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Resumo: O presente trabalho pretende analisar o livro Laranja Mecânica através de conceitos da
semiótica, sem a pretensão de exaurir as discussões lingüísticas, mas suscitá-las como paradigma
necessário para o bom entendimento da realidade distópica retratada. Ainda, comparar a Teoria da
Prevenção Especial (negativa), no campo da Teoria da Pena, com o enredo literário apresentado –
ponto central do artigo –, bem como realizar a crítica a tal modelo. A relevância do trabalho se dá,
especificamente, na política criminal, visto que as considerações e debates promovidos no âmbito
do Direito Penal têm reflexos práticos, por vezes imediatos. Objetiva-se, com tal, discutir até que
ponto os métodos de condicionamento do indivíduo às expectativas sociais chegam ao cerne da
questão e quais as fronteiras dos conceitos de “ressocialização”, “reeducação”, “reintegração” e,
até mesmo, “inocuização” – especialmente quando confrontados com o senso comum, a falta de
políticas sociais externas ao Direito Penal e o método positivista da psicologia, ciência do
pensamento por excelência, em sua linha behaviorista radical. A metodologia de pesquisa adotada
é bibliográfica e dedutiva, além de qualitativa, por não se utilizar de instrumentos de aferição.
Palavras-chave: Direito Penal. Prevenção Especial Negativa. Laranja Mecânica, Semiótica.
Ressocialização.
1. Introdução
O clássico Laranja Mecânica foi escrito em 1962 por Anthony Burgess, enquanto o filme
foi lançado apenas em 1971, por Stanley Kubrick. É possível agregá-lo com sucesso à seguinte
tríade distópica (sendo o enredo mais próximo da realidade, porque sem grandes novidades
176 Tradução livre: “Você é tão sonhador/para colocar o mundo no lugar?/Eu ficarei em casa para sempre/onde dois
mais dois sempre somam cinco./(...)/É o caminho do diabo agora,/não há como fugir./Você pode gritar, você pode
berrar,/É tarde demais agora.”
Extraído da música “2+2=5 (The Lukewarm)”, do álbum Hail to the Thief (2001), da banda Radiohead.
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tecnológicas): Admirável Mundo Novo, por Aldous Huxley (1932), e 1984, por George Orwell
(1949). Um dos pontos cruciais para compreendê-lo é que o final do livro na edição europeia,
repudiado pelo próprio autor, foi escrito como condição de sua publicação. A película, muito
provavelmente fazendo jus com o que Burgess idealizou (uma vez que foram contemporâneos),
tem conclusão diversa – e a própria edição do livro, nos Estados Unidos, utilizado por Kubrick ao
escrever o filme, vem sem final algum. Entre tantas possibilidades de fim, fica explícito que a
tônica da obra não é dada por ele. O trabalho se concentrará, adiante, no desenvolvimento e em seu
clímax e não tanto nos diversos finais que foram atribuídos à história.
O enredo é construído em uma Inglaterra retrofuturista, alienada, pós-moderna, sexista,
dominada pela violência de gangues juvenis e por um alto grau (do que se pode chamar) de
“pornoterrorismo” ou erotização da violência. Por fim, uma sociedade decadente. A solução
governamental dada para o problema, contudo, é tão violenta quanto: o método Ludovico consiste
em tortura física e psicológica acompanhada de música clássica (arte com a qual Alex sempre se
conectou afetivamente), ou seja, é um método behaviorista de correção177 do delinquente,
característico da Teoria da Prevenção Especial (negativa).
Frutos de sua época, ambas as obras (livro e película) têm componentes estéticos
vigorosos, que merecem análise a priori para melhor compreensão do estado de coisas que se
tenciona retratar. Veremos que o Direito, pretensiosamente, tratará das formas sociais sem que
uma transformação profunda ocorra – ocasionando, no máximo, a tragédia pessoal de Alex.
Sabe-se que as décadas de 60 e 70 tiveram como expoente artístico a Psicodelia, influência
recorrente ao longo das obras: as cores fortes, os arabescos e as cenas em diferentes velocidades
utilizados no filme fazem alusão ao uso de psicotrópicos (especialmente LSD e anfetamina), que,
no texto, são ingeridos pelas gangues misturados com leite, sob o nome de moloko velocet, com a
finalidade de incitá-los à violência.
O contexto vivido por Burgess denuncia o estado latente e crescente da delinquência
juvenil, tal qual um vulcão prestes a explodir. Por isso, as gangues não ficaram de fora de sua
177
O termo “correção” é utilizado, por corresponder com maior precisão ao Programa de Marburgo, de v. Liszt,
porém, a distinção entre os níveis de (in)corrigibilidade pode ser considerada apenas como uma diferença de
perspectiva ou ponto de partida. A “inocuização” é, aparentemente, mais utilizada para fazer referência à pena de
morte e/ou ao isolamento em cárcere perpétuo, medidas que realmente não deixam outra escolha ao delinquente. No
caso de Laranja Mecânica, porém, o método utilizado é de tamanha desumanização, ignorante de todo o viés
garantista e de absoluta limitação de escolhas morais que parece mais adequado tratá-lo como método de inocuização
(e assim preferiria a sociedade que tivesse ocorrido) e não de simples correção, até pode ser que ela não ocorra e se
ocorre, no livro, não é do modo esperado e querido.
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narrativa: ele viveu o auge dos grupos skinheads (e sua rivalidade com os hippies, que, embora não
representados em Laranja Mecânica, deixa sua marca pela constante necessidade de diferenciação,
de negação da alteridade), que ainda não se dividiam ideologicamente nos idos anos 60, e
tardiamente de outras tribos urbanas, como os punks. A vestimenta desses grupos é um forte
indício de exclusão da sociedade e de uma nova identidade compartilhada: roupas bem passadas,
cabelos curtos, coturnos, suspensórios - típicos dos operários jamaicanos na Inglaterra. Em
paralelo, a gangue de Alex DeLarge veste um uniforme branco (há uma constante preocupação de
Alex quanto ao asseio dos trajes de seus companheiros, comportamento típico dos skinheads
tradicionais), com suspensórios e coturnos militares, referência aos grupos supracitados. Ainda,
usam chapéus côco, associáveis ironicamente às autoridades da política, cujo papel no enredo é
determinante.
2. “As queer as a clockwork orange” – análise semiótica dos elementos de Laranja Mecânica
A expressão cockney que deu origem ao título do livro é: “as queer178 as a clockwork
orange”, que significa “tão bizarro quanto uma laranja mecânica”. Entre as possibilidades de
significado dessa expressão adjetiva, a mais plausível é que seja atribuida a alguém sob comando
artificial, que não aja naturalmente, embora tente fazer parecer o contrário. Tal expressão já revela
muito sobre o filme, cujas interpretações seguintes poderiam ser quase inacessíveis sem essa
pequena dica.
Entre um dos maiores méritos de Burgess na autoria de Laranja Mecânica, reconhece-se a
criação do Nadsat, um novo vocabulário para uma nova geração, ainda que com termos que
simplesmente substituíam palavras sem qualquer aparente alteração semântica. A remodelação da
linguagem, explicitamente influenciada por James Joyce, contém elementos do inglês e do russo,
entre outras línguas eslavas, além de repetições para infantilizar propositalmente a pronúncia. Sua
intenção era causar o mesmo estranhamento que os adultos sentiam em relação aos adolescentes –
eis que a linguagem é outro um critério óbvio de formação de subjetividades e merece tratamento
específico, porque capaz de modelar explicita ou implicitamente a realidade. Alex, contudo, até
nesse quesito se revela contraditório: alterna com frequência entre o uso do Nadsat e de um inglês
178 A palavra queer tem também conotação sexual, podendo significar “homossexual”.
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179 ZAVAGLIA (2006, 27) faz considerações interessantes a cerca das relações de cada sociedade com a
interpretação das cores, a partir do paradigma linguístico, visto que a interpretação da realidade se dá diversamente. O
processo de referência (segundo ECO apud ZAVAGLIA) não ocorre, simplesmente: o indivíduo não traz um aspecto
da realidade (a cor propriamente dita) para nomeá-la; ele carrega um conceito cultural no nome que pronuncia, uma
relação semiótica. Ainda: “’Essa articulação do termo é determinada, obviamente por uma dada sensação, mas a
transformação dos estímulos sensoriais em um objeto da percepção é, do mesmo modo, determinado pela relação
semiótica entre a expressão lingüística e o significado ou conteúdo culturalmente correlacionado com ele.’”
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O reality game é o jogo de ambiguidade entre signo e significado, ou seja, aquilo que, enquanto representação,
ainda assim denota ser real.
181 Obras de D. H. Lawrence e Vladimir Nabokov, respectivamente.
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decorada por arte erótica; o Leite-bar (leiteria, lugar onde é servido o moloko) possui esculturas de
acrílico de mulheres nuas nas mais diversas posições eróticas, servindo como mesas ou como
máquinas das quais o leite sai pelos seios, sob manipulação de uma alavanca em forma de falo.
O leite, antes apenas alimento materno para o infante, agora é também produto do orgasmo
– analogia em perfeita sintonia com a aditivação de drogas sintéticas à bebida. A hecatombe
sensorial (que Alex compara à “facas” dentro do corpo) provocada pelo milk-plus182 estimula os
personagens aos atos violentos, tornando-se impossível dissociar o par violência-sexualidade: eles
quase nunca vêm só.
Após a ingestão do moloko, a gangue espanca um professor e um velho, rouba um carro,
dirige na contramão (e causa vários acidentes), invade uma casa183, estupra a esposa e causa
paralisia do marido. Há sentido em revestir as cenas (particularmente as de estupro) com música
clássica: para além do contraste casual entre “belo e feio” que Kubrick imaginou que causaria, há a
criação de uma nova estética com a re-leitura do passado, uma mudança paraláxica – e aqui é
possível associar perfeitamente arte e sociedade pós-modernas, inclusive na instabilidade e
desconforto que causa o novo estilo artístico, carro-chefe de novos estilos de vida. Os ideais de
perfeição e ordem da Revolução Francesa sucumbem mediante à fragmentariedade, à ausência de
metarrelatos, à miséria do significado – o mundo, outrora rígido, torna-se fluído.184
significado.186 A violência que antes era projetada sobre outros campos, será projetada diretamente
contra o objeto de ódio, por exemplo.
O Nadsat, que permitiu o desenvolvimento de novos signos para os mesmos significados,
conseguiu a alteração da essência semântica de tais signos. Referir-se à violência sexual por
“estupro” é completamente diferente do que chamá-la de “entra e sai”. Perde-se a dimensão ética e
o signo é atrelado à dimensão do puro lazer. Não há, aqui, violência simbólica, porém, um ataque
direto ao significado, porque o símbolo que o ostenta não traduz mais a realidade. Esse novo signo
(que assim pode ser considerado porque alterado de tal modo) exige a presença simultânea da
representação e da coisa representada – é ambas. Ocorre o que Minerbo chama de superposição de
signos ou hibridação entre representação e realidade.
A fratura do símbolo leva à dessignificação, à dessensibilização, ao esvaziamento
semântico, à perda de lastro do significado que antes o signo carregava consigo. Esse fenômeno é
tipicamente pós-moderno – estabelece uma correspondência corrediça entre símbolo e significado.
Tal relativismo, tal depleção simbólica pode levar as pessoas à insanidade, posto que nem todos
conseguem lidar com a instabilidade de padrões culturais, valores morais e éticos. Nem todos
podem sobreviver ao caos, de modo a sofrer com tédio, niilismo e angústia decorrentes do
esvaziamento de sentido da vida.
Não restaria a Alex e seus amigos outra alternativa senão o reality game.
186
DÉBORD (2003) atribui a estética da cisão ao capitalismo, mais especificamente, à sociedade do espetáculo.
ZIZEK (apud LOBÃO) diz que “’é o próprio real que, para ser sustentado, tem de ser percepcionado como um
espectro irreal de pesadelo’”. KURZ (apud LOBÃO) diz que essas são as consequências quando a sociedade
capitalista é, ao invés de criticada, esteticizada.
187
Cf. MINERBO, 2007, p. 5.
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porém, também lúdica: e é nesse ponto em que perdem sua maior carga axiológica negativa. A
vontade de Alex de exterminar os valores em declínio da sociedade é bem humorada e se dirige
precisamente sobre os signos (no caso, pessoas) que abandonaram seu significado real (no caso,
orgânico, biológico, emocional) para assumir outro (pessoas que praticam valores descartados, em
última instância, são os próprios valores).
Há no filme uma cena do estupro num palco de teatro, cuja interpretação imediata nos
levanta a seguinte questão: o que é representação (semanticamente, mentira) e o que é realidade
(verdade)? Sob uma nova atribuição de significado, Alex pode cometer o estupro destituído de
valorações morais negativas sobre ele – segundo Minerbo (2008), “ele desfaz o laço simbólico que
unia o significante ‘estupro’ ao significado ‘crime sexual’”: se a alteração da sensibilidade do
espectador não se concretiza, ao menos este estranha o acontecimento, ficando desconfortável. É
provavelmente nesse sentido que o ator Malcom McDowell (2011) afirma ter interpretado um
filme de comédia.
Minerbo (2007) esclarece o extremo ao qual se pode chegar:
O conceito de estupro não existe mais; a idéia de violência sexual se perdeu. A partir
desse ponto, um jovem pode forçar uma mulher a manter relações sexuais, e tudo não
passará de uma brincadeira (de verdade). Vemos agora claramente a relação entre a
alteração na nossa sensibilidade devida à desnaturação da linguagem e a possibilidade de
haver o reality game.
Alex, após ser condenado a 14 anos de prisão, dos quais cumpriu apenas 2, opta pelo
Tratamento Ludovico, uma terapia behaviorista aversiva ou Reforçamento Negativo mediante
respostas de esquiva, que reverte os anos seguintes de sua sentença em apenas 2 semanas. O
tratamento consiste em que Alex sofra certo desconforto físico, enquanto assiste à uma projeção de
cenas de violência em uma tela, que, a partir do segundo dia de tratamento, vem acompanhadas de
83
Beethoven. Passa, pois, a sofrer psiquicamente ao ter vontade de ser violento ou relembrar dos
elementos que compõe o tratamento, beirando o suicídio.
A grande crítica (neokantiana) que se faz ao Tratamento Ludovico é a desumanização de
Alex, sob viés de um Estado necessariamente totalitário e paternalista: ele não é mais capaz de
realizar escolhas entre o bem e o mal. Ele pratica o bem, indiferentemente, e não porque se
identifica na alteridade, no Outro. Foi usado como meio para conseguir um fim, tornou-se objeto.
Uma frase advinda do padre antes que Alex aceite o tratamento, é emblemática:
Ser bom pode não ser agradável, 6655321. Pode ser horrível ser bom. E quando digo isto
a você, eu compreendo como soa contraditório. Eu sei que vou passar muitas noites sem
dormir por causa disto. O que é que Deus quer? Deus quer a bondade ou a escolha da
bondade? O homem que escolhe o mal é talvez de uma certa forma melhor do que aquele
a quem a bondade é imposta. Questões duras e profundas, 6655321. (BURGESS, p. 104)
188
Portanto, um Estado de bem-estar social, intervencionista.
189
E essa dificuldade de diferenciação entre penas e medidas de segurança seria a origem de todas as críticas que se
faz à Teoria Preventiva Especial.
190
Feijoo Sánchez tolera, em diversas passagens, o uso de medidas coativas para grupos cujas circunstâncias pessoais
necessitem de tratamento coativo, incluindo os delinquentes juvenis. Por questões metodológicas, ignorara-se no
artigo tal posicionamento: primeiro porque o autor provavelmente não concordaria que o método Ludovico é uma
simples medida de segurança, mas uma pena; segundo, porque detestável e não humanamente aceitável que um
método de tortura seja aplicado a um adolescente de menos de 18 anos.
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sistema social no qual estão inclusas (ou, sob outra perspectiva, a incapacidade que os meios
científicos tem de controlar os meios externos), Minerbo é direta:
O condicionamento do comportamento pressupõe que o ser humano pode ser tratado
como um animal destituído de linguagem; e que se pode ignorar a determinação simbólica
da subjetividade, passando-se ao largo dela. Assim, a falta de confiança na força do
símbolo parece determinar os dois lados da moeda: a própria violência e o tratamento
proposto. (2007, p.1)
A sociedade que propõe a prevenção especial negativa o faz sob o pressuposto de que a
constituição da civilização implica em um silenciamento consensual das subjetividades, um
acordo. Alex existe, anárquico, libertário, para ser a voz de todos os desejos reprimidos, de todas
as subjetividades sufocadas durante o processo. O modelo social que lhe foi atribuído (classe
média, em um Estado intervencionista, portanto, relativamente conformado) não é capaz de
integrá-lo.
Ainda, deve-se observar o que se quer com o conceito de “delinquentes incorrigíveis”.
Realmente existiriam? Que critérios seriam passíveis de determiná-los? O paradigma científico do
positivismo, impreciso, foi derrotado exatamente na medida em que é incapaz de comprovar tais
afirmações, tampouco de educar o ser humano para o uso de sua liberdade em condições nas quais
ela não existe. O ideal de ressocialização não poderia estar, senão, em crise.
É coerente afirmar que “la resocialización no puede ser el fin primordial de la pena em
nuestro ordenamiento jurídico, sino que se debe entender como una obligación para un Estado
social y un derecho para el recluso, ...” (SÁNCHEZ, 2008, p. 229).
3.2 Ultraviolências
ANITUA (2008, p. 499) expõe algumas teorias criminológicas de explicação social para a
formação de gangues, com predominância da Escola “progressista” de Chicago191. Elas divergem
em considerar ou não as novas culturas criadas pelas gangues como subculturas ou contraculturas
(ou seja, se aceitam ou não os valores culturais dominantes e, caso o façam, porque delinquem). A
explicação de SYKES e MATZA (apud ANITUA, 2008, p. 507) para que os jovens continuem
191
Composta por teóricos que, apesar de considerar a competitividade e a pressão social para se adaptar aos valores
culturais da sociedade capitalista os fatores que levam jovens de classes mais baixas a delinqüir, desordenadamente,
consideram arriscado abolir completamente a competitividade. O epíteto de “progressista”, portanto, não se estende a
uma nova ordem social, como poderia ser de se esperar. O que a Escola propõe, condizentemente com a ideologia
social-democrata, é o oferecimento de melhores condições e oportunidades de trabalho para esses jovens, sem romper
com a lógica capitalista.
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4 Conclusão
Alex é humano ou menos humano do que o resto da humanidade? Ele merece o tratamento
que lhe foi imposto? A sociedade pode impor seus valores sobre o indivíduo? Em que
circunstâncias e sob quais aspectos? Não era, afinal, a sociedade o problema, posto que Alex é
apenas um fruto dela ou ele deixou de fazer concessões em nome do bem geral? A política
criminal adotada foi boa ou ruim? Ela o tornou menos violento? Ela reintegrou Alex e sob que
aspectos? Quão caro moralmente foi o procedimento?
Das questões acima, resta a certeza de que o método Ludovico é inviável. Descontextualiza
o sujeito sob outra perspectiva, ao invés de recontextualizá-lo de modo saudável. Alex é enfermo
antes e depois dele, com a diferença de que seu estilo de vida anterior ainda lhe permitia a escolha
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moral. Em uma sociedade como a qual lhe fora imposta, não é difícil compreendê-lo ou até mesmo
sentir compaixão em certo nível. Se nem mesmo as relações pessoais mais íntimas são
humanizadas (as relações familiares ou as entre os amigos), como poderia Alex ser de outra
forma? Como não poderia sentir prazer em ser cruel em meio a frieza e a hipocrisia ou, ainda, com
valores que o desagregam da esfera social? Como não subjugaria o gênero feminino192, qualquer
que fosse o estilo de vida que adotasse – criminoso ou ordeiro –, em uma sociedade que não
apenas sexualiza absolutamente tudo (porque isto não é em si um problema, se as pessoas forem
felizes desse modo), mas atribui à mulher o papel daquela a ser dominada, de mais fraca
(WITTIG, 1992, p. 7)? Como se quer Alex honesto, com políticos corruptos e que promovem a
alienação do povo em diversas esferas ou intelectuais e pais oportunistas e desinteressados de seu
compromisso social? Os amigos de Alex, outrora integrantes de sua gangue violenta e caótica,
tornam-se policiais, “vigilantes da ordem” – o espectador (ou o leitor) não poderia ter se deparado
com maior inversão de valores na trama.
A conduta que se quer de Alex não é encontrada em nenhum outro lugar, em nenhum
momento, porque a moral que a sociedade busca não é prática: Alex não é capaz de sobreviver
sendo absolutamente honesto.
O tratamento Ludovico é, idealmente, sufocante: promove o consenso total. Ao retornar,
Alex torna-se de novo o ponto de discórdia: ele promove o discenso por ser bom demais. O
paradigma do filme é o contraste: entre as palavras e seus significados, entre as diferentes
linguagens que as personagens usam, entre o que é hegemônico e o que é contrahegemônico de
fato, entre a conduta que se considera positiva e a conduta que se recusa, entre o que se quer como
política criminal e os riscos que não se quer assumir ao planejá-la.
Por vezes, nega-se aceitar que a delinquência, enquanto recusa expressa a um valor
positivado, é o próprio confronto entre uma opinião individual e uma coletiva. Esse confronto
pode, eventualmente, ser incorporado pelo sistema jurídico, mas, na prática, é absorvido pelo
sistema penitenciário.
Deve-se considerar que a classe para a qual se dirige o Direito Penal é a mais baixa – seu
caráter seletivo é notabilíssimo –, pois foi criado pelas elites dirigentes. O Código Penal brasileiro,
por exemplo, imputa como mais graves os delitos de “colarinho azul” (patrimoniais de pequena
192
Ainda que cometa ultraviolência das mais diversas diversas formas, o estupro lhe parece ser o delito favorito e isso
não pode ser mero acaso, posto que é o mais ultrajante, para qualquer dos gêneros.
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ordem) e de tráfico (contra o qual a cruzada, infrutífera, é promovida com a mesma intensidade do
que contra terroristas) que delitos de “colarinho branco” (patrimoniais de grande ordem),
relativamente. A superlotação das penitenciárias se dá por causa do primeiro tipo e não por causa
do segundo, embora o montante desviado por lavagem de dinheiro e corrupção ainda seja
desconhecido ao todo.
Alex, que não comete crimes patrimoniais e que raramente tem a intenção de conseguir
vantagem financeira, porém, que comete crimes mais ou menos variados e valorados como
hediondos, faz parte de um contexto implicitamente de classe média baixa193. Ele é um jovem
insubordinado em um mundo sem esperanças, lacônico e artificial.
A ultraviolência mantém o equilíbrio social: é necessário que a revolta exista para que o
Estado acione seu mecanismo e reprima o indivíduo. As laranjas mecânicas são rebeldes, mas
cúmplices do próprio sistema. Que o clamor social, ao tentar combatê-las, não nos torne
igualmente mecânicos: o Direito Penal não é o espaço para a resolução dos problemas que mais
aflingem a população, mas o espaço para a criação do consenso (máximo ou mínimo) forçado, da
violência máxima ou “apenas” do silêncio. É o lugar onde o Estado pode dizer que 2 mais 2 é igual
a 5 sem titubear.
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Patrick Magee; Adrienne Corri; Miriam Karlin; Godfrey Quigley; Anthony Sharp; Warren Clarke.
193
A entrada do edifício no qual mora sua família é vandalizada, o elevador fora quebrado.
89
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1971. 1 DVD (137 min), son., color. Título original: Clockwork Orange.
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