,
e seus efeitos também intrinsecamente perversos  o desinteresse
pela política e o enfraquecimento de cada cidadão. Essa forma de
entender a sociedade civil deitou raízes na sociologia norte-
americana, agora com longa tradição nos estudos de
associativismo, voltada não apenas para ponderar o papel da
consociação de interesses na intervenção da sociedade no Estado,
senão também seu peso no bom desempenho das diversas instâncias
governamentais.

Poderia parecer controversa a operação de localizar na obra


de Marx a fonte de uma quarta família de argumentos, todavia, não
há dúvida quanto à influência do pensador alemão na compreensão
da sociedade civil como mundo da troca mercantil; isso sem
esquecer, é claro, que o alargamento dessa concepção efetuado por
Gramsci teve notável acolhida dentro do campo marxista, atentando
para a relevância estratégica das instituições civis. É bem
conhecido que Marx diluiu a sociedade civil na economia política
ao conceber a primeira como puro sistema de necessidades, como o
universo infra-estrutural das relações econômicas  a partir de
uma apropriação restrita do desenvolvimento do conceito em Hegel.
Assim, “(...) não é o Estado que condiciona e regula a sociedade
civil, mas é esta que condiciona e regula o Estado; (...)
portanto, a política e sua história devem explicar-se a partir
das relações econômicas e seu desenvolvimento e não pelo
inverso”. 343 De fato, a categoria de sociedade civil, decantada em

unidos a justiça, governam o Estado e, em geral reúnem-se todos para discutir


os negócios que influem no destino comum (...)”. Ibid., p. 557.
343
Friederich Engels, Contribuição à história da Liga dos Comunistas, apud Karl
Marx e Friederich, La ideología alemana, (1854) p. 7. A frase de Engels refere
de forma resumida a posição alcançada por Marx em 1844, quando da redação dos
Anais franco-alemães; entretanto, a formulação clássica no que diz respeito à
269

torno ao problemático fulcro moderno da unidade do corpo político


e, em conseqüência, da racionalidade legítima do poder,
dificilmente poderia ocupar qualquer posição de alta hierarquia
em um arcabouço teórico preocupado não com a lógica
universalizadora do Estado nem com seus fundamentos legítimos,
mas com sua crítica e aniquilação revolucionárias.344 Contudo,
malgrado o risco de delir a sociedade civil na economia, existe
em Marx argumento contundente sobre a especificidade da relação
entre aquela e o poder político institucionalizado no Estado: a
aparente universalidade do Estado, como instância de superação
dos conflitos de interesses, é possível apenas porque esse mundo
da igualdade formal constitui-se como cisão do mundo real, regido
pelo particularismo e pela iniqüidade das relações
socioeconômicas. Ainda mais, o caráter irreconciliável e
dilacerado da sociedade civil é a essência e o fundamento do
Estado como “comunidade ilusória”  o que bem pode ser traduzido
como o conhecido primado estrutural do econômico sobre o
345
político.

Sem abolir o primado desse dualismo, Gramsci deslocou a


sociedade civil para o plano da superestrutura com sensíveis
resultados na qualificação daquilo que no marxismo permanecia
oculto no nebuloso mundo da ideologia, isto é, a reprodução da

sociedade civil não pertence aos Anais, mas a um texto posterior: “(...) as
relações jurídicas, assim como as formas de Estado, não podem ser explicadas
por si próprias, nem pela chamada evolução geral do espírito humano, que se
originam nas condições materiais de existência que Hegel, seguindo o exemplo
dos ingleses e dos franceses do século XVIII, compreendia sob o nome de
‘sociedade civil’; porém, a anatomia da sociedade tem de ser procurada da
economia política”. Karl Marx, Prefacio a la contribución a la crítica de la
economía política, (1859) pp. 36-7.
344
Seja dito de passagem, a elaboração de uma teoria da sociedade civil para
além dos puros vínculos egoísticos do mercado pressuporia, à época, sua
inserção no marco maior ou de uma racionalização da constituição da ordem
política ou de uma teoria da democracia, e, é claro, ambos os objetivos
resultam alheios à compreensão cabal do pensamento de Marx. Para uma análise
das razões pelas quais Marx abordou sistematicamente outros problemas que não
os da democracia ou do arcabouço institucional do governo democrático, cf. a
conhecida exposição de Norberto Bobbio, Qual socialismo? Discussão de uma
alternativa, pp. 21-35 e 37-54.
345
Cf., v. g., Karl Marx e Friederich Engels, La ideologia... Op. cit., pp.
35-8.
270

ordem social explicava-se porque, entre a crua exploração do


homem concreto e a aparente igualdade do cidadão, mediava um
universo de representações mistificadas de modo a opacificar a
realidade  daí o valor revolucionário da verdade, do
desmascaramento da lógica de funcionamento da estrutura social, e
a opção por uma política científica. Em perspectiva mais
nuançada, ao equacionar a problemática da hegemonia no registro
duplo da coerção e do consenso, o pensador italiano abriu passo
ao entendimento da superestrutura como momento ético-político, no
qual se imbricavam a dominação e a persuasão, a força e o
consenso, o monopólio da violência e a capacidade de direção, em
suma, a política e a moral. 346 A pura dominação, cristalizada no
Estado e em seu aparato repressivo, resultaria excessivamente
frágil sem os alicerces da capacidade de direção enraizada no
tecido social; por conseguinte, a estratégia revolucionária do
“assalto ao poder” mostrava-se improcedente no contexto de
ordenamentos políticos crescentemente complexos. Por essa via, a
sociedade civil aparece investida de estatuto inédito, pelo menos
dentro dos lindes da tradição marxista, pois na miríade de
organismos privados ocorre parte fundamental da luta pela
hegemonia; ainda mais, enquanto o mundo da política assume
conotações alinhadas no imperativo da dominação  da sociedade
política , esses organismos  a sociedade civil  processam o
consenso e os fundamentos morais do poder no plano da cultura,
das práticas cotidianas e do senso comum. O conjunto das
associações civis se insere, então, em uma teoria triádica da
sociedade, em certo sentido mais próxima do pensamento de Hegel
do que de Marx: de um lado, sustenta-se ainda o primado do
dualismo estrutura/superestrutura, mas, do outro, o segundo termo

346
Cf. Antonio Gramsci, Cuadernos de la cárcel I, pp. 47-80. Para uma análise
dedicada na íntegra à concepção gramsciana da sociedade civil, pode ser
consultado com proveito o opúsculo: O conceito de sociedade civil  trabalho
de Norberto Bobbio (1967), cuja publicação causou polêmica no meio dos marxismos
mais ortodoxos. Cf., também, Noberto Bobbio, Estado, gobierno..., op. cit., pp.
48-51. A sistematização do momento ético-polítco, em termos semelhantes aos
utilizados no parágrafo acima, aparece em ambas as obras.
271

sofre desdobramento para diferenciar as dinâmicas do Estado e da


sociedade civil  agora privilegiada como espaço de luta em uma
estratégia de guerra de posições. Cumpre mencionar que, em boa
medida, o pensamento latino-americano do fim dos anos 70 e da
década seguinte reportou-se à concepção gramsciana de sociedade
civil  obviamente ainda dentro do paradigma da luta de classes.
Por vezes, esse fato passa despercebido na interlocução de
diversos autores com a literatura local da nova sociedade civil,
cuja especificidade introduz pressupostos teóricos incompatíveis
com os termos do debate realizado nos anos 80  o assunto será
retomado na segunda seção.

Sem sombra de dúvida, seria descabido atribuir à proposta de


Arato e Cohen a investidura de uma quinta família de argumentos,
pois, a despeito de seu extraordinário sucesso, não é prudente
usurpar o veredicto do tempo; no longo prazo, a circulação e
consagração das idéias costuma ser veleidosa, obedecendo a
diversos fatores apenas ponderáveis e forma cabal a posteriori.
Parte-se aqui, todavia, de um reconhecimento de fato, qual seja,
a consolidação do trabalho de ambos os autores como referente
hodierno do debate acerca do papel e alcances da nova sociedade
civil. Trata-se de uma proposta de reconstrução teórica para
reabilitar o uso da categoria conforme duas ordens de exigências:
no plano analítico, apurar o conceito em face das principais
críticas elaboradas ao longo do século XX, assim como da
impossibilidade de elaborar respostas satisfatórias a partir das
posturas mais otimistas; no plano histórico-político, a defesa de
uma perspectiva de estabilização e fortalecimento da sociedade
civil como parte de um projeto democrático de sociedade, cuja
adequada definição apenas será viável se capaz de equacionar com
êxito tendências irrefreáveis da modernidade como a diferenciação
funcional da economia, da política e das instituições sociais, a
emergência de distintas formas de fusão entre o público e o
privado, a secularização e multiplicação dos sentidos e o
272

correspondente pluralismo.347 Na verdade, ambas as ordens de


exigências encontram-se inter-relacionadas, visto que o
esmorecimento e até a extinção da sociedade civil sob o peso
dessas tendências históricas foram denunciados por diversos
pensadores de vulto como Carl Schmitt, Hannah Arendt, Niklas
Luhmann, Michel Foucault e o próprio Habermas.

O esforço de reconstrução levado a cabo por Arato e Cohen


não preserva qualquer “parentesco” próximo com as três primeiras
famílias de argumentos, e, embora sua ascendência seja
reconhecidamente marxista, há um afastamento de tal filiação em
virtude das fortes dissonâncias produzidas por alguns princípios
analíticos da obra de Marx, se combinados com uma teoria da
sociedade civil como força democratizadora: as implicações
reducionistas do dualismo estrutura/superestrutura condenam os
atores e instituições da sociedade civil ao mundo privado 

cindido em classes antagônicas , negligenciando sua relevância


pública e seu potencial de mudar a ordem social, econômica e
política; e, sobretudo, o entendimento da ação social
exclusivamente a partir das linhas matriciais da exploração
econômica oblitera uma rica teia de identidades e empenhos
coletivos animados por lógicas ditas pós-materiais. A esse
respeito, Arato é explícito quando esclarece que “A recuperação
do conceito de sociedade civil, há cerca de vinte anos, foi obra
dos neomarxistas que criticavam o autoritarismo socialista e que,
paralelamente, acabaram por derrubar um dos pressupostos básicos
de Marx, razão pela qual se tornaram ‘pós-marxistas’”. 348 Ainda
assim, os subsídios fornecidos pelo pensamento de Gramsci foram
acolhidos de maneira ampla, com ressalva fundamental quanto à
interpretação da dinâmica da sociedade civil como momento
sintético da luta pela hegemonia, necessariamente regida por

347
Cf. Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society..., op. cit., pp. 421-3, 433-
42, 487-91.
348
Andrew Arato, “Ascensão, declínio e reconstrução do conceito de sociedade
civil  Orientações para novas pesquisas”, (1994) p. 18.
273

projetos ancorados em interesses de classe particulares; essa


ressalva condensa, em definitivo, o distanciamento
irreconciliável com respeito à tradição marxista. Com efeito, nas
palavras de Arato e Cohen: “[...] nossa inclinação é propor um
projeto normativo comum, e nesse sentido somos pós-marxistas. Por
outras palavras, situamos o cerne de nosso projeto no horizonte
universalista da crítica teórica, ao invés de no horizonte
349
relativista da deconstrução”.

Conforme já advertido, o diálogo mais significativo da


proposta em questão ocorre com o programa de pesquisa de Habermas
 também egresso da tradição marxista, particularmente da escola
de Frankfurt.350 A partir da interlocução com a obra do pensador
alemão, os autores procedem à reconstrução de uma teoria triádica
da sociedade, na qual um dos componentes engloba e constitui
condição de possibilidade da sociedade civil: de um lado, a
realidade sistêmica coordenada pelo automatismo da lógica do
poder  Estado  e do dinheiro  economia , com seus
respectivos e diferenciados processos de institucionalização; do
outro, o mundo da vida integrado socialmente pela via da criação
e reapropriação comunicativa de sentidos, porém, não limitado à
espontaneidade social, senão diferenciado e estabilizado mediante
expedientes próprios de instituiconalização que correspondem às
iniciativas e conquistas da sociedade civil.351 O quid reside na
ênfase dada à dimensão institucional do mundo da vida, isto é, as
tendências de diferenciação complexa introduzidas pela
modernidade não permanecem restritas ao terreno da especialização
funcional dos sistemas, antes, também impulsionam processos de
especialização no seio da própria sociedade. Por essa via, o

349
Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society..., op. cit., p. 2. Não é gratuito
o fato de as primeiras páginas dessa obra estarem dedicadas ao esclarecimento
das divergências dos autores com o marxismo e com o neomarxismo; cf. ibid., pp.
1-4.
350
A concepção originária da publicidade em Habermas, assim como as principais
inovações no processo de sua redefinição conceitual, foi examinada na primeira
parte deste trabalho, pelo que seu conhecimento é aqui pressuposto.
351
Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society..., op. cit., pp. 423-8.
274

mundo da vida ganha maior especificação conceitual, agora


desdobrando em distintos níveis de abstração e abrangência 
cada um condicionando as possibilidades do nível seguinte sem
esgotá-lo nos plano histórico, cognitivo ou conceitual. Primeiro,
ele constitui o fundo lingüístico e cultural “impensado” a
viabilizar qualquer comunicação e qualquer produção de sentidos;
segundo, encerra um acervo de recursos simbólicos cristalizados
em redes de solidariedades, conhecimentos, saberes, convicções
partilhadas e reconhecimento de competências, sempre presentes e
mobilizáveis na definição e reapropriação de sentidos; por fim, a
existência, preservação e evolução desses recursos envolvem
diversificada trama de instituições não sistêmicas, cuja atuação,
a um só tempo, depende e incide na reprodução do nível anterior.
Eis a inserção da sociedade civil no mundo da vida, sob feições
decerto mais adequadas para a analise sociológica: “Aqui, no
nível institucional do mundo da vida, é que se pode ancorar um
conceito de sociedade civil  hermeneuticamente acessível porque
socialmente integrado. Esse conceito teria de incluir todas as
instituições e as formas associativas que requerem interação
comunicativa para sua reprodução, e que se fiam principalmente
nos processos de integração social para coordenar a ação dentro
de seus limites”.352 Ao introduzirem uma diferenciação
institucional específica do mundo da vida, os autores admitem e
valorizam possibilidades de interpenetração entre as esferas
política, econômica e social sem converter tais possibilidades em
desfecho fatal de colonização por parte da realidade sistêmica;
quer dizer, a par dessas manifestações negativas de colonização,
o potencial racionalizador da sociedade civil opera como
interação de lógicas institucionais parcialmente imbricadas. 353
Contudo, as peças-pivô da proposta de Arato e Cohen provêm, no
fundamental, do “quebra-cabeças” montado por Habermas ao longo de
sua extensa e prolixa trajetória.

352
Ibid., p. 429.
353
Ibid., pp. 430-51.
275

Embora a origem das inquietações de ambos os autores guarde


nexos estreitos com as lutas pela transformação política nos
países do Leste Europeu, estimulando-os a enveredar pela
reconstrução sociológica de uma categoria política moderna  em
registro “[...] muito próximo da linguagem dos atores políticos”
,354 sua proposta é ambiciosa e transborda os motivos
conjunturais, procedendo a partir do diálogo com as soluções e
problemas herdados pelas grandes famílias de argumentos acima
sumariadas. Por outras palavras, reeditam-se os grandes dilemas
do horizonte político inaugurado pela modernidade e sustentam-se
respostas afinadas com o mundo contemporâneo; isso, tanto no que
diz respeito às relações entre a sociedade e o poder  não mais
concebidas em chave dicotômica  quanto no tocante às

possibilidades da constituição de uma vontade política comum 


agora definidas como projeto normativamente cimentado pelo agir
comunicativo da sociedade civil. 355 Tal asseveração não é ociosa,
pois, em se tratando de uma proposta dessas dimensões, seus
propósitos situam-na muito além de uma teoria dos atores sociais;
entretanto, trata-se a um só tempo de uma teoria que não apenas
visa a refletir e sistematizar a experiência desses atores no
último quartel do século xx, mas também tenciona orientar sua
prática. Esse duplo caráter de reflexão teórica de fôlego, por
certo notável, e de discurso dirigido a certos atores sociais
traz conseqüências: a fusão de vasto repertório de argumentos
oriundos da filosofia e da macroteoria sociológica com propósitos
normativos e descrições e preocupações empíricas produz o saldo
de uma persistente ambigüidade na definição da sociedade civil 
particularmente se considerado que as pretensões normativas
perpassam por igual os planos filosófico, sociológico e empírico.

354
Andrew Arato, “Ascensão, declínio...”. Op. cit., p. 22.
355
Jean Cohen e Andrew Arato, Civil society..., op. cit., pp. 451-6.
276

A esse respeito, cumpre lembrar que em Habermas a relação


entre publicidade e mundo da vida desempenha um papel normativo
 sem estar constituída, a rigor, por categorias normativas ,
porque ela é equacionada em termos de uma estrutura ontológico-
comunicativa, prescindindo de qualquer conteúdo substantivo e de
todo ator empírico predeterminado: “a soberania totalmente
dispersa nem sequer se encarna nas cabeças dos membros
associados, mas  se de alguma forma pode se falar ainda em

encanação  apenas naquelas formas de comunicação carentes de


sujeito que regulam o fluxo da formação discursiva de opinião e
vontade[...]”. 356 Em conseqüência, a formação de vontade sobre
aquilo que, no processo de formação de opinião, foi definido como
interesse comum não pressupõe qualquer ator definido de modo
normativo, mas apenas o efeito de racionalização do poder e da
vida social derivado de um agir comunicativamente estruturado.
Entrementes, para dizê-lo com Arato, “[...] a unidade da
sociedade civil só é óbvia quando considerada de uma perspectiva
normativa”. 357 No plano mais abstrato das categorias filosóficas,
a proposta de Arato e Cohen toma emprestadas energias
prescritivas do modo assaz peculiar pelo qual Habermas lida com
questões normativas; mas a operação de estender esse expediente
aos atores sociais é controversa e plena de dificuldades: como
lidar empiricamente com atores arregimentados conforme princípios
normativos? Em balanço de Social theory and civil society, dois
anos após sua publicação, o próprio Arato discorre acerca de
diversos problemas não equacionados de maneira satisfatória nessa
obra, entre outros: a ausência de “[...] distinção mais precisa
entre as preocupações sociológicas, normativas, filosóficas”; e,
no terreno “metodológico da análise conceitual”, a constatação de
que “[...] a noção de sociedade civil continua sendo prejudicada

356
Jürgen Habermas, “La soberanía popular como procedimiento  Un concepto
normativo de lo público”, in María Herrera (coord.), Jürgen Habermas 
Moralidad, ética y política. Propuestas críticas, p. 53.
357
Andrew Arato, “Ascensão, declínio...”, op. cit., p. 21.
277

por inúmeras ambigüidades”. 358 Sem dúvida, a falta de precisão


aparece contrabalançada por aportes instigantes para uma
reconstrução contemporânea da sociedade civil como categoria
sociológico-política; por sua vez, as ambigüidades metodológicas,
acarretadas pela projeção dessa categoria e seus pressupostos
normativos para o plano empírico, não parecem facilmente
contornáveis, e, no limite, sua justificativa depende da
ponderação dos custos cognitivos inerentes ao princípio
prescritivo que recorta e organiza a interpretação da realidade.
Conforme será visto, na literatura local da nova sociedade civil
a proposta de Arato e Cohen é equacionada, por via de regra, em
termos de seus componentes para elaborar diagnósticos acerca do
papel desempenhado por certos atores sociais nos últimos anos,
produzindo leituras particularmente restritas das tendências nas
práticas de consociação de interesses.

2. Pressupostos para abordar a literatura local

É pertinente explicitar, embora de forma breve, alguns


pressupostos subjacentes à presente reflexão, fundamentalmente
quanto à relação entre as formulações teóricas gerais, recém-
bosquejadas, e a literatura local. Pode parecer despropositada a
opção de abstrair em níveis diferentes os usos criados pela
reapropriação e a teoria de referência: por que não entabular
relação com os arcabouços teóricos imperantes  sem recorrer a
semelhante hierarquização da literatura , para depois analisar
seus limites mediante as evidências discrepantes levantadas pelo
tratamento empírico no caso do Brasil? Para tanto, devido à
complexidade do campo das teorias da democracia e à prolixidade e
envergadura dos empreendimentos desenvolvidos por Cohen e Arato
ou por Habermas, seria mister realizar uma reflexão instalada no
terreno da teoria, com os procedimentos analíticos que lhe são

358
Ibid., pp. 21-2.
278

pertinentes; apenas é preciso mencionar que as reconstruções


apresentadas nesta e na primeira parte deste trabalho resultam
insuficientes para tais propósitos. 359 Quando se lida com corpos
teóricos cujo objeto é sua própria edificação  teorias gerais
, torna-se incontornável enveredar pelas trilhas da articulação
dos conceitos, e esse esforço adiaria desnecessariamente a
abordagem da questão que aqui interessa: os diagnósticos sobre o
revigoramento da vida pública pelo agir engajado da nova
sociedade civil. Mas, é claro, as dificuldades inerentes ao
debate teórico não são a única razão  nem a mais importante 
para preservar a distinção entre os dois níveis. A pertinência da
diferenciação entre a teoria e a apropriação deriva do problema
metodológico do tratamento adequado aos níveis da análise: se as
formulações gerais que informam a literatura local da nova
sociedade civil fazem juz a uma discussão de índole estritamente
teórica, sem dúvida é pouco plausível, se não ingênuo, ensejar
uma reflexão que pretenda transitar, sem espaço para as mediações
pertinentes, da crítica à teoria da sociedade civil aos traços
definidores das práticas de consociação no Brasil e, mais
especificamente, na RMSP. Com efeito, em semelhantes trajetos,
percorridos nos trabalhos acadêmicos com certa freqüência, parece
iniludível o risco de levar de roldão a teoria, inferindo
críticas imediatas a partir dos dados empíricos, ou de atropelar
a realidade, aplainando os aspectos não iluminados pela teoria.
Na medida em que a apropriação encontra-se localmente arraigada,
formulando leituras dos processos político-sociais que marcaram a
história do país nas últimas décadas, seus diagnósticos sobre os
promissores efeitos do agir da sociedade civil para o espaço
público e a democracia podem ser diretamente interpelados por
resultados de pesquisas empíricas voltadas para a elucidação dos

359
O campo das teorias da democracia, particularmente no que diz respeito às
perspectivas discursiva (Habermas) e da sociedade civil (Arato e Cohen),
encontra-se densamente balizado pelo debate teórico das últimas décadas, cuja
complexa disposição apenas resulta cabalmente compreensível pela intervenção
constante de interlocutores de filiações as mais diversas  comunitaristas,
pluralistas, participacionistas, elitistas.
279

padrões gerais da participação em associações, e das


características socioeconômicas e demográficas de quem nelas se
engaja.

Há motivos suficientes para abordar em conjunto a literatura


da nova sociedade civil, desde que sua caracterização não
pressuponha univocidade de sentido nas interpretações dos
diversos autores: primeiro, todos eles partilham referentes
teóricos comuns  ora com maior ênfase na obra de Arato e Cohen,
ora no pensamento de Habermas ; segundo, existe interlocução
sistemática entre os autores e, mais ainda, boa parte do debate
estabelece contato com as formulações teóricas gerais
principalmente através das sistematizações difundidas por Costa e
Avritzer  isto é, desenvolveram-se referentes conceituais, cujo
uso e cuja difusão não necessariamente remetem à teoria original
; terceiro, as posições defendidas nessa literatura vão além de

um simples conjunto de idéias esparsas com vínculos acidentais 


na verdade, mantêm nítidas semelhanças atreladas à assunção de
pressupostos comuns que serão especificados nas páginas seguintes
; quarto, e isto é fundamental, a própria literatura da nova
sociedade civil se apresenta como alternativa abrangente para
pensar os desafios da democracia, e suas transformações em curso,
em face da perspectiva institucional da ciência política, que
atingiu posição preponderante no contexto dos processos de
transição. Cabe frisar mais uma vez que o fato de os autores se
reportarem a um arcabouço conceitual comum, no desenvolvimento de
argumentos marcados pela afinidade, não exclui a presença de
nuanças e diferenças, tal e como evidenciado pelo maior ceticismo
dos textos de Costa  filiado diretamente ao debate alemão , em
contraposição às posições mais confiantes na potencialidade
democratizadora da sociedade civil, próprias dos trabalhos de
Avritzer  autor vinculado à vertente anglo-saxônica do mesmo
debate.
280

A despeito de tais diferenças, as semelhanças 


reconhecidas e firmadas como expediente de auto-identificação
pelos autores  são mais relevantes para os propósitos da
presente análise, pois elas constituem o cerne da litaratura da
nova sociedade civil e explicam, em boa medida, a crescente
influência de seus diagnósticos no campo da sociologia. Sem
pressupor unicidade de pensamento, uma caracterização de conjunto
viabiliza a compreensão desses diagnósticos, e de seus alcances,
mediante a reconstrução em maior ou menor medida estilizada dos
principais argumentos e pressupostos  recurso, aliás, de longa
tradição no pensamento teórico.360 Entende-se que a literatura da
nova sociedade civil explora possibilidades operativas da teoria,
quer dizer, sua apropriação, simplificação e reprodução
orientadas para a análise das transformações políticas ocorridas
no Brasil nos últimos anos  sem isso necessariamente implicar
qualquer vulgarização. A consolidação da literatura local, ou
seja, a reprodução estereotipada de certos argumentos ou formas
de se organizarem problemas, não banaliza a teoria, antes,
mobiliza seu potencial e sintetiza suas insuficiências pela
intermediação de intérpretes competentes ou de especialistas na
matéria. 361 Assim, a distinção entre a literatura local e as
formulações teóricas gerais permite equacionar a abordagem sob

360
A reconstrução estilizada de argumentos com o intuito de sistematizar a
crítica teve repercussões notáveis, por exemplo, no campo das teorias da
democracia: Schumpeter e sua crítica à filosofia política oitocentista,
caracterizada sob o rótulo “teoria clássica da democracia”; Macpherson e seus
quatro modelos de democracia liberal; o próprio Habermas e seus modelos da
“concepção liberal” e da “concepção republicana da democracia”. Keynes procedeu
de igual maneira quando opôs sistematicamente sua teoria geral à “teoria
clássica da economia”. Cf. Joseph Alois Schumpeter, Capitalismo, socialismo y
democracia, vol. II, pp. 321-42; C. B. Macpherson, La democracia liberal y su
época, pp. 9-34; Jürgen Habermas, “Três modelos normativos de democracia”, pp.
39-53; John Maynard Keynes, A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, p.
15.
361
É claro que subsiste o problema da “vulgarização” e dos cânones para se
definirem os intérpretes qualificados; entretanto, a própria estruturação do
campo acadêmico pressupõe critérios objetivos  que não são infalíveis  de
hierarquização da produção intelectual. Qualquer tentativa de escapar ao
processo de regressão infinita na busca do fundamento para determinar as
interpretações qualificadas terá de lançar mão dos cânones já consolidados
nesse campo.
281

outra lógica, pois introduz a diferença entre a teoria e seus


usos analíticos, mantendo o pressuposto da continuidade entre
ambos. O recurso adquire particular relevância quando considerado
que a teoria, e a própria problemática da sociedade civil, distam
de se reduzir ao aprimoramento de conceitos para pensar
prospectivamente atores sociais; conforme mostrado, trata-se
também de uma tentativa de reconstrução da categoria no quadro
maior das grandes tendências sociopolíticas da modernidade. Por
sua vez, a literatura local veio se posicionar no vácuo deixado
pelo declínio das promissoras elaborações analíticas sobre os
movimentos sociais; isto é, opera, em boa media, no registro
sociológico da interpretação dos atores sociais e da ação
coletiva.

Visto que a apropriação e uso da teoria não obedecem a


critérios arbitrários, exprimindo com maior ou menor coerência
suas implicações conceituais, subsiste um problema, a saber, a
plausibilidade de assumir que as eventuais inconsistências
trazidas à tona pela análise empírica não apenas assinalam
inadequações entre os diagnósticos e a realidade que buscam
apreender, mas também apontam para insuficiências nas formulações
teóricas mais gerais. Na realidade, para além de formulações
intuitivas com respeito a tais insuficiências, esse é um passo
impossível de se dar a partir da abordagem aqui proposta.
Contudo, cabe explicitar que a análise a ser desenvolvida está
impregnada de ceticismo perante as promissoras conseqüências hoje
atribuídas ao agir espontâneo e dialógico da sociedade civil,
cuja emergência e cujas características intrínsecas
presuntivamente ancorariam a redefinição teórica e prática da
democracia  não apenas na sua acepção formal, passível de
ampliação graças à sensibilização do aparato institucional da
política diante dos atores oriundos do chamado mundo da vida,
como também em sentido substantivo, isto é, como aprimoramento
democrático-normativo da vida social.
282

3. O contexto e o conceito

A emergência da literatura da nova sociedade civil, como


perspectiva de interpretação dos dilemas enfrentados no processo
de consolidação e ampliação da democracia, aparece vinculada
àquilo que poderia ser denominado de “retorno da sociologia” no
pensamento latino-americano. Após as repercussões das teorias do
desenvolvimento cepalinas formuladas em meados do século XX, a
partir dos anos 60 e até os 80, foi sociológica a matriz a
embasar parte hegemônica dos desenvolvimentos das ciências
sociais na região  por sinal preocupadas com a resolução dos
entraves que, legados por histórias nacionais repletas de
iniqüidade, hiperexploração e colonialismo, emperravam a
362
modernização das estruturas sociais. De fato, tratou-se em boa
medida não apenas de um pensamento acerca da modernização, mas de
um pensamento modernizador, isto é, confiante nos efeitos
incorporadores das mudanças em curso, na viabilidade da
realização plena da “segunda abolição” graças ao profundo impacto
provocado pela materialização da “ordem social competitiva” 
para dizê-lo de forma exemplar com as palavras de Florestan
Fernandes em meados da década de 60. 363 Malgrado o bem-sucedido

362
Cf. Ruy Mauro Marini, “La década de 70 revisitada”, in Ruy Mauro Marini e
Márgara Millán (coords.), La teoría social latinoamericana  La centralidad del
marxismo, v. III, pp. 17-41; Agustín Cueva, “Reflexiones sobre la sociología
latinoamericana”. In Ruy Mauro Marini e Márgara Millán (comps.), La teoría
social latinoamericana  Textos escogidos, v. III, pp. 379-97.
363
Florestan Fernandes, A integração do negro na sociedade de classes. V. 2,
(1964), pp. 116-332; para outro autor altamente representativo desse momento,
cf. Gino Germani, Política y sociedad en una época de transición  de la
sociedad tradicional a la sociedad de masas. (1962), pp. 147-62. Gabriel Cohn
precisa de forma nítida as implicações modernas e democráticas da “ordem social
competitiva” em Florestan Fernandes: “Mas, quando ele fala numa ‘ordem social
competitiva’, ele está pensando o competitivo em termos que envolvem uma
referência democrática, eu quase diria uma incorporação pelo viés socialista de
certos temas ao pensamento liberal, a saber, uma ordem social em que os
mecanismos de organização e funcionamento dos processos sociais assegurem a
possibilidade de acesso universal a meios, recursos e instrumentos e na qual de
alguma maneira [...] haja algo assim como a possibilidade de uma carreira
universal aberta ao mérito.” Gabriel Cohn, “Padrões e dilemas: o pensamento de
283

desempenho das estruturas produtivas, que passaram a multiplicar


os milagres econômicos, os processos de industrialização e de
urbanização produziram resultados de integração muito aquém das
expectativas e, além do mais, acarretaram novos problemas
vinculados ao crescimento da pobreza em termos da precariedade
das condições de vida e da inserção econômica de crescentes
camadas urbanas, avultadas ao ritmo da migração. Para além
daquilo que poderia ser pensado como insuficiências do
crescimento econômico, tratava-se mais propriamente dos efeitos
perversos desfechados pela própria modernização, 364 cuja reflexão
conceitual mais relevante fora elaborada no marco do debate sobre
a eventual existência e implicações de uma massa marginal 
teoria da marginalidade , ou seja, de um largo segmento da
população desnecessário à reprodução do capital. 365 Cindidos seus
vínculos com as teorias da modernização pelo mercado e diante da
acentuação das tendências registradas na década anterior, o
pensamento sociológico defrontara-se com interessante bifurcação
nos anos 80: de um lado, em continuidade com a tradição marxista,
empenhou seus esforços explorando as possibilidades da
modernização pela via política, agora encarnadas em atores

Florestan Fernandes”, in Reginaldo Moraes, Ricardo Antunes e Vera B. Ferrante


(orgs.), Inteligência brasileira, p. 135.
364
Sem dúvida, um trabalho emblemático nessa perspetiva foi o coordenado por
Lúcio Kowarikc e Vinicius Caldeira Brant: São Paulo, 1975  Crescimento e
pobreza; cf., particularmente, pp. 21-61.
365
As duas posições antagônicas nesse debate foram representadas de forma
lúcida pelos trabalhos, hoje clássicos, de José Nun, propulsor da tese da massa
marginal, e Fernando Henrique Cardoso, crítico das tendências “catastrofistas”,
anunciadas pelo primeiro autor, e da pertinência do conceito massa marginal
dentro de uma análise reputada marxista. Também Francisco de Oliveira escreveu
ensaio célebre contra as dualizações introduzidas pelas teses da marginalidade.
Cf. José Nun, “Superpoblación relativa, ejército industrial de reserva y masa
marginal”, (1969) Revista Latinoamericana de Sociología, republicado sob o
título “La marginalidad en América Latina: el concepto de masa marginal”, in
Ruy Mauro Marini e Márgara Millán (comps.), La teoría social latinoamericana 
Textos escogidos: la teoría de la dependencia, v. II, pp. 139-79; Fernando
Henrique Cardoso, “Comentarios sobre los conceptos de sobrepoblación relativa y
marginalidad”, (1971) Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, republicado
sob o título “Crítica a José Nun”, in ibid., pp. 307-17; Francisco de Oliveira,
“A economia brasileira: crítica à razão dualista”, (1972), pp. 5-82.
Recentemente, José Nun reeditou a polêmica em texto instigante: “O futuro do
emprego e a tese da massa marginal”, pp. 43-63.
284

sociais inéditos  as teorias dos movimentos sociais 366 ; de


outro, extremou sua crítica, lançando mão de conceitos cunhados
na sociologia clássica oitocentista para ensejar uma sociologia
da decadência das sociedades latino-americanas, capaz de “[...]
delimitar conceitualmente o fenômeno histórico da dissolução
social”367  anomia, desintegração, pulverização, atomização,
desequilíbrio, instabilidade, desafeição, retraimento aos grupos
primários, ruptura de identidades e identidades restringidas
foram, entre outros, termos introduzidos por essa vertente para
espelhar as manifestações da dissolução social. 368

Entrementes, ante os exíguos incentivos de uma teoria da


autodissolução e, sobretudo, ante sua incapacidade de dar conta

366
A problemática dos movimentos sociais fora equacionada em dois grandes
marcos analíticos, as teorias da mobilização de recursos, dominantes na
discussão anglo-saxônica, e as teorias marxista-estruturalista e dos novos
movimentos sociais  pós-industriais , hegemônicas nas formulações provindas
da Europa continental; as últimas foram as que registraram larga presença no
debate latino-americano. Cf. Maria da Glória Gohn, Teorias dos movimentos
sociais  Paradigmas clássicos e contemporâneos, pp. 211-23, 281-5. Para as
duas vertentes do paradigma europeu, cf. Manuel Castells, “Los movimientos
sociales urbanos en la vía democrática al socialismo”, (1979), in Mario
Bassols, Roberto Donoso, et al., Antología de sociología urbana, pp. 777-83;
Jordi Borja, “Movimientos urbanos y cambio político”, (1981), in ibid., pp.
801-29; Alain Touraine, “Os novos conflitos sociais  para evitar mal-
entendidos”, (1983), pp. 5-18; Alberto Melucci, “Um objetivo para os movimentos
sociais?”, pp. 49-66. Para um trabalho representativo desse debate na análise
da América Latina, cf. Tilman Evers, Clarita Muller-Plantenberg e Stefanie
Spessart, “Movimentos de bairro e Estado: lutas na esfera da reprodução na
América Latina”, in José Álvaro Moisés, Lúcio Kowarick, et al., Cidade, povo e
poder, pp. 110-64. Interessante revisão dos grandes eixos de discussão em
meados da década de 70  espoliação urbana, marginalidade , nos anos 80 
movimentos sociais  e no começo da última década do século  cidadania  foi
desenvolvida por Lúcio Kowarick, “Espoliação urbana, lutas sociais e cidadania:
fatias de nossa história recente”, pp. 105-13.
367
Eugenio Tironi, “Para una sociología de la decadencia  El concepto de
disolución social”, p. 12.
368
Interessante análise dessa inflexão no pensamento latino-americano, abordada
como “desorganização dos conceitos” paralela à desordem acarretada pelas
profundas mudanças ocorridas nas sociedades do Cone Sul, foi elaborada pelo
autor do conceito “identidades restringidas”, Sergio Zermeño, em La sociedad
derrotada  El desorden mexicano del fin de siglo, pp. 37-45. Cf., também,
Sergio Zermeño, “Hacia una democracia como identidad restringida: sociedad y
política en México”, (1987). Em 1989, Francisco Weffort lançou mão da
sociologia da decadência para refletir acerca da “degenerescência das
sociedades latino-americanas”, adicionando às tendências de expansão da anomia
nova hipótese inspirada nos arranjos emergentes na ordem internacional: o
bloqueio de perspectivas e o sentimento da perda de futuro nessas sociedades.
Cf. “A América Latina errada”, in Francisco Weffort, Qual democracia?, (1992)
pp. 35-62.
285

das transformações políticas que se alastraram pelo Cone Sul,


fora outro o pensamento que se tornara hegemônico, porém, dessa
feita oriundo da ciência política: as teorias da transição
democrática a equacionarem em registro diferente a relação entre
modernização e política. Pouco preparado para esclarecer os
melhores caminhos para se sair das ditaduras mediante o redesenho
de instituições políticas democráticas, quer pelo seu desencanto
com as possibilidades da transformação social  no limite, até
da existência civilizada do social , quer pela sua vocação para
a compreensão não institucional da política, o pensamento
sociológico assumiu pela primeira vez em décadas um papel
secundário no debate internacional. A literatura da nova
sociedade civil apresenta sua contribuição como ancorada ao
“retorno da sociologia”, pois, aceitos de forma consensual tanto
os serviços prestados pelas teorias da transição quanto o êxito
dos processos de democratização dos regimes na América Latina, o
olhar da abordagem sociológica acusaria os limites do
entendimento meramente institucional da política e salientaria as
enormes pendências em termos de uma “democratização societal”:
“Ao longo dos anos 90, vai-se consolidando uma nova abordagem da
democratização; esta, de natureza sociológica, refuta a
homologação entre os processos de construção institucional e a
democratização societal subentendida nas teorias da transição”. 369
Por outras palavras, as transições deixaram incólumes certos
traços pouco democráticos da política nas sociedades latino-
americanas, fundamentalmente  segundo caracterização de
Leonardo Avritzer , a altíssima continuidade dos interesses
políticos dominantes nas velhas e indesejáveis práticas
políticas, e as abissais desigualdades de acesso ao poder, que
perpetuam o desequilíbrio nas “relações societárias”. 370

369
Sérgio Costa, “La esfera pública y las mediaciones entre cultura y política:
el caso de Brasil”, p. 95.
370
Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional para o novo associativismo”,
pp. 149-51. Cumpre recordar que dentro do campo da ciência política as análises
da institucionalização da democracia foram menos “otimistas” do que a
286

Assim, o pensamento sociológico, não na sua vertente


pessimista, mas em linha de continuidade com as teorias dos
movimentos sociais, abriria de novo o caminho para a análise das
possibilidades de transformação pela via da ação social, cujos
atores e cujas valiosas contribuições teriam sido relegados pelo
confinamento da democracia aos estreitos marcos do arcabouço
371
político-institucional. Seja dito de passagem, em perspectiva
crítica semelhante, isto é, objetivando alargar os conceitos além
de sua dimensão político-institucional, as ciências sociais, e
particularmente o trabalho sociológico, encontraram na questão da
cidadania outra veia temática de rearticulação do pensamento. Há
claros pontos de contato entre a “nova cidadania”  segundo
denominação também cunhada para esse campo temático  e a nova
sociedade civil, visto que o alargamento do conceito de cidadania
faz-se de modo a considerar mudanças na sociabilidade, na cultura
política, na definição de direitos, na constituição de atores
sociais e, portanto, no deslocamento do foco conceitual da
relação entre o Estado e o indivíduo para a inovadora
incorporação da sociedade civil como protagonista dessa ampliação
de fronteiras. 372 De fato, também a nova cidadania e seu amplo
espectro de problemas e expectativas encontram-se, amiúde, sob o
risco de uma “inflação normativa”  para dizê-lo com a arguta

literatura das transições. A esse respeito, cf. o balanço crítico elaborado por
Fernando Limongi do tipo de diagnósticos propostos pela literatura da
institucionalização: “Institucionalização política”, in Sergio Miceli (org.), O
que ler na ciência social brasileira (1970-1995), vol. III, pp. 101-55.
371
Nesse ponto há coincidência ampla entre autores, v. g.: “Alguns autores
(dentre outros Alvarez, Dagnino e Escobar; Avritzer) mostraram que as teorias
da transição, ao privilegiarem um conceito de democracia centrado unicamente na
vigência de ‘instituições’ democráticas (eleições livres, direitos civis
garantidos, normalidade da atividade parlamentar etc.), confinaram o estudo da
democratização à esfera institucional, ignorando ‘o hiato entre a existência
formal de instituições e a incorporação da democracia às práticas cotidianas
dos agentes políticos’ (Avritzer).” Sérgio Costa, “Movimentos sociais,
democratização e a construção de esferas públicas locais”, p. 121.
372
Cf. Evelina Dagnino, “Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção
de cidadania”, in Evelina Dagnino (org.), Anos 90  Política e sociedade no
Brasil, pp. 108-9; Elenaldo Celso Teixeira, “As dimensões da participação
cidadã”, pp. 191-4 e 205-7. Para uma análise breve do ponto de vista do
direito, cf. Fábio Konder Comparato, “A nova cidadania”, pp. 85-105.
287

expressão de Danilo Zolo. 373 Sem dúvida, o “retorno da sociologia”


em moldes enfaticamente normativos constitui, em boa medida, uma
resposta ao enfoque limitado das teorias da transição, sem
qualquer força heurística para equacionar os problemas mais
abrangentes da democracia e inclusive da política, irredutíveis a
mera dimensão institucional do sistema político  embora ela
seja condição sine qua non da própria democracia. Diga-se de
passagem, essa ênfase normativa também parece vinculada ao
declínio da matriz teórica marxista, que no terceiro quartel do
século informou os esforços intelectuais para pensar a
transformação social como projeto lastrado em processos materiais
e políticos de longo prazo. Independentemente da plausibilidade
das afirmações sobre as vantagens do enfoque da nova sociedade
civl, interessa salientar, por enquanto, o fato de a mudança de
perspectiva aparecer justificada como introdução de uma proposta
analítica mais adequada para se pensar nos desafios do presente.
Convém, portanto, precisar as feições distintivas dessa
perspectiva, particularmente sua especificidade em relação a
diversos usos correntes da idéia de sociedade civil no país. As
referências mais gerais para tal delimitação já foram expostas e
remetem às distinções entre as grandes famílias de argumentos,
todavia, seria um equívoco deduzir as características da
literatura local a partir dos traços principais da teoria; embora
exista inegável continuidade, ela não pode ser deduzida, pois,
conforme explicitado, trata-se de níveis analíticos distintos.

O enfoque da nova sociedade civil reputa-se investido de


maior pertinência para pensar nos desafios do presente porque não
fornece, nem pretende fornecer, uma caracterização meramente
descritiva da existência e do comportamento dos novos atores
sociais emergentes ou de recente consolidação; antes, em
congruência com seus referentes teóricos, visa a restabelecer um
marco de interpretação simultaneamente empírico e normativo para

373
Danilo Zolo, “La ciudadanía en una era poscomunista”, p. 122.
288

apreender o sentido cabal das novas tendências registradas na


ação coletiva  extraindo-lhes conseqüências relevantes para a
redefinição da democracia e do espaço público no Brasil. De fato,
as diversas iniciativas das associações pertencentes à sociedade
civil adquirem enorme ressonância no interior dessa literatura,
para além dos resultados particulares dos diversos casos, porque
tipificadas como expressão do fortalecimento e autonomização da
opinião e espaço públicos diante das instâncias mais ou menos
herméticas dos poderes econômico e político  por sinal, não
raro incapazes de materializar, motu proprio, aquilo que é de
“interesse geral” da sociedade. Nos termos aqui empregados, a
intensidade da vida pública enriquecida pela participação de
novos atores plurais, cujas demandas são processadas de forma
discursiva em contextos coletivos  primeiro  e perante o
conjunto da sociedade  depois , define tendência inédita de
determinação democrática do espaço público no país. Até aqui, a
força simbólica com que é investido o agir da nova sociedade
civil articula, de forma consoante, tanto as formulações teóricas
de Habermas acerca da democracia discursiva e das possibilidades
contidas no conceito de publicidade 374 quanto a proposta de Arato
e Cohen sobre o potencial democratizador das identidades
coletivas institucionalizadas e ancoradas no mundo da vida.
Contudo, as restrições a serem respeitadas pelos atores da
sociedade civil no momento de sua participação no espaço público
são controversas, particularmente no que diz respeito à
possibilidade de institucionalizarem, de forma permanente, sua
influência nas esferas da política e da economia: enquanto a
interpretação sustentada por Costa, mais próxima de Habermas,
chama a atenção para os riscos de deturpação do agir legítimo
desses atores quando incorporados ao chamado mundo sistêmico;375 a

374
Vide supra, primeira parte, particularmente a seção “As características e o
estatuto moderno do espaço público como publicidade”.
375
Cf. Sérgio Costa, “A democracia e a dinâmica da esfera pública”, pp. 57-61;
Sérgio Costa, “Atores da sociedade civil e participação política: algumas
restrições”, pp. 63-9.
289

posição de Avritzer, coerente com as formulações de Arato e


Cohen, não apenas postula a existência de limites mais fluidos
entre os âmbitos político, econômico e da sociedade civil, mas
defende  como ação ofensiva da sociedade civil  o expediente
da institucionalização permanente. 376

A despeito da discrepância quanto aos riscos ou benefícios


da institucionalização da influência, em ambos os autores a
emergência da nova sociedade civil aparece equacionada como
adensamento de mediações societárias capazes de revitalizar o
espaço público e a democracia; portanto, não se trata e quaisquer
tendências a incidir na ampliação desse espaço, senão
especificamente daquelas decorrentes da organicidade da vida
pública ou da ação social  e, como será visto mais adiante, não
de qualquer tipo de ação social. Isso traz à tona a conveniência
de distinguir a nova sociedade civil do que poderia ser
denominado de “fenômeno abrangente da sociedade civil”. A
efetividade das mediações societárias envolve questões mais
amplas não subordinadas à ação ou constituição de atores
coletivos, as quais dizem respeito à configuração do próprio
espaço público  tal e como definido na primeira parte deste
trabalho: de um lado, a vida política, isto é, as instituições
políticas em seus diferentes níveis, as normas jurídicas do
direito público, os diversos órgãos administrativos que compõem a
interface entre o governo e a população, e o leque de
dispositivos institucionais desenhados para acolher a
participação social ou a ativação do direito por parte da
sociedade  não necessariamente organizada ; do outro, a mídia,
ou seja, a estrutura de propriedade dos meios de comunicação, os
traços mais ou menos concorrenciais do jornalismo na imprensa, na
TV e no rádio, o grau de profissionalização dos responsáveis pela

376
Cf. Leonardo Avritzer, “Um desenho...”, op. cit., pp. 168-71; Leonardo
Avritzer, “Além da dicotomia Estado/mercado  Habermas, Cohen e Arato”, pp.
220-2.
290

cobertura, produção e difusão de notícias, e as diretrizes


políticas dos media no que tange aos interesses passíveis de
apresentação pública  acesso à mídia. 377 Freqüentemente, a
interação entre a sociedade civil e a esfera política é
enquadrada dentro da própria idéia de sociedade civil, cujo
conceito é assim alargado para dar conta de certas tendências de
abertura ou “sensibilização” das instituições públicas perante a
sociedade. Essas tendências manifestam-se em formas diversas:
participação da população, maior controle social na gestão dos
serviços e recursos públicos, recepção de sugestões e queixas,
disposições jurídicas para a ativação social do direito ou
estímulos para o engajamento comunitário nas tarefas da
378
administração pública. Em sentido semelhante, no plano do
mercado ganham relevância os direitos do consumidor, a
proliferação de canais de interação com audiências e
espectadores, a adequação dos serviços e produtos às preferências
diferenciadas dos clientes e a incorporação ou interiorização da
“opinião pública” como acicate para o melhor desempenho
comercial. Sem sombra de dúvida, há significativos exemplos desse
fenômeno de abertura à sociedade, que por seus efeitos de
“socialização”  não isentos de controvérsia  poderia ser

377
São pouco comuns as análises da literatura da nova sociedade civil a
conjugarem simultaneamente os três aspectos  vida política, vida pública e
mídia  no diagnóstico da configuração do espaço público no Brasil: Sérgio
Costa expôs interessante estudo de caso em “Movimentos sociais...”, op. cit.,
pp. 122-9; para uma reflexão sobre a interação entre as instituições políticas
e a sociedade civil, informada pelo mesmo estudo de caso, cf. Sérgio Costa,
“Atores da sociedade civil...”, op. cit., pp. 61-9; para outro estudo de caso
bem mais pormenorizado, dessa feita voltado para os conflitos ambientais
suscitados no plano Brasil em Ação e seus projetos hidroviários, cf. Sérgio
Costa, Angela Alonso e Sérgio Tomioka, “Negociando riscos, expansão viária e
conflitos ambientais no Brasil”, pp. 157-75; ainda do mesmo autor, há tentativa
mais abrangente de caracterização dos meios de comunicação de massas, no país,
em relação ao espaço público e à sociedade civil, cf. Sérgio Costa, “Contextos
da construção do espaço público no Brasil”, pp. 179-92. Reflexões mais gerais
acerca do papel da mídia na esfera pública aparecem em Leonardo Avritzer,
“Diálogo y reflexividad: acerca de la relación entre esfera pública y medios de
comunicación”, pp. 79-94; e Sérgio Costa, “La esfera pública...” op. cit., pp.
97 e 101.
378
Para um elenco exaustivo dessas manifestações concebidas como mecanismos de
participação cidadã com base legal, cf. Elenaldo Celso Teixeira, O local e o
global: limites e desafios da participação cidadã, pp. 155-86.
291

pensado em termos do fortalecimento da sociedade civil. 379 Para


além de o alargamento do conceito introduzir imprecisões
desnecessárias, focando a atenção em questões que, a rigor, não
dependem apenas da órbita de influência da sociedade civil, é
claro que essas tendências de “sensibilização” não são o objeto
direto da literatura em análise.

Mais especificamente, a nova sociedade civil constitui uma


trama diversificada de atores coletivos, autônomos e espontâneos,
a mobilizarem seus mais ou menos escassos recursos associativos
 por via de regra dirigidos à comunicação pública  para
ventilar e problematizar questões de “interesse geral”. Os traços
de tal definição parecem consensuais, nas palavras de Avritzer,
“[...] o que caracteriza a sociedade civil brasileira é a procura
pela autonomia de uma esfera de generalização de interesses
associada à permanência de uma forma institucional de organização
baseada na interação comunicativa”; por sua vez, Costa discorre de
forma semelhante em reflexão acerca da “redescoberta da sociedade
civil no Brasil”: “Aos movimentos sociais e às demais
organizações que representam, na órbita da esfera pública, os
fluxos comunicativos provindos do mundo da vida aparecem
associados os papéis de articuladores culturais, de núcleos de
tematização de interesses gerais e de fortalecimento da esfera
pública como instância de crítica e controle do poder.”380 Porém,
quando considerado o desdobramento dos conteúdos principais de
tal definição, surgem diferenças de ênfase entre os autores. Uma
análise mais pormenorizada permite salientar certos elementos

379
Tal é o caso do orçamento participativo, ou melhor ainda, porque independe
dos resultados eleitorais, da reforma do Judiciário: “[...] os movimentos
sociais ainda poderão vislumbrar no Judiciário, nesse processo de redefinição
de poderes, [...] não um órgão do Estado mas sim da sociedade civil”. Celso
Fernandes Campilongo, “Os desafios do Judiciário: um enquadramento teórico”,
in, José Eduardo Faria (org.), Direitos humanos, direitos sociais e justiça,
pp. 33-4.
380
Respectivamente, Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade civil: uma
análise específica do caso brasileiro”, in Leonardo Avritzer (coord.),
Sociedade civil e democratização, p. 284, (grifo de AGL); e Sérgio Costa,
“Esfera pública, redescoberta da sociedade civil e movimentos sociais no Brasil
 Uma abordagem tentativa”, p. 47, (grifo de AGL).
292

passíveis de articulação em maneiras mais ou menos semelhantes de


definir a nova sociedade civil, ainda que nem todos eles estejam
presentes em cada formulação: primeiro, sua natureza coletiva ou
horizontal, isto é, fala-se em “atores da sociedade”,
“associações autônomas”, “associativismo civil”, “ancoragem no
mundo da vida”; segundo, o caráter legítimo de suas demandas ou
propósitos, concebido em termos de “interesse geral”, de
“problemas provindos do mundo da vida” ou “objetivos não-
sistêmicos”; terceiro, a adesão e separação livre e espontânea de
seus membros, o que remete à índole não organizacional ou
informal da associação  “associativismo voluntário”,
“espontaneidade social”, “inovação social” ; quarto, a
importância dos processos de comunicação na formação da vontade
coletiva e nas estratégias para suscitar a atenção pública 
“tematização pública de problemas” ; por último, seu papel como
mediação entre a sociedade não organizada e os poderes econômico
e político. 381 Esse conjunto de aspectos arrolados, porque
externos à lógica do mercado ou do poder político, explicaria o
protagonismo da nova sociedade civil como força revitalizadora do
espaço público e da democracia. Afinal, o espaço público moderno
é impensável sem as solidariedades do social próprias à vida
pública. Contudo, os traços mais gerais das definições começam a
enfrentar dificuldades à medida que as análise se deslocam dos
postulados abrangentes para o estabelecimento de critérios

381
A recorrência de tais elementos pode ser largamente constatada. Por exemplo,
em revisão da literatura acerca da nova sociedade civil, Sérgio Costa propõe
quatro traços definidores, na tentativa de oferecer uma elaboração operativa do
conceito: identidades constituídas ad hoc  1o e 3o elementos , influência
baseada na capacidade de canalizar as atenções públicas  4o elemento ,
recrutamento voluntário e livremente arbitrado  3o  e a representação de
interesses formados pela emergência de problemas no mundo da vida  1o e 2o.
Sérgio Costa, “Categoria analítica ou passe-partout político-normativo: notas
bibliográficas sobre o conceito de sociedade civil”, p. 17. Cf., também, Sérgio
Costa, “A democracia e a dinâmica da esfera pública”, pp. 62-3; Sérgio Costa,
“Contextos da construção...”, op. cit., p. 183; Sérgio Costa, “La esfera
pública...”, op. cit., p. 100; Maria da Glória Gohn, Teoria dos movimentos...
op. cit., p. 301; Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional...”, op. cit.
pp. 161-8.
293

específicos na identificação dos atores empíricos da nova


sociedade civil.
294

A CONSTRUÇÃO E OS LIMITES DOS DIAGNÓSTICOS

4. O associativismo e os novos atores

O encaminhamento da perspectiva da nova sociedade civil tem


recorrido a conceito de longa tradição nos estudos anglo-
saxônicos, herdeiros da família de argumentos encabeçada por
Tocqueville: o associativismo  “[...] formas de participação
política horizontais (associativismo voluntário)”, “novo
382
associativismo civil”. O equacionamento dos esforços de
pesquisa nesses termos, como feito  segundo será visto mais
adiante  nos trabalhos de Ilse Scherer-Warren, Costa e
Avritzer, cumpre funções de operacionalização, mas não por isso
diminui as expectativas mais ambiciosas da literatura, como
poderia sugerir a conotação menos abstrata e generalizadora da
noção “associativismo”. O tratamento do fenômeno associativo,
conforme realizado no marco da nova sociedade civil, não propõe
uma abordagem meramente descritiva dos processos de mobilização
social e do conjunto de formas inéditas de ativismo coletivo que
emergiram no panorama político do Brasil nas duas últimas
décadas; antes, apontam para o tipo específico de associações que
fazem jus ao estatuto de sociedade civil  aquelas que encarnam
cabalmente a potencialidade transformadora consignada na
literatura. Na verdade, a proliferação dessas associações
constitui, em última análise, o lastro empírico que confere
plausibilidade aos diagnósticos propostos, o que, em
contrapartida, sobrecarrega os atores enquadrados no estatuto de
nova sociedade civil de exigências e expectativas de difícil

382
Respectivamente, Sérgio Costa, “Esfera pública, redescoberta...”, op. cit.,
p. 42; Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional...”, op. cit., p. 152.
295

sustentação. Para Avritzer, por exemplo, o novo associativismo


civil seria responsável pela superação  finalmente!  da
tradicional fraqueza e desorganização das sociedades latino-
383
americanas. A magnitude desse ônus decorre do fato de o
associativismo voluntário ser investido de extraordinária
potencialidade democratizadora, capaz de ir ao encontro das
formulações da literatura quanto à redefinição das possibilidades
de mudança pela via da própria ação social. No limite, trata-se
da reconstrução teórica e prática da democracia e do espaço
público, animada pela reconstrução teórica e prática da ação
social, definindo os propósitos mais ambiciosos daquilo que
poderia ser denominado de “‘projeto’ contemporâneo de sociedade
civil”  lançando mão de expressão cunhada por Sérgio Costa. “No
‘projeto’ contemporâneo de sociedade civil é básica a idéia de
que esta (como em Gramsci) se distingue das esferas do Estado e
da economia, buscando-se evitar assim, a um só tempo, o
liberalismo, no qual a integração social se encontra no mercado,
e o estatismo, onde a sociedade civil aparece subsumida no Estado
(como nos países socialistas).” 384

383
Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional...”, op. cit. p. 171. Segundo o
autor, a renitência de tal fraqueza derivaria, entre outras determinantes, do
caráter homogeneizador da matriz do associativismo colonial  dominado por
associações de cunho religioso  e, após a independência, das feições assumidas
pelas lojas maçônicas da região  incapazes de se pautarem por padrões laicos e
pluralistas (pp. 153-6). O anacronismo de tal interpretação, visto que o
associativismo e os atributos de pluralidade e autonomia do interesse
individual não são valores a-históricos, ilustra bem o ônus normativo do
conceito, ou melhor, o tipo de discriminação normativa por ele operada. Sem
recorrer à discriminação normativa, tal reconstrução histórica teria de
reconhecer, por exemplo, que o espírito associativo já fora bastante
“entusiasta” no Rio de Janeiro da Primeira República, onde as associações de
auxílio mútuo atingiram 282.937 associados  aproximadamente 50% da população
de mais de 21 anos. Cf. José Murilo de Carvalho, Os bestializados  O Rio de
Janeiro e a república que não foi, p. 143.
384
Sérgio Costa, “Esfera pública, redescoberta...”, op. cit., pp. 40-1. No seu
artigo sobre as esferas públicas locais em dois municípios de Minas Gerais, o
autor explicita com particular clareza o conteúdo do “projeto”: “O
fortalecimento da sociedade civil e o emolduramento de seu potencial de
representação política num contexto institucional que faça da participação
desta seu referente central de sustentação, legitimidade e estabilização
constituem, hoje, sem dúvida, o projeto político de maior visibilidade pública
da esquerda pós-marxista [...]”; Sérgio Costa, “Atores da sociedade civil...”,
op. cit., p. 70.
296

Resta estabelecer, então, os novos atores da vida pública,


ou seja, os esforços particulares de consociação compreendidos
nesse associativismo civil voluntário. Embora a resposta seja
parcialmente controversa, a pergunta é simples: afinal, quem
integra a nova sociedade civil? Há consenso sobre o papel
predominante de certas formas de associação inovadoras,
notadamente as ONGs, mas não ocorre assim no que diz respeito aos
movimentos sociais, outrora privilegiados pela sociologia como
referência central no horizonte das possibilidades da ação
social. Não parece claro que os atributos do conceito da nova
sociedade civil sejam plenamente harmônicos com as
características dos movimentos sociais, por vezes possuidores de
sólidas estruturas organizacionais, cujo funcionamento e
efetividade impõem custos no terreno da espontaneidade  para
não enfatizar seus expedientes de luta política, nem sempre
considerados legítimos por amplas camadas da população. O próprio
conceito de movimentos sociais fora objeto de polêmica quanto ao
sentido de sua “novidade” e ao maior ou menor alcance de suas
feições mais promissoras;385 no entanto, e a despeito dessas
dificuldades para enquadrar os movimentos sociais no conceito de

385
“E é esta a conclusão a que chegamos: a teoria dos NMS está incompleta
porque os conceitos que sustentam não estão suficientemente explicitados. O que
temos é um diagnóstico das manifestações coletivas contemporâneas [...]”. Maria
da Glória Gohn, Teoria dos movimentos..., op. cit., p. 129. Uma avaliação dos
limites dessas promessas fora desenvolvida, quase que à guisa de balanço de dez
anos de produção acadêmica sobre os novos movimentos sociais, por Tullo
Vigevani (1989), “Movimentos sociais na transição brasileira: a dificuldade de
elaboração do projeto”, pp. 93-109. Dois anos antes, em seu conhecido trabalho
A arte da associação  Política de base e democracia no Brasil (1987), Renato
Raul Boschi ventilara, mediante arguta análise, a idealização e os limites da
emancipação atribuída aos movimentos sociais, cujos efeitos libertários
presuntivamente decorreriam da “desinstitucionalização” ou “não-
institucionalização” inerente a seu comportamento público (pp. 23-60). Em
entrevista concedida em 1994, Alberto Melucci salientou corretamente o papel
progressista que a literatura sociológica conferiu aos movimentos sociais: “Eu
acho que eles [os movimentos sociais conservadores] colocam questões teóricas
específicas, na medida em que questionam um certo tendenciosismo na literatura
dos movimentos sociais que sempre considerou movimentos sociais como uma coisa
boa, progressista”. Alberto Melucci, “Movimentos sociais, renovação cultural e
o papel do conhecimento”, entrevista concedida a Leonardo Avritzer e Timo
Lyyra, p. 161. Um exemplo lúcido das expectativas suscitadas pelos novos
movimentos sociais pode ser encontrado no artigo de Tilman Evers, “Identidade 
A face oculta dos movimentos sociais”, pp. 11-23. Para uma crítica à idéia do
caráter “novo” dos movimentos sociais, cf. André Gunder Frank e Marta Fuentes,
“Dez teses acerca dos movimentos sociais”, particularmente, pp. 20-6.
297

sociedade civil, parte da literatura aceita haver certa


continuidade entre os esforços mais modestos do associativismo
civil e as grandes iniciativas de mobilização social organizada
 resolvendo-se o problema como um assunto de magnitude e de
nível de abrangência na capacidade de representação de
interesses. Entende-se que os movimentos se situam “[...] um
degrau analítico acima das demais associações da sociedade civil;
eles apresentam um espectro temático e de conteúdos mais amplo
que o destas [...].” 386 À margem da pertinência conceitual de tal
operação  se respeitadas as restrições estabelecidas pela
própria literatura , há razões estratégicas a se levar em
consideração: os trabalhos dos novos movimentos sociais e a
literatura da nova sociedade civil partilham o mesmo horizonte
político, qual seja, a possibilidade da modernização pela via da
ação social. Nesse sentido, e em termos da inadequação a seus
próprios quesitos, alguns autores seriam mais tolerantes com os
atores sociais que encarnam a crítica à democracia institucional
do que com a ação crítica de atores institucionais  partidos,
por exemplo, ou melhor, porque referentes indispensáveis da
387
literatura sobre movimentos, igreja e sindicatos. Por último, a
flexão das exigentes restrições da literatura diante dos
movimentos sociais permite, a um só tempo, ampliar o leque de
interlocutores e definir certa continuidade no debate das últimas
duas décadas, atenuando as diferenças entre as posições
conceituais que informam a discussão nesses dois momentos. 388

386
“Neste construto teórico, os movimentos sociais são representados enquanto
atores da sociedade civil, diferenciados, entretanto, analiticamente, do
conjunto de associações peculiares a esta esfera. Eles situam-se um degrau
analítico acima das demais associações [...]”; Sérgio Costa, “Esfera pública,
redescoberta...”, op. cit., p. 46. Para reforçar o argumento: “[...]
consideramos os movimentos sociais como expressões de poder da sociedade
civil”; Maria da Glória Gohn, Teoria dos movimentos..., op. cit., p. 251.
387
Cf., v. g., a relevância desses atores institucionais em dois livros que
balizaram a reflexão em torno dos novos movimentos sociais: São Paulo: O povo
em movimento, organizado por Paul Singer e Vinicius Calderia Brant (1980); e
Quando novos personagens entram em cena  Experiências, falas e lutas dos
trabalhadores da Grande São Paulo (1970-1980), de Eder Sader (1988).
388
Interessante exceção é o artigo de Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade
civil...”, op. cit., especificamente, pp. 282-300. Embora houvesse consenso
298

Uma vez esclarecida a participação mais ou menos ambígua


dos movimentos sociais dentro do elenco de atores privilegiados
pela definição da nova sociedade civil, cabe reconhecer que sua
relevância é modesta se comparada com o peso analítico das formas
mais representativas do novo associativismo: associações as mais
diversas de índole territorial  de bairro, de moradores, de
lazer, culturais e ambientais de caráter local ; pequenas
associações profissionais e por afinidade de posições em áreas e
práticas específicas  grupos gremiais reduzidos, organizações
de pais e de alunos, associações de usuários, grupos de protesto,
iniciativas de defesa do meio ambiente, clubes ; associações de
solidariedade com distintos segmentos sociais  sem-teto,
meninos de rua, mães solteiras, deficientes, etc. ; associações
de reivindicação ou de defesa de direitos vinculados a
identidades  movimento negro, feminista, de idosos. Essa
miríade de empenhos associativos constitui o corpo do “novo
associativismo civil”, definindo seus traços principais, a saber
 segundo análise de Avritzer , o aumento expressivo do número
e ritmo das iniciativas de consociação; a introdução de mudanças
substanciais na cultura política, graças ao fato de tais atores
não mais estarem voltados para sua incorporação no seio do
Estado; e, sobretudo, a constituição de novo padrão de ação
coletiva, atrelado a critérios não-funcionais, ou seja,

quanto à impossibilidade de compreender os movimentos sociais a partir de


determinada inserção estrutural, os novos atores foram pensados, na América
Latina, no quadro maior das classes sociais, dos sujeitos coletivos e da
questão da dominação: “Eu estava, sim, diante da emergência de uma nova
configuração de classes populares no cenário público [...] o fim dos anos 70
assistia à emergência de uma nova configuração de classes”; “Suas
características comuns [dos movimentos] nos permitem falar de uma nova
configuração de classe”. Eder Sader, Quando novos personagens..., op. cit, pp.
36 e 311, respectivamente. Nesse sentido, a incorporação dos movimentos
sociais à nova sociedade civil negligencia o problema de certa
incompatibilidade entre os termos de ambas as discussões. Cf., também, o
alentado artigo de Luis Alberto Restrepo, “A relação entre a sociedade civil e
o Estado  Elementos para uma fundamentação teórica do papel dos movimentos
sociais na América Latina”, pp. 61-2 e 78-100.
299

territoriais, temáticos e plurais.389 Não obstante, nem todas as


formas de associação contempladas no elenco anterior adquirem
igual importância; para além do peso quantitativo de cada uma
delas, a literatura privilegia aquelas especialmente vocacionadas
para o fortalecimento do espaço público pela via da intermediação
societária e da tematização pública de problemas de “interesse
geral”.

Por isso, as organizações não-governamentais  ONGs 


constituem a figura associativa por excelência da nova sociedade
civil, as quais abarcam parte significativa das formas de
consociação acima arroladas, mas não compreendem as iniciativas
levadas a cabo mediante formas organizacionais como as gremiais,
comunitárias ou dos grupos de protesto. Apesar do amplo consenso
quanto à predominância das ONGs como os atores mais
significativos, há discrepância no que diz respeito aos alcances
de seu agir; as posições oscilam desde a mera afirmação
descritiva de seu crescimento vertiginoso e da expansão de suas
funções de intermediação social, num pólo, 390 até, no outro, a
elaboração de esperançosos postulados acerca de seu papel
inovador no plano da cultura política e, ainda mais, de sua
função denunciatória dos “[...] temas mais importantes que
explicitam a chamada crise civilizatória em geral.” 391 É
pertinente salientar, mais uma vez, que nem todas as iniciativas
civis estão presentes no recorte acima explicitado; sem dúvida, a

389
Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional...”, op. cit., pp. 152-3.
390
V. g., “Os movimentos sociais populares perdem sua força mobilizadora, pois
as políticas integradoras exigem interlocução com organizações
institucionalizadas. Ganham importância as ONGs [...]”; Maria da Glória Gohn,
Teoria dos movimentos..., op. cit., p. 297. Cf. Sérgio Costa, “Atores da
sociedade civil...”, op. cit., p. 71; Hélène Rivière d’Arc, “O basismo acabou?
A análise sobre a participação comunitária no Brasil (1970-90)”, p. 240-1; Luiz
Eduardo W. Wanderley, “Rumos da ordem pública no Brasil  A construção do
público”, pp. 99-101.
391
Ana Amélia da Silva, “Do privado para o público  ONGs e os desafios da
consolidação democrática”, p. 41. Cf. Ilse Scherer-Warren, “Organizações não-
governamentais na América Latina  Seu papel na construção da sociedade civil”,
pp. 10 e 13-4; Liszt Vieira, “Sociedade civil e espaço global”,
particularmente, pp. 113-9; Ricardo Toledo Neder, “As ONGs na reconstrução do
espaço público no Brasil”, pp. 1-8.
300

definição da nova sociedade civil abarca amplo espectro de


experiências associativas, todavia, há formas de consociação
constituídas sem o intuito de intermediar interesses ou tematizar
problemas  clubes da terceira idade, associações de ex-alunos,
grupos de bibliófilos, filatelistas, espeleólogos, alpinistas,
etc. , cujas atividades são pouco valorizadas analiticamente
porque distantes do papel reservado à sociedade civil, ou seja,
porque carecem de relevância para o fortalecimento da democracia
e do espaço público. 392

5. A função normativa e os “interesses gerais”

As ONGs, os movimentos sociais e outras formas de


associação voltadas para a intermediação e tematização pública de
problemas são, conforme exposto acima, os novos atores da vida
pública oriundos da sociedade civil, que arregimentariam as
energias inovadoras esparsas na sociedade não organizada,
reconfigurando o cenário da democracia no país. O fato de esses
atores encarnarem eventualmente os atributos definidos pela
literatura  horizontalidade, espontaneidade, relevância da ação
comunicativa no seu modo de agir, legitimidade, função de
intermediação societária  não permite ainda avaliar
adequadamente o sentido substantivo de sua caracterização
enquanto sociedade civil. Esse sentido reside no seu papel
normativo, cuja compreensão cabal apenas estaria ao alcance de
elaborações conceituais habilitadas para lidar, precisamente, com

392
Por exemplo, algumas iniciativas semelhantes a esse tipo de consociação
foram caracterizadas por Ilse Scherer-Warren como associações de adesão a
causas específicas ou de uma única causa e, junto com as associações sem
especificação, foram computadas na sua pesquisa sob a categoria “outros”  o
que evidencia sua escassa relevância para a literatura. Cf. Ilse Scherer-
Warrem, “Associativismo civil em Florianópolis  Evolução e tendências”,
trabalho apresentado no Primer Encuentro de la Red de Investigción del Tercer
Sector de América Latina y el Caribe.
301

o problema do normativo na redefinição da democracia;393 isto é, a


certas concepções da sociedade civil escaparia a dimensão
essencial dos novos atores, pois sua perspectiva “[...] despreza
os mecanismos normativos de geração de interesses que submetem as
ações do Estado e os discursos do poder ao crivo da opinião
pública [...]”  para expressá-lo sucintamente segundo
394
formulação de Avritzer em crítica a Francisco Weffort. Assim,
as transformações na democracia e no espaço público decorrentes
do influxo de formas inéditas de participação admitem,
presuntivamente, caracterização substantiva; não se trataria
apenas do aprimoramento institucional pelo efeito da concorrência
conflitante de novos interesses organizados  apreciação não
substantiva porque elude qualquer afirmação em termos da
idoneidade moral desses interesses , mas da índole em si
superior do agir e propósitos dos atores da nova sociedade civil.

A função normativa da nova sociedade civil não seria


passível de elucidação dentro de outras perspectivas de
abordagem, como, por exemplo, as representadas nos trabalhos de
Wanderley Guilherme dos Santos ou Fábio Wanderley Reis  seja
porque resultam “estreitos” os marcos da perspectiva
institucional da política, seja porque a visão liberal e
pluralista, ao conceber os esforços de consociação em termos de
infra-estrutura poliárquica, reduziria sua influência ou ao
aprimoramento da democracia institucional ou à admissão dos novos
atores e suas demandas no arcabouço das instituições democráticas
já existentes. 395 A redefinição substantiva da democracia pela

393
É comum o esforço por delimitar a “correta” compreensão da sociedade civil e
seu papel no espaço público  tanto no terreno das alternativas teóricas quanto
no plano das interpretações correntes nas últimas duas décadas no Brasil. Cf.
Leonardo Avritzer, “Além da dicotomia...”, op. cit., pp. 215-20; Leonardo
Avritzer, “Modelos de sociedade civil...”, op. cit., pp. 294-300; Sérgio Costa,
“A democracia e a dinâmica...”, op. cit., pp. 55-61; Sérgio Costa, “La esfera
pública...”, op. cit., pp. 93-106; Sérgio Costa, “Categoria analítica ou...”,
op. cit., pp. 7-10 e 12-6.
394
Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade civil...”, op. cit., p. 299.
395
O deslinde, nesse caso, é com respeito à perspectiva representada pelo
conhecido trabalho de Wanderley Guilherme do Santos, As razões da desordem, pp.
302

ação da sociedade civil tampouco receberia melhor tratamento nas


leituras informadas pela lógica da luta de classes, pois, nessa
ótica, a nova dinâmica social torna-se prenúncio da aglutinação
de um sujeito coletivo ou de forças políticas contestatórias 
notadamente os partidos políticos , diluindo a especificidade
dos novos atores. 396 Na realidade, os autores reivindicam a maior
pertinência de sua abordagem porque, ao mesmo tempo, ela respeita
a heterogeneidade e pluralismo do atual padrão da ação social,
mas, ao sustentarem uma compreensão normativa da sociedade civil,
lhe conferem sentido unitário aos efeitos de sua ação diversa e
reconhece plenamente sua potencialidade como agente transformador
da democracia  em sentido substantivo. De fato, embora não
fosse a chave de interpretação dominante, pelo menos desde finais
da década de 70 a sociedade civil aparece como objeto de
reflexão, em registros diferentes, na obra de autores como Carlos
Nelson Coutinho (1979), Weffort (1984), Renato Raul Boschi
(1987), Eder Sader (1988) e, mais recentemente, Santos (1993) e
Reis (1994)  referidos acima.397 A despeito dessa presença no
debate nacional, a redefinição da nova sociedade civil introduz
atributos e exigências normativas suficientes para distanciar as
concepções em termos incompatíveis; isso, não raro, gera mal-
entendidos em trabalhos que transitam despercebidos entre
posturas analíticas cuja continuidade é em boa medida nominal. 398

77-115; mas também inclui posições como a de Fábio Wanderley Reis, “Cidadania,
mercado e sociedade civil”, in Eli Diniz, José Sérgio Lopes e Reginaldo Prandi
(orgs.), O Brasil no rastro da crise, pp. 328-43. Para uma crítica do segundo
autor, em termos semelhantes, cf. Sérgio Costa, “La esfera pública...”, op.
cit., pp. 101-3.
396
As referências nem sempre são explícitas, mas de qualquer maneira atingem
abordagens da sociedade civil claramente representadas por autores como Carlos
Nelson Coutinho, A democracia como valor universal e outros ensaios, pp. 21-49;
Francisco Weffort, Por que democracia?, pp. 93-7; Eder Sader, Quando novos
personagens..., op. cit., pp. 30-7.
397
Renato Raul Boschi, A arte..., op. cit., pp. 141-61; para as outras
referências, ver as duas notas de rodapé anteriores. É ilustrativo o fato de o
termo sociedade civil aparecer no trabalho coordenado por Lúcio Kowarick e
Vinicius Caldeira Brant, em 1975, mas sem receber ainda qualquer tratamento
conceitual específico; cf. São Paulo...., op. cit., pp. 147-55.
398
Convém mencionar que hoje existem outras interpretações da sociedade civil
não enquadráveis dentro dos pressupostos da literatura aqui analisada. cf., v.
g., Vera da Silva Telles, “Sociedade civil e construção de espaços públicos”,
303

Seja dito de passagem, parte daqueles autores se reportam às


grandes famílias de argumentos, notadamente às linhagens que
descendem de Tocqueville e de Marx  no último caso, a partir da
reformulação gramsciana.

O passo procedente é, então, analisar os conteúdos


normativos a partir dos quais se interpretam a radical mudança da
ação social e os aportes substantivos da sociedade civil para a
transformação da democracia e a reconstrução do espaço público.
Para tanto, a seguinte passagem de Sérgio Costa resulta oportuna
no esclarecimento das diferenças entre os atores e interesses
convencionais da política e os atores da nova sociedade civil:
“Se a influência dos grupos corporativos que defendem interesses
particulares e específicos é devida, antes de tudo, a sua
capacidade e controle dos recursos comunicativos disponíveis, o
poder político dos movimentos sociais e das demais associações da
sociedade civil é, sobretudo, resultado do mérito normativo de
suas bandeiras, isto é, da sua possibilidade de catalisação da
anuência e do respaldo social. Nesse caso, o espaço público não
mais pode ser representado unicamente, como fazem os pluralistas,
como mercado de interesses em disputa. O espaço público deve ser
representado como a arena que também medeia os processos de
articulação de consensos normativos e de reconstrução reflexiva
dos valores e disposições morais que norteiam a convivência
399
social”. Na lógica que subjaz a essa perspectiva, a sociedade e
o conjunto de ações orientadas para sua regulação, transformação
ou conservação aparecem cindidos em dois mundos regidos pelo
império de dinâmicas e procedimentos nitidamente diferenciados: o
mundo institucional da política, seus interesses, práticas e
atores; e o mundo da sociedade que, quando organizado e

in Evelina Dagnino, Anos 90  Política e sociedade no Brasil, pp. 100-1; Vera


da Silva Telles, “Sociedade civil e os caminhos (incertos) da cidadania”, pp. 8
e 12; Mariângela Nascimento, “Democracia e espaço público no Brasil”, pp. 37-
45; Oliveiros S. Ferreira, “A crise da representação da sociedade civil”, pp.
3-6; Luiz Eduardo W. Wanderley, “Massas e sociedade civil  notas para um
estudo”, pp. 33-40.
399
Sérgio Costa, “La esfera pública...”, op. cit., p. 104 (grifo de AGL).
304

mobilizado pela consociação civil, irrompe no primeiro aventando


problemas relevantes para o conjunto da sociedade. No primeiro
reinam os interesses particularistas, as organizações e a
política na sua conotação mais mesquinha, enquanto no segundo
imperam as bandeiras normativas, as associações autônomas e a
política do consenso; não é gratuito que as palavras “interesse”
e “organização” sejam evitadas no campo semântico utilizado por
essa literatura para descrever o agir da nova sociedade civil 
a não ser na acepção “interesse geral”, no primeiro caso ,
produzindo um efeito de diferenciação entre uma política
universalista e outra particularista, previamente definidas como
atributo e não como avaliação de causas e conflitos
400
específicos. Assim, os atores tradicionais do mundo da política
 partidos, organismos corporativos e grupos de interesse , por
via de regra, agiriam na defesa de interesses oriundos da
economia ou da própria política, mas não da sociedade, contando
para isso com posições privilegiadas quanto à disposição de
recursos de poder; recursos cujo uso, regido por uma
racionalidade meramente estratégica, resultaria por vezes
inescrupuloso quando não ilegítimo, pois escaparia ao escrutínio
público.

Sem sombra de dúvida, tipificar o mundo institucional da


política enquanto pólo negativo de uma dualidade, cuja oposição é

400
A caracterização normativa da sociedade civil, como representante de
“interesses gerais”, e a construção quase tipológica de sua oposição ao mundo
institucional e organizativo da política, enquanto reino dos interesses
particularistas  compreendidos os interesses econômicos e políticos que se
exprimem nesse mundo , encontram-se largamente difundidas na literatura. As
idéias expostas neste e nos dois próximos parágrafos, quando não referidas
explicitamente, podem ser consultadas, entre outros, nos seguintes trabalhos:
Sérgio Costa, “A democracia e a dinâmica...”, op. cit., pp. 62-3; Sérgio Costa,
“Contextos da construção...”, op. cit., p. 183; Sérgio Costa, “Esfera pública,
redescoberta...”, op. cit., pp. 44-7 e 50; Sérgio Costa, “Movimentos
sociais...”, op. cit., pp. 127-8; Sérgio Costa, “Atores da sociedade civil...”,
op. cit., p. 72; Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade civil...”, op. cit.,
pp. 294-300; Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional...”, p. 170; Ilse
Scherer-Warren, “Organizações não-governamentais...”, op. cit., pp. 13-4; Liszt
Vieira, “Sociedade civil...”, op. cit., pp. 107-8, particularmente, pp. 113-9;
Ana Amélia da Silva, “Do privado para o público...”, op. cit., pp. 39-41 e 45;
Ricardo Toledo Neder, “As ONGs na reconstrução...”, op. cit., p. 8.
305

a ausência de particularismo no agir da sociedade civil,


constitui recurso analítico controverso e mereceria, em
conseqüência, passar pelo crivo de uma crítica minuciosa;
todavia, o que aqui interessa são os termos da caracterização do
pólo positivo, isto é, a justificativa dos atributos pressupostos
como consubstanciais à nova sociedade civil. Esta não é sinônimo
da sociedade como um todo; na verdade, ela é constituída como
cristalização de iniciativas de mobilização e articulação social
que elevam a certo patamar de efetividade os anseios da
população, edificando um conjunto difuso de instituições não-
cindidas ou estranhas à vida quotidiana da sociedade. Tais
instituições lidam com consensos emergentes  não com interesses
, promovem-nos e representam-nos; e a legitimidade dos mesmos
se estribaria em dois suportes fundamentais. Primeiro, porque ao
estarem arraigados na vida quotidiana e comunitária da sociedade,
não almejariam propósitos de cunho particularista  inerentes ao
desempenho dos atores tradicionais da política; na incompreensão
desse fato radicaria o “[...] equívoco das concepções que aceitam
a inovação social e a permanência da sociedade civil, mas que
[...] vinculam sua institucionalização a interesses
particularistas [...]”; ou de forma de mais enfática ainda: “não
é possível, de modo algum, eliminar distinção analítica entre
movimentos sociais e organizações da sociedade civil voltados
para a defesa da cidadania e do interesse público, por um lado, e
associações de caráter econômico e político-administrativo , por
outro. [... §] É também o que tentam fazer aqueles que em vão
procuram desqualificar as organizações da sociedade civil,
equiparando-as a grupos de interesse.”401 Segundo, porque a
geração de consensos no mundo social não admitiria manipulação,
nem a introdução de quaisquer mecanismos artificiais para
substituir a genuína opinião dos envolvidos  como ocorre, mais
uma vez, nas práticas costumeiras da política , mas obedeceria

401
Respectivamente, Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade civil...”, op.
cit., p. 294; e Liszt Vieira, “Sociedade civil..., op. cit., p. 112.
306

aos ditames da interação comunicativa. 402 Essa construção


autêntica de consensos pressuporia o acordo público das eventuais
posições conflitantes mediante a explanação racional de
argumentos factual e moralmente válidos para todos os
interlocutores envolvidos; por isso, seria capaz de funcionar
como alavanca de novos processos de enriquecimento normativo da
vida pública e da democracia.403

Enquanto o mundo institucional da política permaneceria


ensimesmado, preso na ação estratégica e na realização de
particularismos, e impedido, portanto, de se exprimir com
transparência acerca dos motivos que nele imperam, a nova
sociedade civil mostrar-se-ia capaz de defender e reivindicar
“interesses gerais” legítimos, passíveis de ampliação
representativa pela via do diálogo público. Ainda mais, a
construção de acordos no seio da sociedade civil, além de
configurar um processo transparente, aberto a todos aqueles que
decidissem se engajar nele de forma espontânea, não privilegiaria
argumentos de índole factual; antes, procederia mediante a
geração de consensos morais, pois apenas a partir deles seria
viável a edificação de novas solidariedades. Em conseqüência, as
inúmeras iniciativas de consociação civil introduziriam no espaço
público questões relevantes para o conjunto da sociedade, sendo
portadoras de “interesses gerais”  legítimos e moralmente
cimentados. A correta apreciação da potencialidade dos atores da
nova sociedade civil obrigaria a equacionar, então, tanto seu

402
Cf., v. g., Sérgio Costa, “Esfera pública, redescoberta...”, op. cit., pp.
46-8.
403
Cf. Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade civil...”, op. cit., p. 284. Em
formulação referida à relação entre o conceito de sociedade civil e o problema
da produção de solidariedade no contexto da modernidade ocidental, o autor
assevera o seguinte, de forma abstrata, porém ilustrativa quanto ao caráter
normativo de sua concepção: “O conceito de sociedade civil implica o
reconhecimento de instituições intermediárias entre o indivíduo, por um lado, e
o mercado e o Estado por outro. Estas instituições que exercem o papel de
mediação entre o indivíduo e as instituições sistêmicas cumprem o papel da
institucionalização de princípios éticos, que nem a ação estratégica no
interior do mercado nem o exercício do poder central seriam capazes de
produzir.” Ibid, p. 278 (grifo de AGL). Cf., também, Sérgio Costa, “A
democracia e a dinâmica...”, op. cit., pp. 62-3.
307

papel na resolução de amplo leque de problemas  cujas


repercussões transbordam o âmbito do local ou comunitário 
quanto sua novidade em termos do padrão de ação social e de sua
função na geração de pressões legítimas dirigidas à transformação
substantiva da democracia. Assim, o influxo pertinaz do agir
disperso e autônomo desses atores constituiria novo programa de
ampliação do espaço público e de reforma das instituições
democráticas  não apenas objetivando seu aprimoramento formal,
senão viabilizando seu aprofundamento segundo critérios
normativos atrelados à emergência legítima de consensos morais.
Arrojada proposta de Avritzer ilustra com clareza a entronização
moral da sociedade civil na reforma da democracia: trata-se da
“[...] constituição de uma câmara provisória de publicização da
sociedade política”, dirigida a “[...] regulamentar a forma de
competição da sociedade política, regulamentação essa que tem se
constituído em fonte de deslegitimação da própria sociedade
política.”404 Em suma, para empregar frase de efeito cunhada por
Costa, a “democratização da democracia” sintetizaria o aporte
inusitado dos novos atores socais.405 Tal aporte, cumpre recordar,
apenas seria corretamente perceptível dentro das balizas
fornecidas por essa literatura: “O problema de uma teorização
adequada da sociedade civil se traduz, portanto, no surgimento de
uma teoria capaz de mostrar como as estruturas normativas da
institucionalidade democrática são capazes de produzir a
generalização de interesses, apesar da predominância dos
mecanismos de geração de particularidade, um problema que a

404
Leonardo Avritzer, “Um desenho institucional...”, op. cit., p. 170. Cf.,
também, Ilse Scherer-Warren, “Organizações não-governamentais...”, op. cit., v.
g.: “Este sentido está relacionado à utopia (entendida enquanto sonho, desejo,
mas também enquanto projeto) de fortalecimento da sociedade civil e de
desenvolvimento de uma racionalidade ética [...] Esta ética desenvolvida no
seio da sociedade civil poderia vir a atuar como uma força de regulamentação de
outros setores (mercado e Estado).” (p. 13) (grifo de AGL)
405
A expressão foi formulada sob a advertência de se tratar de frase sintética
de efeito para explicitar “[...] a tarefa atribuída aos movimentos sociais e às
demais organizações da sociedade civil [...].” Sérgio Costa, “Esfera pública,
redescoberta...”, op. cit., p. 47.
308

sociedade civil tem enfrentado como o problema central da esfera


pública no Brasil.” 406

A definição da nova sociedade civil lança mão de critério


duplo, empírico-descritivo quanto aos atributos dos atores que
redefinem o novo padrão de ação social  filiação espontânea,
horizontalidade, etc. , e prescritivo no que diz respeito a seu
devido comportamento no mundo social e no espaço público 
veicular consensos genuínos, isenção de comportamentos próprios
aos atores tradicionais da política, etc. As altas expectativas
da literatura baseiam-se nessa combinação de estipulações
empíricas e normativas como asserção factual: a função normativa
da sociedade civil não apenas se encontra teoricamente cimentada,
aparecendo como aposta conceitual; antes, também é proposta como
diagnóstico da superioridade moral tanto dos consensos
societários veiculados pelos novos atores quanto do próprio
comportamento desses autores quando da exposição e resolução
pública de seus reclamos. Isso acarreta sérias dificuldades na
aplicação do conceito, visto que a introdução de exigências
normativas como expediente de discriminação dilui os contornos do
conceito fixados pelo critério descritivo e implica o risco de
pressupor a existência de um juízo externo  desde a perspectiva
do observador imparcial , habilitado para avaliar caso por caso
o proceder dos atores, atribuindo-lhes ou retirando-lhes o
estatuto de membros da sociedade civil. Se, conforme exposto nas
páginas precedentes, as características empírico-descritivas
delimitam um universo de iniciativas de consociação de per se
restrito, uma vez assentes os conteúdos prescritivos instaura-se
uma deontologia do comportamento dos atores enquanto baliza a
gerar novas exclusões. Com efeito, o crivo dos quesitos
estabelecidos pela literatura não apenas retém os partidos
políticos, grupos de interesse, sindicatos, organizações

406
Leonardo Avritzer, “Modelos de sociedade civil...”, op. cit., p. 300.
309

econômicas e instituições altamente hierarquizadas  como as


igrejas , também pode levar à “expulsão” das próprias
associações da sociedade civil quando assumem comportamentos ou
mecanismos de negociação inerentes à esfera política, pois, ao
excederem os limites de seu papel normativo, correriam o risco de
corromper seu genuíno potencial democratizante. “No limite, estas
organizações deixam de ser atores da sociedade civil
407
transformando-se em apêndices do sistema político.” A pergunta
imediata parece óbvia: onde e como traçar a fronteira tênue que
separa o enraizamento social genuíno de uma associação da
deturpação de seu potencial normativo condicionado por esse
enraizamento? Se tal indagação não carece de interesse teórico, e
nesse plano resulta pertinente, a introdução de uma deontologia
como princípio de diferenciação para lidar com os empenhos
associativos existentes gera ambigüidades de difícil resolução.
Já foi observado que as restrições à institucionalização
permanente dos atores da nova sociedade civil, em sua relação com
a esfera política, é assunto controverso na literatura; a posição
mais sensível ante os riscos o alheamento sustenta que, sob pena
de desvirtuarem seu caráter, os novos atores devem limitar-se ao
exercício de pressões cognitivo-morais, de índole essencialmente
comunicativa, recusando sua consolidação em estruturas
burocratizadas e a tentação de agir pela via do poder político,
administrativo ou econômico. 408

Reparando-se em semelhantes dificuldades, trazidas à tona


pela eventual distância entre os critérios restritivos da
literatura e as práticas reais das associações, seria de esperar
que a multiplicação de exigências derivadas da combinação de
ambos os critérios  empírico-descritivo e normativo 

407
A citação provém de uma análise dos efeitos corruptores da política,
especificamente, da adoção de “estratégias negociadas” pelos atores da
sociedade civil em dois estudos de caso  Juiz de Fora e Governador Valadares.
Sérgio Costa, “Atores da sociedade civil...”, op. cit., p. 69.
408
Cf. Sérgio Costa, “A democracia e a dinâmica...”, op. cit., pp. 60-3.
310

suscitasse dúvidas razoáveis acerca da plausibilidade de


construir diagnósticos abrangentes com base nesses pressupostos.
Primeiro, porque o “otimismo” desse enfoque transfere
considerável ônus moral aos atores por ele privilegiados;
segundo, porque não parece pertinente atribuir tantas
conseqüências, para a redefinição teórica e prática da
democracia, da ação social e do espaço público, a um universo de
iniciativas de consociação delimitado por uma lógica tão
restritiva. Para além das dificuldades ou da pertinência
analítica, seria ingênuo não atentar para o fato de a grande
influência e veloz expansão do enfoque aqui analisado, assim como
 salvo raras exceções 409  a omissão generalizada dessas
dificuldades na própria literatura, obedecerem em parte ao papel
desempenhado pela idéia de nova sociedade civil enquanto projeto
político a preencher o vazio deixado pelo declínio das teorias
dos movimentos sociais. De fato, não é gratuita a presença de
semelhanças entre ambas as perspectivas: também os movimentos
sociais foram distinguidos por sua novidade, espontaneísmo e
autonomia; por serem atores radicalmente externos à lógica das
instituições políticas e por suas alvissareiras contribuições
para a transformação da cultura política; e também a literatura
manifestou sua perplexidade ao se defrontar com a
institucionalização desses movimentos, lidando com ela a partir
de conceitos de conotação negativa como cooptação, desmobilização
e refluxo  isso, para não mencionar a notável coincidência, em

409
Sérgio Costa constitui, sem dúvida, rara exceção: “[...] há também que se
admitir que o modelo teórico-discursivo apresenta problemas para ser utilizado
como instrumental para se entender a dinâmica da esfera pública da maior parte
das democracias contemporâneas. Se se leva, por exemplo, às últimas
conseqüências o pressuposto de que a relevância pública dos atores da sociedade
civil é devida exclusivamente ao conteúdo e ao apelo argumentativo de suas
intervenções, muito poucos seriam os sujeitos coletivos, empiricamente
observáveis, a merecer o enquadramento na categoria de representante da
sociedade civil.” Ibidem, p. 63. Porém, malgrado as limitações do conceito e
admitidos os problemas de aplicação no contexto brasileiro, o autor sustenta
que a superioridade e pertinência do enfoque decorrem, precisamente, de sua
força político-normativa; cf. Sérgio Costa, “Categoria analítica ou...”, op.
cit., p. 16; Sérgio Costa, “Esfera pública, redescoberta...”, op. cit., p. 51.
O problema permanece em pé: qual a plausibilidade analítica dos pressupostos
normativos dessa literatura para a análise da realidade e quais as evidências a
alicerçarem tamanhas expectativas?
311

ambas as perspectivas, entre a fala dos atores e o discurso


acadêmico.410

6. O argumento das associações

Ante as ambiciosas expectativas da literatura, expressas na


identificação de um conjunto de atores empíricos unificados por
seus alcances normativos, não parece descabido indagar o
correlato empírico que, pelo menos em tese, permitiria ratificar
suas premissas e autorizar seus diagnósticos acerca das
conseqüências do novo agir civil para a democracia, para a ação
social e para a reconfiguração do espaço público  agora
emancipado de sua antiga monopolização pelo Estado e civilizado
pela produção dialógica de consensos normativos alheios aos
particularismos próprios dos âmbitos econômico e político. Por
certo há tendências de revigoramento da densidade societária da
vida pública, amplamente frisadas na produção acadêmica dos
últimos anos, que acodem os diagnósticos da nova sociedade civil;
no entanto, sua interpretação suscita controvérsias. O conjunto
de evidências mobilizadas para sustentar a pertinência desses
diagnósticos pode ser equacionado sob uma só denominação, que
conota bem o teor do suporte empírico invocado, a saber, o
argumento das associações. Tal argumento descansa no tripé
quantidade, intensidade, diversidade, isto é, na constatação de
mudanças fundamentais ocorridas na vida pública; particularmente,
nas tendências tradicionais de consociação quanto ao ritmo do
surgimento de novas associações  aceleração  e quanto à
diferenciação vocacional ou pluralidade os atores da sociedade

410
Essas características do debate em torno dos movimentos sociais foram
exploradas no balanço desenvolvido por Ruth Corrêa Leite Cardoso, “A trajetória
dos movimentos sociais”, in Evelina Dagnino, Anos 90  política e sociedade no
Brasil, pp. 81-90. Cf., também, Flávio Saliba Cunha, “Movimentos sociais
urbanos e a redemocratização  A experiência do movimento favelado de Belo
Horizonte”, pp. 134-5 e 142; Edison Nunes, “Movimentos populares na transição
inconclusa”, pp. 92-4. Para uma crítica dessa relação “ciclotímica” entre o
pensamento acadêmico e os movimentos sociais, cf. Götz Ottmann, “Movimentos
sociais urbanos e democracia no Brasil  Uma abordagem cognitiva”, pp. 186-207.
312

civil  inovação temática. Em formulação por extenso, poder-se-


ia dizer que o argumento das associações consiste da confirmação
empírica de duas inflexões inter-relacionadas, próprias ao último
quartel do século XX, assim como da constatação de uma tendência
contínua de longo prazo: primeiro, a continuidade diz respeito ao
aumento “natural” no número de associações de índoles as mais
diversas; segundo, o fato de o incremento não responder apenas à
evolução registrada na maior parte da centúria, mas à súbita
aceleração no surgimento de novas iniciativas; terceiro, a
coincidência sistemática entre a “juventude” da associação e sua
inscrição em campos de representação de interesses outrora
insignificantes ou inexistentes, ou seja, a inovação temática com
respeito a assuntos relevantes para o conjunto da sociedade,
impulsionada “de baixo para cima” pelo agir de atores que, por
sua quantidade, intensidade de crescimento e diversidade, são
inéditos. No quadro desse boom associativo, que traz à tona o
campo das diferentes opções para a organização e representação
coletiva de interesses, apenas as iniciativas da sociedade civil
encarnariam de forma plena os atributos descritivos e normativos
privilegiados pela literatura. Já foi suficientemente esclarecido
que nessa ótica são extraídas conseqüências gerais a partir de
recorte cuja atenção é centrada não no leque total das
alternativas de consociação disponíveis ou nas mais recorrentes,
e tampouco nas mais efetivas  societabilidade , senão no tipo
específico de iniciativas passíveis de enquadramento no
associativismo civil voluntário.

Na análise e verificação dessas inflexões, ocorridas nas


últimas décadas, a literatura em questão comunga parcialmente com
abordagens informadas por outras perspectivas teóricas, por
exemplo, com resultados como os expostos por Santos em sua
análise acerca do amadurecimento da infra-estrutura poliárquica
no país, ou como os aventados por Boschi em pesquisa sobre as
313

associações de bairro e de classe média no Rio de Janeiro. 411 Cabe


salientar que, a despeito da coincidência quanto às tendências
gerais reveladas pelos resultados dessas pesquisas, as mesmas
tendências ecoam de forma muito diferente quando colocadas dentro
dos marcos do enfoque da nova sociedade civil, gerando
interpretações e conclusões muito distintas. Os achados do
trabalho de Santos para as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo
encontraram reprodução fiel em análises levadas a cabo por
Scherer-Warren, Costa e Avritzer  em projeto de pesquisa
conjunto , nos municípios de Florianópolis, Juiz de Fora e Belo
Horizonte. A rigor, devido a diferenças na abrangência e na
origem dos levantamentos de informação, os dados sistematizados
na Tabela 1 apresentam problemas de compatibilidade 
particularmente no caso de Florianópolis, pois existem dados
apenas para três períodos.412 Contudo, o que interessa destacar é
a existência efetiva de duas tendências: o incremento no número
de associações e a aceleração no surgimento de novas iniciativas
no percurso das últimas décadas. Com efeito, considerando o
diferente porte das cidades estudadas, os resultados dessas
pesquisas permitem afirmar a crescente sofisticação societária da
vida pública, não apenas pela evolução positiva da quantidade de
associações ao longo de sete décadas (1920-1980), mas também pela
intensificação das práticas de consociação no último quartel do

411
Wanderley Guilherme dos Santos, As razões..., op. cit., pp. 82-6; Renato
Raul Boschi, A arte..., op. cit., pp. 61-140.
412
Os dados analisados neste e nos seguintes parágrafos, com o intuito de
mostrar os aspectos de quantidade, intensidade e diversidade que alicerçam o
argumento das associações  e cuja sistematização, para as primeiras duas
tendências, é fornecida pela Tabela 1 , provêm das seguintes fontes: SP e RJ,
levantamento em Cartório de Registro Civil realizado por Wanderley Guilherme
dos Santos, As razões, op. cit., pp. 83 e 85 (no caso de SP, o levantamento
apenas considerou um dos cartórios responsáveis pelo registro de associações de
caráter civil); BH, levantamento no Diário Oficial do Estado e em listagens
disponíveis na Prefeitura do município e em órgãos públicos estaduais,
realizado por Leonardo Avritzer, “Cultura política, associativismo e
democratização  Uma análise do associativismo no Brasil”; Florianópolis,
levantamento no Diário Oficial do Estado realizado por Ilse Scherer-Warren,
“Associativismo civil em Florianópolis  Evolução e tendências”, Anexo 3; Juiz
de Fora, levantamento no Cartório de Registro de Títulos e Documentos realizado
por Sérgio Costa, in: Scherer-Warren (pesquisadora responsável), O novo
associativismo brasileiro  Relatório substantivo final.
314

século XX. A esse respeito, Santos propôs, na obra em análise,


“medida simples” para aferir a “aceleração mobilizacional
contemporânea”, constatando que mais do 65% do total das
associações registradas para as cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro, nesse período, surgiram a partir da década de 70 
apreciação que, aliás, vai ao encontro do amplo consenso na
literatura sociológica acerca do papel dos atores sociais no
contexto da transição política no Brasil. Em proporções
surpreendentemente iguais, o fenômeno de aceleração é observável
nas outras cidades: no caso de Belo Horizonte, 68,7% das
associações cadastradas foram criadas entre 1970 e 1990 (em SP
68,4% entre 1970 e 1986); embora sem dados disponíveis para as
primeiras décadas analisadas, Florianópolis também apresenta
notável crescimento (61,9%) no período que vai de 1984 a 1993; e
a tendência encontra-se presente em Juiz de Fora, com diferenças
quanto ao início mais tardio do crescimento associativo e quanto
à abrupta multiplicação das associações  mais de 80% apareceram
nas duas últimas décadas, sendo que 72% surgiram nos anos 90.

Tabela 1
Evolução do número de associações segundo a década ou período
de criação, para os municípios de SP, RJ, BH, Fl e JFa
Décadas 192 193 1940 1950 1960 1970 80/8 - Tota
0 0 6 l
b
São Paulo 51 237 288 464 996 1.87 2.55 - 6.46
1 3 0
c
Aceleração 31,52% 68,48% 100%
Décadas - - 46/5 51/6 61/7 71/8 81/8 - Tota
0 0 0 0 7 l
Rio de - - 188 743 1.09 1.23 2.49 - 5,75
Janeiro 3 3 8 5
Aceleração 35,17% 64,83% 100%
315

Décadas 192 193 1940 1950 1960 1970 1980 - Tota


0 0 l
Belo 84 126 120 204 459 584 1597 - 3.17
Horizonte 4
Aceleração 31,29% 68,71% 100%
Períodosd - - - - 64/7 74/8 84/9 - Tota
3 3 3 l
Florianópoli - - - - 162 426 959 - 1.54
s 7
Aceleração 38.01% 61.99% 100%
Períodosd - 193 1940 1950 1960 1970 80/8 89/9 Tota
0 8 8 l
Juiz de Fora - 7 5 18 23 32 45 337 467
Aceleração 18,2% 81,8% 100%
a/ Fontes: cf. nota de rodapé 87.
b/ Os dados são indicativos: o levantamento apenas explorou os registros existentes em um
dos quatro principais cartórios para o registro de associações de caráter civil.
c/ Segundo proposta de Santos (As razões..., op cit., pp. 82-6): porcentagem de
associações criadas nos recortes temporais escolhidos.
d/ A relação entre as décadas e a criação de associações é baseada nas periodizações
trabalhadas pelos autores (vide fontes).

O vertiginoso adensamento da vida pública, nitidamente


balizado pelo encerramento dos anos 70, remete o processo gradual
de abertura política  fim do AI-5, sanção da lei de anistia,
restabelecimento da pluralidade partidária e o conseqüente
respeito do direito constitucional de livre associação ;
contudo, seria incorreto reduzir esse adensamento às
condicionantes da conjuntura política, pois, embora as lutas pela
reinstauração da democracia tenham desempenhado papel fundamental
na cristalização de uma “identidade social” contraposta ao poder,
há outros aspectos de peso que dizem respeito a tendências de
médio e longo prazo na composição demográfica e na estrutura
socioeconômica do país. Além do mais, os dados acima apresentados
são eloqüentes quanto à continuidade do crescimento das
316

associações ao longo do século XX  inclusive no período da


ditadura. Boschi documentou inflexões idênticas às recém-expostas
em seu conhecido estudo sobre a consociação da classe média no
Rio de janeiro, e no intuito de elucidar a causalidade subjacente
chamou a atenção para um elenco abrangente de fatores: é sabido
que entre 1970 e 1980 a maioria da população tornou-se urbana,
mas a taxa de urbanização revela-se extraordinariamente dinâmica
quando considerado que, se no início da década apenas 38,5% da
população urbana residia em aglomerações de 20 mil habitantes, no
final desse período 75% vivia em cidades com mais e 100 mil
habitantes; também é conhecido o acentuado crescimento do setor
de serviços  o famoso “inchaço do terciário” , mas suas
conseqüências na composição ocupacional, menos evidentes, levaram
a formidável expansão das profissões burocrático-administrativas
e técnico-científicas, propiciando trajetórias de mobilidade
social ascendentes para segmentos consideráveis da população;
essas trajetórias se chocaram com as políticas recessivas
implementadas no começo dos anos 80, fazendo coincidir o boom
associativo, a abertura política e o protesto sindical e gremial
contra a erosão dos níveis de emprego e renda; por fim, a lógica
da liberalização favoreceu o surto associativo na medida em que
as instâncias e processos institucionais de representação de
interesses  negociação sindical e eleições  foram mantidos sob
controle, alimentando a valorização social da participação em
413
canais alternativos.

No que diz respeito à terceira tendência, ou seja, a


crescente pluralidade societária da vida pública ou a
diversificação temática das iniciativas de consociação, o
trabalho de Santos já havia mostrado que, a despeito de as

413
Cf. Renato Raul Boschi, “A abertura e a nova classe média na política
brasileira: 1977-1982”, pp. 30-43, especificamente, pp. 30-3; Renato Raul
Boschi, A arte da..., op. cit., pp. 61-140, especificamente, pp. 61-72, 98-101,
105-14, 137-40. Cumpre esclarecer que, no artigo, o autor apresenta de forma
breve e pontualmente modificada alguns dos argumentos explorados com maior
vagar em dois capítulos de seu livro.
317

associações de maior tradição  como as beneficentes ou as


desportivas  ocuparem posição preponderante ao longo do século
XX, elas vinham perdendo peso relativo diante de outras
categorias de recente expansão, evidenciando a “quebra do
monopólio organizacional”: se na década de 20, por exemplo, a
consociação desportiva representava 38,8% do total das
associações criadas em São Paulo, nos anos 80 sua importância
relativa caíra a 16,7%.414 Ainda nos marcos do mesmo trabalho, o
comportamento da categoria associações comunitárias  a qual
engloba parte das iniciativas privilegiadas pela literatura para
identificar a nova sociedade civil  mostra que, no Rio de
Janeiro, 90,7% desse tipo de associações surgiu durante os anos
que vão do começo da década de 70 a meados da década de 80  e a
cifra aumenta a 97,6% no caso da cidade de São Paulo. Há outros
exemplos igualmente significativos. Embora a fundação de
associações de moradores date do início dos anos 50, no Rio de
Janeiro, Boschi examinou com detalhe a multiplicação dessas
iniciativas no contexto da abertura política, destacando que seus
objetivos se tornaram mais amplos pela assunção nítida de
preocupações político-ideológicas e não apenas materiais;
afirmação semelhante é cabível para a consociação de
profissionais da classe média, organizados fora das categorias
definidas pela lei trabalhista e, por conseguinte, fora dos
controles corporativos. Por fim, as evidências que respaldam a
tendência à diversificação em Florianópolis são contundentes: das
114 associações comunitárias criadas entre 1964 e 1993, 81%
surgiram só depois de 1984  enquanto 50% das 424 associações
desportivas registradas já existiam antes desse ano.415 As

414
Wanderley Guilherme dos Santos, As razões..., op. cit., p. 83.
415
Cálculos próprios baseados em Ilse Scherer-Warren, “Associativismo
civil...”, op. cit., cf. Tabela 2. As diferenças de critérios na classificação
dos resultados dos levantamentos segundo tipos de associativismo  conforme
construídos pelas pesquisas , assim como a exposição sucinta dos dados
relativos à diversificação temática no estudo de Santos, impedem qualquer
tentativa sistemática de comparação, tal e como realizada para as primeiras
duas tendências na Tabela 1. Os dados disponíveis para Belo Horizonte não
318

dificuldades para efetuar uma comparação mais sistemática não


obstam a confirmação da maior pluralidade societária da vida
pública pela diversificação dos tipos de interesses e afinidades
que animaram a criação de associações nas últimas décadas do
século XX  questão consensual na produção acadêmicas acumulada
ao longo dos anos 80 e 90.

Porém, malgrado o consenso no que diz respeito às inflexões


recém-consideradas, a análise de suas implicações mais gerais
abre passo a interpretações sem dúvida discrepantes. Nesse
sentido, as conclusões do trabalho de Santos no plano do
associativismo  isto é, sem considerar outras variáveis
políticas e organizacionais contempladas na sua reflexão 
divergem largamente dos diagnósticos elaborados pela literatura
da nova sociedade civil. Avaliação mais pormenorizada do elenco
dos tipos de associação de maior dinamismo, a partir dos anos 70,
revela que as feições gerais dessas iniciativas, tanto em São
Paulo como no Rio de Janeiro, respondem a um padrão não
espontâneo nem horizontal, e sim nitidamente hierárquico e
“particularista”, alheio, portanto, à lógica de uma sociedade
civil portadora de “interesses gerais”: se considerados os 15
tipos de associações mais “jovens” para ambas as cidades  de um
total de 32 categorias definidas pelo autor , constata-se que a
maioria responde a interesses gremiais  médicos, advogados,
profissionais da saúde, funcionários públicos, artistas e
criadores, trabalhadores não-manuais, associações de firmas, de
proprietários, etc. 416 O crescimento dessas associações não foi
apenas numérico, conforme mostrado no rico trabalho de Boschi, a
proliferação de organizações profissionais no Rio de Janeiro veio
acompanhada de incrível desempenho das taxas de filiação

explicitam o peso dos tipos de associativismo registrados; no caso de Juiz de


Fora, a criação de novas associações de todas as índoles concentra-se nas
últimas duas décadas, excetuando apenas as de caráter filantrópico,
assistencial e de ajuda mútua  grupadas sob o mesmo rótulo.
416
Wanderley Guilherme dos Santos, As razões, op. cit., pp. 84-5.
319

sindical: entre 1960 e 1978, o número de profissionais liberais


sindicalizados no país registrou incremento de 363%, e houve
categorias mais dinâmicas como as vinculadas a educação e
cultura, comércio e comunicações, e publicidade.417 Ainda é
possível acrescentar que, após o período estudado por esses
autores, as associações gremiais registraram notável expansão
devido ao marco jurídico definido pela Constituição de 1988,
favorável à criação e ao reconhecimento legal de tais
instituições, incluindo setores outrora proibidos de se
organizarem profissionalmente: as organizações gremiais cresceram
23% entre 1987 e 1992, no país como um todo, sendo casos notáveis
os trabalhadores do comércio (92%), os trabalhadores de
estabelecimentos culturais e educativos (91%) e, é claro, os
servidores públicos, que entre 1989 e 1992, graças ao direito de
associação gremial recém-adquirido, multiplicaram seus órgãos de
representação em 316%. 418

Segundo as categorias arroladas por Santos, entre as


associações mais “jovens” e portanto mais diversificadas
tematicamente  dos anos 70 a meados dos 80 , apenas escapavam
ao padrão ocupacional exposto acima as iniciativas de caráter
religioso, as recreativas, as comunitárias e as de moradores e
deficientes; e embora não seja possível avaliar a priori a
importância dessas iniciativas, não cabe dúvida de que os dois
primeiros tipos dificilmente são enquadráveis sob o rótulo da
nova sociedade civil. Não é de estranhar o fato de a
interpretação mais geral do trabalho desse autor apontar para a
consolidação de uma face poliárquica da sociedade brasileira,
alicerçada na quebra dos monopólios na organização dos diversos
interesses sociais, sem por isso conferir qualquer protagonismo a
um tipo específico de associação  ou sequer a um conjunto de
atores da sociedade civil , nem assumir alguma proposta ou

417
Renato Raul Boschi, A arte da..., op. cit., pp. 108-9, 113.
418
IBGE, Sindicatos  Indicadores sociais 1990, 1991 e 1992, volume 4, pp. 13-
6.
320

projeto de solução para atender o problema dos déficits da ordem


social.419 Mesmo no terreno dos empenhos de consociação de índole
territorial  mais próximas da lógica da nova sociedade civil ,
e a despeito da galvanização da vida pública durante o processo
de abertura, o quadro das demandas levantadas pelas organizações
de bairro entre 1976 e 1982, elaborado por Boschi, resulta
indicativo do predomínio de interesses restritos ou
“particularistas”: o seguimento das 95 campanhas detectadas
revelou que apenas 14 almejavam objetivos mais amplos, enquanto a
maioria obedecia a preocupações imediatas: “[...] não
420
necessariamente generalizáveis para toda a cidade.” Em
contraste com as altas expectativas depositadas pela literatura
no agir dos novos atores sociais, enquanto portadores de um
padrão de ação coletiva capaz de transformar a cultura cívica, de
reconstruir o espaço público e de aprimorar normativamente a
democracia, também o diagnóstico geral desse autor sugere
prudência e uma dose salutar de realismo, pois os inegáveis
efeitos renovadores da mobilização social se inseriram em
panorama de traços ambíguos quanto a suas conseqüências de médio
prazo para a própria democracia. Se a ênfase na participação
transbordou os controles do Estado  forçando o ritmo da

419
É bem conhecida a tese do autor acerca da combinação, no país, de um híbrido
institucional que permite transitar continuamente de instituições consolidadas
do sistema poliárquico a instituições não-poliárquicas imbuídas de
hobbesianismo social e geradoras de uma cultura cívica predatória; cf. As
razões..., op. cit., pp. 89-115. A idéia de um híbrido institucional, decerto
instigante, aparece suficientemente abonada pelas evidências que Santos
explora, e outros autores têm apontado  de outras perspectivas  para a mesma
direção; já a tese da cultura cívica predatória e do hobbesianismo social
requereria subsídios sociológicos ou antropológicos ausentes nesse texto. Para
outras análises a atentar para o caráter híbrido da democracia e da relação
Estado/sociedade no país, cf. Renato Raul Boschi, “O corporativismo na
construção do espaço público”, in Renato Raul Boschi (org.), Corporativismo e
desigualdade  A construção do espaço público no Brasil, pp. 24-5; José Murilo
de Carvalho, Os bestializados  O Rio de Janeiro e a república que não foi, pp.
154-5; Angela de Castro Gomes, “A política brasileira em busca da modernidade:
na fronteira entre o público e o privado”, in Lilia Moritz Schwarcz, História
da vida privada no Brasil  Contrastes da intimidade contemporânea, pp. 499-
503, 517-25.
420
Renato Raul Boschi, A arte da..., op. cit., p. 88; cf., também, pp. 90-1. O
levantamento recorreu aos boletins das associações pesquisadas, a depoimentos e
entrevistas, assim como ao seguimento sistemático do que foi publicado em
quatro jornais da grande imprensa.
321

transição , ela foi feita em detrimento do valor da


representação; se a projeção de demandas fora dos limitados
canais políticos foi condição de possibilidade da organização e
manifestação das associações emergentes, isso favoreceu a criação
de relações diretas entre atores específicos e a regulação do
Estado  alimentando, paradoxalmente, vínculos de dependência e
a continuidade da tradição burocrático-autoritária.421

Em suma, cabe afirmar sem reparos que no último quartel do


século houve mudanças importantes no adensamento e diversificação
da vida pública; entretanto, as divergências na interpretação
dessas mudanças aconselham prudência. Embora não seja possível
contar com dados abrangentes e apurados o suficiente para dirimir
tais discrepâncias de forma satisfatória, o que deslocaria o
problema para a assunção de premissas isentas de validação, as
pesquisas examinadas sem dúvida são esclarecedoras quanto à
amplitude e complexidade do fenômeno associativo, dificilmente
equacionável em diagnósticos tão estilizados como os da
literatura da nova sociedade civil. Para além de considerações
óbvias sobre o papel das abordagens teóricas na construção e
leitura conflitantes dos dados, o relevante é salientar,
precisamente, que o escopo dessa literatura, ao privilegiar
sobremaneira um tipo de associativismo, negligencia o problema do
peso específico dos atores por ele recortados no conjunto geral
das práticas de consociação existentes. Com efeito, as inflexões
já contempladas também apontam para o inusitado crescimento de
outras opções de organização de interesses, no marco das quais a
importância do tipo de associações representativas da nova
sociedade civil parece bastante modesta. Essa ressalva é passível
de formulação ainda dentro do terreno das próprias associações,
quer dizer, sem invocar, por enquanto, a outra face da moeda
nesse revigoramento associativo da vida pública, a saber, a

421
Ibid., pp. 162-71.
322

problemática dos associados  por via de regra ausente na


literatura em questão.

De fato, a partir de diferentes perspectivas de análise


têm-se levantado evidências e desenvolvido reflexões de valia
para subsidiar a crítica da nova sociedade civil; desde
observações pontuais até francas contestações, desde refutações
de índole conceitual até constatações de caráter empírico  como
as analisadas acima. Por exemplo, o trabalho de Santos não apenas
assinala o modesto crescimento de associações de “interesse
geral”, se comparado com a veloz multiplicação das iniciativas de
consociação ocupacionais, mas também chama a atenção para a
inexpressiva participação dos eventuais associados em face de seu
número potencial  “alienação política”, “absenteísmo
organizacional”.422 Já houve quem salientasse o despropósito
teórico de se entronizar a sociedade civil como reino moral
alheio ao particularismo, cuja contrapartida é reduzir o mercado
a instância estranha a qualquer forma de condensação de
interesses amplos  esquecendo, por exemplo, seus efeitos
positivos na corrosão das hierarquias sociais adscritivas. 423
Também há quem frise, com olhar agudo, a paradoxal
complementaridade entre as interpretações holistas da sociedade
civil, unificada em alguma espécie de comunhão superior ao
“particularismo”, e a construção simbólica de uma identidade
política subordinada a uma concepção orgânica do Estado-nação,
que assim submete as teias privadas da solidariedade social ao
universalismo da autoridade e cujos índices mais expressivos são
o corporativismo no plano institucional e o populismo no terreno
da ideologia e do exercício do poder; em ambos os casos, os
interesses particulares aparecem com valência negativa,

422
Wanderley Guilherme dos Santos, ibid., pp. 80-9 e 104.
423
Fábio Wanderley Reis, “Cidadania, mercado...”, op. cit., pp. 338-42.
323

deslegitimando o eventual desenvolvimento de padrões pluralistas


de ação política e social.424

Além disso, diversos autores têm explorado alguns problemas


que contribuem a iluminar certas insuficiências da literatura
aqui analisada: a inexistência de relação entre as mudanças no
cenário político e socioeconômico das últimas décadas e qualquer
incremento participativo da população, ora nos partidos políticos
ou nas associações civis, ora no encaminhamento de demandas ou
sugestões mediante o contato pessoal com políticos  “alienação
associativa” ; 425 a impossibilidade de as associações
comunitárias manterem indefinidamente a mobilização social e a
própria organização sem a combinação de atividades
reivindicativas, próprias da nova sociedade civil, com atividades
de caráter assistencialista  indesejáveis, segundo a
literatura, porque imbuídas de particularismo e porque
transigentes com a lógica da esfera política ;426 a baixa
valorização da atividade comunitária como via eficaz para a
resolução de problemas vinculados à qualidade de vida da
população, ou como expediente para a educação cidadã;427 os riscos
presentes no crescimento exponencial das ONGs como setor de
serviços de intermediação social, cuja consolidação tende a
desempenhar funções substitutivas de seu público-alvo e a gerar
interesses diferenciados e concorrenciais; 428 a paradoxal
contribuição do discurso da sociedade civil ao desinteresse geral
pela política, graças a sua auto-representação como ator

424
Elisa Reis, “Desigualdade e solidariedade  Uma releitura do ‘familismo
amoral’ de Banfield”, pp. 35-48, especificamente, pp. 39-44.
425
Marcelo Costa Ferreira, “Associativismo e contato político nas regiões
metropolitanas do Brasil: 1888-1999  Revisitando o problema da participação”,
pp. 91, 94-5 e 98-9.
426
Breno Augusto Souto-Maior Fontes, “Estrutura organizacional das associações
políticas voluntárias”, pp. 43-6.
427
Jacobi Pedro, “A percepção de problemas ambientais em São Paulo”, pp. 47-55;
Cássio Luiz de França, A importância da participação popular no processo de
implementação de políticas de verticalização de favelas na cidade de São Paulo,
capítulo 2.
428
Sonia Arellano-López e James Petras, “A ambígua ajuda das ONGs na Bolívia”,
pp. 57-9; Hélène Riviére d’Arc, “O basismo acabou?...”, op, cit., pp. 249-51.
324

“impolítico” e como legítima portadora de interesses gerais, o


que, além de resultar surpreendentemente harmônico com as
tendências de retração do Estado, banaliza a questão da reforma
institucional  “frenesi ético-moralizante”. 429

As críticas acima sintetizadas não questionam as mudanças


ocorridas na densidade societária da vida pública no percurso das
últimas três décadas, mas esboçam, grosso modo, um quadro muito
aquém das altas expectativas da literatura  seja quanto aos
quesitos normativos dos atores da nova sociedade civil, seja
quanto à existência de evidência empírica modesta, desfavorável
até, para autorizar inferências de envergadura acerca do papel
desses atores na redefinição do padrão de ação social, na
ampliação do espaço público e na transformação substantiva da
democracia. No intuito de evitar mal-entendidos, convém precisar
o argumento: se, de um lado, a história recente do país registrou
profundas metamorfoses na organização de interesses e na sua
legítima projeção na vida pública  abonadas por inúmeros
estudos sociológicos, historiográficos, e de ciência política ,
do outro, no campo da ação coletiva, não é pertinente identificar
essas transformações com um tipo específico de associações,
vinculadas por uma lógica comum não conjuntural nem material,
porém substantiva; quaisquer que tenham sido as mudanças no

429
Marco Aurélio Nogueira, “A sociedade civil contra a política?”, pp. 21-5.
Sem dúvida, seria possível analisar os incentivos para assunção de formas
“impolíticas” de organização em termos das diversas vantagens e benefícios
capitalizáveis mediante semelhante deslinde com respeito aos atores políticos
tradicionais; entre essas vantagens, existem algumas de índole política que
poderiam ser concebidas, segundo formulação já explorada em outro lugar, como o
“sobrepeso político da não-política”. Cf. Adrián Gurza Lavalle, “Dos paradojas
de la socieadad civil mexicana”, pp. 17-8. Qualquer análise realista teria de
nuançar as expectativas sobre o ímpeto participativo da sociedade civil à luz
das mudanças nos incentivos simbólicos e materiais existentes no ambiente para
favorecer a proliferação de certo tipo de associações. Nesse sentido seria
impossível não reparar que, entre 1970 e 1990, as contribuições privadas e
governamentais transferidas mediante as ONGs do hemisfério norte a suas
homólogas do hemisfério sul aumentaram significativamente, passando de 1000 a
7.200 milhões de dólares. De fato, no início da década de 90, 13% das
contribuições oficiais do hemisfério norte para o hemisfério sul eram alocadas
por intermediação das ONGs. Cf. PNUD, Informe sobre desarrollo humano 1993, pp.
100 e 106.
325

espaço público e nas instituições políticas ao longo dos últimos


anos  por certo no sentido de sua democratização , decorrem de
um complexo jogo entre padrões de consociação de interesses
heterogêneos, cuja configuração ainda está por ser desvendada.
Permanece em pé, então, o problema de saber se é possível avançar
mais um passo para além dos consensos presentes no argumento das
associações e das ressalvas a interpretação que desses consensos
faz a literatura da nova sociedade civil, contribuindo para a
compreensão do universo das práticas associativas. Eis o
propósito da última seção, isto é, o exame das diversas formas de
participação em associações, mas demarcando os conceitos
operacionais de modo a aferir e comparar, com respeito a outras
opções de consociação existentes na vida pública, tanto o peso
dos atores da nova sociedade civil quanto as características
demográficas e principalmente socioeconômicas dos participantes
nela engajados. Em conseqüência, será possível avançar, a um só
tempo, no conhecimento do padrão geral do associativismo que
anima a vida pública  padrão de per se muito mais abrangente

que o ativismo da nova sociedade civil  e no estabelecimento de


balizas mais apuradas para ponderar os limites dos diagnósticos
da literatura aqui analisada, a partir da aplicação de suas
premissas ao exame não do crescimento de certas formas de
associação, senão da participação dos associados, ou seja, das
práticas de consociação no Brasil e, particularmente, na RMSP.
326

SUBSÍDIOS PARA PENSAR AS PRÁTICAS DE CONSOCIAÇÃO

7. A participação em associações

É bem conhecida a ausência ou existência muito precária de


séries de dados nacionais em inúmeras áreas de estudo. Ainda
hoje, a produção sistemática de estatísticas em certos temas
relevantes, por exemplo trabalho, lida com o nível nacional como
agregação ponderada das principais regiões metropolitanas  para
não falar da progressiva rarefação de estatísticas à medida que o
escopo temporal retrocede à primeira metade do século XX. No caso
de questões de interesse recente e bem mais restrito, como o
associativismo, tais insuficiências vêem-se acentuadas: há poucas
pesquisas, seus resultados nem sempre são compatíveis e a
possibilidade de se realizarem no futuro levantamentos periódicos
parece remota. No contexto das limitações existentes, apenas é
factível esboçar em traços demasiado gerais o quadro nacional da
participação associativa, cuja elaboração não conta com mais
alicerces do que os resultados das pesquisas levadas a cabo pela
Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística  IBGE.
Os primeiros trabalhos do IBGE no tema foram realizados em 1986 e
1988, no marco da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, 430
e, após esses esforços alvissareiros, o Instituto só fez nova
incursão na área em 1996, mediante o suplemento da Pesquisa
Mensal de Emprego do mês de abril: Associativismo, representação
de interesses e intermediação política. Malgrado a fragilidade
desses alicerces, não há outras bases disponíveis para
reconstruir o perfil nacional da participação em associações e,

430
IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)  Suplemento no.
1: Associativismo, (1986); IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD)  Volume 2: Participação político-social  1988.
327

portanto, a partir deles é que será bosquejada uma visão geral da


consociação de interesses na vida pública, abordando as feições
mais salientes a definirem o padrão de associativismo no Brasil
ou, mais especificamente, nas grandes regiões metropolitanas.
Contudo, esse panorama delineado em grandes traços fornece
algumas coordenadas de controle para a leitura e generalização
dos resultados obtidos mediante a montagem do quadro da
participação associativa na RMSP; montagem que, graças ao desenho
mais detalhado das pesquisas levadas a cabo pelo Sistema Estadual
de Análise de Dados (SEADE), e à possibilidade de maior
desagregação das bases de dados disponíveis, permite explorar de
forma mais nuançada as características demográficas e
socioeconômicas dos associados, assim como o tipo de associações
por eles freqüentadas. 431

É pertinente frisar que a abordagem do associativismo a


partir das práticas de consociação, ao centrar a análise na
questão dos associados, opera uma mudança de registro com
respeito ao argumento das associações, aqui utilizado para
sistematizar tanto a classe de correlato empírico invocado pela
literatura da nova sociedade civil  como respaldo de seus
diagnósticos  quanto os consensos existentes na produção
acadêmica dos anos 80 e 90, acerca das transformações ocorridas
da densidade associativa da vida pública. Depois de terem sido
avaliados os alcances desse argumento e as discrepâncias na sua
interpretação, depositar a atenção na perspectiva dos associados
permite introduzir novos elementos para ponderar outra face do
peso e crescimento das diferentes formas de associação. A
primeira observação relevante dos resultados do IBGE, no
levantamento de 1996, é o fato de os níveis de participação serem
muito menores do que seria possível supor levando em consideração

431
As características das pesquisas realizadas pelo SEADE, bem como os
critérios utilizados para trabalhar com as bases de dados resultantes dessas
pesquisas, serão explicitadas mais adiante, quando da exposição da tipologia
desenvolvida para sistematizar a abordagem do associativismo na RMSP.
328

apenas o acelerado ritmo de criação de novas associações nos


últimos decênios; isto é, a relação entre a dinâmica
institucional da mobilização social e os motivos que estimulam a
inserção associativa da população é descontínua. Segundo as
categorias gerais de classificação utilizadas por esse instituto,
nas seis principais regiões metropolitanas do país  que
compreendem 25% da população nacional432 , 97,5% das pessoas com
18 anos de idade ou mais não mantinham qualquer vínculo com
associações gremiais, diminuindo a “abstenção participativa” a
87,8% no caso das associações comunitárias, e a 83,7% no caso das
associações sindicais (Tabela 2). 433 O recorte etário pode
favorecer os sindicatos, pois inclui indivíduos que, por via de
regra, encontram-se inseridos no mercado de trabalho; ainda
assim, essa forma de associação tradicional se mantém como a mais
importante pelas proporções de sua filiação. Por sua vez, a
exígua quantidade de filiados às associações gremiais 

notabilizadas por seu crescimento numérico  sugere a efetiva


existência de descompasso entre a multiplicação de novas
iniciativas institucionais de consociação e suas repercussões no
aumento da participação  assunto a ser aprofundado logo. A
amplidão da categoria associações comunitárias impõe algumas
ressalvas para sua interpretação, pois oculta informações
relevantes: a participação da população adulta ascende, nesse

432
IBGE, Associativismo, representação de interesses e intermediação política,
suplemento da Pesquisa Mensal de Emprego realizada em abril de 1996. As regiões
metropolitanas compreendidas na pesquisa são: Recife, Salvador, Belo Horizonte,
Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
433
A classificação dos associados obedece às seguintes definições. Associação
sindical: órgão de classe de caráter trabalhista ou patronal, que, além de ser
reconhecido pelo Ministério do Trabalho, representa obrigatoriamente todos os
integrantes da respectiva categoria dentro de certos limites territoriais  não
foi considerada como sindicalizada a pessoa que tão-só paga imposto sindical,
isto é, contribuição obrigatória. Associação gremial: órgão de classe de caráter
trabalhista ou patronal que representa apenas seus associados, e em que a
filiação é facultativa. Associação comunitária: entidade que reúne
facultativamente as pessoas residentes em determinadas áreas ou bairros, ou que
professam as mesmas convicções religiosas ou que partilham interesses similares
por atividades de lazer, culturais, etc.  não foi considerada como associada a
órgão comunitário a pessoa cujo vínculo é empregatício. Cf. ibid., p. XV; IBGE,
PNAD  Suplemento 1, Associativismo, op. cit., p. XIII.
329

caso, a 12,13%; entretanto, não é possível distinguir o peso


específico dos atores representativos da nova sociedade civil
diante de outras formas de consociação de índole diversa 
434
esportiva, filantrópica, cultural, religiosa, etc. Cumpre
lembrar que semelhante discriminação obedece aos critérios
estabelecidos pela literatura, e doravante será preservada no
intuito de favorecer a interlocução; de toda forma, o quadro
geral a ser montado não exclui nem privilegia qualquer forma de
participação, pois a relevância dos tipos de consociação precisa
ser mostrada e não pressuposta  conforme sugerido pela idéia de
societabilidade exposta na primeira parte deste trabalho. Convém
formular mais uma observação pontual de interesse para os
seguintes passos da análise aqui desenvolvida: no nível de
agregação das categorias recém-expostas, a população da RMSP
mantém patamares de participação iguais à média das regiões
metropolitanas (Tabela 2).

Tabela 2
Participação em sindicatos, associações gremiais e comunitárias
Pessoas de 18 anos ou mais segundo sexo(%)
Regiões metropolitanas e RMSP 1996a
Associação Regiões Metropolitanasc RMSP
b

Particip Ñ/partic Tota Particip Ñ/partic Tota


am . l am . l
Sindical 16,29 83,70 100 17,38 82,61 100
Homens 23,02 24,36
Mulheres 10,70 11,51
Gremial 2,46 97,53 100 2,82 97,17 100
Homens 3,23 3,67
Mulheres 1,81 2,11
Comunitári 12,13 87,86 100 12,42 87,57 100
a

434
Vide definição na nota de rodapé 108. Parece plausível supor que a maior
participação relativa das mulheres nas associações comunitárias, se comparada
com sua inserção nos sindicatos ou nas associações gremiais (Tabela 2), pode
ser indicativa  para além da maior informalidade da inserção feminina no
mercado de trabalho  do caráter religioso, de bairro ou familiar dos
interesses englobados nesse rótulo.
330

Homens 12,56 12,53


Mulheres 11,77 12,33
N 22.474.513 9.363.889
a/ Fonte: IBGE, PME..., op.cit; processamento de AGL.
b/ Definições: vide nota de rodapé 108.
c/ Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.

Variações na concepção das pesquisas realizadas pelo IBGE


dificultam a análise comparativa das transformações na
participação ocorridas entre os levantamentos de meados da década
de 80 e de 90, particularmente no que diz respeito à
possibilidade de cotejar simultaneamente o comportamento da
filiação às associações sindicais e gremiais com as associações
comunitárias. Em artigo recente, Marcelo Costa Ferreira, cujos
trabalhos têm se especializado na área de associativismo mediante
o manejo e exploração das bases de dados desse Instituto, mostrou
tanto a inexistência de mudanças significativas nos patamares de
consociação nas iniciativas de índole comunitária quanto o
435
expressivo aumento da filiação às associações sindicais. Entre
1988 e 1996, a participação da população de 18 anos ou mais em
sindicatos e associações gremiais elevou-se de 13,5% a 18,2%; no
entanto, tal crescimento obedece apenas à evolução positiva da
filiação sindical, visto que, enquanto ela passou de 8,8% a
15,7%, as associações gremiais viram cair seus associados de 3,3%
a 1,9% (Tabela 3). Se considerado como parâmetro o acontecido nas
porcentagens da filiação sindical, a participação em associações
comunitárias registrou, no mesmo período, um comportamento aquém
do esperado, pois, enquanto os sindicatos aumentaram seu peso na
participação da população, a consociação de índole comunitária
manteve considerável estabilidade  variando negativamente 2,2%
(Tabela 4). Contudo, os dados relativos a essas associações
permitem apreciar duas tendências nas principais regiões
metropolitanas, que também serão constatadas, com maior vigor, na
análise pormenorizada do associativismo na RMSP: o crescimento da

435
Marcelo Costa Ferreira, “Associativismo e contato...”, op. cit., pp. 90-102.
331

participação em associações religiosas e esportivas, culturais ou


de lazer. Com o propósito de indicar as diferenças e semelhanças
relativas entre a média das regiões metropolitanas e a RMSP 
conforme os resultados das pesquisas do IBGE , foram
processados e incorporados na mesma tabela os dados disponíveis
sobre participação em associações comunitárias para a última
região. Novamente, a regra é a consonância dos níveis de
participação com uma única diferença notável, a saber, o menor
peso relativo da consociação de caráter esportivo e cultural na
RMSP; embora essa discrepância possa refletir a baixa qualidade
de vida característica dessa metrópole, em princípio não é
contraditória com o crescimento do associativismo de lazer dentro
da própria RMSP.

Tabela 3
Participação em associações sindicais e gremiais
Pessoas de 18 anos ou mais (%)
Regiões metropolitanas 1988 e 1996a
1988 1996
Associação 8,8 15,7
sindical b
Associação 3,3 1,9
gremialb
Ambas 1,4 0,6
Não participam 86,5 81,8
Total 100,0 100,0
Nc 25.534.283 18.390.755
a/ Fonte: Marcelo Costa Ferreira, “Associativismo e contato..”, op. cit., p.
95. Com base em: IBGE, PME..., op. cit. Regiões metropolitanas: Recife,
Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
b/ Definição: vide nota de rodapé 108.
c/ Ponderado pelo peso do indivíduo na amostra. O tamanho da amostra difere do
valor apresentado pelo IBGE: o autor construiu uma subamostra para eliminar
eventuais distorções pelas diferenças de critérios utilizados em cada
pesquisa.

Tabela 4
Participação em associações segundo a associação comunitária
Pessoas de 18 anos ou mais (%)
Regiões metropolitanas 1988 e 1996 e RMSP 1996a
Associações Regiões RMSP
332

Comunitárias metropolitanasb
1988 1996 1996c
Assoc. de bairro 2,3 2,5 1,6
Assoc. religiosa 3,6 5,0 6,1
Assoc. filantrópica - 0,7 1,3
Assoc. 7,0 10,9 3,6
esportiva/cultural
Participação múltipla d 1,5 0,7 -
Não participam 85,7 87,9 87,4e
Totalf 100,0 100,0 100
N 25.502.933 22.474.513 9.363.889
g g

a/ Fonte: IBGE, PME..., op.cit., e Marcelo Costa Ferreira, “Associativismo e contato..”,


op. cit., p. 95; processamento da RMSP de AGL.
b/ Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre.
c/ Em 1988 os resultados da RMSP foram computados na Região Sudeste.
d/ Participação em mais de um tipo de associação.
e/ Exclusive as pessoas que declaram participar, mas sem especificar a associação.
f/ Devido à utilização de pesos fracionários, os totais para a média das regiões
metropolitanas apresentam valores distintos de 100%.
g/ Ponderado pelo peso do indivíduo na amostra. O tamanho da amostra difere do valor
apresentado pelo IBGE: o autor construiu uma subamostra para eliminar eventuais
distorções pelas diferenças de critérios utilizados em cada pesquisa.

O saldo da análise até aqui desenvolvida sobre os traços


mais gerais da participação em associações, nas grandes regiões
metropolitanas, pode ser sintetizado nas seguintes apreciações.
Primeiro, a despeito de inexistirem dados para remontar a análise
aos anos 70, é cabível afirmar o descompasso entre o adensamento
e diversificação da vida pública, no nível organizacional, e a
disposição da população para assumir vínculos associativos; se as
dinâmicas nesse nível trouxeram efeitos consideráveis nas
instituições políticas e no reconhecimento de interesses mediante
canais alternativos, elas não vieram acompanhadas de incrementos
mais ou menos correspondentes no plano da participação. Sustenta-
se que a lógica institucional da mobilização social, de um lado,
e os motivos a estimularem a inserção associativa da população,
do outro, mantiveram uma relação marcada pela descontinuidade;
mas isso não eqüivale a postular que tal vínculo deve ser
contínuo. Segundo, quando olhado do ponto de vista dos
associados, o adensamento societário da vida pública mostra-se
menos inovador, particularmente se considerados os incrementos
333

nos patamares de participação; eles ocorreram apenas nos


sindicatos e nas associações religiosas e de lazer, ou seja, em
opções passíveis de serem classificadas como “tradicionais”.
Terceiro, no nível de agregação dos resultados acima expostos, é
possível apreciar uma coincidência na média das práticas de
consociação das regiões metropolitanas e da RMSP, pelo que não há
motivos para abordar as características mais salientes do
associativismo na última em termos exceção, quer dizer, de um
caso que foge ao padrão geral. Por fim, os parágrafos precedentes
insinuam algumas dificuldades para a literatura da nova sociedade
civil, pois a evolução positiva nas práticas de consociação não
parece refletir o ímpeto cívico de um padrão de ação coletiva
autônomo  pelo menos da ótica do engajamento da população.
Contudo, já se atentou para o fato de as categorias utilizadas
pelo IBGE não apresentarem condições favoráveis no que diz
respeito à possibilidade de aferir e discriminar o peso real dos
atores privilegiados por essa literatura; em conseqüência, seria
um equívoco supor que as constatações anteriores fornecem
evidências suficientes para avaliar os limites de seus
diagnósticos, sendo pertinente considerá-las com um caráter mais
indicativo do que conclusivo.436 Procede, agora, realizar análise
mais pormenorizada do engajamento da população nas diferentes
opções associativas, e, para tanto, será preciso focar a atenção
na RMSP.

Os resultados que permitem explorar de forma mais acurada


os vínculos de participação provêm das bases de dados do SEADE,
mais especificamente, trata-se da Pesquisa Condições de Vida 
PCV  realizada por essa fundação nos domicílios da RMSP em 1990
e 1994.437 O conjunto de associações e o universo relativo da

436
Marcelo Costa Ferreira (ibid., pp. 91, 93 e 98) elaborou uma crítica às
posições defendidas por Leonardo Avritzer com base nas pesquisas do IBGE;
conforme mencionado acima, com as categorias utilizadas por esse Instituto não
é possível se aproximar da participação nas associações estudadas por Avritzer.
437
A utilização das PCV no estudo das práticas de consociação apresenta várias
dificuldades; basta mencionar, por ora, que os dados desagregados e os
334

população pesquisados pelo SEADE são mais amplos do que os


abarcados pelos trabalhos do IBGE, mas os resultados condizem com
as observações gerais já formuladas. A primeira constatação
reitera o contraste entre o adensamento societário da vida
pública e os baixos níveis nas práticas de consociação,
particularmente se considerada a índole abrangente do
levantamento realizado pelo SEADE: no Estado de São Paulo, em
1994, participavam em qualquer forma de associação apenas 38,7%
dos indivíduos de 7 anos ou mais; e a porcentagem diminuía tanto
para a região metropolitana (35,1%) como para o município
(33,7%). Em virtude de a participação em associações ter sido
classificada em 11 quesitos  passíveis de resposta múltipla ,
torna-se factível a desagregação detalhada do tipo opções
privilegiadas pela população. 438 Se analisados como 100% os

cruzamentos estatísticos necessários para a elaboração do quadro do


associativismo, na RMSP, não foram publicados nos resultados das pesquisas de
90 e 94; e sequer existem como variáveis disponíveis ao público no próprio
SEADE. Ainda mais, há incompatibilidade no tratamento da participação entre
ambos os anos, pois no primeiro foi pesquisada como variável de caráter
familiar e no segundo como variável de tipo individual. Isso, sem mencionar que
as perguntas sobre participação em associações foram excluídas do questionário
de 1998, devido à quase inexistência de usuários para as informações produzidas
nesse tema pelas PCV anteriores. Os expedientes utilizados para contornar
semelhantes limitações serão esclarecidos no devido momento. Cabe esclarecer,
apenas, que o trabalho de caracterização do associativismo na RMSP requer a
manipulação das bases de dados brutos para as variáveis familiares e
individuais de cada PCV. Normalmente, o SEADE disponibiliza os resultados
agregados por variáveis resumo; todavia, no caso da participação em
associações, elas implicam a perda de informações relevantes. A autorização e
o apoio do SEADE, no acesso aos resultados não processados das PCV e na
produção de cruzamentos para este trabalho, foram possíveis graças à
participação no projeto integrado de pesquisa “São Paulo 2000: problemas
estruturais da metrópole”; particularmente, no subprojeto “Pobreza & Moradia &
Idosos & Violência Urbana: a exclusão social na região metropolitana de São
Paulo”, coordenado pelo Prof. Dr. Lúcio Kowarick.
438
No questionário da PCV 94, as perguntas sobre associativismo constam no
“Bloco D, Educação”, indicado para ser aplicado a todos os moradores do
domicílio, ou seja, trata-se de variável individual. Os 11 quesitos de
classificação, tal e como aparecem no questionário, são os seguintes, sendo
admissíveis respostas múltiplas: 1) Sindicatos de trabalhadores ou patronais;
2) associações de classe ou conselhos profissionais; 3) associações de bairro,
de moradores ou de famílias; 4) clube de futebol ou clube esportivo; 5) partido
ou diretório político; 6) Movimento dos Sem-Terra; 7) grupos ou movimentos
ligados à luta de minorias  negros, mulheres, aidéticos e outros ; 8) cultos
e encontros religiosos da Igreja Católica; 9) cultos e encontros religiosos de
outras igrejas  Universal, Assembléia de Deus, centro de umbanda, centro
espírita, etc. ; 10) comunidades de base, ação pastoral e clubes de mães; 11)
outro tipo de associações ou entidades. A participação foi determinada em termos
de vínculo, isto é, pela declaração da pessoa de fazer parte de alguma
335

indivíduos que mantêm qualquer vínculo de consociação na RMSP 


onde 64,9% da população de 7 anos ou mais não exercia nenhum tipo
de prática associativa no ano de referência , os resultados são
surpreendentes; apenas 16,5% da população que participa o faz em
associações não religiosas ou recreativas: 5,3% em sindicatos,
2,7% em associações profissionais, 2,1% em associações de
moradores, 1,3% em partidos políticos, 0,5% em associações de
minorias, 1,2% em comunidades de base, 0,3% no Movimento dos Sem-
Terra e 3,1% em outro tipo de associações (Tabela 5). Essas
cifras modestas quanto ao engajamento nas iniciativas de
consociação adquirem significação mais nítida se trazido à tona o
avultado peso das formas de participação mais recorrentes, de
índole esportiva e religiosa: 24,6% das pessoas de 7 anos ou
mais, que contam com vínculos associativos, exercem algum tipo de
atividade em clubes esportivos, e a esmagadora maioria (71,6%) o
faz em cultos religiosos  32,7% em igrejas católicas e 38,9% em
outras igrejas (Tabela 5).439

Com o propósito de avançar na reconstrução dos padrões


associativos, recorre-se à definição de uma tipologia de modo a
determinar, de forma mais precisa, a importância relativa das
diversas práticas de consociação existentes, assim como explorar
comparativamente, segundo o tipo de associação, as
características socioeconômicas e demográficas daqueles que
participam  assunto a ser abordado na última seção. A tipologia

associação “[...] não importando que grupo seja este, desde que a participação
se dê com alguma freqüência que pode até ser irregular, mas que mantém o
indivíduo como algum laço ou vínculo [...].” Cf. SEADE, Pesquisa Condições de
Vida no Estado de São Paulo  Manual do entrevistador, p. 77; SEADE,
“Questionário  Pesquisa Condições de Vida 1994”, s.p.
439
Com o intuito de aprofundar o conhecimento das condições socioeconômicas de
determinadas camadas da população, nas PCV 90 e 94 os domicílios tiveram
probabilidades distintas de seleção no sorteio da amostra  segundo
estratificação de renda , adquirindo, em conseqüência, pesos também distintos
na própria amostra; por isso, o SEADE optou por divulgar apenas as freqüências
relativas dos resultados das pesquisas. Seguindo as orientações dos técnicos
dessa fundação, as tabelas aqui apresentadas não especificam o tamanho da
amostra de cada cruzamento, pois seria preciso incluir os fatores de ponderação
para as diferentes frações dela. Cumpre esclarecer que em 1990 o número de
domicílios válidos foi 5,426, e em 1994 cerca de 3,800.
336

reúne laços associativos afins, conforme mostrado na Tabela 5,


lançando mão dos seguintes critérios. Associações horizontais:
aquelas que em tese poderiam ser concebidas como autônomas,
voluntárias, espontâneas, sem princípios verticais de organização
e periféricas ao sistema político e à lógica do mercado  enfim,
as iniciativas identificáveis com aquilo que a literatura
analisada chama de atores representativos da nova sociedade
civil. Associações político-econômicas: de um lado, as de caráter
gremial e sindical, voltadas para a intermediação de interesses
ocupacionais e setoriais; do outro, as de índole política,
altamente hierarquizadas, sem independência financeira em relação
ao poder público e inseridas no sistema político. Associações
religiosas: todas as igrejas e cultos, exclusive a participação
em associações comunitárias de base, cujos membros são grupados
no primeiro caso da tipologia. Por último, associações de lazer,
como clubes esportivos ou de futebol, escolas de samba, etc. 440 As
razões para construir a tipologia dessa maneira respondem a
exigências técnicas e conceituais. Quanto às primeiras, os baixos
níveis de participação reduzem significativamente o tamanho da
amostra, obstando a elaboração de cruzamentos estatísticos para
cada categoria associativa; por conseguinte, tornou-se imperativo
definir um mínimo possível de agrupamentos tipológicos a partir
de critérios amplos de coerência interna. Já as segundas parecem
claras à luz dos elementos vertidos ao longo das páginas
precedentes, particularmente se aplicados os critérios da
literatura no que tange à autonomia e espontaneidade da nova
sociedade civil, como feições excludentes das práticas de
associação em sindicatos, partidos políticos, igrejas e outras
organizações com princípios verticais de funcionamento ou
hierarquia  seja porque alheias ao controle direto da sociedade
civil, seja porque desancoradas das solidariedades coletivas ou
francamente externas a elas. Conforme reiterado em diversas

440
A PCV 94 apenas contempla os clubes esportivos e de futebol, mas a PCV 90,
cujos resultados serão incorporados à análise mais adiante, também considerou
as escolas de samba.
337

passagens, tal recorte é assaz restritivo e problemático, mas a


avaliação de seus alcances e limites pressupõe um diálogo com
subsídios empíricos pertinentes, quer dizer, compatíveis com os
atributos definidos pela literatura. Talvez a única escolha a
precisar de maiores justificativas seja a inclusão da categoria
residual “outras” nas associações horizontais. A esse respeito,
assume-se a eventual possibilidade de essa categoria conter
opções de participação em associações próprias à nova sociedade
civil, não especificadas nos quesitos do questionário.441

Tabela 5
Participação em associações segundo tipologia de associativismo
Pessoas de 7 anos ou mais
RMSP 1994a
Tipologia Associações b Participação
%/associad %/população
os total
I moradores 2,1 0,72
Associações minorias 0,5 0,46
horizontais de base 1,2 0,42
MST 0,3 0,11
outras 3,1 1,07
Subtotalc 7,2 2,78
II sindicatos 5,3 1,84
Associações profissionais 2,7 0,95
político- partidos 1,3 0,46
econômicas
Subtotalc 9,3 3,25
III
Associações Igreja 32,7 11,48
Católica
religiosas outras igrejas 39,9 13,67
Subtotalc 71,6 25,15
IV
Associações esportivas, 24,6 8,62
etc.
recreativas
Subtotalc 24,6 8,62

441
V. g., associações de defesa do meio ambiente, de identidades não
minoritárias, de índole familiar mas não circunscritas ao bairro ou de causas
específicas de “interesse geral”. Vide supra, nota de rodapé 113.
338

Totald 100,0 35,1


a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação na vida pública”,
a partir da base de dados da PCV 94-SEADE.
b/ Definição: vide nota de rodapé 113.
c/ O subtotal não exclui a possibilidade de participação múltipla, seja dentro ou entre
as agrupações tipológicas.
d/ O total não é a soma das parcelas por se tratar de quesitos de resposta múltipla.

Os resultados decorrentes do agrupamento da participação em


associações horizontais, político-econômicas, religiosas e
recreativas são nítidos no que tange à importância relativa de
cada tipo de associativismo dentro da população como um todo e no
conjunto das pessoas que exercem alguma prática de consociação.
Malgrado as diferenças com respeito aos resultados do IBGE para a
própria RMSP  Tabelas 2 e 4 , ocasionadas não apenas pela
maior quantidade de formas de associação contempladas pelo SEADE,
senão, fundamentalmente, pela amplidão das faixas etárias
pesquisadas pela última instituição, o quadro geral dos vínculos
participativos apresenta constâncias notáveis, a começar pela
preponderância das práticas de consociação “tradicionais”. Com
efeito, a avantajada posição dos laços de índole religiosa chega
a envolver 25% da população total, isto é, mais de 70% de todos
os indivíduos vinculados a qualquer associação pertencem a
igrejas. Em segundo lugar aparecem os laços de tipo recreativo,
seguidos, em posição francamente minoritária, pelos de índole
político-econômica; ainda assim, nesses últimos cabe notar o peso
da filiação sindical. Não é o propósito repetir os comentários
gerais formulados a respeito da participação nas grandes regiões
metropolitanas, também respaldados pelos resultados da RMSP; para
avançar na interpretação desse quadro, ainda é preciso incorporar
outros subsídios a serem explorados nas próximas páginas. Porém,
uma vez mostrada com precisão razoável a pequena importância dos
laços de caráter horizontal, é possível extrair algumas
conseqüências: o pujante ativismo dos atores identificáveis com a
nova sociedade civil eqüivale às práticas associativas de 2,7% da
população na RMSP, ou seja, 7,2% do total das pessoas de 7 anos
ou mais que exercem qualquer tipo de participação em associações;
339

por outras palavras, uma parcela mínima da população seria


responsável pelas empreitadas associativas que na literatura
tornam possível alicerçar, a um só tempo, a redefinição teórica e
prática da democracia, um novo paradigma da ação coletiva e a
reconstrução do espaço público.

Sem dúvida, parece sobrestimada a ênfase nas repercussões


democratizadoras do novo associativismo civil; ainda mais se
considerado que, para tal “otimismo” se tornar plausível, é
preciso não apenas carregar as tintas na potencialidade de certas
práticas de consociação horizontal  decerto menos difundidas do
que é possível inferir a partir dos diagnósticos da literatura
analisada, senão também desconsiderar todo ensejo de
organização de interesses que escape aos requisitos da nova
sociedade civil, ou seja, negligenciar os efeitos reais da
participação nos tipos de associação mais expressivos 
notadamente a participação de caráter religioso. É evidente que a
relevância de certos atores, como postulada por essa literatura,
não descansa em relações de representação numérica ou corporativa
 consubstanciais a partidos e sindicatos, respectivamente ,
senão no seu papel na tematização de problemas relevantes para o
conjunto da sociedade; por conseguinte, se a representatividade
de seu agir derivasse dos consensos atingidos por intermédio do
convencimento direto e das vias difusas da opinião pública, a
magnitude da participação tornar-se-ia supérflua. O raciocínio é
correto, todavia, ao elevar as iniciativas da nova sociedade
civil a novo padrão de ação coletiva, robusto o suficiente para
alicerçar um projeto de transformação substantiva da democracia e
de genuína publicização do espaço público, o peso modesto de tais
associações nos níveis de participação torna-se inevitavelmente
paradoxal.442 Uma compreensão menos restritiva da relação entre as

442
Marcelo Costa Ferreira também atentou, em termos de paradoxo, para as
discrepâncias entre os diagnósticos da“[...] enorme dinâmica associativa no
Brasil na últimas décadas [...]”, e “[...] a dimensão associativa no país
340

práticas de consociação presentes na vida pública e a


configuração do espaço público no país teria de considerar os
efeitos que as formas de participação mais difundidas exercem
sobre o âmbito das instituições políticas e da administração
pública  particularmente na forma de políticas públicas. Também
seria prudente suspender o juízo, por enquanto, sobre o tipo de
comportamentos e funções característicos de outras formas de
associação, pois o brilho normativo conferido pela literatura à
nova sociedade civil corre o risco de escurecer, como
conseqüência indireta, importantes dinâmicas de participação
social e de representação de interesses legítimos  embora tais
dinâmicas não se materializem no ação dialógica de associações
autônomas e horizontais.

8. As clivagens socioeconômicas e a participação

Uma vez balizada a extensão das práticas de consociação nas


grandes regiões metropolitanas e na RMSP, é conveniente avançar
no conhecimento daquilo que faz algum sentido sociológico
elementar quando se fala em participar: quem participa? A
determinação do perfil das pessoas vinculadas a qualquer tipo de
associação pode incorporar com proveito os resultados das PCV 90
e 94, visando a fixar os traços socioeconômicos e demográficos
mais estáveis dessa população. Há, todavia, um obstáculo
metodológico a ser contornado: o associativismo foi definido como
variável familiar na primeira dessas pesquisas, em virtude do
que, embora os cruzamentos possam contemplar as mesmas
informações, a unidade de análise entre as duas PCV resulta, em
princípio, incompatível  família e indivíduo.443 Essa

[que], em termos quantitativos, não é tão expressiva quanto a literatura


destaca [...]”; cf. “Associativismo e contato...”, op. cit., p. 98.
443
Na PCV 90, as perguntas acerca do associativismo encontravam-se inseridas no
“Bloco B, Habitação e patrimônio familiar”, isto é, o tema foi abordado como
variável familiar: “O sr.(a) e/ou alguma pessoa de sua família faz parte de:
[...]”; cf. SEADE, “Questionário  Pesquisa Condições de Vida 1990”, s.p.
341

dificuldade pode ser equacionada mediante o auxílio de um


artifício estatístico simples, qual seja, estudar a participação
em associações como atributo familiar; portanto, os indivíduos
que em 1994 mantinham qualquer tipo de vínculo associativo
doravante serão contabilizados apenas a partir de suas
respectivas famílias como unidade de análise da participação. Tal
procedimento restringe o leque de perguntas, pois impede indagar
diretamente as características do membro ou membros da família
engajados em alguma associação, fazendo com que seja necessário
utilizar ou indicadores familiares ou variáveis atreladas ao
domicílio ou, no limite, relacionar a participação com algum dos
integrantes cujas particularidades possam refletir de forma
indireta as condições de vida da própria família 
principalmente o chefe ; ainda assim, esse recurso viabiliza a
comparação dos resultados de ambas as pesquisas.444

Além disso, diante da incidência da participação em


associações horizontais e político-econômicas, insuficiente para
realizar cruzamentos estatisticamente consistentes no caso de
certas variáveis, o expediente de adotar a família como unidade
de análise apresenta a vantagem de aumentar a freqüência das
práticas de consociação: se em 1994, 35,1% das pessoas com 7 anos
ou mais, na RMSP, mantinham vínculos com qualquer tipo de
associação, essa cifra aumenta a 54,2% quando a participação é
abordada como atributo familiar. Mais um comentário sobre os
alcances da análise a ser desenvolvida nas passagens seguintes. A
rigor, não será possível estabelecer a propensão à consociação

444
Por sugestão dos quadros de apoio técnico do SEADE, privilegiou-se a
utilização de indicadores familiares por apresentarem maior congruência com a
unidade de análise assumida e por simplificarem o trabalho de cruzamento
estatístico  pois esses indicadores encontram-se disponíveis no diretório de
variáveis resumo das PCV ; contudo, tal escolha impõe, por vezes, o custo de
se trabalhar com categorias sintéticas conhecidas apenas por aqueles que lidam
com os resultados das pesquisas do SEADE. Quando conveniente, explicitar-se-á a
construção dos indicadores em notas de rodapé com o intuito de minimizar essa
desvantagem. A inclusão de glossários de termos e variáveis é outra opção comum
em casos como este, mas as interrupções causadas por sua consulta são mais
prolongadas e, não raro, terminam por desanimar o leitor.
342

nas diferentes camadas sociais  conforme conceitualmente


indicado pela idéia de societabilidade , o que requereria a
introdução de modelos multivariados de probabilidade e,
sobretudo, contar com bases de dados menos restritivas; porém, a
partir da análise da relação entre a participação e as
características socioeconômicas e demográficas das famílias
emergirão certas constantes que, como será visto, constituem
passo intermediário na aproximação dos padrões associativos
característicos dos distintos segmentos da população.445 Assim, no
que diz respeito às famílias segundo a condição de participação
em associações, isto é, segundo o exercício de alguma prática
associativa de pelo menos um de seus membros, interessa
esquadrinhar o par dicotômico “participa/não-participa”; mais
especificamente, no intuito de evitar a multiplicação de
informações redundantes, a seguir será explorado o primeiro
elemento desse par, visto que o segundo permanece subentendido
como seu complemento.

A primeira observação, emanada da comparação dos vínculos


das famílias com associações em 1990 e 1994, é o incremento nos
níveis gerais de participação em mais de 10 pontos percentuais 
de 43,3% a 54,2%. A correta avaliação dessa mudança nos patamares
de consociação tem de esclarecer tanto o tipo de associação onde
ocorreu o crescimento quanto as camadas sociais responsáveis por
ele  quer dizer, que associações capitalizaram a maior

445
Stricto sensu, o conceito de propensão implica a capacidade de determinar o
peso específico de um conjunto de variáveis sobre outra variável definida como
dependente, equacionando, neste caso, a probabilidade de alguém estar associado
em função de atributos socioeconômicos e demográficos; isto é, trata-se de um
recurso com força explicativa. Por sua vez, os padrões de consociação são aqui
entendidos como uma construção que verifica relações em sentido descritivo,
cujo significado precisa ser elucidado mediante a explicitação de hipóteses de
leitura em maior ou menor medida plausíveis, mas não validadas pelos dados. Sob
essa ótica, resulta incorreta a conclusão de Avritzer segundo a qual os
resultados aqui apresentados na Tabela 1 “[...] demonstram um aumento
significativo na propensão associativa nas cidade do Rio de Janeiro e São Paulo
[...]”; em todo caso, esses resultados apenas mostram o aumento do número de
associações, de cuja multiplicação não é possível deduzir no comportamento
participativo da população  assunto já abordado nas páginas precedentes. Cf.
Leonardo Avritzer, “Cultura política...”, op. cit., p. 7.
343

participação e que segmentos da população se acudiram delas? É


prudente adiar a formulação de juízos, pois o assunto será
tratado mais adiante e, por enquanto, interessa responder a outra
pergunta mais imediata, já formulada acima  quem participa? Se
considerada a renda familiar, percebe-se o fato de os benefícios
econômicos do trabalho guardarem estreita relação positiva com as
práticas de consociação, visto que, quanto maiores os rendimentos
familiares, maior é a participação em associações: em 1990,
mantinham vínculos com qualquer tipo de associação 27% das
famílias pertencentes à população muito pobre, 39,8% dos pobres,
43,6% dos remediados, e a maior porcentagem correspondia ao
segmento dos abastados, com 50,8%  essa tendência também é
reproduzida nos resultados de 1994 (Tabela 6).446 A escolaridade
não faz senão confirmar a existência de forte conexão entre
participação e inserção socioeconômica; a partir de um indicador
do nível de instrução familiar, constata-se que, tanto em 1990
como em 1994, as famílias com baixa instrução mantinham menos
vínculos associativos do que as famílias com níveis médios e não
precários de instrução  39,5%, 46,1% e 49,8%, respectivamente,
segundo os resultados para o primeiro desses anos (Tabela 7). 447

446
A construção dessa escala se utiliza simultaneamente de dois critérios:
primeiro, a ponderação dos rendimentos em termos de renda familiar per capita;
segundo, a definição da linha de pobreza para classificar as famílias. Apoiado
no índice de custo de vida do DIESE, o SEADE utilizou corte correspondente a
1,8 salário mínimo (SM) para determinar a linha de pobreza, sendo desdobrada
nas seguintes variáveis numéricas: muito pobres, até 0,6 SM; pobres, de 0,6 até
1,8 SM; e não-pobres, mais de 1,8 SM. A freqüência dos não-pobres foi maior a
50% em 1990 e 1994, e, devido à perda de informação derivada de tão alta
freqüência, optou-se por dividir esse segmento  no contexto da pesquisa já
referida, coordenada pelo Prof. Dr. Lúcio Kowarick  em remediados (de 1,8 SM
até 3,6 SM) e abastados (mais de 3,6 SM). Cf. SEADE, Definição e mensuração da
pobreza na Região Metropolitana de São Paulo  Uma abordagem multissetorial,
pp. 28-9, 33 e 147-8.
447
O nível de instrução familiar combina a escolaridade de dois membros da
família: do chefe e, quando existente, de outro integrante que, não sendo
estudante, reúne as características de possuir o maior nível de instrução
dentro da família e de ter idade igual ou superior a 18 anos. Esses critérios
foram organizados em 25 combinações possíveis, cuja sistematização dá lugar a
diferentes escalas de instrução familiar, dependendo do grau de agregação
escolhido. Para a escala aqui utilizada, em três categorias, os critérios de
delimitação podem ser resumidos da seguinte forma. O nível de instrução
precário corresponde a qualquer combinação inferior a um dos membros com 1o.
grau completo e outro sem primário completo  por exemplo, ambos com ou sem
344

De fato, a renda e a escolaridade constituem variáveis


paradigmáticas para se ilustrar a lógica da relação entre a
organização coletiva de interesses e a concentração de recursos
econômicos e culturais nas camadas mais bem aquinhoadas da
população; isto é, aqueles que detêm maiores benefícios
decorrentes de sua posição social são, simultaneamente, os que
mais se organizam e, por conseguinte, os que apresentam maiores
níveis de participação.

Tabela 6
Participação familiar em associações segundo renda
familiar (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Total Muito Pobres c Remediada Abastada
c
pobres sc sc
Não Sim
1990 56,6 43,3 27,0 39,8 43,6 50,8
1994 45,7 54,2 48,9 50,8 55,4 60,1
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação na vida pública”,
a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.
c/ Definição: vide nota de rodapé 121.

Tabela 7
Participação familiar em associações segundo nível de
instrução familiar (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Total Precáriac Intermediár Não
iac Precária c
1990 43,3 27,0 39,8 43,6
1994 54,1 48,9 50,8 55,4
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.
c/ Definição: vide nota de rodapé 122.

primário completo ; o nível de instrução intermediário é constituído a partir


do caso em que ambos os membros possuem o 1o. grau completo e seu limite
superior é o caso de um dos membros com 2o. grau completo e o outro com primário
completo; por sua vez, o nível de instrução considerado não precário engloba
todas as combinações superiores a existência de 2o. grau completo para ambos os
membros  por exemplo, acesso ao 3o. grau de algum deles ou de ambos. Cf.
ibid., pp. 18-21 e 33.
345

Destarte, a participação em associações, quando interrogada


visando a aferir seus determinantes socioeconômicos, apresenta um
padrão de distribuição que dificilmente poderia ser julgado como
democrático ou igualitário, na medida em que sua lógica reproduz
clivagens da iniqüidade social. É bem conhecida a importância da
renda e da educação  por via de regra subordinada à primeira 
em termos da reprodução das desigualdades sociais, e, conforme o
revelado pelos resultados recém-expostos, não há elementos para
supor que seu impacto sobre a participação seja a exceção da
regra. Não há nada de original nessa constatação, a relação
negativa entre as clivagens socioeconômicas e as práticas
associativas tem sido mostrada empiricamente em inúmeras
ocasiões, e também tem sido objeto de reflexão conceitual nos
campos da sociologia e da ciência política. Por isso, não é de
estranhar que a maior freqüência de consociação apareça
diretamente relacionada com características que, espelhando de
forma mais ou menos mediata os efeitos do nível de renda,
representam vantagens econômicas, culturais e de qualidade de
vida; a participação é maior quanto melhores são as condições da
moradia, a infra-estrutura urbana do domicílio ou a qualidade da
inserção dos membros da família no mercado de trabalho  entre
outros temas pesquisados pelas PCV, passíveis de serem explorados
em função dos vínculos associativos. Dois exemplos sucintos
bastam para ilustrar a consistência desse padrão: das famílias
marcadas pela precariedade de suas moradias, 48,9% mantinham
vínculos associativos em 1994; já as famílias que habitavam em
condições satisfatórias registraram uma participação
sensivelmente maior, 57,2%  embora a diferença seja pouco menos
avultada em 1990, o padrão é igual (Tabela 8). 448 Passando ao

448
A classificação dos tipos de moradias realizada pelo SEADE incorpora a
combinação de diversos indicadores, relacionados com a adequação física da
moradia, o número de cômodos existentes e o uso familiar do espaço disponível.
Assim, as condições insatisfatórias de moradia são definidas tanto pelo uso de
materiais adaptados para a construção e pelo uso comunitário de alguns cômodos
 como o banheiro, a cozinha ou o tanque de lavar roupas, no caso das moradias
346

segundo exemplo, ao se considerar a inserção familiar no mercado


de trabalho, poder-se-ia pensar como logicamente plausível a
tendência de as famílias com posições mais instáveis buscarem
algum tipo de solidariedade associativa para se proteger e tomar
providências diante do eventual desemprego; entretanto, apenas
37,8% dos casos avaliados como vulneráveis, em 1990, mantinham
alguma forma de participação em associações, enquanto os dados
evoluíam para 44% nos casos estimados em situação intermediária e
chegavam à casa dos 54,2% para as famílias em posição não
449
vulnerável (Tabela 9).

mais precárias  quanto pela utilização de outros cômodos que não os quartos
como dormitórios; nesse último caso, incluem-se moradias que, embora
construídas com materiais apropriados e caracterizadas pelo uso privativo do
banheiro e da cozinha, não podem ser classificadas como satisfatórias em
virtude do critério das funções atribuídas pela família ao espaço disponível.
Já as moradias satisfatórias minimamente pressupõem a presença de materiais de
edificação adequados, o uso privativo dos cômodos pela família e a existência
de pelo menos quatro cômodos, nos quais é preservada a função exclusiva dos
quartos como dormitórios  podendo existir outros quartos para outras funções.
Cf. ibid., pp. 15-8 e 33.
449
Embora as diferenças de participação entre as famílias com inserção
intermediária e não vulnerável tenha desaparecido em 1994, a distância com
respeito aos casos de inserção vulnerável se manteve. Neste caso, a metodologia
utilizada pelo SEADE visou a considerar explicitamente a inserção no mercado de
trabalho como variável pertinente para se definir a pobreza, desenvolvendo uma
análise baseada no conceito de vulnerabilidade. O indicador de vulnerabilidade
construído pelo SEADE é bastante complexo, pois incorpora amplo leque de
variáveis de modo a ponderar a falta de acesso ao mercado de trabalho, a
incorporação precoce ao mesmo, a instabilidade característica dos diversos
postos, a insuficiência dos rendimentos auferidos e o valor da aposentadoria.
Assim, a vulnerabilidade assume distintos critérios tanto para a população
inativa  exclusive a população dependente  como para a PEA: no primeiro
caso, os aposentados com renda inferior a 1 SM foram considerados vulneráveis;
já no caso da PEA, foram definidos como vulneráveis os desempregados e os
ocupados entre 10 e 14 anos de idade, além de alguns segmentos dos ocupados com
15 anos de idade ou mais. Na definição dos critérios de vulnerabilidade desse
último segmento, que é majoritário, avaliou-se a rotatividade e renda médias
das ocupações em relação aos dois anos anteriores, segundo uma tipologia
hierarquizada de postos de trabalho mais ou menos homogêneos. Não cabe aqui
explorar a construção dessa tipologia de forma minuciosa, todavia, cumpre
esclarecer que o indicador da vulnerabilidade familiar é o resultado da
aplicação dos critérios de caráter individual a dois integrantes da família, a
saber, o chefe e o segundo membro mais bem inserido no mercado de trabalho. Em
grandes traços, pode se dizer que as famílias vulneráveis combinam a inserção
precária de um ou de ambos os membros, enquanto as famílias não vulneráveis são
beneficiadas pela boa posição, no mercado de trabalho, dos dois integrantes
contemplados pelo indicador. Cf. SEADE, Pesquisa Condições de Vida na Região
Metropolitana de São Paulo  Mercado de trabalho, pp. 3-22; SEADE, Definição e
mensuração..., op. cit., pp. 21-5 e 33.
347

Tabela 8
Participação familiar em associações segundo
tipo de moradia (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Tota Insatisfatór Satisfatória
c
l iac
1990 43,3 38,9 46,0
1994 54,1 48,9 57,2
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas
de consociação na vida pública”, a partir das bases de
dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.
c/ Definição: vide nota de rodapé 123.

Tabela 9
Participação familiar em associações segundo qualidade de
inserção familiar no mercado de trabalho (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Total Vulnerávelc Intermediár Não
iac vulnerávelc
1990 43,5 37,8 44,0 54,23
1994 54,1 47,7 59,4 59,5
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.
c/ Definição: vide nota de rodapé 124.

Além da coincidência entre a concentração de vantagens


socioeconômicas e o exercício de práticas de consociação, cuja
lógica confere feições pouco igualitárias à participação, há
outros fatores a incidir no mesmo sentido. Na realidade, se os
efeitos das clivagens socioeconômicas são amplamente aceitos,
atenta-se agora para sua dimensão não diretamente econômica,
visto que os vínculos associativos se encontram perpassados por
dinâmicas de índole sociodemográfica, com as quais, no entanto,
mantêm relações semelhantes às já analisadas. No que diz respeito
aos atributos de caráter sociodemográfico, é como se tudo se
passasse de modo a privilegiar condições de altíssima
estruturação familiar  internas e com o entorno social  para
as tentativas de associação vingarem, fazendo com que a
348

participação também reproduza clivagens oriundas da maior ou


menor instabilidade familiar. Assim, a condição familiar de
participação em associações apresenta clara conexão com o arranjo
familiar, o sexo do chefe, o tempo de residência na RMSP e o
ciclo de vida familiar. É claro que certas desvantagens, como as
derivadas da desestruturação familiar ou da juventude da família,
podem obedecer a condicionantes socioeconômicos, pois a
estabilidade da própria família não independe do equilíbrio de
sua situação econômica  embora inferências semelhantes sejam
possíveis apenas de forma indireta. Antes de abordar sucintamente
os aspectos mencionados, cabe referir, de passagem, a
inexistência de vínculo relevante entre raça ou condição de
migração do chefe de família e participação em associações.

Como mostrado na Tabela 10, a maior estruturação familiar


acusa relações consistentes com respeito a seu impacto favorável
nas práticas de consociação de seus integrantes, pois registram-
se porcentagens de participação menores nas famílias sem cônjuge
ou “quebradas” do que naquelas com cônjuge ou nucleares: 40,% em
1990 e 49,3% em 1994, para as primeiras; e 45,% em 1990 e 55,9%
em 1994, para as segundas.450 Sabe-se que a maior concentração de
famílias sem cônjuge e de famílias chefiadas por mulheres ocorre,
precisamente, nas camadas sociais menos aquinhoadas, 451 e isso
introduz de novo o peso do fator socioeconômico nesses
resultados, assim como contribui para a compreensão do fato de as

450
Não parece haver vínculos óbvios entre as famílias unipessoais  “morador
sozinho” , que perfazem 6,9% do total da amostra, e as características das
respectivas famílias de origem, tornando-se inviável extrair conseqüências
apenas a partir dos dados apresentados na Tabela 10.
451
Segundo a estratificação desenvolvida pelo SEADE para o estudo
multissetorial da pobreza na RMSP, 14,6% da famílias do estrato mais alto, em
1990, eram chefiadas por mulheres, enquanto o estrato mais baixo atingia o
patamar de 26,7%; da mesma maneira, o número de famílias sem casal ou
“quebradas” era mais expressivo no último estrato  7,1% e 20,6%,
respectivamente. Ambas as tendências encontram reprodução algo atenuadas nos
dados de 1994. Cf. SEADE, Pesquisa de Condições de Vida na Região Metropolitana
de São Paulo  Principais Resultados, pp. 15 e 21; SEADE, Pesquisa de Condições
de Vida na Região Metropolitana de São Paulo 1994  Primeiros Resultados, pp.
38-41.
349

famílias conduzidas por mulheres mostrarem menor participação em


associações do que as famílias chefiadas por homens  37,7% e
44,7%, respectivamente, em 1990 (Tabela 11). O ciclo de vida
familiar, aferido de forma aproximativa pela idade do chefe,
também aponta para a importância da estabilidade como condição
favorável ao estabelecimento de laços com associações: os
resultados de 1994 mostram o incremento contínuo dos laços com
associações à medida que a análise transita das “famílias jovens”
(33%) para as “adultas” (61,1%)  (Tabela 12). 452 Ainda mais, a
maior estabilidade das famílias incide nas práticas de
consociação não apenas em decorrência da estruturação interna;
também a relação de entrosamento com o entorno parece
determinante. A esse respeito, é esclarecedor que a condição
familiar de participação em associações também coincida com tempo
de residência do chefe no município atual de moradia, no sentido
de a participação aumentar conforme avança a permanência espacial
(Tabela 13). No caso dos fatores sociodemográficos agora
considerados, ou seja, o tempo de residência no município atual e
o ciclo de vida familiar, é cabível pressupor a ação dos
condicionantes socioeconômicos, desde que aceita como plausível a
tese de a idade e a permanência no domicílio refletirem, com o

452
O SEADE desenvolveu um índice do ciclo de vida para medir a idade relativa
das famílias, dividindo-as em jovens, adultas e idosas; para tanto, ponderou os
seguintes componentes na construção do indicador do “grau de juventude,
maturidade ou velhice das famílias”: “idade média dos cônjuges, idade média dos
filhos e diferença entre as idades do cônjuge mais novo e do filho mais velho
das famílias nucleares completas”. SEADE, Definição e mensuração..., op. cit.,
p. 149. Devido à incompatibilidade desse indicador com o tipo de abordagens
mais usuais para relacionar diversas variáveis com faixas etárias e, sobretudo,
devido a que é pouco evidente o significado dos termos famílias “jovens”,
“adultas” ou “idosas”, quando mensurados a partir desse constructo, optou-se
por uma aproximação indireta ao ciclo de vida familiar  a idade do chefe ,
possivelmente menos adequada e sofisticada, porém, decerto mais nítida quanto
aos conteúdos e implicações da medida escolhida. De toda maneira, realizou-se o
cruzamento entre o ciclo de vida familiar, como definido pelo SEADE, e a
participação em associações; como era de esperar, os dados obtidos por essa via
são plenamente consistentes com aqueles derivados da aproximação pela idade do
chefe: em 1994, 45,3% das famílias jovens desenvolviam práticas associativas,
60,6% das adultas e 59,6% das idosas (59,6%); também em 1990 as famílias também
jovens apresentavam menores porcentagens na participação, 38,52%, enquanto as
famílias adultas e idosas situavam-se, respectivamente, na casa dos 47,71% e
dos 45,4%.
350

transcurso do tempo, melhorias na renda, na poupança ou na


estabilidade ocupacional das famílias.

Tabela 10
Participação familiar em associações segundo tipo de
família (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Total Família Família Família
quebrada nuclear unipessoal
1990 43,5 40,0 45,0 32,6
1994 54,1 49,3 55,9 66,6
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.

Tabela 11
Participação familiar em associações segundo
sexo do chefe (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Tota Feminino Masculino
l
1990 43,3 37,7 44,7
1994 54,1 51,2 54,9
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas
de consociação na vida pública”, a partir das bases de
dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.

Tabela 12
Participação familiar em associações segundo idade do
chefe (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Tota Até 24 25-39 40-59 60 e
l anos anos anos mais
1990 43,3 30,4 40,1 48,7 42,2
1994 54,1 33,0 48,8 61,1 58,0
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.

Tabela 13
Participação familiar em associações segundo tempo de
residência do chefe no município atual (%)
351

RMSP 1990 e 1994a


Famílias com participaçãob
Ano Total 1-5 6-10 11-15 16 e
anos anos anos mais
1990 43,3 32,0 39,9 38,0 45,3
1994 54,2 39,7 52,2 57,4 56,6
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.

As conseqüências dos resultados apresentados nas últimas


páginas em torno da relação entre as clivagens socioeconômicas e
as práticas associativas reclamam cuidadosa reflexão, para a qual
não há, ainda, elementos suficientes; mesmo assim, cabe formular
os seguintes comentários. Primeiro, a coincidência sistemática
entre a maior participação e o perfil socioeconômico e
demográfico das camadas sociais mais favorecidas aponta, sem
sombra de dúvida, para o caráter excludente das condições que
propiciam a consociação de interesses. O fenômeno bastante
conhecido em diversas subáreas da ciência política e da
sociologia e o minucioso proceder dos estudos antropológicos tem
documentado seus efeitos em distintos contextos urbanos marcados
pela precariedade das condições de vida; portanto, a serventia
dos dados expostos neste item reside na oportunidade rara de
aferir tal exclusão em amostra representativa para o conjunto da
RMSP.453 Segundo, a conexão entre clivagens sociais e participação
tem sido abordada, por via de regra, mediante indicadores
sintéticos como a renda e a escolaridade  como feito pelo
IBGE 454 , pressupondo-se o desdobramento dessas condicionantes
em muitas outras a operarem no mesmo sentido; os resultados desta
pesquisa permitem mostrar esses desdobramentos e constatar a

453
No começo dos anos 70, em levantamento com amostragem de 1015 casos para a
cidade de São Paulo, Manoel T. Berlinck indicou tanto a ausência de
participação em associações voluntárias quanto os maiores níveis de consociação
das classes altas (cf. Marginalidade social..., op. cit., pp. 130-5).
454
Cf. IBGE, Associativismo, representação..., op. cit., (1996) gráfico 11;
IBGE, Participação político-social..., op. cit., pp. vol. 2, (1988) pp. 8-16;
IBGE, PNAD  Associativismo..., op. cit., (1986) pp. 3-5.
352

extrema sensibilidade das práticas associativas ante qualquer


desvantagem ou constrangimento, o que assume conotações
particularmente relevantes pela iniqüidade extrema característica
desta sociedade  questão igualmente conhecida e documentada.
Aqueles que precisariam com maior urgência da solidariedade
fornecida pelas tramas societárias, pelo suporte de uma espécie
de “rede de segurança”, cuja disponibilidade diminuiria a
vulnerabilidade familiar  ocasionada ora pela ausência de
patrimônio, própria das famílias jovens, ora pela desestruturação
do núcleo familiar, pela ausência de relações consolidadas com o
entorno social ou por outra particularidade sociodemográfica ,
caracterizam-se, precisamente, pela precariedade relativa de seus
vínculos com associações.

Terceiro, embora a multiplicação da livre associação seja


alicerce da democracia, nem todos os interesses numa democracia
resultam igualmente consociáveis. Mais: na medida em que o padrão
socioeconômico da participação acompanha a desigual distribuição
dos recursos materiais e culturais, as conhecidas clivagens
quanto à organização e representação de interesses podem ser
reproduzidas pela própria dinâmica da participação e, no limite,
também reintroduzidas no mundo da política sob nova legitimidade
revestida de ensejo democratizador. Por isso, no contexto de um
discurso normativo como o da nova sociedade civil, enfático
quanto às virtudes de emancipação e democratização substantiva
das práticas coletivas de associação, é difícil não se defrontar
com novo aspecto paradoxal: o viés elitista da própria
participação. Afinal, para a participação em associações
autônomas da sociedade civil ser elevada ao estatuto de novo
padrão da ação coletiva e de nova via para redefinição
substantiva da democracia, e ainda mais, para os atores da
sociedade civil encarnarem de forma cabal a potencialidade de sua
missão normativa, alheia a “interesses particularistas”  como
quer a literatura , parece necessário pressupor alguma das
353

premissas seguintes: ou as empreitadas associativas não replicam


a lógica circular dos outros atributos que as propiciam, ou elas
se arraigam na população de forma mais igualitária do que os
benefícios usufruídos como privilégio da inserção socioeconômica,
cuja distribuição espelha fielmente a iniqüidade da estrutura
social no Brasil. É claro que essa literatura caracteriza os
atores por ela privilegiados como imbuídos de uma lógica pós-
materialista, todavia, tal argumento desloca o problema para a
demonstração do efetivo alastramento de práticas de consociação
animadas por outros motivos que não os de índole material;
conforme examinado ao longo das últimas seções, tanto as leituras
divergentes acerca das conseqüências mais gerais do boom
associativo quanto os resultados desta pesquisa obstam qualquer
inferência de envergadura nesse sentido. Por fim, o cenário
esboçado pelo padrão socioeconômico de associação examinado
nestas páginas sugere a desigual capacidade das diferentes
camadas da população na determinação do espaço público. Se
considerado que o engajamento na vida pública é tão concentrado
quanto os recursos socioeconômicos, parece cabível supor, em
termos gerais, um peso maior dos setores sociais mais organizados
na representação e defesa de seus interesses na esfera política e
no plano da alocação dos recursos públicos. Contudo, a
plausibilidade dessa afirmação não depende apenas da maior ou
menor participação das diferentes camadas da população, mas,
sobretudo, de outro fator ainda não abordado, a saber, onde
participam essas camadas ou, melhor, quais os tipos de associação
por elas privilegiados para a consociação de seus interesses.

9. Os padrões da consociação de interesses

Existem algumas evidências cuja ponderação torna pertinente


nuançar os alcances do padrão geral da participação acima
configurado. Parece correto afirmar que, quando focados aspectos
de efeitos altamente compulsórios quanto à escolha de criar
354

associações ou de se inserir nas já existentes, aparece


importante reversão da relação entre posições socialmente mais
desvantajosas e menores níveis de participação. Essa apreciação
se baseia nos resultados de caso bastante exemplar, a condição
legal de posse da moradia: para as famílias que em 1994 possuíam
casa própria, alugada, cedida ou invadida, as maiores
porcentagens de participação corresponderam a ambos os extremos,
ou seja, às famílias com casa própria (59,3%) e com casa invadida
(53,6%)  replicando a distribuição dos resultados de 1990
(Tabela 14).455 Embora a relação entre a melhor posição e as
maiores porcentagens de associação permaneça em pé, a lógica
hierárquica ou não igualitária do padrão de participação é
rompida pela força dos constrangimentos que, no caso das moradias
invadidas, impele seus moradores à organização, atingindo
patamares sensivelmente maiores aos mostrados pelas famílias com
casa cedida ou alugada.

Tabela 14
Participação familiar em associações segundo condição de
posse da moradia (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Tota Invadida c Cedida Alugada Própria
l
1990 43,3 44,4 36,0 38,6 47,6
1994 54,1 53,6 46,9 46,1 59,3
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.
c/ Definição: vide nota de rodapé 130.

455
Embora seja cabível definir a condição de posse da moradia de forma
subjetiva, caso em que o morador poderia firmar sua relação de "propriedade”
com imóvel invadido, o critério estabelecido pelo SEADE diz respeito ao estatuto
legal da posse; em conseqüência, o entrevistador preserva a faculdade de
imputar a condição legal quando a resposta do entrevistado objetiva evitar o
reconhecimento do caráter ilegal da ocupação de sua moradia. Cf, SEADE, PCV 94
 Manual..., op. cit., p. 42.
355

Já se atentou para o expressivo incremento da participação


em associações entre 1990 e 1994  superior a 10% ,
assinalando-se que tal evolução não introduzia mudanças de
importância com respeito ao padrão de participação examinado. Tal
asseveração é correta porém imprecisa, visto o aumento geral do
associativismo não ocorrer necessariamente na mesma proporção em
todos os estratos sociais; além de haver apoio em algumas das
variáveis exploradas na seção anterior para inferir que o
crescimento relativo da participação assume maior importância
dentro das camadas pobres. De fato, o aumento geral da
participação apresenta surpreendentes pontos de inflexão que,
embora poucos, poderiam ser interpretados, eventualmente, como
manifestação de tendências positivas de médio prazo. A esse
respeito cumpre expor, de forma breve, o caso mais contundente
entre todas as variáveis analisadas para esta pesquisa. Se a
condição familiar de participação em associações é avaliada à luz
do nível de instrução do chefe, observam-se transformações
altamente significativas que fazem com que a hierarquia do padrão
de participação em associações, refletida fielmente pelos dados
de 1990, seja quase totalmente revertida em 1994: o crescimento
da participação passou de 41% para 57,1% no caso dos chefes com
primário incompleto, enquanto evoluiu mantendo patamares
inferiores no caso das outras faixas de escolaridade; mesmo nesse
exemplo extremo, as famílias cujo chefe atingiu escolaridade de
nível superior mostraram maiores vínculos associativos nos dois
anos  61,9%, em 1990, e 67,2% em 1994 (Tabela 15).

Tabela 15
Participação familiar em associações segundo nível de
instrução do chefe (%)
RMSP 1990 e 1994a
Famílias com participaçãob
Ano Tota Primário 1o. grau 2o. grau 2o. Superi
l incomple incomple incomple grau or
to to to comple
to
356

1990 43,3 41,0 40,8 42,6 46,6 61,9


1994 54,0 57,1 51,0 47,5 50,2 67,2
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação na vida
pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Membros da família de 7 anos ou mais.

Tanto os baixos níveis de consociação, em especial nas


associações de caráter civil, quanto o próprio caráter excludente
do padrão de participação  sistematizados nos dois itens
anteriores , parecem algo atenuados pela introdução das
ponderações acima expostas: a distribuição do crescimento geral
dos vínculos associativos, eventualmente maior no caso das
camadas pobres; e o nítido incremento da participação nessas
camadas, quando examinadas as repercussões de certos
constrangimentos que impelem as famílias a desenvolver
estratégias de organização. O significado de ambas as
considerações perante os traços gerais da participação, já
definidos como dominantes, é pouco claro ainda, mas seu
enquadramento na lógica dos padrões de consociação das diferentes
camadas da população permitirá dissipar a dúvida. Assim, o passo
procedente é avançar no conhecimento mais detalhado das práticas
associativas, explorando as constâncias existentes entre as
formas possíveis de consociação e os segmentos sociais que
recorrem a elas. Já foi construída e justificada a agrupação
tipológica (Tabela 5) que viabilizará o último desdobramento da
análise aqui desenvolvida, todavia, efetuou-se mais uma operação
metodológica com o intuito de evitar a dupla contagem, aferindo
com maior precisão os traços distintivos das famílias cujos
membros se encontram inseridos nas associações representativas da
nova sociedade civil  reunidas sob o rótulo “horizontais” na
tipologia.456 Cada família com participação foi computada apenas

456
Cabe mencionar que a definição das categorias para classificar as
associações difere nos questionários das PCV de 1990 e 1994; em virtude do
caráter individual da variável participação na pesquisa do último ano, assim
como da maior discriminação de opções para registrar as respostas dos
entrevistados, a definição da tipologia foi pautada pelo questionário da mesma.
357

uma única vez, em função de uma ordem exclusiva de preferência


que, conforme a tipologia aqui construída e os propósitos desta
análise, privilegiou, primeiro, as associações horizontais,
seguidas das político-econômicas e, por último, das religiosas e
das recreativas. A despeito dos resultados serem desfavoráveis à
participação em associações horizontais e político-econômicas,
segundo será analisado logo a seguir, cabe salientar que, em
virtude da ordem de contagem, elas estão relativamente sobre-
representadas com respeito às práticas de consociação de índole
religiosa e recreativa. Parece desnecessário repetir os motivos
pelos quais, ao lançar mão desse expediente, objetivou-se
outorgar todas as vantagens lícitas ao novo associativismo civil.

Em 1990, depois das associações recreativas, as de tipo


horizontal respondiam pelos menores níveis relativos de
participação familiar (14,7%), contrastando com o peso da
consociação de caráter religioso (37,2%) e político-econômico
(38,9%). O já modesto papel das associações horizontais dentro do
conjunto das práticas de consociação sofreu queda relativa de
23,8% em 1994, o que as tornou a opção de participação menos
procurada pelos integrantes das famílias (11,2%); entretanto, o
resultado mais sobressalente é outro: se no o primeiro ano as
associações políticas e religiosas mantinham uma primazia

Por isso, os resultados de 1990 foram assimilados às opções mais idôneas da


tipologia, operação facilitada pelo fato de os quesitos do questionário de 1994
constituírem simples subdivisões dos critérios empregados na primeira PCV.
Esses quesitos, tal e como aparecem no questionário da PCV 90, são: 1)
associações de bairro, de moradores, de favela; 2) igrejas, grupos ou
associações religiosas, ação pastoral, comunidades de base; 3) partido ou
diretório político; 4) escola de samba, time de futebol, clube esportivo; 5)
Movimento dos Sem-Terra, de negros, de saúde, clubes de mães; 6) sindicatos; 7)
associações profissionais; 8) outros tipos de associação. A diferença entre os
dois questionários é a maior discriminação dos critérios de classificação na
pesquisa de 1994: o desdobramento do item 5, criando a opção luta de minorias
como diferente do MST; e o desdobramento do item 2, dando lugar a distinção
entre a Igreja Católica e outras igrejas, e também separando as comunidades de
base das igrejas. De toda forma, na tipologia os itens são grupados de novo,
pelo que há apenas uma pequena distorção na comparação entre os resultados de
1990 e 1994, pois as comunidades de base são computadas no primeiro ano dentro
das associações religiosas. Cabe salientar que seu peso é inexpressivo para
inviabilizar a comparação, 1,2% do total dos indivíduos vinculados a qualquer
tipo de associação  vide Tabela 5.
358

equilibrada, poucos anos depois aconteceu impressionante


concentração que fez com que a participação de índole religiosa
assumisse posição de domínio esmagador (62,3%) sobre o conjunto
das práticas de consociação  notadamente sobre as de caráter
político-econômico (13,1%) (Tabela 16). O significado desses
resultados indica deslocamentos relativos no peso da participação
em cada tipo de associação, nos quais é impossível distinguir em
que proporção as mudanças obedecem ao crescimento ou à diminuição
reais das diferentes opções de consociação em si, pois a
importância de cada uma delas é relativa, isto é, reflete as
alterações do conjunto. Ainda na Tabela 16 mostram-se as
variações reais, e as cifras são contundentes: o incremento da
participação em associações religiosas atingiu o patamar de
109,6%, as políticas decresceram em 57,8% e as horizontais também
registram queda, embora menos acentuada (4,5%)  tudo isso em
contexto de incremento generalizado da participação (25,1%).
Segundo é possível apreciar com nitidez nos resultados em
revisão, diante do limitado peso das associações horizontais não
resta dúvida de que o vigor das práticas de consociação, na RMSP,
não corresponde ao agir espontâneo e autônomo dos atores da nova
sociedade civil, os quais registraram evolução negativa; antes,
trata-se da vertiginosa expansão dos laços das famílias com
diversas organizações religiosas, cuja preponderância relativa
elevou-se a 67,4% no período  uma espécie de “sociedade civil
religiosa” a progredir mediante e a partir do enfraquecimento da
participação nas associações político-econômicas (-66,3%),
compostas majoritariamente por entidades de representação de
classe.457 Além das associações religiosas, também as recreativas
apresentaram resultados positivos no percurso do quadriênio
examinado. Em face de tais constatações, é difícil não reparar
nos efeitos corrosivos que as mudanças da participação nos
diferentes tipos de associação impõem sobre os diagnósticos
sustentados pela literatura da nova sociedade civil,

457
Como pode ser observado na Tabela 5.
359

particularmente no que diz respeito a suas expectativas sobre o


vigor das práticas de consociação horizontais.

Tabela 16
Participação familiar em associações segundo
tipologia de associativismo (%)
RMSP 1990 e 1994a
Tipo de Participaçãoc
associaçãob Nas fams. que No Total das
part. fams.
1990 1994 Var. 1990 1994 Var.
Horizontais 14,7 11,2 - 6,36 6,07 -4,55
23.8
Polítco- 38,9 13,1 - 16,8 7,1 -
econ. 66.3 4 57,83
Religiosas 37,2 62,3 67.4 16,1 33,7 109,6
0 6 8
Recreativas 9,2 13,4 45,6 3,98 7,26 82,41
Total 100 100 - 43,3 54,2 25,1
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação
na vida pública”, a partir das bases de dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Definição: vide notas de rodapé 113 e 131, e Tabela 5
c/ Membros da família de 7 anos ou mais.

Uma vez conhecida a importância específica das diferentes


opções de consociação, tal como expressa pelas escolhas dos
membros das famílias, resta saber se as clivagens da estrutura
social também são reproduzidas no plano das formas de
participação privilegiadas pelos distintos segmentos sociais; por
outras palavras, falta estabelecer se os traços distintivos do
padrão socioeconômico de participação interagem com o tipo de
associações mais requisitado pelas diferentes camadas da
população. Para tanto, procede desdobrar os resultados da Tabela
16 segundo faixas de renda familiar, o que eqüivale a examinar a
distribuição da participação a partir da posição socioeconômica
das famílias e, depois, verificar as mudanças reais ocorridas no
período coberto pela pesquisa. A Tabela 17 mostra duas constantes
notáveis no que diz respeito às práticas de consociação mais
usuais nos diferentes estratos da sociedade: de um lado,
360

verifica-se a predominância esmagadora dos vínculos com


associações religiosas nas famílias com menores níveis de renda
e, do outro, como contrapartida, constata-se a relação
sistemática entre maior participação de índole política e
incremento da renda.

A inserção em associações religiosas lidera, de longe, as


práticas de consociação das famílias muito pobres  51,3%, em
1990, e 79,9%, em 1994 , fenômeno algo atenuado no caso das
famílias pobres, descendo de forma progressiva conforme a renda
das famílias aumenta. Por sua vez, enquanto as organizações
político-econômicas concentravam, em 1990, 49% da participação
das famílias abastadas, a relevância dessas organizações
declinava de forma contínua no caso das famílias remediadas
(39,5%), pobres (30,8%) e muito pobres (17,5%). Embora o peso da
participação político-econômica tenha diminuído muito em 1994, a
trajetória seguida pelos níveis de participação é igual. Tanto as
associações horizontais como as recreativas ocupam posições
secundárias nos padrões de participação de cada estrato, todavia,
é pertinente assinalar que as primeiras tinham uma importância
relativa maior em 1990, cedendo seu lugar às segundas em 1994. De
fato, em 1990 as famílias pobres eram as que mantinham mais
vínculos com associações de tipo horizontal, e, embora isso
forneça indícios acerca da possibilidade de o associativismo
civil não estar subordinado de forma rígida aos condicionantes
socioeconômicos, as mudanças ocorridas no período analisado
reforçam tanto a lógica excludente do padrão geral de
participação quanto a observação da queda no peso relativo desse
tipo de consociação nas estratos muito pobres e pobres. Cabe
frisar, ainda, a nítida diferenciação do tipo de envolvimento
participativo privilegiado pelos diferentes estratos da
população: enquanto as associações religiosas mantêm posição de
predomínio inconteste na consociação das famílias de escassos
recursos  quase 80% em 1994 , as famílias mais bem aquinhoadas
361

são as que recorrem às organizações político-econômicas,


freqüentando de forma menos concentrada outros tipos de
associação.

Como mostrado na Tabela 18, não há dúvidas quanto ao papel


da desigual distribuição da renda nas alterações acontecidas nos
distintos tipos de vínculos com associações, pois, grosso modo,
trata-se da reiteração dos traços dominantes já firmados como
característicos da participação em geral. Duas observações
permitem sumariar os resultados a esse respeito. Primeiro, o boom
do associativismo religioso gerou efeitos notoriamente maiores
nas famílias muito pobres, crescendo 182%; segundo, as
associações político-econômicas, marcadas por saldo negativo, não
perderam importância de forma homogênea entre os diferentes
estratos, pelo contrário, seu declínio é consoante com as faixas
de renda, chegando ao extremo de as famílias muito pobres terem
abandonado seus vínculos com tais associações (-90,8%). Ademais,
também o incremento geral na consociação recreativa é menor
nessas famílias. Quanto às associações horizontais, a Tabela 18
permite esclarecer com maior precisão seu comportamento: elas
cresceram apenas nas famílias abastadas, diminuindo no resto;
todavia, sua presença nas camadas muito pobres manteve-se
praticamente estável, pelo que é cabível atribuir a perda de seu
peso relativo (Tabela 17) ao aumento da participação em
associações religiosas.
362

Tabela 17
Participação familiar relativa segundo tipologia de associativismo por renda familiar
RMSP 1990 e 1994a (%)
Tipo de c
Faixas de renda familiar
b Muito pobres Pobres Remediadas Abastadas
associação
1990 1994 Var. 1990 1994 Var. 1990 1994 Var. 1990 1994 Var.
Horizontais 21,9 12,0 -45,2 16,8 9,4 -44,0 13,1 8,9 -32,0 13,2 15,2 15,1
Político- 17,5 0,89 -94,9 30,8 9,5 -69,1 39,5 15,5 -60,7 49,0 21,3 -56,5
econ.
Religiosas 51,3 79,9 55,7 45,7 70,4 54,0 38,1 60,8 59,5 26,4 45,6 72,7
Recreativas 9,2 7,7 -22,8 6,5 10,5 61,5 9,1 14,6 60,4 11,1 17,8 60,3
Total 100 100 - 100 100 - 100 100 - 100 100 -
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação na vida pública”, a partir das bases de
dados das PCV 90 e 94- SEADE.
b/ Definição: vide notas de rodapé 113 e 131, e Tabela 5.
C/ Definição, vide nota de rodapé 83. A participação considera os membros da família de 7 anos ou mais.

Tabela 18
Participação familiar real segundo tipologia de associativismo por renda familiar
RMSP 1990 e 1994a (%)
Tipo de c
Faixas de renda familiar
b Muito pobres Pobres Remediadas Abastadas
associação
1990 1994 Var. 1990 1994 Var. 1990 1994 Var. 1990 1994 Var.
Horizontais 5,91 5,86 -0,84 6,68 4,77 -28,59 5,71 4,93 -13,66 6,7 9,13 36,26
Político- 4,72 0,43 - 12,25 4,82 -60,65 17,22 8,58 -50,17 24,89 12,8 -48,57
econ. 90,89
Religiosas 13,8 39,0 182,0 18,18 35,7 96,69 16,61 33,68 102,76 13,41 27,40 104,32
5 7 9 6
Recreativas 2,48 3,76 51,61 2,58 5,33 106,58 3,96 8,08 104,04 5,63 10,70 90,05
Total 27,0 48,9 81,11 39,8 50,8 27,63 43,6 55,4 27,06 50,8 60,1 18,3
a/ Fonte: Pesquisa “A nova sociedade civil e as práticas de consociação na vida pública”, a partir das bases de
dados das PCV 90 e 94- SEADE.
b/ Definição: vide notas de rodapé 113 e 131, e Tabela 5.
C/ Definição, vide nota de rodapé 83. A participação considera os membros da família de 7 anos ou mais.
363

Por fim, procede completar o percurso realizado no exame das


clivagens socioeconômicas da participação, ou seja, constatar que
outros atributos vinculados à consociação de interesses
reproduzem as desigualdades mostradas pela variável renda. Pela
revisão das variáveis consideradas para examinar o padrão geral
de participação, é plausível esperar que a inserção nos tipos de
associações reproduza o comportamento já descrito: tanto a
coincidência da maior participação em associações político-
econômicas com a concentração de vantagens culturais e de
qualidade de vida, quanto a relação entre fortalecimento dos
vínculos familiares com organizações religiosas e baixa
escolaridade, inserção vulnerável no mercado de trabalho,
precariedade habitacional, etc. Embora tenha sido examinado um
leque mais amplo de variáveis, mostrando todas elas resultados
bastante semelhantes, 458 a consistência desse padrão pode ser
satisfatoriamente ilustrada, de forma breve, mediante a relação
entre educação e o tipo de participação privilegiado pelas
famílias. Como mostrado na Tabela 19, o nível de instrução
familiar não apresenta divergências relevantes com respeito às
características já salientadas  as diferenças nas porcentagens,
que não na importância relativa de cada tipo de associação na
distribuição geral, decorrem da maior agregação dos dados. Há
apenas um fato dissonante, para o qual não parece haver
explicação plausível: o aumento minúsculo da inserção nas
associações recreativas no caso das famílias com nível de
instrução intermediário.

Tabela 19
Famílias por tipo de participação associativa segundo nível
de instrução familiar (%)

458
Realizou-se a análise da distribuição da participação das famílias segundo
diversos atributos de caráter socioeconômico e demográfico  condição de
posse, qualidade e infra-estrutura urbana da moradia; ciclo de vida e arranjo
familiar; tempo de residência na RMSP, entre outras , e os resultados são
consistentes o suficiente para dispensar sua exploração pormenorizada nestas
páginas.
364

RMSP 1990 e 1994a


Tipo c
Níveis de instrução familiar
associaçãob Precária Intermediária Não Precária
1990 1994 Var. 1990 1994 Var. 1990 1994 Var.
Horizontais 16,3 9,3 -42,9 14,3 10,0 -30,0 11,4 14,3 25,4
Político-econ. 29,8 9,9 -66,7 40,6 14,1 -65,2 54,9 18,4 -66,4
Religiosas 48,2 72,6 50,6 33,8 63,5 87,8 18,7 47,1 151,8
Recreativas 5,5 8,9 61,8 11,2 12,3 0,98 14,8 20,3 37,0
Total 100 100 - 100 100 - 100 100 -
a/ Fonte: Pesquisa "Configuração do Espaço Público no Brasil”, a partir das bases de
dados das PCV 90 e 94 - SEADE.
b/ Definição: vide notas de rodapé 113 e 131, e Tabela 5.
C/ Definição, vide nota de rodapé 122. A participação considera os membros da família de
7 anos ou mais.

Os resultados da pesquisa expostos ao longo das últimas


páginas podem ser compendiados em duas constatações gerais, que
mostram a existência de padrões nitidamente diferenciados nos
recursos e nas escolhas associativas: de um lado, a predominância
crescente das práticas de consociação de índole religiosa  sem
dúvida merecedoras de estudo pormenorizado , acompanhada do
sensível declínio das opções de participação de caráter político-
econômico; do outro, o fato de as camadas mais pobres da
população privilegiarem os vínculos religiosos, enquanto os
segmentos mais bem aquinhoados mantêm repertório menos restrito,
orientando sua inserção, de maneira importante, para as
associações de tipo político-econômico. Se a desigual
distribuição das condições propícias ao desenvolvimento de
solidariedades estabilizadas por suportes institucionais, em
maior ou menor medida consolidados, permitiu confirmar a
sensibilidade das iniciativas de organização ante os
constrangimentos das clivagens sociais, agora emerge quadro mais
completo, pois a participação reproduz essas clivagens não apenas
pela intensidade dissímil com que se manifesta nos diversos
estratos da população, mas também mediante o tipo específico de
associação por eles escolhido para veicular seus interesses. Por
outras palavras, o acesso ao espaço público não é tão espontâneo
e sequer tão livre de interesses socioeconomicamente posicionados
quanto seria possível supor a partir da literatura da nova
365

sociedade civil  entretanto, isso merece comentário à parte,


que será elaborado depois de se extraírem sugestões mais
abrangentes da análise até aqui desenvolvida. Que a consociação
de interesses obedece a dinâmicas heterogêneas e conflitantes é
um pressuposto constitutivo da vida pública  tal e como
definida na primeira parte deste trabalho , embora a
reconstrução dos padrões operantes constitua um problema a ser
equacionado no plano da pesquisa empírica; infelizmente, malgrado
os avanços aqui apresentados, a questão mais relevante permanece
ainda intacta, a saber, a efetividade desses padrões na
determinação do espaço público. Além disso, se as bases de dados
utilizadas  SEADE  viabilizam uma aproximação rara do fenômeno
associativo, graças à representatividade e às nuanças das
informações ali contidas, o limitado escopo temporal desautoriza
a projeção de qualquer inferência mais ambiciosa. Ainda assim,
não parece correto se furtar ao esforço de uma interpretação mais
abrangente dos padrões de consociação encontrados.

Sem considerar o declínio dos vínculos com organismos


vocacionados à representação de interesses no âmbito econômico e
político, a pequena participação nas categorias eventualmente
representativas da nova sociedade civil, a descontinuidade entre
o exercício da arte da associação e o adensamento societário da
vida pública, e a preponderância dos laços associativos com
instituições religiosas  em particular nos setores populares ,
configuram um panorama contrastante se cotejado com diagnósticos
“otimistas” como os propostos pela literatura examinada nas
primeiras seções desta parte do trabalho. Entrementes, esse
panorama poderia vir ao encontro de posturas que orbitam em torno
de registro inverso  “negativo” ou “pessimista”, por assim
dizer , munindo velhos argumentos sobre a “ausência de povo”, a
“insolidariedade”, a “inexistência de cultura cívica”, a
“passividade”, a “inorganicidade social”, a distância
intransponível entre a pertinácia do “Brasil real” e a impotência
366

do “Brasil legal”, e outras tantas expressões que  conforme


aqui mostrado  sintetizam a impossibilidade de um espaço
público genuíno no Brasil pelas “peculiaridades” da vida pública.
Essas idéias, hoje altissonantes, vêm sendo contestadas há tempo
pelo paciente labor etnográfico da antropologia urbana,
apontando-se tanto a plena existência de espaços societários
ativos próprios às camadas populares quanto a presença de
inúmeras mediações entre as agências estatais, as instituições
políticas e a população, cujo funcionamento dista de se reduzir à
manipulação clientelista de comunidades inermes  antes, trata-
se de canais empregados de ambos os lados de maneira
459
estratégica. Não é ocioso enfatizar o fato de essas mediações
operarem exatamente ali onde aquelas idéias diagnosticam o vácuo,
a mera ausência de espaço público, a nulidade da cidadania pela
ausência de direitos; o intuito de destacar esse âmbito difuso de
intermediação não é apologético, sustenta-se que seu exame é
fundamental para desenvolver uma interpretação mais acurada da
configuração do espaço público. Com efeito, os trabalhos
antropológicos têm mostrado que o discurso dos direitos convive
com outra lógica, cuja vigência não pressupõe a abolição do
primeiro, apenas atualiza canais alternativos ora para a
efetivação do próprio direito, ora para a obtenção de benefícios
comunitários não resguardados na lei; também diversos autores têm
enfatizado, da ótica da ciência política, a presença de ambas as
dinâmicas na definição do espaço público, a decantação histórica
de uma trama institucional híbrida, na qual interagem componentes
pluralistas, poliárquicos, corporativos e neocorporativos, e
pressões sociais das mais diversas índoles sobre agências

459
Para uma crítica às “posições etnocentristas” a denunciarem a “falha
ideológica” ou a ausência de princípios universalistas no povo, assim como para
a demonstração de que esse “povo” é ciente de utilizar os políticos como
“despachantes” e do valor da representação, cf. o belo trabalho de Alba Zaluar,
A máquina e a revolta  As organizações populares e o significado da pobreza,
pp. 221-56; cf., também, Teresa Pires do Rio Caldeira, A política dos outros 
O cotidiano dos moradores da periferia e o que pensam do poder e dos poderosos,
pp. 235-46; José Guilherme Cantor Magnani, Festa no pedaço  Cultura popular e
lazer na cidade, pp. 101-38.
367

específicas do Estado  sem esquecer fenômenos contrários a


qualquer concepção de ordenamento político democrático, como os
sérios déficits na administração da justiça ou na garantia dos
direitos civis. 460

À luz dessa perspectiva é possível interpretar os padrões de


consociação das diferentes camadas sociais como respostas
padronizadas, em maior ou menor grau, que refletem tanto as vias
de acesso ao reconhecimento público de seus interesses quanto a
desigual efetividade do direito e dos mecanismos tradicionais de
representação para o conjunto da população. Para além dos motivos
estritamente espirituais a animarem a adesão de um indivíduo a
determinado culto ou igreja, essas instituições também lhe
oferecem a oportunidade de se inserir em uma rede de
solidariedade; e essa pertença comunitária não raro vem
reforçada por benefícios materiais, desde ajuda em momentos de
urgência até relações de trabalho e outras formas de integração
social  as últimas, particularmente relevantes nas congregações
pentecostais. Os benefícios nem sempre permanecem restritos ao
plano privado, seja no plano da conversão e da correspondente
mudança de valores, seja no plano do auto-compromisso com outrem
 caridade, auxílio mútuo ; na realidade, eles se adentram na
vida pública como expressão correlata do papel cada vez mais
importante das igrejas no próprio espaço público. 461 Há mostras
mais que contundentes da presença das religiões nas distintas
dimensões do espaço público: na vida política, a proliferação de
candidatos nos níveis municipal, estadual e federal, e a bancada
evangélica no Congresso; na mídia, a propriedade de canais de TV
e de radiodifusoras; na vida púbica, mediante o trabalho de

460
Para a análise dessa lógica dupla da perspectiva da antropologia, cf. Alba
Zaluar, A máquina..., op. cit., pp. 186-8, 221-30, 248-9; Teresa Pires do Rio
Caldeira, A política..., op. cit., pp. 233-4, 262. No campo da ciência
política, já foram referidos os trabalhos de Angela de Castro Gomes, Renato
Raul Boschi, Wanderley Guilherme dos Santos e José Murilo de Carvalho; vide
nota de rodapé 94.
461
Cf. Paula Montero, Ronaldo Romulo Machado de Almeida, et al., Novas faces da
cidadania II: religiões e espaço público no Brasil, pp. 1-8, 15-40.
368

entidades civis, pela sua relação com atores políticos e sociais,


pelo sua capacidade para “abrir as portas” de determinada
comunidade, pela formação de opinião na congregação de fiéis e, o
que é fundamental, mediante sua intervenção no gerenciamento
local de políticas públicas universalistas e assistencialistas 
por exemplo educação, no primeiro caso, e distribuição de
víveres, no segundo.

Destarte, a opção pelo associativismo religioso parece


transbordar o âmbito privado da fé, constituindo-se em uma
verdadeira resposta de inserção societária na vida pública, isto
é, de consociação para representação de interesses. É
insuficiente explicar a centralidade dos vínculos religiosos para
a imensa maioria da população que exerce práticas associativas
(62%) apenas pela baixa escolaridade, pela sobrevivência de
visões de mundo tradicionais ou pelo caráter naturalizado desse
tipo de vínculos  o que, seja dito de passagem, poderia ser o
caso de outros países latino-americanos quase totalmente
católicos, mas não o do Brasil ; em uma sociedade em que o
mercado impulsionou processos de incorporação social muito
limitados, e em que a consagração constitucional de direitos não
garante sua efetivação universal, os canais acessíveis para a
intermediação de interesses adquirem relevância fundamental para
os segmentos que, banidos do mundo formal do trabalho e de seus
mecanismos de representação, encontram amparo limitado na
efetividade truncada da lei  em especial no terreno dos
direitos sociais. O fato de 80% das famílias muito pobres
recorrerem às associações religiosas é consoante com os achados
da pesquisa do IBGE nas grandes regiões metropolitanas: se 62% da
população declara não haver nenhuma entidade ou instituição
pública ou privada a defender seus interesses, aqueles que sentem
estar realmente representados apontam em posição preponderante as
369

igrejas e os cultos (29%). 462 O papel das associações religiosas


na vida publica constitui filão de análise praticamente
inexplorado, decerto rico por seus aspectos paradoxais e por sua
extrema complexidade, a começar pelo fato de não existir apenas
uma ou duas religiões, mas todo um campo em disputa aqui
homogeneizado pela abordagem estatística. Dentro dos limites
deste trabalho, apenas cabe frisar a inconveniência de se reduzir
a ação dessas instituições ao terreno do assistencialismo e, por
conseguinte, de um mundo alheio aos direitos que atesta a
inexistência do espaço público; elas, além de atuarem de forma
sistemática na vida pública, também constituem canais de
intervenção para políticas públicas universalistas, dentro do
universo difuso de intermediação de interesses que configura a
face menos institucionalizada do espaço público. Por fim, o
repertório mais diversificado das práticas de consociação é
característico das classes mais bem aquinhoadas por motivos mais
evidentes: sua inserção privilegiada no mercado de trabalho, a
disponibilidade de recursos para atividades de lazer e inclusive
a opção de se engajarem em empreitadas associativas ditas pós-
materiais. A relação desses segmentos com a projeção de
interesses, por intermédio da vida pública, parece transcorrer
dentro da lógica poliárquica e pluralista que define a outra face
do espaço público no país.

Para finalizar, convém precisar algumas considerações


pontuais sobre os diagnósticos propostos pela literatura da nova
sociedade civil. As expectativas em torno ao surgimento de um
novo padrão de ação coletiva espontânea e autônoma, de efeitos
democratizadores e orientada por critérios normativos, encontram
dissonâncias nas implicações dos três conjuntos de resultados
expostos nestas páginas: o baixo nível de participação nas

462
IBGE, Associativismo..., (1996) op. cit., gráficos 20 e 21. As categorias
passíveis de escolha foram as seguintes, ordenadas conforme a freqüência das
respostas: igrejas e cultos, sindicatos, associações de bairro, políticos,
presidente da República, associações profissionais e juízes.
370

associações eventualmente representativas da nova sociedade


civil, o viés socioeconômico do exercício da consociação e o fato
de o único vigor associativo registrado  da ótica dos
associados  recair nas instituições de índole religiosa. Não
cabe agora retomar as nuanças da argumentação, todavia, à luz da
análise realizada, é pertinente afirmar que os promissores
diagnósticos sobre a nova sociedade civil não teriam encontrado
eco na realidade se o escopo analítico dessa literatura não
estivesse fixado de forma parcial na proliferação de certo tipo
de associações, relegando tanto a questão dos associados quanto a
relevância de outras formas de consociação, como as de índole
político-econômica e religiosa  a última decerto bastante
expressiva se olhada do ponto de vista da participação. Pode-se
argüir, e com razão, que a presente abordagem peca pelo extremo
oposto, pois, ao relativizar os alcances do argumento das
associações, sem dúvida insuficiente, enfatizou sobremaneira o
“argumento dos associados”, negligenciando abundantes evidências
acerca da efetividade real dos atores da nova sociedade civil.
Contudo, a inegável influência desses atores não parece decorrer
das características altamente idealizadas que lhes confere a
literatura. No percurso destas seções mostrou-se amplamente a
inexistência de referentes empíricos para sustentar tais
características, e, em conseqüência, neste caso o mais prudente
seria buscar respostas em outras fontes menos propensas à
estilização dos motivos e fatores postos em jogo na organização
de interesses.
371

RECAPITULAÇÃO

Em auditório abarrotado, um professor emérito da


Universidade de São Paulo suspendeu momentaneamente o percurso de
sua exposição para digressionar a propósito das teses de
doutoramento: a multiplicação dos quesitos formais fazia com que,
no melhor dos casos, esses trabalhos sustentassem uma idéia
central em demasiadas páginas. Sem dúvida, tratava-se de
formulação sintética, pouco confortante para todos aqueles
imiscuídos no paciente labor de dar forma apurada a suas “idéias
centrais”; todavia, vistas as coisas de outra ótica, a
especificidade do mérito no discurso das ciências sociais
encontrava definição adequada nessa digressão. Nelas, o valor dos
argumentos reside no processo de sua construção, nas mediações
capazes de alicerçá-los e na explicitação de seus vínculos com
diversos campos de problemas. Não é o propósito reproduzir as
nuanças do percurso seguido até aqui, nem ensejar uma conclusão
geral  visto que as três partes deste trabalho foram
desenvolvidas de modo a permitir o balanço de seus respectivos
conteúdos ; agora, e a despeito dos riscos de imprecisão
inerentes a qualquer síntese, apresenta-se apenas a evolução
formal dessa trajetória à guisa de recapitulação.

As reflexões deste trabalho foram motivadas, com efeito,


por uma idéia central: a recorrência da vida pública no
pensamento político-social como chave para equacionar a
configuração do espaço público no país. Contudo, os conteúdos
específicos de ambos os conceitos e sua relação mútua distam de
ser evidentes, e não parece correto proceder a partir de uma
definição “operativa”, negligenciando-se as discrepâncias
existentes nas grandes abordagens do espaço público moderno.
372

Afinal, a própria centralidade da vida pública apenas resulta


cabalmente compreensível quando interpretada sobre o pano de
fundo das dificuldades impostas pela noção moderna do público aos
autores que, no segundo quartel do século XX, se empenharam em
desvendar as características da realização histórica dessa noção
no Brasil. Malgrado a crescente ênfase da literatura
contemporânea no papel dos fluxos comunicativos emanados do seio
da sociedade, o exame dos dissensos entre as posturas mais
autorizadas mostrou a pertinência de se recorrer a uma
perspectiva aberta ao caráter multidimensional do espaço público.
A emergência do social no mundo moderno deu lugar à vida pública
e, particularmente, à consociação privada como expediente
legítimo para incidir na regulação da sociedade por intermédio
das instituições políticas. Se a organicidade social responde a
uma lógica autônoma, seus efeitos interagem com a vida política e
dependem das possibilidades da institucionalização universal de
interesses, isto é, do perfil histórico-político do Estado. Por
sua vez, uma parte considerável dos processos de comunicação
entre a vida pública e a política não mais transcorre dentro dois
canais diretos de uma opinião pública nos moldes liberais
clássicos; hoje, as condições daquilo que é comunicável com
sentido público respondem à racionalidade altamente diferenciada
da comunicação política no campo da mídia. Assim, a coincidência
e descompassos nas dinâmicas dessas três dimensões confluem na
determinação do espaço público.

As seculares tendências de consolidação da autonomia do


social, do vertiginoso crescimento da imprensa e de uma sociedade
letrada, bem como da consolidação dos Estados nacionais, subjazem
como condições de possibilidade da constituição do espaço público
moderno. É bem conhecido que a convergência desses processos de
longa duração dificilmente encontra paralelo na história do país
antes do fim do século XIX, e ainda assim de forma precária. Os
públicos de auditores, o desafio oitocentista da construção de
uma ordem política nacional e a continuidade do trabalho
373

compulsório como fulcro da vida econômica e social definem um


quadro particularmente problemático para se pensar na gênese do
espaço público no Brasil. A recorrência da vida pública no
pensamento político-social torna-se compreensível nesse contexto:
primeiro, o mundo das instituições políticas representava índice
pouco fiel da realidade social  pressuposto do desacoplamento
entre a sociedade e o Estado ; segundo, a inexistência de
camadas sociais significativas e organicamente vinculadas,
capazes de encarnar interesses sociais amplos, minava a
verossimilhança a qualquer proposta de vinculação moral
abrangente  a “ausência de povo”, a “insignificante lambugem de
gente livre”, a impossibilidade de uma “moral poderosa” e o
“artificialismo” das idéias. Assim, a vida pública corrompida ou
moldada pelo predomínio esmagador da uma vida privada 

edificada sobre a escravidão , assumiu o estatuto de empecilho


fundamental para a construção de um espaço público genuinamente
moderno no país.

Na realidade, tanto a caracterização da vida privada quanto


sua passagem para a vida pública permanecem indeterminadas no
plano desses condicionamentos históricos gerais, visto eles terem
sido o referente comum dos pensadores que, no final do oitocentos
e no primeiro quartel da centúria seguinte, ensejaram
“explicações do Brasil”. O signo distintivo de autores como
Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Nestor Duarte,
Fernando de Azevedo e muitos outros que contribuíram para a
extraordinária renovação do ambiente intelectual nos anos 30, foi
o tratamento da questão da “identidade nacional” sob universos
inéditos de mediações conceituais, provindas dos campos da
antropologia e da psicologia; isto é, tratou-se de uma vaga de
reinterpretações da brasilidade como sedimentação secular
cristalizada na cultura e no caráter nacionais. Há um repertório
de temas característico dos discursos da identidade 
exuberância da natureza, sensualidade, miscigenação, plasticidade
374

social, qualidades ou francas deficiências do “povo” ; todavia,


sua reapropriação conforme as grandes preocupações de cada
período e os cânones de pensamento vigentes torna anacrônicas as
leituras empenhadas em detectar as influências remotas e a
reedição de idéias antigas na obra dos autores mencionados acima.
Isso, como se fosse possível transitar entre o arcadismo, o
romantismo e o positivismo na chave de uma continuidade secular
quanto ao modo de se perceber a brasilidade.

Nos trabalhos dos anos 30, o vigoroso legado cultural luso,


adaptado às condições populacionais e geográficas locais, e
transformado com vagar na época colonial, gerou uma sociabilidade
tipicamente nacional, cujos traços mais enraizados remetem sempre
a um núcleo comum: a lógica patriarcal e privatista das relações
sociais. É a força dessas feições identitárias que ao entrar no
espaço público instaura uma espécie de racionalidade da
açambarcagem: subsunção do público ao privado, do geral ao
particular, do abstrato ao concreto. Assim, a projeção do
privatismo para o espaço público opera no nível cultural da
sociabilidade, ou seja, como um ethos público que torna a própria
vida pública veículo de uma pré-modernidade pertinaz. Apesar de
os autores analisados terem postulado a paulatina moderação e
inclusive a extinção desse ethos público  ocasionadas pelas

mudanças da modernização socioeconômica em curso , ele


continuou a ser utilizado como expediente ad hoc para explicar as
insuficiências e distorções do espaço público no Brasil. O exame
crítico da reprodução do ethos como recurso explicativo apontou
os riscos do raciocínio tautológico e da “anomalização” da
realidade como obstáculos de pensamento para avançar rumo a uma
compreensão mais apurada da configuração desse espaço no país.

Nos últimos anos, a vida pública ressurgiu na agenda das


preocupações acadêmicas, desta feita, em registro diametralmente
oposto e decerto mais restrito, quer dizer, enquanto expressão de
375

uma nova sociedade civil mobilizada por consensos normativos na


tematização e defesa públicas de causas vinculadas a interesses
gerais ou não particularistas. Há distintas famílias de
argumentos da sociedade civil, pois a categoria se encontra
presente na filosofia política moderna desde o século XVII;
contudo, neste caso trata-se de recente proposta de reconstrução
teórica, aplicada à interpretação das mudanças sociopolíticas
ocorridas no país a partir do processo de abertura. A literatura
da nova sociedade civil atenta para a emergência de uma miríade
de atores coletivos ancorados no tecido social, responsáveis por
um padrão inédito de ação coletiva; padrão notabilizado por seus
efeitos de transformação da cultura política, de reforma
substantiva da democracia e de ampliação do espaço público. De
fato, ao longo do século XX constata-se o progressivo adensamento
societário da vida pública. Entretanto, e embora exista consenso
na produção acadêmica dos anos 80 e 90 quanto ao vertiginoso
crescimento do associativismo civil, e quanto à diversificação
dos tipos de interesses organizados, há divergências
consideráveis no que diz respeito às implicações gerais dessas
tendências  além de os dados disponíveis acusarem o peso
modesto dos atores representativos da nova sociedade civil em
face da expansão de outras formas associativas de índole
tradicional: sindicatos, lazer e, sobretudo, cultos e igrejas.

O estudo das práticas de consociação de interesses permitiu


contrastar o boom associativo com o comportamento da
participação, mostrando a relação descontínua entre as dinâmicas
institucionais da ação social e os motivos que levam a população
a optar por determinados vínculos com associações. Ainda mais, os
resultados corroboraram a extrema sensibilidade da participação
ante as clivagens socioeconômicas, e o fato de as camadas pobres
da população privilegiarem os laços de tipo religioso, enquanto
os segmentos abastados contam com repertório mais diversificado,
conferindo especial importância à inserção em associações
376

político-econômicas. Em todos os casos, as práticas de


consociação identificáveis com a nova sociedade civil são
francamente minoritárias. O resultado mais relevante diz respeito
ao extraordinário avanço do associativismo religioso,
concomitante à queda do político-econômico, o que, aunado aos
padrões socioeconômicos da participação, parece vir ao encontro
das teses que postulam a convivência de uma lógica dual ou
híbrida na definição da vida e do espaço públicos no Brasil: de
um lado, uma face altamente institucionalizada, pluralista e
poliárquica; do outro, um universo difuso de intermediação de
interesses, cuja intermitência e desigual efetividade constitui,
todavia, um recurso valioso dos setores mais desfavorecidos da
população para alargar a efetividade do direito.
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